A construção da ética da vida ou da amizade, por meio dos conselhos1 João Clemente de Souza Neto2 Este texto reflete sobre as relações sociais e o processo de participação nas diferentes esferas públicas do município como meios para a construção de uma política da vida. Os direitos sociais preconizados na legislação brasileira exigem organização e políticas sociais efetivas e eficientes para proteger o cidadão das ameaças à liberdade e à satisfação de necessidades básicas. A concepção de direitos humanos é a da universalidade do conteúdo de um pacto internacional, sobretudo no que se refere à criança e ao adolescente. No contexto brasileiro, a educação e a assistência social abrem brechas de emancipação, que tendem a melhorar a qualidade de vida (Souza Neto, 1999:60). Os conselhos são esferas públicas privilegiadas para garantia dos direitos sociais constitucionais. Os Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente-CMDCA e o Conselho Municipal da Assistência Social-COMAS atuam como laboratórios de ações pedagógicas para formulação de políticas de atendimento que garantam o desenvolvimento da vida. Para concretizar os ideários de igualdade, fraternidade e justiça social, as forças sociais devem se articular e no município, assim, construir uma esfera pública fundada na ética, na transparência e no direito, em vista de um de atendimento público de qualidade. O Estatuto da Criança e do Adolescente ECA, artigo 86, estabelece o desenho de uma rede de proteção. “Estamos aqui nos referindo à implementação, ao longo da última década, dos vários conselhos, fóruns, câmaras setoriais, orçamento participativo etc. Esse processo de democratização, que se inicia com a luta contra a ditadura militar e se estende aos nossos dias, sem previsão quanto ao seu término, não é linear, mas deve ser entendido como desigual no seu ritmo, nos seus efeitos sobre as diferentes áreas da vida social e política, combinando avanços, estagnação e até mesmo retrocessos” (Dagnino, 2002:10). Mais do que mecanismos de controle, dominação ou transferência de responsabilidades, as políticas sociais e as práticas de solidariedade tendem à emancipação, sem aderir às concepção liberal que pretende transferir a 1 Texto elaborado a partir de pesquisas realizadas no UNIFIEO. João Clemente de Souza Neto é doutor em Ciências Sociais, professor e pesquisador no UNIFIEO e na Universidade Mackenzie, Coordenador da Pastoral do Menor da Região Episcopal Lapa e membro do Instituto Catequético Secular São José. 2 1 responsabilidade do Estado à sociedade civil. O embate entre a sociedade civil e a política expressa tem em vista uma nova composição social que permita à classe trabalhadora conquistar novos direitos. Essas mudanças provêm de um organismo social complexo e pressupõem uma vontade coletiva. Investe-se nos conselhos, para reverter o mal-estar social. Existem mais de 27 mil conselhos distribuídos em mais de 5.500 municípios,3 além dos conselhos nacionais, estaduais e do Distrito Federal. Os conselhos municipais exercem função controladora das políticas sociais, por meio de reivindicações ou indicação de caminhos, em caráter deliberativo e não executivo. Influem nas decisões do Estado, porque agregam e canalizam as forças sociais, e dão certa visibilidade às lutas políticas: “O conselho não quebra o monopólio estatal da produção do Direito, mas pode obrigar o Estado a elaborar normas de Direito de forma compartilhada [...] com a sociedade civil. [...] Os conselhos devem se deter sobre medidas que visem ao reordenamento institucional dos órgãos da administração pública responsáveis pela execução das políticas sociais dentro do seu campo específico de intervenção.” (Moreira, in Dagnino 2002:50.) Os conselhos sensibilizam a sociedade e o Estado para o cumprimento de uma política dos direitos. São ferramentas para construção de uma sociedade mais eqüitativa, por meio de um processo participativo de avanços e recuos, de continuidade e descontinuidade, de rupturas e retrocessos, que defendem os que têm os direitos violados ou ameaçados, sem possibilidade de resolver todos os problemas, uma vez que podem ser contaminados pelas fragilidades e limites de uma cultura política autoritária como a nossa. Uma conselheira da Região Oeste da Grande São Paulo assim descreve sua percepção dos CMDCAs: “Temos que discutir a noção e a atribuição dos conselhos. Apesar de seus limites, é um modelo que foi adotado na Constituição e no Estatuto, para conquistar, garantir e transformar a cultura de negação de direitos em democracia. É uma prática democrática que é resultado de um processo histórico que precisa ser aperfeiçoado. Um dos maiores limites é que nem o poder público e nem a sociedade conseguiram assimilar a proposta do conselho. O conselho não é uma coisa privada, um espaço de amigos. É um espaço que concretiza as lutas em favor dos excluídos. As autoridades não 3 Fonte: IBGE. Diretoria de Pesquisas. Departamento de População e Indicadores Sociais. Pesquisa de Informações Básicas Municipais 1999. 2 respeitam os conselhos, nem mesmo a sociedade. Mas todos os espaços de luta têm que conquistar o respeito, porque as conquistas dos conselhos são também dos trabalhadores e excluídos. Como quem está no poder só pensa em si, não vai aceitar as propostas do conselho. Mas, aos poucos, vamos mudando esta visão.” (Conceição, 10/05/2003.) O depoimento desvela o coronelismo impregnado nas políticas municipais, que trava o avanço da democracia e dificulta um padrão de políticas sociais que elimine a desigualdade social. Talvez uma das maiores dificuldades neste campo é que pessoas e instituições usam desses espaços como braços de interesses políticos e econômicos. Daí o desafio de fortalecer os mecanismos institucionais de gestão pública para que sejam capazes de superar “[...] o atual padrão de políticas sociais e do trabalho, fundado na setorização das ações, na desarticulação dos programas, na focalização de clientelas e na falta de integração operacional. Até o momento, o resultado disso tem sido a baixa eficácia das políticas sociais e do trabalho para romper com o ciclo estrutural de produção da exclusão social no Brasil [...]” (Pochmann, 2003:33). Apesar de ser um dos dez primeiros lugares, quanto ao produto interno bruto e ao território, o Brasil não atende às necessidades básicas de cerca de 52 milhões de brasileiros, ou seja, um terço da população ou 17,3 milhões de famílias. O mapa da desigualdade social, pautado nos critérios do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada-IPEA, revela que as políticas sociais e alguns programas do Governo não diminuem a desigualdade. Somente um projeto de políticas sociais e econômicas que melhorem o sistema de distribuição da riqueza nacional poderia criar uma contra-hegemonia capaz de reverter esse quadro. Políticas sociais e assistenciais municipalizadas, que interferem na formação da subjetividade e na criação de condições para que o sujeito ressignifique e transfaça sua história (cf. Souza Neto, 2002), poderiam reduzir a violência doméstica, os abusos e exploração sexual contra crianças e adolescentes, a privação de direitos da família e de sua prole, de modo curativo e preventivo. Vítima da fome e da seca do sertão nordestino, e da falta de políticas, Raimundo se sentia culpado pela morte da mãe. Cresceu com o desejo de estudar para ler as cartas que ela deixara. Mudou para Carapicuíba, SP, onde terminou o primeiro grau e fez o supletivo colegial. Hoje, está na universidade: “Graças à ajuda do Estado, eu pude estudar. Tenho dentro de mim uma força 3 que luta para superar toda dificuldade. Tem dia que não tenho dinheiro para pagar o ônibus para vir à escola. Ando duas horas a pé. Gasto todo meu dinheiro pra estudar. Às vezes, não tenho nem tempo de sair com minha mulher. E também porque não temos dinheiro. Mas espero terminar o curso e voltar pra minha terra, e lá ajudar as pessoas a descobrirem o gosto e o prazer de conhecer o mundo. Tenho medo de decepcionar a minha mãe e meus familiares. Da minha casa, entre meus parentes, eu sou o primeiro a fazer um curso superior. Meu pai e meus primos, quando vou lá, ficam me perguntando o que é a universidade. Eu falo dos quadros, dos professores, dos colegas, mas também dos professores da quinta à oitava e do colegial.” O depoimento deixa transparecer que a subjetividade é uma força impulsionadora construída no decorrer da existência. Nasce o sujeito criativo, empreendedor e ético, quando o permitem as escoras sociais e a estrutura interna.. Não há mudanças no cotidiano e na história sem a participação do sujeito que, neste processo, produz sentidos. No município, o sujeito deve lutar para eliminar formas de e práticas de autoritarismo que repercutem para além dos limites geográficos da cidade. Deixar-se dominar ou explorar fortalece a prática tirânica, leva ao esquecimento da liberdade, ao abandono da amizade, à perda do gosto e do desejo da liberdade e da felicidade. Livres por natureza, os seres humanos criam mecanismos de aprisionamento, cadeias e sistemas de exploração, e julgam, assim, satisfazer suas necessidades. “A natureza nos põe no mundo livres e sem cadeias; somos nós mesmos que nos aprisionamos nos lugares.” (Montaigne, in La Boétie, 1986:209.) Mas, o processo de participação e a construção da subjetividade pautados na ética ensinam que a justiça, a liberdade e o desejo nunca morrem, só ficam adormecidos. Vez a vez, despertam e se recriam pela ação das forças sociais e dos sujeitos. A política da vida ou da amizade no município visa propiciar ao indivíduo a liberdade e a autonomia. A participação pode desencadear a política da vida ou da amizade, que se opõe à servidão. O processo de participação no espaço local é uma ação transformadora e criadora capaz de reunir as condições para uma nova realidade social. Ele envolve um conjunto de forças articuladas dentro e fora dos limites municipais, que se empenham na redução das formas de exploração e de exclusão. É nas brechas dessas lutas que pessoas como Raimundo encontram as estratégias para alterar seu cotidiano. Quando prevalecem a desigualdade e a exploração, os direitos 4 sociais só aparecem no discurso e nas leis, sem realizar as transformações sociais. O desafio que enfrentam as políticas sociais em todo o Brasil é a promoção da justiça distributiva, na linha do que Oliveira denominou de antivalor. A política da vida ou da amizade é a utopia da humanidade para romper com a exploração e deixar emergir a fraternidade, a solidariedade, a justiça e o amor. Sabem seus operadores que a desigualdade social e a exploração desumanizam e coisificam as relações sociais. Nela, orientado pela bioética, o sujeito se envolve na construção da res publica, de subjetividades saudáveis que respeitam as diferenças e evitam a destruição da vida. Por diferentes perspectivas, encontramos subsídios para essa concepção em autores como La Boétie, Gramsci, Luxemburgo, Giddens, Heller, Deleuze, Guattari e Pereira, que têm como elemento comum a emancipação da humanidade. A política da vida é uma utopia a ser construída no cerne das correlações de forças sociais e na intersubjetividade. No município, ela estabelece relações mais fecundas entre governo e governados, permitindo qualificar conflitos e contradições sociais, sem legitimar práticas de exploração nem justificar o desenvolvimento do capital em detrimento do social. Na maioria das vezes, os direitos humanos e da democracia estão a serviço do capital e da classe dirigente (Marx e Gramsci). De nossa parte, o que denunciamos são os comprometimentos da política de direitos humanos com a reprodução da desigualdade social. O bem-estar social no município provém de lutas contínuas que mudem a consciência política dos gestores das políticas públicas e a subjetividade dos munícipes e dos usuários de políticas sociais.De acordo com nossas pesquisas, cremos que o estímulo à participação no poder local, sem negar outras forças sociais nos Estados, Nações e organismos internacionais, desenvolve um entusiasmo operoso que propicia alternativas ao sujeito. As políticas sociais pode ser um instrumento pedagógico para disseminar a consciência crítica dos deveres e direitos na cidade. A municipalização tenderá a ser bem sucedida quando fizer “[...] convergir sobre seus termos a atenção dos companheiros e das associações. Somente através de um trabalho comum e solidário de esclarecimento, de persuasão e de educação recíproca, nascerá a ação concreta de construção” (Gramsci, 1980:33). Entende Gramsci que as comissões e a democracia operária devem ser libertadas da cultura e das limitações impostas pelos empresários. Mas, no conjunto de sua obra, há indicadores de que essa afirmação se pode aplicar às análises dos conselhos e do processo de participação nos municípios. Os conselhos 5 e o processo de participação, nos municípios brasileiros, devem se libertar da cultura autoritária e dos projetos políticos de corrupção e de exploração da classe dominante e daqueles que impedem a concretização da vida. A vida depende das políticas sociais, mas não se reduz a elas. Os laços de amor e solidariedade no município permitem satisfazer os carecimentos do sujeito. Por esse olhar, aparece a necessidade do intercâmbio entre as subjetividades e o meio ambiente, para o desenvolvimento da personalidade. O sujeito e a sociedade não se constroem só com normas internalizadas, mas desenvolvem seus talentos pela experiência do amor. Amamos valores, lugares, Deus e os animais. Mas, somente o amor entre pessoas é que satisfaz a necessidade de amar e ser amado, “[...] porque o amor a pessoas estabelece e restabelece a ligação humana [...] aquela que transcende a determinação social” (Heller, 1989:427). A política da vida tende a desenvolver laços humanos saudáveis para que o indivíduo, desde criança, perceba que a felicidade do outro é também a sua. Estar ligado a um ser humano significa estar conectado com a raça humana e o cosmos. A política da vida está sendo desenhada, no Brasil, por meio das práticas de solidariedade, dos movimentos democráticos e em prol dos direitos, e pelos conselhos, em todos os âmbitos. Mesmo que tênues, formam padrões dinâmicos da vida social, com as condições para aglutinar a sociedade num espírito de entusiasmo e de vontade operativa em busca da redução da desigualdade social. As soluções são sempre provisórias e requerem novas respostas depois de certo tempo. Num primeiro momento, as soluções são sempre repetidas. Numa nova etapa, há necessidade de se encontrar novos caminhos. Tanto em Hegel, quanto em Marx e em Gramsci, por perspectivas diferentes, criar é a primeira e a maior necessidade humana. Por isso, os conselhos e os movimentos por direitos sociais devem sempre estar numa práxis criadora. Quando se burocratizam, perdem a força. O ordenamento burocrático só se justifica quando a vida não reclama novas soluções. A realidade brasileira não é somente construída pelo caos, pelo fracasso, mas também pelas possibilidades e potencialidades. Os Relatórios do Desenvolvimento Humano4 e o IPEA5 constatam que nas últimas décadas o Brasil melhorou, sem ter conseguido reduzir a desigualdade social. As políticas sociais, que serviriam a esse fim, são mais instrumentos de 4 5 Pnud, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Instituto de Pesquisa Econômica e Análise. 6 reprodução do que de redução da desigualdade. Gasta-se muito com elas, mas sem atingir os excluídos. A desigualdade não é uma categoria abstrata, mas concreta, que reflete o modelo de concentração de renda, e não apresentou sinais de melhora nos últimos vinte anos. Em 2001, os 10% mais ricos do Brasil ganhavam quase 19% mais do que os 40% mais pobres. No cálculo da distribuição da renda entre os 50% mais pobres e o 1% mais rico, o grupo mais favorecido ficava com 13,3% do rendimento, quase o equivalente aos 14,3% acumulados pelos 50% mais pobres. No Relatório do Desenvolvimento Humano de 2002, pelas variáveis renda, longevidade e educação, entre 1990 e 2000, o Brasil se manteve na faixa do desenvolvimento médio, graças às políticas sociais que ampliaram as oportunidades de educação, saúde, cultura e lazer, passando do índice 0,709 para 0,764. No Atlas de Exclusão Social do Brasil (Pochmann, 2003), porém, a desigualdade social piorou. Em 1960, o índice era de 0,352; em 1980, o índice de 0,503 elevou o país do baixo para o médio desenvolvimento; em 2000, regrediu para 0,242, de baixo desenvolvimento humano. Quanto a outros índices, melhorou: na pobreza, passou de 0,342, em 1960, para 0,606; no emprego formal, saiu de 0,443, em 1960, para 0,525; em alfabetização, passou de 0,592, em 1960, para 0,696; em escolaridade, foi de 0,430, em 1960, para 0,455; em violência, saiu de 0,865, em 1960, para 0,602. No ranking do desenvolvimento humano, o Brasil se encontra no 73.º lugar, abaixo da Tailândia, Arábia Saudita, Venezuela, Colômbia, Santa Lúcia, Cuba e México. Esses dados mostram que as políticas sociais brasileiras não reduzem a desigualdade social, mas melhoram a qualidade de vida. Nos últimos vinte anos, a exclusão foi reduzida, e isto nos induz à necessidade de compreender essa realidade dinâmica e complexa, em si mesma e em comparação com outros países. O Brasil é tido como a décima quinta economia do mundo. Mesmo assim, persiste a desigualdade social. O Pnud de 2004, com base nas informações de 2002, mostra que um quarto da população brasileira vive abaixo da linha da pobreza, com até dois dólares por dia. Assim, dificilmente o País cumprirá a meta de reduzir a pobreza até 2015. Apesar dos investimentos nas políticas de educação nas últimas décadas, ainda não possui uma cultura de direitos. Boa parte daqueles que passaram pelas escolas não adquiriram um capital cultural (Bourdieu) e muitos nem conseguem interpretar ou reproduzir um texto lido. Entretanto, sem o acesso à escola, mesmo sucateada, a situação seria pior. Um dos desafios, portanto, é descobrir uma proposta pedagógica que desperte a criatividade, as energias dispersas dos alunos. 7 O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente-CONANDA acredita na necessidade de se valorizarem as experiências bem-sucedidas que introduziram um novo modelo de gestão educacional, acompanhadas da revalorização do professor e da participação da comunidade na escola (cf. Diretrizes das Políticas Sociais - [email protected] - www.mj.gov.br ). O desafio é criar uma cultura política que ultrapasse a pretensão de querer resolver as necessidades humanas e sociais apenas pelo aspecto jurídico. A solução dos problemas sociais requer também mudanças no modelo econômico, cultural e ético. O espaço público deve buscar o equilíbrio entre o desenvolvimento social e o econômico, oferecer as condições para o acesso universal aos bens culturais, tecnológicos e econômicos. Essa realidade aparece num depoimento de uma conselheira do NE, em julho de 2004: “[...] os políticos e os que detêm o poder econômico falam daquilo que não vão fazer como se já o tivessem realizado. Falam da ética, para esconder sua ganância, que destrói todas as pessoas e a própria natureza. Estamos vivendo um desastre social nos últimos dez anos. Agora, a história nos coloca numa situação de encontro de dois rios. Um, trazendo as águas da corrupção e da ditadura; o outro, da emancipação e da democracia. Eles se misturaram e agora não sabemos mais quais são as águas da democracia, quais são as da ditadura. Quando nos reunimos no Conselho, o lado governamental só deixa acontecer o que é de seu interesse; não respeita a sociedade civil. Por outro lado, a sociedade civil se deixa encantar pelas migalhas dos governos; é cúmplice da corrupção; não enfrenta o governo. De vez em quando, como se fosse um raio, um dos dois setores mais comprometidos com a democracia reage, criam-se conflitos, e aí se percebem as águas da democracia. Apesar dos limites do Conselho, aqui no Norte e Nordeste, é a única ferramenta, a única escola que temos para construir a democracia. As grandes conquistas e garantias de direitos para as crianças, os adolescentes e as mulheres vêm deste espaço. As organizações do campo democrático, teimosas como um riacho, sempre influenciam os rios e os mares; são aqueles grupos que não deixam o sonho da democracia e da cultura da vida morrer. Os Conselhos são o campo propício para escutar os clamores do nosso povo. Temos que utilizar o Conselho para destruir a ‘besta fera’ da exploração e da corrupção, que toma o leite dos inocentes, tira a terra do trabalhador e a casa das 8 famílias, produz uma multidão de andarilhos desenraizados e que força o ser humano a destruir os seus próprios, não respeitando nem os filhos, nem as esposas e nem as mães. É uma sociedade fundada na maldade e na destruição. Mas temos o sonho de um dia cada pessoa ter o seu cantinho, não como um presente dos políticos, mas como um resultado das nossas lutas” (Nazaré, conselheira do Nordeste). Circunscrevemos essa realidade no cerne das relações sociais, para não incorrermos numa visão ingênua, “basista” ou maniqueísta, de conceber as questões sociais apenas como frutos do bem e do mal. A fala de Nazaré é carregada de sofrimento e desencanto, mas com o otimismo de quem crê em mudanças sociais. Nela se percebe que o novo está entre nós, mas que velho suga suas energias e se ancora no tradicionalismo que perpetua a corrupção e a exploração, tensão apontada por Gramsci. Os conselhos não fogem a essa ambigüidade. A política da vida ou da amizade no município exige dos gestores a escuta e a valorização dos sonhos saudáveis dos munícipes, propiciando-lhes as condições para realizá-los. O livre crescimento de cada um, com o livre desabrochar de todos propicia maiores resultados da ação política (cf. Marx, 1982). O livre desabrochar da vida para todos vem da luta contra a desigualdade, o analfabetismo, o abuso e exploração de crianças e adolescentes, entre outras mazelas. Mas a desigualdade social tem que ser pensada, também, dentro e a partir das implicações da política econômica internacional. “O combate à pobreza e às desigualdades sociais nos países subdesenvolvidos constitui uma necessidade ética, econômica, social. Tratase de uma urgência que precisa de nosso apoio.” (Salama e Valier, 1997:183.) Nenhuma intencionalidade política radicalmente transparente pode ser compreendida fora das correlações de forças sociais e subjetivas. Não há uma realidade objetiva dada, mas interpretada e desvelada a partir das ações humanas. As práticas políticas sempre se defrontam com os sujeitos e com as forças sociais que buscam ou não a emancipação da humanidade. Na esfera pública municipal, sujeitos, classes e partidos articulados em um ou vários projetos sociais mostram a necessidade de determinadas organizações. Se o sujeito deste processo começar a dar vida própria para esse tipo de organização, e não se reconhecer nela, e esperar que ela por si só resolva seus problemas, terá como resultado o fortalecimento do fetiche, que é também um produto da cultura paternalista e autoritária construída ao longo dos quinhentos anos de Brasil. A filosofia da práxis permite ao sujeito recusar 9 as análises monistas, maniqueístas, idealistas ou positivistas, das relações sociais, e romper com o fetichismo na ação política. Os canais de participação no município devem gerar um encantamento operante, para não desanimar e nem criar fantasias de que, sem o empenho do sujeito, os organismos públicos estatais e não-estatais irão garantir os direitos sociais. Sem a participação dos indivíduos, eles são inoperantes e acabam se transformando em instrumentos burocráticos. Uma visão determinante e mecanicista de que as coisas acontecem sem a intervenção do sujeito conduz as massas populares à passividade. Não perceber as contradições, conflitos e correlações de forças no município é contribuir para transformar a política numa religião de controle dos subalternos e escamotear a desigualdade social, realidade essa denunciada por Marx e Gramsci. Não circunscrever os direitos sociais na correlação de forças é mutilar a democracia. A política da vida ou da amizade deve conduzir a população a sair da passividade, da condição de vítima e lutar para conquistar seus direitos. O sujeito ativo contribui para mudar o ambiente e conservar outros valores (cf. Gramsci, 1980:154). Quando as forças subjetivas e sociais se articulam, mesmo dentro de certas contradições e conflitos, em vista da construção da res publica, favorecem alguns direitos da classe trabalhadora. Dentro dessa concepção, refletir sobre o poder local como espaço privilegiado de satisfação ou negação dos carecimentos humanos é entender as políticas sociais, sobretudo a assistência social, a saúde e a educação, no bojo da desigualdade social e como mecanismos libertadores tanto quanto opressores. Desde a colonização, a desigualdade social deixa marcas nas formas de ser, sentir, pensar e agir da sociedade brasileira. Decorre daí uma cultura de favorecimentos que interpreta a pobreza como natural e não histórica, considera o pobre como impotente e incapaz, impede a satisfação das necessidades materiais e espirituais,6 reduz o ser humano a uma coisa. Para impor os interesses e desejos de grupos, a população empobrecida tem seus direitos violados e não é tratada como sujeito, sobretudo o trabalhador semiqualificado, o desempregado, a criança, o 6 “Espiritual” , da tradição alemã, sobretudo por meio de hegelianos e marxistas, não diz respeito a uma perspectiva mística no sentido religioso, e sim ao sentido estético e cultural do termo. A arte tem um caráter espiritual, que eleva o espírito humano. Precisamente por isso “[...] é decisiva para a estética de repensar com verdade objetiva, e ao mesmo tempo como um mundo humano, adequado ao homem, uma realidade existente independente da existência humana. Esta necessidade impõe a referida universalização da subjetividade no particular, bem como a superação de qualquer puro universal na subjetividade humanizada do particular” (Lukács, 1970:188). Na estética marxista, as dimensões espiritual e material coexistem, o ser se fortalece no ter e vice-versa. 10 adolescente, o jovem, o idoso, a mulher. Essa perspectiva possibilita um melhor entendimento da realidade brasileira pelo prisma gramsciano. Se não houve no Brasil uma revolução radical, no sentido de alterar o modo de produção, podemos dizer que há uma revolução passiva quase permanente que acaba por produzir uma revolução da subjetividade (cf. Gramsci, 1999 e Souza Neto, 2003). “Faz mais de dez anos que eu milito na área da criança e do adolescente. Às vezes, a gente perde a esperança. Os políticos, deputados, vereadores, prefeitos, governadores, não respeitam a criança e nem a legislação. Qualquer acordo feito no Conselho só vale se se transformar em voto. Por outro lado, a sociedade também está desanimada. Os representantes só querem ganhar espaço. Mas tem também várias pessoas que acreditam na luta. Algumas reuniões os representantes do governo não participam, porque vão contra a vontade do prefeito. Outra hora, faltam os representantes da sociedade civil, que estão sobrecarregados em suas atividades. Em outros momentos, conseguimos influenciar e até determinar mudanças na política. Ressalto que minha participação no conselho mudou minha própria vida.” (Conselheira da Região Oeste da Grande São Paulo.) O depoimento permite avaliar a fragilidade dos CMDCAs na formulação de políticas sociais e na geração de representações sociais. Se o poder público que pode esvaziar e direcionar o conselho, para convalidar seus interesses, os representantes da sociedade civil também encontram poucos respaldos e condições para interferir nas decisões do governo. Um certo isolamento das lideranças e do próprio conselho dificulta a articulação com os setores da sociedade. O ideário dos conselhos é de ser um espaço público de discussão e composição plural. Por este prisma, devem ser espaços de articulação das forças democráticas, de diálogo com todas as representações políticas da cidade e da Região. “A formulação das políticas sociais não pode ser pensada apenas pela perspectiva de um grupo ou de um conselho. Na nossa região, os municípios estão muito próximos, as crianças, os adolescentes e os problemas migram de um espaço para o outro e, na própria cidade, as questões sociais estão interligadas, o que requer uma rede local e intermunicipal. As políticas sociais devem ser pensadas na linha intersetorial. A saúde não deve se preocupar apenas com a condição física e mental dos pacientes, mas com todo o seu desenvolvimento, no sentido cultural e educacional também. Assim, a 11 educação, a assistência..., essas políticas têm interfaces e precisam ser pensadas e organizadas com foco nas famílias. O ECA propõe a rede de proteção integral da criança e do adolescente. A rede tem que ter por base esta perspectiva.” (Representante do Conselho da Região Oeste da Grande São Paulo, Ana Cristina.) As organizações sociais e os movimentos sociais do campo democrático surgem a partir de uma resistência aos projetos políticos de cunho autoritário, que agem de forma descentralizada e integrados em rede. Essas redes não são simples espaços de distribuição de oportunidades e formulação de políticas sociais, mas produtoras e distribuidoras de atitudes e comportamentos de uma cultura de direitos. O depoimento mostra a necessidade de uma rede na Região, para fortalecer a doutrina de proteção integral. A noção de rede vem da informática e de outras formas de tecnologia. As redes populares produzem uma ação às vezes um tanto desarticulada, mas geradora de um novo modelo de gestão das coisas públicas. Talvez o sistema de rede mais bem desenhado seja o da cidade de Olinda, em Pernambuco. Apesar de embrionária, traz mecanismos de avaliação que permitem a um grupo cobrar de outro, de forma horizontal e não hierarquizada, e possibilita um processo de avaliação não só como controle, mas também como aperfeiçoamento das ações. Os desafios que se colocam aos conselhos e às redes é de materializar suas potencialidades, superando atuações pontuais, informais e fragmentadas, para ações articuladas, no interior do Estado, com o objetivo de alterar os conteúdos, os métodos e a gestão das políticas sociais, bem como conscientizar a sociedade e garantir a inserção das questões da criança no planejamento global e estratégico do município, do Estado e da Federação. Esse exercício democrático requer a desconstrução ideológica, tanto da parte do poder público quanto da sociedade civil. A cultura hegemônica que permeia o imaginário das “classes dominantes e subalternas”, de autoridades e políticos, concebe a vida como um favor e não como um direito. Esta visão reforça as relações sociais fundadas na tutela e no favoritismo, privilegia a implantação e o desenvolvimento da tirania, marginaliza os pobres de maneira geral. Uma das características do mal-estar social brasileiro é o privilégio da esfera privada em detrimento dos interesses públicos por parte do Estado. Este modelo político e econômico, em que a corrupção e o mau uso da coisa pública, a exemplo do sucateamento da educação e de outras políticas sociais, transformam-se em instrumentos de negação da democracia e geram a pobreza. A 12 municipalização das políticas sociais no Brasil, a partir dos anos oitenta, pode ajudar a melhorar a qualidade de vida da população, criar condições para um salto qualitativo rumo a uma cultura democrática fundada no ético-político e fortalecer as forças reacionárias que desejam a permanência da cultura de corrupção. A dinâmica dos movimentos de reforma traz em seu bojo a luta entre as forças tradicionais e progressistas, sem uma interrupção de seus projetos. A reforma impulsiona a sociedade a um outro patamar de civilidade, sem eliminar as correlações de forças. Defendemos a concepção de canais de participação que garantam efetivamente a universalização dos direitos sociais, por meio de políticas sociais de caráter universalista. A finalidade última deste processo é fortalecer um tecido social democrático no qual o Estado, a sociedade, o mercado e as organizações sociais possam interagir, na tentativa de encontrar saídas para a erradicação das mazelas sociais. É importante acentuar que os canais de participação não se restringem a organismos juridicamente constituídos, pois existe, de fato, uma rede de canais informais, como as reuniões de pequenos grupos, os grupos de oração das igrejas, os grupos de rua, os hip-hop, entre outros. Estas são formas de agregação de pessoas que comunicam algo à sociedade e influenciam a opinião pública. A sociedade brasileira nunca teve tantos canais de participação como hoje. Em mais de cinco mil municípios do território nacional, há mais conselheiros do que vereadores. Além dos conselhos, existem os grupos de orçamento participativo e os foros populares. Os estudos destes conselhos apontam para mudanças da cultura política e mostram que os movimentos oriundos dos municípios têm exercido influência sobre a formulação e a aplicação das diretrizes das políticas sociais. Mesmo que grupos corporativistas e clientelistas tenham procurado esvaziar e desqualificar os conselhos (cf. Carvalho, 2001), estas formas de agregação participativa são mecanismos de inclusão, não só pela perspectiva do controle, mas da emancipação. Os canais de participação são facilitam o acesso às necessidades materiais e espirituais do sujeito. Nesta análise, tomamos cuidado para não supervalorizar o município. Também ele é um espaço de fortalecimento das oligarquias que defendem, de forma antiética, os interesses econômicos de alguns, em detrimento da maioria dos munícipes. Além desses procedimentos, a multiplicidade de órgãos públicos que interferem no financiamento e na gestão das políticas, de forma sobreposta, a 13 fragilidade do acompanhamento, avaliação e fiscalização das políticas e programas sociais, e o consumo da máquina pública entravam a municipalização. Bibliografia BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BRANT DE CARVALHO, M. (coord.). Trabalhando conselhos de direitos. São Paulo: CBIA, IEE, 1993. CARVALHO, L. A. Germes de uma prática pedagógica competente com crianças de camada popular. Rio de Janeiro: PUC, 1991. BUCI-GLUCKSMANN, C. Gramsci e o Estado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. COUTINHO, Nelson Carlos. Gramsci. Porto Alegre: L&M, 1981. COUTO, Berenice Rojas. 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