Naara Luna

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31º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS
ST 27 – Religião, cidadania e políticas públicas: dilemas da interface
Coordenadores: Bernardo Lewgoy (UFRGS) e Joanildo Burity (FUNDAJ)
EMBRIÕES NO SUPREMO: ÉTICA, RELIGIÃO E CIÊNCIA NO PODER PÚBLICO
Naara Luna (NUTES/UFRJ)
Caxambu 22 a 26 outubro 2007, MG
Resumo
Examina-se o debate no Supremo Tribunal Federal sobre a ação de inconstitucionalidade
contra o artigo da Nova Lei de Biossegurança de 2005 que autorizou o uso em pesquisa de
embriões humanos produzidos in vitro inviáveis ou congelados há três anos, se genitores
consentirem. Um procurador geral da República moveu a ação porque tal prática feriria o
preceito constitucional de defesa da vida humana. Analisa-se a audiência pública com
convidados especialistas de diversas áreas do conhecimento. Faz-se exame da cobertura de
imprensa, registros gravados e transcrição das sessões. Nas posições da Igreja Católica e de
lideranças religiosas, de representantes da comunidade científica e da sociedade civil,
valores transcendentes religiosos ou laicos concernentes ao respeito à vida, e a definição de
pessoa humana são o cerne do debate.
1
EMBRIÕES NO SUPREMO: ÉTICA, RELIGIÃO E CIÊNCIA NO PODER PÚBLICO
Naara Luna1
A comunicação analisa o debate na audiência pública no Supremo Tribunal Federal
convocada para orientar a decisão da corte no julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade 3.510-0 contra o artigo 5º da Nova Lei de Biossegurança (Lei 11.105,
de 24 de março de 2005) que autorizou o uso em terapia e pesquisa de células-tronco
embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro que não
tenham sido aproveitados no
procedimento. Trata-se de embriões inviáveis e dos
criopreservados há no mínimo três anos na data de publicação da lei, e que já congelados
no momento da publicação venham a completar três anos. Tal aplicação dos embriões
requer o consentimento de seus “genitores” (fornecedores de óvulo e espermatozóides).
Projetos de pesquisa e de terapia com células-tronco embrionárias devem ser submetidos à
apreciação e aprovação de comitês de ética em pesquisa. O ex-procurador geral da
República Cláudio Fonteles moveu a ação em 2005 por julgar que o uso de embriões
humanos em experimentação fere dois princípios constitucionais: o direito à vida e à
dignidade do ser humano.2 Examina-se o discurso dos presentes à audiência pública com
base no material transcrito pelo serviço de taquigrafia que foi anexado ao processo, no
registro gravado do evento transmitido ao vivo pela TV Justiça, bem como na cobertura da
imprensa.
Desde os debates no Congresso Nacional para a aprovação da Lei de Biossegurança,
a cobertura da imprensa tem destacado uma postura pretensamente homogênea da
comunidade científica, bem como da opinião pública que são contrastadas com o lobby
religioso conservador, reportado negativamente.3 A crítica à visão religiosa quanto ao uso
1
Doutora em Antropologia pelo PPGAS, Museu Nacional, UFRJ. Atualmente tem bolsa de fixação de
pesquisador da FAPERJ no Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (NUTES) UFRJ.
2
Carolina BRÍGIDO. Fonteles diz que uso de embrião é inconstitucional: procurador-geral entra com ação
contra Lei de Biossegurança. O Globo, ter. 31 mai 2005, Ciência e Vida, p. 28.
3
Cf. os títulos das seguintes reportagens: Ana Lucia AZEVEDO; Roberta JANSEN. Pacientes e cientistas
protestam contra lei: preceitos sobre direitos de embrião prevaleceram sobre os de pessoas com doenças
graves, dizem pesquisadores. O Globo, dom 15 fev 2004, Ciência e Vida p. 50. Evandro ÉBOLI. Conceito
religioso prevaleceu na Câmara: ‘embrião tem alma’, argumenta deputado. O Globo, dom. 15 fev. 2004,
Ciência e Vida p. 50. Cristiane SEGATTO; Maíra TERMERO. A guerra das células-tronco: depois da vitória
no Senado, pacientes preparam a luta contra o lobby religioso na Câmara, contrário às pesquisas com
embriões. Época. 18 out. 2004, p. 100-107. Eduardo HOLLANDA, Luiz Cláudio CUNHA; Weiller DINIZ. A
2
de embriões humanos em pesquisa surgiu também em artigos de opinião.4 Insinuações de
que o procurador-geral da República Cláudio Fonteles teria movido a ação de
inconstitucionalidade contra a legislação que autoriza o uso de células-tronco embrionárias
por influência de suas convicções religiosas foram rebatidas pelo jornalista Luiz Paulo
Horta.5 Defendendo o procurador, Horta afirma que não apenas do ponto de vista religioso
alguém pode ser contrário à destruição da vida humana (o embrião), mas essa questão
“continua perfeitamente válida se trabalhamos apenas com a vertente ética e filosófica da
questão”. Opor-se à destruição do embrião seria uma posição idealista que divergiria da
postura pragmática voltada para os resultados da manipulação científica.
O relator do processo no Supremo Tribunal Federal ministro Carlos Ayres Britto
convocou a primeira audiência pública na história dessa corte, convidando “especialistas”
para ajudar a esclarecer os onze ministros sobre o assunto, no dia 20 de abril de 2007.
Compareceram 22 especialistas, quase todos profissionais, pesquisadores e professores na
área biomédica, exceto por uma antropóloga com pós-doutorado em bioética. Essa
concentração não surpreende, pois o relator reconheceu na audiência o relacionamento mais
“íntimo e necessário” do Direito com as Ciências Médicas e Biológicas quando se trata de
biossegurança. Os especialistas se apresentaram em dois blocos: sendo um indicado pela
Procuradoria Geral da República e pela CNBB e outro sugerido pelos “requeridos na ação
direta de inconstitucionalidade”, ou seja, “Congresso Nacional, Presidente da República e
pelos amici curiae (pelos amigos da Corte)”. O caso deverá ser debatido e votado em
sessão futura, na qual todos os ministros se pronunciarão. Até o momento da redação desta
comunicação, em setembro de 2007, o relator Ministro Carlos Ayres Britto ainda não
apresentara seu relatório, no qual deve formatar seu voto, uma proposta de decisão para
todos os ministros (p. 213). A audiência pública não teve o objetivo de enfocar os aspectos
de ordem jurídica que deverão ser debatidos na audiência para julgamento do mérito da
ADI. O próprio relator comunicou ter demovido advogados e juristas de participarem dessa
primeira audiência.
força da sociedade: Congresso se dobra à opinião pública, rejeita privilégio de parlamentares e libera a ciência
contra o freio da fé. Isto É, 9 mar. 2005, p. 26- 32.
4
Saramago defende uso de embriões descartados: escritor ataca ‘hipocrisia da igreja’. O Globo, ter. 23 set.
2003, Ciência e Vida p. 28. André PETRY. O atraso da religião. Veja, 18 ago. 2004.
5
Luiz Paulo HORTA. O procurador pisou em falso? O Globo, dom., 5 jun. 2005, Opinião, p. 7.
3
Em matéria na Folha de São Paulo sobre o dia da audiência, o ex-procurador
Cláudio Fonteles foi designado de “franciscano que recrutou cientistas ligados à Igreja
Católica para deporem”.6 Indagado pela reportagem se teria movido a ação devido à sua
ligação com a Igreja Católica, ele respondeu: “fiz tudo à luz do Direito”. Rebatendo os
questionamentos sobre a influência de sua formação cristã, Fonteles teria insinuado o viés
religioso de uma cientista defensora do uso de embriões em pesquisa:
A doutora Mayana Zatz, que é o principal elemento de quem pensa
diferentemente da gente, tem também uma ótica religiosa, na medida em
que ela é judia e não nega o fato [...] Na religião judaica, a vida começa
com o nascimento do ser vivo. Então, ao defender a posição dela, ela
defende a posição religiosa dela, que é judia e que a gente tem de
7
respeitar.
O jornal designa a referida cientista de brasileira nascida em Israel. Mayana Zatz reagiu ao
comentário: “jamais tinha me defrontado com a tentativa de desqualificar meus argumentos
com argumentos ‘anti-semitas’”. Isso teria entristecido a cientista, pois “contraria a tradição
de tolerância e respeito à diversidade religiosa” que caracteriza o Brasil. Ela garantiu que
sua motivação para a pesquisa está longe de razões religiosas, mas volta-se para minorar o
sofrimento dos pacientes.8 O artigo, que pretende revelar o viés religioso por trás das
intenções do procurador, deixa transparecer a visão polarizada do tema trazida pela própria
imprensa, que nessa matéria descreve “o clima de batalha ideológica” (sic) instaurado no
STF. A reportagem serve de exemplo da forma estereotipada de abordagem do tema pela
imprensa como confronto entre religião e ciência.
Não apenas a imprensa apresenta estereótipos, mas nos debates no Congresso
Nacional para aprovação da Lei de Biossegurança, parlamentares favoráveis ao uso de
embriões em pesquisa compararam sua situação à de Galileu, e os contrários, à Santa
Inquisição da Igreja Católica (cf. Cesarino, 2006). Usa-se o conceito de drama social de
Victor Turner (1957) para analisar o evento da audiência e seu contexto. Drama social é o
conceito para situações de crise que emergem periodicamente e revelam contradições
6
Rafael GARCIA & Laura CAPRIGLIONE. Fonteles acusa cientista de ter viés judaico. Folha de São Paulo,
sáb, 21 abr. 2007, Ciência p. A20.
7
Rafael GARCIA & Laura CAPRIGLIONE. Fonteles acusa cientista de ter viés judaico. Folha de São Paulo,
sáb, 21 abr. 2007, Ciência p. A20.
8
Rafael GARCIA & Laura CAPRIGLIONE. Fonteles acusa cientista de ter viés judaico. Folha de São Paulo,
sáb, 21 abr. 2007, Ciência p. A20.
4
escondidas e conflitos em um sistema social. Conflitos representam um desafio a alguma
norma. No drama social, conflitos de interesses latentes se manifestam, o que ocorre em
qualquer nível da organização social, e se desenrola até o desfecho em comportamento
convencional atuado publicamente. Na análise desse “drama social”, pretende-se
demonstrar que há mais matizes nessas posições. Não há unanimidade na comunidade
científica quanto à autorização do uso de embriões humanos, como se constata pelo convite
a grupos de cientistas com opiniões opostas. As posições em defesa da vida não se
restringem ao discurso religioso, mas aparecem também como valores transcendentes em
um Estado laico. Central no debate é a definição de pessoa humana. Pretende-se averiguar
que tipo de argumentação os contrários e os favoráveis ao uso de embriões humanos em
pesquisa utilizam. A hipótese é que ambos os lados sustentarão sua argumentação em dados
biológicos, evocados como prova irrefutável da verdade transcendente de suas posições.
Essa complexa interface será analisada na comunicação.
Os expositores
A “abertura do Supremo Tribunal Federal para a comunidade científica”, conforme
declarado pelo relator do processo Ministro Carlos Britto teria o seguinte objetivo: “Nós
estamos à cata, em busca de um conceito jurídico, mais especificamente um conceito
jurisdicional, para o vocábulo ‘vida’, para o pleno significado da expressão ‘dignidade da
pessoa humana’ ” (p.2). Mais adiante, o relator explicita os objetivos da audiência e a
tensão entre valores tutelados pela constituição:
“... o objetivo operacional desta audiência é colher dados, elementos que
nos possibilitarão, a nós e aos Ministros do Supremo Tribunal, a
formulação mais consistente, mais desembaraçada deste conceito
operacional do que seja a vida; e operacional no sentido de possibilitar
uma aplicação eficaz da Constituição brasileira de 1988, que se, de uma
parte, tutela a vida humana e a dignidade da pessoa humana, que é um
princípio, de outra, também, tutela a saúde e a expressão de toda a
atividade científica.”(p. 4)
A ação direta de inconstitucionalidade 3.510 alerta para o valor da vida humana e a
dignidade da pessoa, pontos que do ponto de vista dos autores da ação seriam violados pelo
artigo 5º da Lei de Biossegurança ao permitir o uso de embriões humanos em pesquisa. Ao
5
analisar o debate no Congresso Nacional sobre a formulação da referida lei, Cesarino
(2006) advertiu, com respeito à decisão sobre o uso de embriões humanos em pesquisa, que
a legislação passou ao largo do debate ontológico sobre o estatuto do embrião, em contraste
com o debate legislativo britânico que criou uma nova categoria: o “pré-embrião”9. A ADI
3.510 vem cobrar no Judiciário, apelando para a constituição, o debate suprimido no
legislativo. Ainda segundo Cesarino (2006), no Congresso Nacional o debate foi marcado
pela oposição entre o lobby religioso de parlamentares identificados com a Igreja Católica e
parte da bancada evangélica, de um lado, e os defensores da liberdade de pesquisa e do
direito à saúde de outro.
O requerente da ação é o Procurador Geral da República, e os requeridos são o
Presidente da República e o Congresso Nacional. Representando interessados diretos na
ação, como intimados, estão a Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB foi o
único grupo ligado à instituição religiosa) e organizações não governamentais de defesa dos
direitos de pacientes (Movimento em Prol da Vida – Movitae), de direitos humanos
(Conectas Direitos Humanos e Centro de Direitos Humanos) e de bioética (Anis – Instituto
de Bioética, Direitos Humanos e Gênero). Durante a sessão, ao mencionar quem indicara os
especialistas, além dos representantes dos órgãos do Estado, o relator mencionou
explicitamente uma única organização, a CNBB. As ONGs foram incluídas entre os amici
curiae (amigos da Corte): Anis e Conectas defendiam a constitucionalidade da Lei de
Biossegurança.
Se a CNBB participou da indicação de especialistas, supõe-se que estes tenham,
senão ligação com a Igreja Católica, pelo menos alinhamento com sua proposta doutrinária.
A argumentação na audiência ateve-se em primeira vista aos dados biológicos, sem
invocação direta de conceitos de caráter religioso. Quero demonstrar através da análise dos
dados que valores religiosos orientaram o debate, mesmo se mascarados de linguagem
biologizante.
Analiso inicialmente a auto-apresentação dos especialistas feita no início de sua
exposição. Todos os onze depoentes do bloco favorável ao uso de embriões em pesquisa
declararam sua formação acadêmica e inserção em instituições científicas, em particular sua
9
A legislação britânica facultou o uso de embriões humanos (criados por fertilização in vitro) para pesquisa
da fecundação até o 14º dia, na fase designada de pré-embrião, anterior ao surgimento da linha primitiva
(primórdio da medula espinhal) (cf. Strathern, 1992, Salem 1997, Mulkay, 1997).
6
experiência de pesquisa. No bloco que defendia a ação de inconstitucionalidade, dos onze
especialistas, dois não fizeram menção a sua formação e inserção profissional, enquanto um
deles definiu-se laconicamente um professor de medicina. A falta desses dados de formação
e inserção profissional, em certos casos complementada com informações dadas pela
imprensa, levou-me a verificar o currículo Lattes dos especialistas convocados. No bloco
defensor da pesquisa com células-tronco embrionárias, os intimados tinham envolvimento
evidente na área de pesquisa com células-tronco,10 exceto pela antropóloga, cuja
aproximação com o tema se dava a partir da área de bioética. Todos tinham o título de
doutorado, eram professores ativos ou já aposentados de universidades públicas, membros
de associações de pesquisa científica, e haviam publicado quantidade apreciável de artigos
científicos. Seis dos onze pesquisadores recebiam bolsa de produtividade em pesquisa do
CNPq conforme informado na Plataforma Lattes.11 O primeiro bloco, portanto, tem
representantes de destaque na comunidade científica, com grande produtividade. Seriam
cientistas com bastante crédito (cf. Latour e Woolgar, 1997), sendo alguns dominantes no
campo científico (Bourdieu, 1983). Minha hipótese é que, mesmo reconhecendo certa
diversidade interna na comunidade científica, o referido grupo estaria mais afinado com
valores gerais de liberdade de pesquisa científica, defendendo o afastamento de ciência e
religião, conforme proposto em um estado laico. Seriam representantes do ethos científico
clássico.
No grupo defensor da ADI, um dos onze expositores, professor emérito da UFF, não
tinha currículo cadastrado na Plataforma Lattes. Outra expositora, declarada na audiência
médica ginecologista-obstetra, especialista em logoterapia e professora de bioética, tinha
apenas o nome cadastrado na Plataforma Lattes, sem nenhum dado preenchido no currículo,
exceto seu endereço eletrônico. Dos nove restantes, dois tinham o título mais alto de
mestrado, e sete eram doutores. Dos nove cientistas com currículo Lattes, quatro tinham
algum envolvimento em pesquisa com células-tronco, conforme mencionado no próprio
currículo ou na apresentação durante a audiência, os demais enfocando outros objetos de
10
Uma neurocientista, embora não trabalhasse diretamente com células-tronco, era pesquisadora chefe da
principal instituição pública de reabilitação no país, onde havia projetos de pesquisa básica e clínica com
células-tronco. Todos os demais tinham envolvimento direto em pesquisa básica ou clínica.
11
Três tinham bolsa de produtividade em pesquisa 1A, dois tinham 1B e um tinha bolsa de produtividade 2.
Avalio a produção dos demais sem bolsa pelo número de publicações em periódicos científicos: 18 artigos, 24
artigos, 37 artigos, 54 artigos e 80 artigos (média: 42,6, com mediana 37).
7
pesquisa. Nenhum tinha bolsa de produtividade em pesquisa. Em termos da produtividade e
publicações em periódicos científicos, o resultado era bastante desigual.12 Dos nove que
tinham o currículo Lattes devidamente preenchido, em quatro currículos havia menção a
atividades ligadas à Igreja Católica. Um dos especialistas é membro da Membro da
Pontificia Academia Pro Vita do Vaticano, participou de eventos ligados à Igreja Católica
ou a suas pastorais e tinha três artigos em periódicos de divulgação católicos. Outra
participante fora pesquisadora responsável pela orientação da abertura da Ação Direta da
Inconstitucionalidade da Lei da Biossegurança - ADIN, em maio de 2006 (sic) a pedido do
procurador geral da República Dr Claudio Fonteles, e tinha carta da CNBB de gratidão e
reconhecimento pelos inestimáveis serviços prestados e ainda oferecidos a todo o Brasil em
defesa da vida humana, e o “prêmio CNBB especial Santa Clara de Assis tema Biologia
Molecular”, além de um artigo publicado em periódico católico de divulgação. Outra
cientista tinha cinco artigos em periódicos de divulgação católicos. O último tinha
participado de dois eventos para médicos católicos. Tal engajamento não surpreende, uma
vez que a CNBB participou da indicação desses especialistas.13 Com respeito à produção
científica, esse grupo é mais heterogêneo que o anterior. Considerando os números
expostos anteriormente, constata-se que o grupo favorável à pesquisa com embriões tem
volume de produção científica muito maior do que o grupo que questiona o artigo 5º da Lei
de Biossegurança.
Situados os grupos de especialistas com respeito à produção científica e sua
participação em pesquisas com células-tronco, pergunta-se qual a estratégia de
argumentação dos cientistas convidados.
A favor do uso de células embrionárias humanas
O relator, Ministro Carlos Britto, fez o sorteio dos blocos, e o grupo defensor da
constitucionalidade da Lei de Biossegurança apresentou-se na primeira parte da manhã. De
12
Os nove expositores com currículo Lattes preenchido tinham a seguinte produção em periódicos científicos:
2 artigos, 5, 7, 7, 11, 11, 26, 50 (média 14,8 artigos, com mediana 7 e 11, e moda 7 e 11). Um deles não tinha
nenhum artigo em periódico científico, embora fosse autor de três livros.
13
Checou-se se o currículo dos cientistas favoráveis ao uso de embriões humanos em pesquisa mostraria
vínculos com entidades religiosas. Apenas a antropóloga havia participado de um evento do grupo Católicas
pelo Direito a Decidir. Tal grupo questiona a orientação pastoral da Igreja Católica com respeito ao aborto e
outros “direitos reprodutivos”, propondo que as mulheres tenham direito de escolher e de recusar a
interrupção da gravidez se julgarem necessário. Não foram encontradas contribuições a periódicos de
divulgação pertencentes a entidades religiosas.
8
tarde, a ordem foi invertida e o grupo encerrou a audiência.14 O relator atentou para a
cronometragem das falas de modo que ambos os grupos somassem tempo equivalente nas
exposições, compensando as diferenças iniciais. Ele também solicitou ao público que não
se manifestasse e advertiu os depoentes caso saíssem da crítica aos argumentos para a
“provocação” ou “confronto com os demais expositores”. Sete especialistas do grupo
favorável à pesquisa com embriões se apresentaram na primeira parte da manhã e quatro,
no final da tarde. O tempo previsto para cada bloco na parte da manhã foi de 1h30 e na
parte da tarde de 2h. Para efeito de análise, o conjunto dos pronunciamentos de cada grupo
será examinado em contínuo.
Conforme exposto acima, o relator queria obter o “conceito jurisdicional, para o
vocábulo ‘vida’” (p.2), ou a “formulação mais consistente, mais desembaraçada deste
conceito operacional do que seja a vida” (p.4). Os grupos tiveram diferentes estratégias
para responder a questão.
A primeira expositora, Dra. Mayana Zatz,15 discorreu sobre sua pesquisa com
doenças neuromusculares, mostrando imagens de crianças afetadas e em cadeiras de rodas.
Citou uma menina de três anos que sofre de atrofia espinhal progressiva: “por que vocês
não fazem um buraco nas minhas costas e põem uma pilha para eu poder andar como as
minhas bonecas?” (p.8). Apresentou a terapia com células-tronco como “a grande
esperança” pois seriam capazes de originar tecidos que possam substituir o tecido muscular
e neurônios motores. Foram exibidas imagens da fecundação, suas divisões até oito células
totipotentes (capazes de formar um novo ser se inseridas no útero), e depois a fase de
blastocisto, o embrião humano no quinto dia. Ressaltou o pequeno tamanho desse embrião,
bem menor que o buraco de uma agulha de injeção em foto de microscopia. Explicou que
as células internas do blastocisto têm o potencial de formar os 216 tecidos do corpo,
enquanto as externas vão formar “placenta e as membranas embrionárias”. Demonstrou a
diferença entre as células-tronco adultas, existentes em vários tecidos, na placenta e no
cordão umbilical. Estas formam alguns tecidos, mas não todos. Mostrou as tentativas
14
Segundo dados veiculados pelo informativo eletrônico do Supremo Tribunal Federal (STF Push) do dia
20/04/2007, a audiência pública foi aberta às 9h15 e suspensa às 12h36. Os serviços na parte da tarde foram
retomados às 15h07 e encerrados às 19h47. Após a exposição de ambos os grupos na parte da tarde, houve
uma rodada de perguntas dos ministros.
15
Professora de Genética da USP; diretora do Centro de Estudos do Genoma Humano; membro da Academia
Brasileira de Ciências e presidente da Associação Brasileira de Distrofia Muscular.
9
experimentais de terapias com células adultas, advertindo que não servem para doenças
genéticas. A pesquisa com células-tronco embrionárias permitiria aprender sobre os genes
que precisam ser ativados ou silenciados para formar o tecido que se quer. Mostrou
imagens dos embriões que a lei de biossegurança permite pesquisar: o congelado no
cilindro de nitrogênio e o inviável. Falou da aprovação da lei no Congresso Nacional, com
fotos de pessoas em cadeiras de rodas que assistiram à sessão. Essa lei permite fazer no
Brasil as mesmas pesquisas já desenvolvidas no exterior, o que evitaria a busca de
tratamento fora. Somente no final da exposição, é abordado o tema da vida: em contraste
com o aborto em que há “uma vida no útero [...] interrompida por intervenção humana”
(p.12s), “no embrião congelado, não há vida se não houver intervenção humana”. A
cientista afirma: “Todas as nossas células são vivas” (p.13). Pergunta o que é eticamente
correto: preservar embriões congelados cuja probabilidade de gerar um ser humano é quase
nula ou doá-los para pesquisas que poderão resultar em tratamentos no futuro. Exibindo
fotos de crianças em fisioterapia, fala da possibilidade de prolongar por dez anos a vida
dessas crianças com técnicas disponíveis para que se possa tornar as pesquisas em
tratamento. Zatz indaga: “Será que podemos comparar a vida dessas crianças e desses
jovens com embriões congelados?” (p.13). Ela conclui dizendo querer lutar pela vida e não
tirar a esperança de cura. Foi aplaudida e o relator solicitou a platéia para não se manifestar.
A ênfase de Zatz foram os benefícios previstos com a pesquisa, em contraste com a
realidade dos doentes, atribuindo a condição de pessoa aos últimos.
A expositora seguinte foi a Dra. Patrícia Pranke16 que se deteve na questão do
embrião. Declarou já trabalhar com células-tronco de cordão umbilical, mas ter a intenção
de estudar a embrionária, por causa de seu maior potencial. Considerando o
desenvolvimento a partir da fecundação, apenas no sexto dia o blastocisto começa a se
implantar no útero materno. Pranke afirma que o blastocisto morrerá, se não estiver em
contato com o útero e comparar com “células produzidas em laboratório e que nunca
foram e nunca serão colocadas em um útero materno” (p.16). Na fertilização assistida, ou
se transfere o embrião para o útero, ou se congela, ou se deixa na placa, onde irá morrer.
Ressalta a dimensão: do tamanho do pingo do i na letra menor da folha de jornal. Explica
os embriões inviáveis com base nos critérios morfológicos empregados pelos profissionais
16
Professora da UFRGS, com doutorado no Laboratório de Células-Tronco no New York Blood Center.
10
da área. Compara por meio de estatísticas a probabilidade de embriões continuarem seu
desenvolvimento: o embrião fresco de melhor qualidade tem suas chances reduzidas à
metade, e o de pior qualidade tem destruída a possibilidade de continuar o desenvolvimento
se congelado. As clínicas não indicam a transferência de embriões de má qualidade por
causa do risco de malformação fetal, e nem sequer os congelam. Compara com o DIU e a
pílula do dia seguinte, procedimentos aprovados pelo Ministério da Saúde que impedem a
implantação do embrião, remetendo à questão ser ou não aborto. Finalmente compara com
a doação de órgãos, lembrando o critério de morte encefálica, quando os neurônios morrem.
Propõe que o início da vida seja o momento em que os neurônios começam a se
desenvolver, inexistentes no pré-embrião até os 14 dias. Discutir teorias sobre o início da
vida não leva a nenhuma conclusão e a grande questão seria o destino dos embriões
congelados já existentes. Muitos casais não querem seus embriões nascendo em outras
famílias. Transferir os embriões para “barrigas de aluguel” não teria sentido no Brasil, onde
há crianças esperando a adoção. Permitir a doação para pesquisa seria mais digno do que
destruir os embriões. Mesmo a proibição do congelamento não resolve o problema dos
criopreservados existentes. O destino mais digno seria o uso em pesquisas com fins
terapêuticos para se descobrir a potencialidade das células e dar esperança.
A ênfase de Pranke foi negar a condição de pessoa ao embrião congelado em função
de sua perda de viabilidade, tendo como referência outros marcos para a instauração da
condição de pessoa: o desenvolvimento no útero materno e a formação de células nervosas
aos 14 dias, bem como o uso legal do DIU e da pílula do dia seguinte que impediriam a
implantação do embrião. Insiste em perguntar qual o destino melhor para os embriões
congelados.
Dra. Lúcia Braga, neurocientista, é diretora executiva da Rede Sarah de Hospitais e
sua pesquisadora-chefe. Mostra fotos dos hospitais e de pacientes em fisioterapia e em
cadeiras de roda. Fala do interesse da área de neuro-reabilitação nas células-tronco, “porque
precisamos dar mais chance às pessoas” (p.25). Faz-se experimentação clínica com células
mesenquimais adultas extraídas da medula óssea porque se sabe que o paciente não corre
risco. Tais células funcionam bem quando colocadas no osso, na cartilagem e no músculo.
A eficácia não é a mesma na lesão neuronal, por isso a necessidade de estudar a célula
11
embrionária que tem maior potencial por se transformar em qualquer tecido. Ainda não é
momento de usá-las na clínica.
A argumentação de Lúcia Braga voltou-se para a realidade dos pacientes e da maior
possibilidade de cura com as células embrionárias capazes de gerar as nervosas.
Dr. Stevens Rehen17 lembra a corrente de pensamento defende que a vida começa
com a formação do cérebro, iniciada na terceira e quarta semanas. Alerta que as células em
questão não terão contato com o útero. Define a diferença entre as células adultas
multipotentes com crescimento restrito e as células embrionárias pluripotentes. Recorda
que a aplicação terapêutica das células adultas começou na década de 60 com os primeiros
transplantes de medula óssea, enquanto a pesquisa com células-tronco embrionárias
humanas começou há menos de dez anos. O estudo das células-tronco embrionárias
permitirá o estudo da formação de órgãos e entender doenças. Justifica a necessidade de
trabalhar com as células embrionárias para se entender a biologia do corpo, enfatizando as
diferenças entre células de camundongo e as células de humanos. Apresenta resultados de
sua pesquisa diferenciando células embrionárias em neurônios. Afirma que fazendo
pesquisa, existe a possibilidade de tratamento, sem pesquisa não haverá. “A
responsabilidade moral está naquele que reconhece o potencial terapêutico das célulastronco embrionárias, mas impede ou não incentiva o seu estudo” (p.34), Rehen conclama a
comunidade científica a não se eximir da responsabilidade.
Rehen enfatiza a importância das células embrionárias para a pesquisa básica e
explica que a diferença em termos de aplicações terapêuticas deve-se ao menor tempo de
pesquisa das células embrionárias em contraste com as adultas da medula óssea. A
condição de pessoa do embrião estaria relacionada à formação do sistema nervoso, outro
marco físico.
Dra. Rosalia Mendez-Otero abordou as perspectivas de uso de células-tronco
adultas e embrionárias em doenças neurológicas, considerando o que há de verdade e a
expectativa.18 Mostrou a alta incidência de doenças neurológicas no mundo e no país: o
AVC (derrame) é a primeira causa de morte, deixando seqüelas debilitantes. A capacidade
17
Presidente da Sociedade Brasileira de Neurociências e chefe do Laboratório de Células-Tronco
embrionárias na UFRJ.
18
Professora Titular da UFRJ, membro da Academia Brasileira de Ciências, coordenadora do Programa de
Terapias Celulares da UFRJ e do primeiro estudo clínico de terapia com células da medula óssea em pacientes
com Acidente Vascular Cerebral.
12
do sistema nervoso se regenerar é muito pequena. Para substituir as células perdidas haveria
a opção das células-tronco do próprio sistema nervoso, formadas em pequeno número, ou
fontes externas. As células-tronco da medula óssea usadas no estudo clínico não substituem
células perdidas, mas liberam fatores que protegem os neurônios restantes, por isso seu uso
na fase aguda da doença. Os estudos mostram que as células são seguras, mas não sua
eficácia. Como elas não são plásticas, a alternativa é o uso de células-tronco embrionárias,
que têm a capacidade de gerar neurônios. Otero mostra títulos de artigos para fundamentar
a afirmativa, bem como para mostrar que células precursoras de neurônios injetadas no
cérebro curaram a doença de Parkinson. Nos Estados Unidos, estão patenteando linhagens
de células, e talvez os pacientes brasileiros terão de comprá-las de outros países “se não
tivermos as nossas próprias células embrionárias para tratar doentes neurológicos” (p. 41).
No momento, as células-tronco de medula óssea parecem excelentes para casos agudos,
mas nos casos crônicos, seria necessário buscar fontes para substituir as perdidas.
A profa. Rosalia Mendez-Otero mostra a necessidade de células embrionárias para
beneficiar pacientes não alcançados pelos experimentos com as células adultas. A ciência
no Brasil ficaria ultrapassada por outros países, prevendo-se no futuro que pacientes terão
que buscar tratamento no exterior.
O Dr. Júlio César Voltarelli,19 embora trabalhe apenas com células-tronco adultas,
quer provar a impossibilidade de obter todos os benefícios clínicos com tais células, um dos
argumentos para proibir o uso das embrionárias. Descreve os tipos de células existentes na
medula óssea, destacando a célula-tronco mesenquimal sobre a qual se debate se é
pluripotente. Discorre sobre o transplante de medula óssea, iniciado há quarenta anos para
curar doenças hematológicas neoplásicas, e a possibilidade de obter essas células do cordão
umbilical. Destaca o artigo de uma cientista que teria descoberto células mesenquimais
pluripotentes, com características de diferenciação semelhantes às das embrionárias.
Voltarelli relata sua pesquisa com uso do transplante de medula óssea para tratar doenças
auto-imunes, reumáticas ou neurológicas incapacitantes ou fatais e mostra fotos dos artigos
publicados e dos pacientes. Através do transplante de medula, de quinze pacientes com
diabetes tipo 1 diagnosticada há menos de seis semanas, treze não necessitaram mais usar
19
Coordenador da Unidade de Transplante de Medula Óssea do Hospital das Clínicas da Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto – USP.
13
insulina. A célula-tronco da medula regenera o sistema imune, mas não o pâncreas, por isso
não há benefício para o paciente na fase crônica, após dois ou três meses. Células de cordão
têm efeito semelhante. Transplantes de medula para esclerose lateral amiotrófica (ELA),
uma doença neurológica, não conseguiram regenerar os neurônios. Voltando ao debate se
células mesenquimais seriam pluripotentes, o expositor mostra que outros laboratórios não
conseguiram reproduzir os resultados do primeiro experimento. Citando Verfaillie, a autora
do experimento, afirma que “apesar do enorme potencial de células adultas mesenquimais
na medicina regenerativa, a pesquisa com células embrionárias é ainda necessária.”(p.49).
Encerra mostrando fotos de “seus’ (sic) centros de pesquisa e dos pacientes e, retomando a
pergunta do relator sobre o conceito operacional de vida, declara: “Vocês podem discutir
ad nauseam o que é a vida, mas eu posso garantir que esses pacientes são vivos.” (p. 49).
Quase toda a exposição de Voltarelli mostra as limitações das células adultas e
casos da necessidade de recurso às células embrionárias. Embora não tenha falado do
estatuto do embrião, este é contraposto à vida dos pacientes.
Ricardo Ribeiro dos Santos20 é pioneiro em várias terapias com células adultas, e
pioneiro no mundo nesse uso “para melhorar a doença de Chagas” (p. 50). Pretende colocar
a posição com respeito às células embrionárias. Enfatiza a capacidade da célula-tronco de
se dividir e dar origem a várias células especializadas: a embrionária é caracterizada por sua
plasticidade, enquanto as adultas não têm esse potencial todo. Refuta que a célula
embrionária produz tumor, pois isso ocorre apenas em animal com deficiência genética
grande e com aplicação “em alta dose de célula” (sic). Mostrando fotos da fecundação e das
primeiras divisões, pergunta se isso é a vida: “Isso só tem significado de vida humana,
porque o contexto de vida é muito mais amplo, se isso estiver dentro do útero; fora do útero
nada mais é do que um aglomerado de células” (p. 51). Afirma que, em exames genéticos,
apenas 20% dos embriões pré-implante têm condições de ser transferidos e o resto tem
anomalia genética. Questiona a eficácia da técnica de fertilização in vitro, em particular a
perda de viabilidade do embrião no congelamento. Ressalta a diferença entre embrião e
célula-tronco embrionária obtida de uma cultura de células. Embora seja difícil derivar uma
linhagem de células embrionárias, as linhagens prontas são estáveis e praticamente
20
Professor Titular pela USP, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, atualmente aposentado;
Pesquisador Titular da FIOCRUZ/BA.
14
imortais. Mostrando foto de colônias de células cardíacas pulsando, diz que o objetivo é
usar células diferenciadas obtidas a partir das linhagens embrionárias. Afirma que o
conhecimento da célula-tronco embrionária dará a base para se entender o controle do
câncer e seu tratamento, além disso as adultas também podem virar tumor. Premido pelo
cronômetro, relata a experiência clínica em pacientes que receberam transplante de célulatronco adulta no fígado, que tiveram melhora, mas necessitarão de outras células,21 e sua
atividade de coordenador da pesquisa para doença de Chagas. No último projeto, não se
sabe se a terapia foi eficaz, mas ilustra a melhora significativa de um grupo de pacientes
com a filmagem de um deles voltando a trabalhar na roça e cercado de crianças, que relatou
nova gravidez da esposa. Ele foi o último expositor do bloco na parte da manhã.
A estratégia do Dr. Ricardo Ribeiro dos Santos é minimizar os riscos de uso das
células-embrionárias e mostrar o potencial não apenas de diferenciação em outros tecidos,
mas para guiar a pesquisa básica para aplicações clínicas, como o controle do câncer. O
estatuto do embrião varia de acordo com o contexto de viabilidade: é vida no útero, fora
dele são células. Também mostra pacientes beneficiados.
Após a exposição no final da manhã e no início da tarde do bloco adversário, Dra.
Lygia Pereira22 relata sua experiência como pesquisadora de células-tronco embrionárias de
camundongos e mais recentemente com as humanas. Discorre sobre as células-tronco
adultas, conhecidas desde a década de 50 com o transplante de medula óssea. Tantos anos
de estudo asseguram a inexistência de grandes riscos, o que justifica a batelada de testes
clínicos. Rebatendo o bloco opositor, ela recorda que os transplantes de célula-tronco adulta
são terapia aceita correntemente como transplante de medula óssea para algumas doenças
na regeneração do sangue. As demais terapias estão no âmbito da pesquisa. Alerta que
artigos científicos não são verdades absolutas, daí a necessidade de outros grupos
reproduzirem os trabalhos e relembra o debate em artigos científicos que afirmavam a
plasticidade de células da medula óssea semelhante à das embrionárias e outros que não
encontraram tal evidência. Nos testes clínicos, ainda não se conhece o efeito terapêutico das
células adultas. Faz um histórico da pesquisa com células embrionárias: as linhagens de
camundongo obtidas em 1981 e humanas em 1998. Garante que as células embrionárias
21
Trata-se do protocolo de hepatopatias crônicas.
Professora Associada do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva na USP, onde dirige o laboratório
de genética molecular.
22
15
podem virar qualquer tecido adulto “porque é isso que elas fazem na natureza” (p. 167).
Relata sobre os protocolos para induzir a especialização das células embrionárias e na
necessidade de controle para não se transformarem em tecidos que não interessam. O efeito
terapêutico das células embrionárias está bem estabelecido desde 1995 e mostra outros
trabalhos ainda dos anos 90: células embrionárias transformadas em hematopoiéticas que
regeneraram a medula óssea; neurônios gerados de células embrionárias fizeram ratos com
trauma de medula recuperarem parcialmente os movimentos; e neurônios gerados tratando
modelo animal da doença de Parkinson. Enfatiza a importância das células-tronco
embrionárias como ferramenta de pesquisa básica que permite investigar os mecanismos de
diferenciação da célula e estudar o desenvolvimento embrionário humano de forma ética. O
esforço é adaptar o que se aprendeu com os modelos animais para as células humanas. Uma
empresa dos Estados Unidos anunciou a produção de linhagens embrionárias com
qualidade para uso em seres humanos. Para usar as células embrionárias em testes clínicos
em pacientes é necessário primeiro controlar sua capacidade de diferenciação e também
resolver o problema da compatibilidade, evitando a rejeição. Com respeito ao embrião, a
cientista contorna a pergunta: “se isso é vida ou não, acredito que não seja o tópico daqui”
(p. 174) e prefere salientar sua origem nos embriões excedentes da fertilização in vitro. O
Conselho Federal de Medicina (CFM) proíbe transferir um número grande para o útero,
pois representar riscos para a gestante e para a criança. Menos de 2% dos embriões são
“adotados” e há “centenas de milhares” (sic) de embriões congelados em nitrogênio líquido
no mundo. Casais que não querem mais filhos deixam esses embriões “abandonados” (sic).
Qualquer decisão sobre o direito desse embrião terá impacto na área de reprodução
assistida. Alerta mais uma vez para o “vaivém da ciência” (sic) e da necessidade de
consolidar os resultados com a repetição dos experimentos. Ressalta a necessidade de
estudar tanto a célula adulta como a embrionária e por fim sugere que a investigação dos
mecanismos de diferenciação da célula embrionária permitirá “fazer com que uma célula
adulta se comporte da mesma forma”.
Dra. Lygia é a primeira a fazer sua exposição após o grupo opositor, então reage
questionando as terapias com células adultas como sendo ainda experimentais e mostrando
as limitações das adultas em relação às embrionárias em sua ação da “natureza”. Faz um
histórico da pesquisa com células-tronco para explicar porque as embrionárias ainda não
16
são usadas em terapias e enfatiza o êxito das experiências com estas em modelo animal.
Evita discutir o estatuto do embrião, mas salienta a sobra de embriões decorrentes da
fertilização in vitro, usando a expressão “embriões abandonados”. A área de reprodução
assistida será afetada pelas decisões com respeito ao embrião. A figura dos embriões
órfãos, esquecidos nos cilindros de nitrogênio (Franklin, 1999, Luna, 2001) deve ser
deixada de lado para se pensar em destino mais digno para esses seres condenados ao
esquecimento: ajudar a salvar novas vidas.
Dr. Luiz Eugênio Araújo de Moraes Mello23 lê primeiramente um texto deixado por
um dos cientistas convidados relacionando a política nacional de saúde e a política de
ciência e tecnologia, e os instrumentos para conduzir de modo ético o desenvolvimento
científico. O cientista convidado deseja evitar situações que bloqueiem o desenvolvimento
científico. Mello divide sua exposição conforme três perguntas: necessidade de conhecer a
doença a tratar; necessidade de conhecer a célula manipulada; doenças e soluções de
tratamento são complexas. Destaca a necessidade de células-tronco para o sistema nervoso,
pois nos demais casos é possível realizar um transplante. Pela experiência em camundongos
não é possível extrapolar imediatamente para o ser humano. Pergunta se a pesquisa com
células-tronco adultas torna desnecessária a pesquisa com as embrionárias. Manipulações
com células-tronco da medula óssea lhes dão morfologia parecida com o neurônio, todavia
elas não expressam marcador neural e não têm a capacidade de deflagrar um potencial de
ação (não têm atividade elétrica). A produção de neurônios a partir de células adultas gera
pequenas quantidades e com capacidade restrita de se diferenciarem nos diversos tipos
celulares. A pergunta sobre quando tem início a vida humana tem no mínimo quatro
respostas possíveis, todas válidas perante a medicina e a biologia, portanto não há uma
resposta. A fertilização in vitro para reprodução humana não vem sendo questionada
judicialmente. Relata a possibilidade de formação de embriões excedentes e adverte para a
inexistência de lei específica, mencionando a resolução do CFM. Tal resolução prevê o
congelamento dos embriões não transferidos. Para o expositor, o congelamento em
definitivo equivale a descartar esse material. A tese de que o embrião congelado constitua
um ser humano, conforme o questionamento da ADI 3.510 faria com que se estivesse
23
Pró-Reitor de Graduação da UNIFESP, Professor Titular de Fisiologia; Vice-Presidente da Federação de
Sociedades de Biologia Experimental; Comendador da Ordem do Mérito Científico.
17
diante de um assassinato em massa, o que restringe as possibilidades da fertilização in vitro.
Faz a comparação com a lei sobre morte encefálica. De acordo com a própria Resolução nº
33 da ANVISA (RDC 33 de 17/02/2006), que cria o “Regulamento técnico para o
funcionamento dos bancos de células e tecidos germinativos”, o início da vida ocorre “14
dias após a fertilização, in vivo ou in vitro, quando do início da formação da estrutura que
dará origem ao sistema nervoso”. A humanização do embrião ocorre em relação com os
outros: é a mulher que define o momento de surgimento de um ser humano, o que encontra
amparo na Lei de Biossegurança, pois o uso dos embriões em pesquisa requer a anuência
dos doadores de gametas. O expositor alerta que acatar a tese da ADI significa “entender
como criminosos milhares de pessoas que trabalham para trazer vidas humanas ao mundo
por meio de técnicas de fertilização in vitro” (p. 192), privar de esperança pessoas que
poderiam ter doenças minoradas e curadas pela pesquisa e matar a esperança de inférteis.
Mello mostra os limites dos resultados das pesquisas com células adultas para
enfatizar a necessidade de usar as embrionárias. Ele relativiza a pergunta sobre o início da
vida, mostrando que haveria várias respostas válidas segundo a medicina. Com respeito ao
estatuto do embrião, o congelamento em definitivo equivaleria ao descarte, e defende um
critério relacional de humanização a partir da relação com a mãe. Levando em conta o
critério da morte encefálica e o surgimento do primórdio do sistema nervoso, cita o marco
de 14 dias para o início da vida, segundo regulamento da ANVISA. Destaca as
conseqüências negativas de acatar a tese da ADI para doentes beneficiários das pesquisas e
inférteis com a criminalização da fertilização in vitro que traz novas vidas.
Dr. Antônio Carlos Campos de Carvalho24 informou não pretender discutir a origem
da vida, pois entende que a vida é um contínuo: o óvulo é uma célula viva que morrerá se
não encontrar o espermatozóide, assim como o óvulo fertilizado vai morrer se não
encontrar um útero materno. Discorre sobre as células embrionárias totipotentes e
pluripotentes, e sobre as adultas multipotentes. Há um conceito científico solidamente
estabelecido que a célula-tronco embrionária pode formar todos os tipos celulares que
compõem os tecidos do corpo. As restrições ao uso dessas células em ensaios clínicos com
seres humanos são devidas aos problemas como a possibilidade de rejeição e à propriedade
24
Professor Titular do Instituto de Biofísica da UFRJ. Coordenador de Ensino e Pesquisa do Instituto
Nacional de Cardiologia. Professor Titular do Albert Einstein College of Medicine, em Nova York; membro
da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências para o Mundo em Desenvolvimento.
18
de gerar teratocarcinomas em animais imunodeficientes. Além da necessidade de controle
na diferenciação dessas células, há o risco de contaminação com antígenos de origem
animal. Vários laboratórios investigam a solução desses problemas. Mostrando artigos
científicos, o expositor afirma que houve uma oscilação da compreensão da existência de
células adultas da medula óssea pluripotentes, até o consenso de inexistir a pluripotência.
Reitera que a única terapia aprovada é o transplante de medula óssea para doenças
hematológicas. Ressalta que os pesquisadores envolvidos com ensaios clínicos para testar a
eficácia das células adultas estão representados na audiência, defendendo a pesquisa com as
células embrionárias por causa de seu potencial. Descreve as teorias de funcionamento das
células adultas e das embrionárias, para mostrar que as primeiras teriam efeito de melhorar
a condição de órgãos, enquanto as últimas poderiam se transformar nas células do órgão a
ser regenerado. As vantagens das células adultas seriam sua segurança e o fato de não
causarem rejeição se extraídas do próprio paciente. As desvantagens seriam a diferenciação
restrita aos tipos existentes nos órgãos de onde foram extraídas, daí limitada capacidade de
regeneração e sua difícil obtenção em certos órgãos para fins terapêuticos (do cérebro); o
envelhecimento da célula adulta compromete o potencial de regeneração.
Carvalho também contorna a pergunta sobre a vida, comparada a um contínuo que
não tem uma origem. Reconhece os riscos que limitam a aplicação clínica imediata das
células embrionárias, mas expõe as teorias de funcionamento das células-tronco adultas e
das embrionárias, para demonstrar por que é necessária a pesquisa com as últimas. Ele e
vários outros mencionaram as oscilações no campo científico com respeito à potencialidade
das células adultas, se equivaleria às embrionárias, todos citando o mesmo artigo depois
contestado pela falta de confirmação por outros experimentos.
A última expositora foi a antropóloga Débora Diniz.25 Sua reflexão parte das
questões éticas envolvidas na pergunta da ADI. Sua tese é “de que a ADI parte de uma falsa
premissa de que a fecundação marcaria o início da vida humana” (p. 203). A premissa da
ADI é sedutora, porque se acredita que a descrição do fenômeno biológico seria razão
suficiente para sua prescrição moral. Porém o debate deve ser como tratar o fenômeno
25
doutora em Antropologia pela UNB, com pós-doutorado em Bioética pela Universidade de Leeds,
pesquisadora das implicações éticas, sociais e legais do Projeto Genoma Humano, diretora da Associação
Internacional de Bioética, e diretora da ONG Anis – Instituto de Bioética Direitos Humanos e Gênero. Dado
não mencionado: professora de políticas sociais na UNB.
19
moralmente. Perguntas sobre o início da vida constituem tema de regressão infinita, porque
o ciclo de geração da vida é interminável. A ADI considera o embrião detentor de toda a
proteção jurídica devida a alguém após o nascimento. Essa afirmação implica assumir que:
a fecundação resumiria a reprodução, teste esta de cunho metafísico; a continuidade entre
óvulo fecundado e futura pessoa, mas não entre o primeiro e as demais células; a
potencialidade de o embrião se desenvolver pressuporia o dever de uma mulher à gestação;
a potencialidade embrionária deveria ser garantida por princípio constitucional de direito à
vida. A expositora demonstra a falsidade da tese da potencialidade para pesquisa com
embriões inviáveis fazendo um cálculo que leva em conta: o número de embriões
congelados nas clínicas dentro do prazo legal para doação para pesquisa (pouco mais de
três mil); a baixa expectativa de sobrevida dos embriões pós-congelamento; a reduzida
concordância dos casais em doar para outros casais. Segundo tal cálculo, o número final
seria vinte embriões viáveis congelados e se exigiria do Estado a gestação destes. A terceira
tese da expositora: o debate sobre ética na pesquisa científica foi deslocado para o debate
da reprodução e do aborto. Ao proibir a pesquisa em embriões congelados, a ADI
pressupõe que a vida destes deve receber mais proteção do que a de outros grupos que
podem dar seu consentimento para participar de pesquisas clínicas. A expositora tem
quatro conclusões: 1) a ADI apresenta um falso problema filosófico para julgar a
constitucionalidade da lei, pois a pergunta sobre o início da vida humana é um
questionamento de caráter metafísico e religioso. 2) a lei determina que a pesquisa será
conduzida com embriões inviáveis, aos quais não há meios de se imputar a potencialidade
da vida; 3) o julgamento da constitucionalidade deve ser avaliado sob o marco ético da
pesquisa com humanos, pois o deslocamento para a reprodução impede a avaliação
razoável da ética da pesquisa com embriões inviáveis congelados. 4) a pergunta sobre o
início da vida humana diz respeito ao debate sobre o aborto e direitos reprodutivos; uma
resposta pode trazer implicações para o debate sobre o aborto.
Diniz argumenta a partir de questões éticas para negar o estatuto de pessoa aos
embriões congelados ditos inviáveis, pois não haveria neles a potencialidade de vida. A
pergunta sobre o início da vida teria caráter metafísico. A tese da ADI apresentaria uma
falsa equivalência: entre a descrição do fenômeno da fecundação e a atribuição moral da
condição de sujeito pleno de direitos ao embrião. Redireciona a discussão para a ética de
20
pesquisa em seres humanos, julgando que a pergunta sobre o início da vida diz respeito ao
debate sobre aborto e direitos reprodutivos, este cercado por questionamentos religiosos.
Considerando o conjunto das exposições, alguns especialistas contornaram a
pergunta sobre o conceito operacional da vida, considerada “falso problema” ou questão
sem resposta, que não levaria a lugar nenhum, e um número menor propôs que fosse o
início do sistema nervoso, em simetria com a definição de morte encefálica. O contexto de
viabilidade do embrião foi mencionado: é vida dentro da mãe, alguns inclusive afirmando a
relação como ponto que institui o humano. Outro ponto de argumentação destacado foi a
inviabilidade dos embriões de uso autorizado para pesquisa, o que lhes tiraria o caráter
humano que o grupo opositor lhes atribui. As reduzidas dimensões do embrião foram
usadas na retórica para lhes negar o estatuto pleno de pessoa. Há três representações
distintas: a que enfatiza o processo vital contínuo em vez da biografia individual, ou nas
palavras de Waldby, uma vitalidade biológica crua (cf. Waldby, 2002); a do embrião em
relação com o meio que lhe permite a viabilidade (Fyfe, 1991) ou a relação com a mãe que
lhe garante a condição de pessoa (Salem, 1997); a emergência do sistema nervoso, tanto
como parâmetro simétrico da morte encefálica (Luna, 2006), como por ser o primeiro sinal
de sua racionalidade (Salem, 1997).
A ênfase do grupo foi em demonstrar a importância das pesquisas com as células
embrionárias em termos da formulação futura de terapias que beneficiariam muitas pessoas
e aquisição de conhecimento básico que também informará aplicações práticas. Outro
argumento foi a ciência brasileira ficar para trás em relação ao que se produz no mundo, o
que implicaria prejuízos não só acadêmicos, mas para pessoas que teriam que buscar o
tratamento no exterior, onde se liberou a pesquisa com células embrionárias.26 Os
problemas clínicos quanto ao uso de células embrionárias foram reconhecidos, mas
considerados contornáveis com o prosseguimento das pesquisas. Defendeu-se a pesquisa
tanto com as células-tronco adultas como com as embrionárias, porém ressaltando o caráter
limitado das primeiras na resposta a várias doenças em contraste com a maior plasticidade
das embrionárias. Em reação aos expositores do bloco oposto, salientou-se que os primeiros
resultados de terapias com células-tronco adultas ainda não foram consolidados por estudos
26
Os mesmos argumentos foram usados no debate parlamentar para aprovação da Lei de Biossegurança
(Cesarino, 2006).
21
mais extensos e pela pesquisa básica, mostrando o embate de diversas pesquisas publicadas
e com severo questionamento dos primeiros artigos que afirmam plasticidade de células
adultas semelhante às das embrionárias. Alguns usaram fotos de pacientes em tratamento
para mostrar a relevância das terapias e mesmo para comparar sua condição de pessoa não
atribuída aos embriões congelados. As imagens foram amplamente utilizadas como meio de
convencimento: dos embriões até o estágio de blastocisto, enquanto as pessoas que
surgiram em fotos e filmes eram quase sempre pacientes e algumas vezes os pesquisadores.
Os defensores da vida
Do grupo de convidados que vieram fundamentar o questionamento da
constitucionalidade do artigo 5º da Lei de Biossegurança, cinco fizeram sua exposição no
final da parte da manhã, e seis no início da tarde. Em contraste com o outro bloco, as
explanações tinham títulos. Dra. Lenise Aparecida Martins Garcia27 falou sobre “o ciclo de
vida da espécie humana” e declarou que seu grupo trazia o embasamento para afirmar que a
vida humana começa na fecundação. Mostrando muitas fotos, começou expondo sobre o
“ciclo de vida de todos os seres vivos”: lagarta e borboleta não se parecem, mas são o
mesmo indivíduo em fases diferentes; o plasmódio apresenta diferentes formas nas fases do
ciclo, mas é sempre o mesmo organismo. O IBAMA protege ovo de tartaruga, porque sabe
que é “tartaruguinha”. Embriões de plantas ficam nas sementes. O feijão que vai para a
panela nunca será um feijoeiro, mas não fala em “comer pré-feijão” (sic). No DNA, cada
espécie tem gravado o programa de seu desenvolvimento. O Projeto Genoma caracterizou o
DNA de nossa espécie. Na junção de óvulo e espermatozóide, a primeira célula formada já
tem definidas as características genéticas de um indivíduo. “Já é um indivíduo humano,
específico, único e irrepetível”. Já estão definidas doenças genéticas. Ao eliminar um
embrião com doença genética, está se classificando as pessoas entre normais e anormais,
adequadas e inadequadas à sociedade. O “montinho de células” já é “um menininho ou uma
meninha”. Nele estão tendências herdadas: “O zigoto do Mozart já tinha dom para música e
o do Drummond, para poesia” (p. 61). Já se pode fazer “a impressão digital genética” usada
nos testes de paternidade. A “carteira de identidade genética” estará desde o primeiro dia. A
27
Doutorado em Microbiologia e Imunologia; professor adjunto IV da UNB; coordenadora geral da
Licenciatura em Biologia a Distância do Consórcio Setentrional (dados do currículo Lattes).
22
expositora afirma: “Todos fomos um dia uma célula assim” (p.62). Ninguém conseguiria se
pensar como “um montinho de células pré-humano”. “Fui gerada - graças a Deus - por um
ato de amor dos meus pais e penso que ali eu já fora gerada como pessoa humana.” (sic). O
embrião humano é sapiens mesmo que não se permita desenvolver-se, mesmo antes do
surgimento das células do cérebro. Para encerrar, pergunta a que espécie pertence o
embrião se este não é homo sapiens.
A exposição de Lenise Garcia gira em torno do mesmo tema: o essencialismo
genético. Este se refere tanto à espécie humana como à identidade individual. Os genes
corporificam uma verdade essencial anterior à vontade humana (cf. Salem, 1995) e
consubstanciam a condição de pessoa. A expositora discorda da existência de um estado
pré-humano, questionado no montinho de células e ironizado no “pré-feijão”, corruptela de
pré-embrião. Desde a fecundação existe o indivíduo. Representa-se o embrião como o
ancestral comum da humanidade (Franklin, 1995), pois “um dia todos fomos assim”.
Dra. Cláudia Maria de Castro Batista pesquisa doenças neurodegenerativas. Ela
discorre sobre “a autonomia do embrião humano”.28 Define o caráter da vida humana: “um
processo contínuo, coordenado e progressivo” e iniciado na fecundação. Usa para ilustrar
um continuum em que surgem imagens da célula fecundada, “uma menina” (sic) com sete
semanas, com onze semanas, com seis meses, com sete meses, recém nascida e uma mulher
adulta. A pessoa sempre teve a mesma identidade e seu programa de desenvolvimento é
disparado na fertilização. Perguntando desde quando se é ser humano, a expositora rebate
argumentos que colocariam uma fase de existência pré-humana e outra humana. Cita o
filósofo Robert Spaeman para quem a o embrião começa a ser humano desde a fecundação:
“A pessoa humana se identifica com o próprio homem; portanto, a partir do momento em
que a vida começa, deve ser protegida. Todo o resto é arbitrariedade” (p.66). Mostra uma
série de imagens da fertilização e fusão do material genético materno e paterno. Compara a
vida humana e a vida celular: um embrião humano de três dias e uma neurosfera que é
formada pela divisão de células-tronco do cérebro cultivadas em laboratório. O primeiro
tem autonomia funcional, seu autodireciona no sentido de formar um novo indivíduo,
assumindo outra morfologia com o tempo, enquanto a neurosfera permanece um montinho
de células. Relata um experimento que mostra a assimetria do embrião desde que tem duas
28
Professora da UFRJ, pesquisadora de células-tronco desde pós-doutorado na Universidade de Toronto.
23
células: uma formará o corpo e outra os anexos embrionários (cordão, placenta, bolsa),
portanto este não é um monte de células. Compara a imagem do embrião de duas células
com a de um feto de 18 semanas, buscando a assimetria em ambas. A autonomia ocorre
mesmo no momento da implantação: “Todo esse processo de divisão e de implantação
nesse estágio é onde o embrião se autodetermina e, ao se dividir, vai determinando quais
proteínas devem ser expressas, ou não, em cada célula. A implantação decorre de uma
conversa química entre o próprio embrião e as células do endométrio materno” (p. 70).
Contesta que fases precoces no processo sejam humanas em potencial, mas são “vida
humana em estágio específico do desenvolvimento” (p.70). Conclui: “o respeito ao embrião
humano, como pessoa humana, deriva da realidade da força da constatação biológica e da
argumentação racional. O direito à vida e à integridade física, desde o primeiro momento da
existência, é o princípio de igualdade que deve ser respeitado” (p. 71).
Dra. Claudia Batista representa o embrião em seu desenvolvimento autônomo como
um indivíduo no sentido de Dumont: “o ser moral independente e autônomo, [...]
essencialmente não social, que veicula nossos valores supremos” (1992: 35). Sua
identidade é permanente. Coerentemente com sua exposição sobre autonomia, ela não
enfatiza a necessidade da implantação no útero para tal desenvolvimento do embrião. Ele se
autodetermina e até conversa com o endométrio materno. “O programa de desenvolvimento
é disparado na fertilização”: tal representação do desenvolvimento fetal como processo
automático é característica da cosmologia ocidental moderna (Conklin & Morgan, 1996).
A Dra. Lilian Piñero Eça,29 pesquisadora de células-tronco adultas, abordou o
“diálogo entre o embrião e sua mãe”. Ao estudar os sinais das células no corpo materno
mãe, a cientista quer demonstrar que este se comunica com a mãe, secretando substâncias
duas a três horas após a fecundação. Para representar essa comunicação, vem um desenho
de bebês usando computadores para se comunicar. Isso constituiria uma “conversa
molecular” entre embrião e mãe. Essa mulher “prepara o ninho” (sic) para receber o
embrião. Mostra esquemas de vasos sangüíneos, membrana celular com passagem de íons,
e desenhos de sinapses de neurônios (as conexões entre as células por onde passa o impulso
nervoso) para mostrar a secreção dessas substâncias e neurotransmissores comandados pelo
29
professora da Universidade do Sagrado Coração (USC) de Bauru; coordenadora de pós-graduação no
Centro de Extensão Universitária; diretora científica do Centro de Atualização em Saúde e Presidente do
Instituto de Pesquisa de Células-Tronco.
24
embrião. O equilíbrio físico, psicológico e emocional da mãe se altera pela presença do feto
e secreção de substâncias. A retirada abrupta do feto causaria um “blecaute total” com
depressão “por motivos moleculares” (sic) e aumento da taxa de suicídio.
A exposição de Dra. Lílian Eça é uma das únicas a enfatizar o caráter relacional da
pessoa do embrião em “diálogo” com a mãe, mas se evidencia quem comanda o diálogo: o
embrião. Nas demais exposições, exceto pelo momento da nidação, a mãe é apagada como
meio de desenvolvimento. Vários estereótipos de feminilidade nutriente e acolhedora estão
presentes.
Dra. Alice Teixeira Ferreira30 agradeceu a oportunidade de expor a posição a favor
da pessoa humana e discorreu sobre a questão: “é indispensável a utilização das célulastronco embrionárias na pesquisa?” Mostra a foto de um embrião humano “estourado” (sic)
na fase de blastocisto para recolher as células-tronco. Nos Estados Unidos, muitos pais
teriam desistido de doar os embriões congelados para pesquisa após ver essa foto, o que
teria estimulado alguns a novas tentativas de gestação ou dispor deles para adoção.
Continuamente, ela exibe fotos das pessoas envolvidas, inclusive de crianças que provieram
de embriões congelados, ou de casais que tiveram coragem de adotar os embriões, pois o
congelamento pode levar a malformação. Afirma a inexistência de certeza científica de
embriões congelados há mais de três anos serem inviáveis. Mostra uma tabela com
aplicações de células-tronco adultas para diversas doenças. A partir de evidências
científicas, quer contestar as justificativas para o uso de células embrionárias. Discorre
sobre um modelo em a célula parcial ou totalmente diferenciada pode voltar a assumir
características pluripotentes de células embrionárias. Cita artigo de 2006 demonstrando que
células germinativas masculinas do testículo podem ser revertidas para o estado
embrionário, e multiplicadas em número suficiente para tratar doenças degenerativas.
Mostra fibra cardíaca funcional derivada da célula. Células germinativas no homem ou na
mulher poderiam ser revertidas a estado pluripotente. Tais linhagens de células para
recuperação de outros tecidos já estão a venda. Outro estudo enfocou as células-tronco da
pele para descobrir fatores de proliferação, conseguindo pedaços de pele para transplante, e
associado à terapia gênica, teve sucesso na recuperação da epidermólise bolhosa. Sempre
30
médica, professora no departamento da UNIFESP na área de Biologia Celular e Molecular, Coordenadora
de estudos pré-clínicos com células-tronco adultas.
25
mostrando imagens dos títulos dos artigos citados, a expositora relata outra pesquisa em
que reverteram células comuns já diferenciadas e levá-las ao estado embrionário. Há planos
futuros de tratamento das doenças neurodegenerativas e uso em transplante de órgãos, além
de testagem de medicamentos para tratamento personalizado. Na área de bioengenharia, um
experimentou passou células-tronco do cordão umbilical por um reator e as transformou em
células do fígado. O conhecimento de fatores que agem sobre as células-tronco permitirá no
futuro fazer as que estão no nosso organismo trabalharem para recuperar doenças
degenerativas. Encontraram-se células com caráter embrionário no líquido amniótico. Elas
foram injetadas no cérebro de camundongo, o que serve de sugestão para uso pelos
neurologistas. A expositora considera ter contestado as justificativas para uso de célulastronco embrionárias humanas em pesquisa e possíveis terapias.
Em seu foco nas possibilidades de terapia celular, a exposição da Dra. Alice
Teixeira Ferreira é a que mais se assemelha ao estilo do grupo opositor. Há praticamente
uma inversão de argumentos: ela é convicente em expor tratamentos eficazes e alternativas
de manipulação que devolveriam à célula adulta um caráter pluripotente similar ao
embrionário. Evitou o artigo sobre a pluripotencialidade das células mesenquimais que foi
desacreditado na comunidade científica, por isso muito usado para fortalecer as teses do
grupo adversário. Outra novidade é retomar a relação dos “genitores” com os embriões
congelados, tanto mostrando o mal estar deles quando viram imagens da extração das
células do blastocisto e a conseqüente destruição deste, como no interesse de nova gestação
ou de doar para outros casais. Ela consegue inverter a imagem dos embriões abandonados
retoricamente usada pelo grupo adversário.
O último expositor da parte da manhã, Dr. Marcelo Vaccari,31 falou da
“aplicabilidade das células-tronco adultas nas várias especialidades médicas”. O tema busca
responder à pergunta sobre quando se inicia a vida. A missão dos cientistas ali presentes é
passar orientações científicas concretas baseadas em fatos reais e não futuros ou em
opiniões pessoais. Há mais de cem anos se definiu o início da vida ocorrendo na
fecundação. Para a reposição de tecidos, apresentou-se a opção da terapia de reposição de
tecidos com células-tronco. Apresenta a definição de células-tronco formulada em 2001:
31
médico, cirurgião plástico, pesquisador e mestre em cirurgia pela UNIFESP, colaborador de pesquisa com
células-tronco pela USC de Bauru
26
células com capacidade de se auto-renovar, gerando células-filhas com as mesmas
características da célula-mãe e outro tipo de célula do corpo. A partir do sucesso da
pesquisa em laboratório, o estágio inicial, o pesquisador se sente autorizado a fazer a
pesquisa em seres humanos, um animal nobre, porém a terapia com células embrionárias
até agora não obteve sucesso. Após definir bioengenharia tecidual, o expositor descreve
uma série de terapias com células-tronco adultas, inclusive feitas por cientistas do bloco
oposto. Ele expõe o protocolo de terapia com células-tronco adultas para insuficiência
cardíaca grave e compara o custo e o preço dessa intervenção ao transplante de coração.
Mostra fotos de dois pacientes tratados: um andando de bicicleta e outro jogando bola, e o
filme do mesmo paciente de doença de Chagas já exibido na audiência. Outras pesquisas
desenvolvidas no Brasil e mencionadas: com membros de doença arterial periférica, o
tratamento para doenças no fígado, o tratamento de doenças auto-imunes na fase aguda da
diabetes e da esclerose múltipla. Exibe a foto de um paciente de AVC que após a terapia
voltou a andar e a de outra com o mesmo problema e terapia e que saiu da cama. Mostra
foto de piloto de motocross que sofreu lesão da medula e após a terapia com células-tronco
adultas saiu da cadeira de rodas e move-se com andador. Outro experimento é a
reconstituição de segmento de nervo periférico. Cartilagens e meniscos foram tratados com
células (condrócitos) diferenciados a partir de células adultas. Células-tronco de cordão
umbilical foram usadas para tratar danos cerebrais em crianças nos Estados Unidos. Trouxe
o exemplo de tratamento da doença genética osteogenesis imperfecta em modelo animal
através de manipulação genética da célula-tronco doente e sua reintrodução. Outro exemplo
de doença genética é o experimento em modelo animal de terapia com células adultas
manipuladas geneticamente para distrofia muscular. Afirma a existência de 72 aplicações
clínicas com células-tronco adultas em seres humanos e nenhuma com células
embrionárias. As células-tronco embrionárias apresentam rejeição e a formação de
teratomas, e mostrando foto dos tumores em modelo animal. Menciona o cientista coreano
que pesquisava a transferência nuclear nas células-tronco embrionárias e se descobriu que o
resultado era uma farsa. Dizendo-se pragmático, afirma que a realidade clínica atual é a
célula-tronco adulta, e que não há necessidade de interromper a vida para fazer tratamento.
Dr. Vaccari, como Alice Teixeira, encarna o foco pragmático na exposição contrária
ao uso das células embrionárias: mostra os riscos, a fraude do pesquisador coreano,
27
chamado de líder na área de transferência nuclear, e a inexistência de terapias com as
embrionárias. Usa muitas fotos de pacientes que teriam se beneficiado de terapias com
células adultas, inclusive como parte de pesquisas realizadas por expositores do grupo
oposto. Alguns experimentos em modelo animal teriam sido bem sucedidos em doenças
genéticas que o grupo oposto considerou impossíveis de tratar com as adultas.
O primeiro expositor da parte da tarde foi o Dr. Antônio José Eça, docente em
Medicina Legal. Advertido pelo relator para não fazer análise de dispositivos jurídicos, Eça
retrucou que iria discutir a partir da Medicina Legal os problemas éticos relacionados à
discussão sobre vida e morte, em particular com respeito aos meios disponíveis para
precisar a morte, tema relacionado ao interesse nos transplantes de órgãos. A morte
encefálica é o sinal mais utilizado como marco de morte, mas a última ocorre como um
processo. Afirma que a existência do tubo neural não será o marco de início da vida
humana, mas apenas uma das etapas mais avançadas do desenvolvimento. Mostrando uma
seqüência de fotos da divisão celular com foco nos cromossomos, discorre sobre o zigoto
estar pré-programado geneticamente. A sinalização celular para a transcrição gênica da via
que permite a diferenciação de neurônios e a formação do tubo neural estaria acontecendo
“desde o primeiro instante de vida”. São exibidos desenhos representando a formação do
tubo. Argumenta haver unanimidade nos livros de embriologia clínica sobre a vida humana
começar na concepção. Pergunta o que seria “o amontoado de células” antes dos 14 dias de
gestação: um “alien”? Elogia os resultados promissores da célula adulta e denuncia maus
resultados das células embrionárias: a formação de tumores e a rejeição como em
transplante de órgão. Questiona o número de embriões disponíveis para pesquisa e indaga o
que ocorrerá quando acabarem: se os pesquisadores vão continuar “sacrificando a vida”.
Fala sobre o gasto de “dinheiro público com aventuras tecnicamente discutíveis”. Quando
começa a falar sobre anencefalia, é advertido pelo relator para evitar provocação e
confronto com os outros expositores. Para concluir, coloca princípios éticos: respeito pela
vida humana desde a concepção e proteção ao embrião “mesmo em estado de congelação”;
a necessidade e a liberdade de pesquisa científica, respeitadas as regras éticas e legais; a
necessidade de propostas para cura de doenças, dando o exemplo do uso da célula adulta;
que esses processos não seja deslocados para interesses e resultados inconfessáveis.
28
O argumento do Dr. Eça para contestar que a vida iniciaria com a formação do tubo
neural são os processos que começam desde a fecundação e não em etapa mais avançada.
Como os demais do grupo, a fecundação como marco inaugural é sua tese.
A expositora seguinte, Dra. Elizabeth Kipman Cerqueira,32 falou sobre “o ser
humano em gestação”. Durante sua exposição, são projetadas páginas de livros texto e ela
lê trechos destacados. A expositora considera impossível dizer que o indivíduo tem um
momento de morte, mas não um momento de início. Dá a definição de ser vivo pela
“Biologia moderna”: “ser que tem um início e, a partir do seu próprio potencial, da sua
ipseidade, da sua imanência, daquilo que lhe é próprio, desenvolve-se num programa
recebido através de um material genético” (p. 108). Para ela, há um começo nítido quando o
espermatozóide atravessa a membrana do óvulo, outras propostas são relativas. Lê de um
“livro bíblia” (sic) de um ginecologista obstetra que a vida começa do ovo, e continua: “A
gravidez não é um processo essencial da reprodução” (p. 109), embora indispensável nos
mamíferos para a o desenvolvimento do concepto. O livro compara o desenvolvimento de
outras espécies animais através do ovo com o que ocorre no “embrião de proveta”. Ela fala
que no laboratório, “o embrião cresce a partir dele mesmo” e se não for implantado até o
quinto dia, depois ele morre ou tem que ser congelado. Expondo as fases de
desenvolvimento embrionário, lê trechos de livros de ultra-som, de embriologia e de
obstetrícia para dizer que a “medicina se organiza em torno desses conceitos” (p.110).
Segundo a expositora, reconhecer como semelhante alguém com as mesmas qualidades
nossas seria “a base do preconceito”: “A percepção da individualidade do embrião não
pode vir pela aparência dele, tem de ser pela definição do que é o indivíduo, do que é o ser
humano” (p.111). O tamanho pode negar a potencialidade de desenvolvimento, mas não a
potencialidade de vida. Reitera que a identidade do embrião não provém do observador,
mas de um processo de autoconstrução intrínseco. Definir o embrião por suas propriedades
funcionais ou estruturais, como o batimento cardíaco e a formação do sistema nervoso,
revela concepção fixista, contrária à Biologia. Através do tempo o embrião “se torna na
aparência aquilo que ele é desde o início” (p.113). “Portanto, ele traz uma unidade interior,
essa unidade que é a vida e que o faz um ser vivo” (p.113). Fala dos problemas gerados
32
médica, especialista em ginecologia-obstetrícia; especialista em logoterapia e logoteoria aplicada à
educação, ex-professora da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo, professora de bioética.
29
pela fecundação in vitro: embriões excedentes, implantação de vários e redução
embrionária, barriga de aluguel, implantação em útero não humano. Os gametas não têm a
probabilidade de desenvolvimento de um ovo. A necessidade de preparar a mulher que vai
receber o embrião é “prova clara de que o filho manda na mãe desde o começo” (p. 115).
Critica as expressões “ser humano em potencial”, lançada no Relatório Warnock, e o termo
“pré-embrião”, definido como fase anterior ao surgimento da linha primitiva, o que
consistiria em fases do desenvolvimento. Critica outros argumentos que legitimam o uso de
embriões: não é indivíduo porque ainda formará os anexos embrionários; a perda natural de
óvulos fecundados. Afirma que se a “natureza é cruel e elimina” esses óvulos fecundando,
não significa que os outros não são seres vivos. Quanto à possibilidade de formação de
gêmeos univitelinos, esse argumento seria “fixista” e “pré-formista”, pois “a
individualidade não quer dizer que é singularidade” (p. 120). Mostra um quadro de critérios
para o início de um ser humano, afirmando que exceto a entrada do espermatozóide no
óvulo, todos os demais seriam relativos: fusão dos pró-núcleos; formação do sistema
nervoso; aparência humana; percepção pela mãe dos movimentos fetais; quando há
possibilidade de sobrevida fora do útero; no nascimento; após teste de normalidade física
do recém nascido; aos dois anos quando se torna um ser moral. Cita intelectuais para quem
a vida humana seria manipulável. Redefine a questão da audiência não como discussão da
vida humana, mas como “o início de um novo ser humano” [biografia] a partir do que a
genética e a biologia ensinam, e não em momentos de seu desenvolvimento, o que ela
compara com noções de Aristóteles. Declara haver apenas um critério de certeza e propõe a
coincidência quanto à referência biológica, jurídica e política.
Elizabeth Kipman Cerqueira, ao questionar diversos argumentos, vai ao ponto que a
análise antropológica chegou na cosmologia ocidental moderna: é necessário o caráter de
indivíduo para o reconhecimento como pessoa (cf. Strathern, 1992; Salem, 1997). Ela
questiona os argumentos que não reconhecem a condição de pessoa do embrião na fase em
que não se distinguem os primórdios dos anexos, ou porque existe chance de virar gêmeos,
em ambos os casos faltaria a individualidade. Ao citar de livros que a gravidez não é
processo essencial para a reprodução ou que a identidade do embrião não provém do
observador, mas de um processo de autoconstrução intrínseco, ela constrói mais uma vez o
embrião como indivíduo a-social retratado por Dumont (1992). Ao mesmo tempo que
30
defende uma noção essencialista de pessoa, pois o embrião “se torna na aparência aquilo
que ele é desde o início” (p.113), ela usa argumentos do discurso liberal individualista para
tachar de “preconceito” qualquer postura que não atribua à condição de pessoa do embrião.
Ela representa exatamente o que sua opositora Debora Diniz criticava e quer fazer coincidir
a referência biológica, jurídica e política.
O Dr. Rodolfo Acatauassú Nunes,33 professor de medicina, dissertou sobre “o início
da vida humana e prática médica”. Considera haver manipulação conceitual de um fato, o
momento do início da vida, e introdução de conceitos novos sem sustentação, o que se
confronta com a literatura médica estabelecida. Introduz-se incerteza quanto ao valor da
dignidade da vida humana. Ele lê trechos de livros (de embriologia, biologia celular e
molecular, e obstetrícia) sobre o início da vida: o desenvolvimento humano se inicia na
fertilização. O zigoto é “uma estrutura extremamente complexa, a síntese do organismo
humano dentro de uma célula” (p. 131). Lê a descrição do período embrionário e mostra
tabelas de desenvolvimento. O uso de classificações didáticas do desenvolvimento para
remanejar o marco inicial da vida e executar lesões físicas no embrião ou feto falta com
respeito à dignidade humana, postura que afeta a formação dos médicos, contrastando como
o rigor de comitês de ética para o bem dos pacientes. A manipulação do marco inicial
resultaria na revitalização da prática eugênica de decidir quem vive e quem morre e na
alteração do papel do médico como agente da morte. Tomando o exemplo de cirurgias em
fetos com malformação, ele comenta que leis podem estimular pesquisas para certo foco,
como a legislação brasileira que não prevê interrupção da gravidez nesses casos. Mostra a
foto de um útero cortado em cirurgia e a mão do feto saindo pela incisão, segundo ele, para
pegar o bisturi do médico. Sugere pesquisas com células-tronco embrionárias em animais
de experimentação: foro correto para aprendizado. Comenta experiências em seres
humanos pelos nazistas. O respeito ao início da vida impediria transigir quanto à dignidade
do ser humano, rompendo com a discriminação por estágio de desenvolvimento.
Se Elizabeth Kipman Cerqueira falou em preconceito, o Dr. Acatauassú o sinônimo:
“discriminação por estágio de desenvolvimento”. Contrapõe o respeito à dignidade da
pessoa humana, um valor absoluto à possibilidade de usar diversos marcos referenciais para
identificar a condição de pessoa, o que ele designa de manipulação conceitual de um termo
33
Professor adjunto da UERJ, doutor em cirurgia geral com ênfase em Cirurgia Torácica (dados do Lattes).
31
que ele pretende absoluto. Esses marcos são todos de caráter biológico, assim como os
levantados pelos demais expositores. A busca de marcos estruturais fixos para a condição
de pessoa é própria da cosmologia ocidental (Conklin & Morgan, 1996).
Dr. Herbert Praxedes, médico e professor emérito de hematologia na UFF, falou
sobre “células-tronco adultas e células-tronco embrionárias”. Ele traz o questionamento
tirado da peça Antígona sobre a “licitude de legislar sobre princípios eternos”. Lê também
um princípio filosófico de Kant: “A dignidade é o princípio moral que enuncia que a pessoa
humana não deve nunca ser tratada apenas como um meio, mas como um fim em si
mesma”. Traz o resumo de uma carta de cientistas americanos a um candidato à presidência
que defendia as pesquisas com células-tronco embrionárias. Os cientistas censuraram o
candidato, porque a ciência “não promete curas miraculosas com dados inconsistentes”.
Outros cientistas que afirmaram tal expectativa foram tachados de agir irresponsavelmente.
O relator advertiu Praxedes a não desqualificar o autor do argumento, e desqualificar
apenas o argumento. A carta alerta para a falta de evidência das aplicações médicas das
células embrionárias e para os riscos efeitos colaterais e rejeição mesmo com a clonagem.
Continua com os benefícios clínicos das células adultas que não implicam problema ético e
rejeição se usadas as do próprio paciente. Não se pode prever se as células embrionárias
produzirão benefícios que seriam alcançados por outros meios eticamente menos
problemáticos. Dr. Praxedes conferiu as referências bibliográficas da carta disponíveis e
não encontrou menção a células embrionárias tratando ou melhorando qualquer entidade.
Dr. Praxedes enuncia o conceito de dignidade humana elaborado por Kant que
permeia o debate de ambos os grupos: simplificadamente, não tratar o ser humano um
meio, mas como um fim. O grupo que defende o uso de embriões em pesquisa, contudo,
questionou que estes constituam seres humanos. Segundo Fagot-Largeaut, o respeito, no
sentido kantiano, se destina ao agente moral, um ser capaz de se autodeterminar segundo a
representação que ele mesmo tem do imperativo moral. O embrião no estado de blastocisto
não teria autonomia moral (2004). Por isso, tanto esforço para mostra a autonomia do
embrião por parte dos que dizem defender a vida.
Dr. Dalton Luiz de Paula Ramos34 abordou as “inconsistências conceituais sobre o
início da vida humana”. Considera como “fato” que “uma vida humana começa no exato
34
Professor de Ética Profissional e Bioética da USP (Faculdade de Odontologia). Integrou comitês de ética.
32
momento da fecundação” (p. 145), quando se cria um patrimônio genético diferente
daqueles do pai e da mãe. Fala da necessidade de informar o “público leigo” em ciências
biológicas. O embrião humano não pode ser tratado como uma entidade biológica qualquer.
Por ele ser muito pequeno, é difícil aos que não têm acesso ao conhecimento tecnológico
entender o que representa. O comportamento de uma célula embrionária é diferente do
comportamento de outras células. Oferecendo ao embrião condições de “proteção, acolhida
e alimentação”, ele de desenvolverá de acordo com um projeto: “a vida humana como um
processo contínuo, coordenado e progressivo” (p. 149). O processo é contínuo porque tem
início e fim; coordenado porque é “auto-suficiente no próprio projeto”, possuidor de todas
as instruções; progressivo porque, oferecidas as condições necessárias, passará para o
estágio seguinte, em evoluções que compõem uma “biografia” (p.150). Essas categorias “se
tornam evidentes [...] até a olho nu” (p.150). Com slide que traz uma foto da nidação do
embrião no útero e outra de um bebê amamentado, ele contesta que a vida comece na
nidação: “A relação com a mãe constitui originária e estruturalmente o sujeito? Não. É a
realidade do sujeito que torna possível a relação” (p.151). [preeminência do indivíduo sobre
a relação: modelo ocidental de pessoa, Strathern, 1995]. Questiona diversas objeções à
designação do embrião como vida humana. Afirma a existência de vida humana antes do
desenvolvimento do cérebro, pois este ocorre por ação dos genes. Abortos espontâneos
comuns nas primeiras semanas de gravidez seria interrupção precoce da vida. O
prognóstico desfavorável com respeito ao aborto e ao desenvolvimento de embriões
congelados não impede de dizer que a vida existiu. Quanto à incerteza da identidade do
embrião devido à possibilidade de formação de gêmeos, o expositor argumenta que a
geminação não destrói o primeiro embrião. A discussão sobre se a vida do embrião é
humana representaria um retrocesso na civilização ocidental: “os bárbaros exigiam que os
recém nascidos demonstrassem ter atributos humanos”(p.153). Remete ao nazismo e ao
estalinismo. Mesmo que a sociedade assuma “um critério de ‘humanidade’ que se baseie na
potência e viabilidade do organismo”, essa opção: “contraria o dado biológico, que
caracteriza o ‘humano’ por seus atributos genéticos e por sua expressão orgânica” e “traz o
perigo do casuísmo e da própria negação da vida com o direito universal” (p.154). Indica o
uso de células-tronco adultas como a solução para exigências éticas e de eficácia na busca
de terapêuticas.
33
O Dr. Dalton Ramos também reforça a ênfase na concepção de pessoa do embrião
como indivíduo, afirmando que o sujeito antecede a relação e não é constituído por ela,
para negar que a relação com a mãe conceda ao embrião o estatuto de pessoa. Na
concepção de parentesco ocidental, segundo Strathern (1995), o indivíduo nasce só, sendo
dotado aos poucos de relacionamentos. Tanto ele como Dra. Claudia Batista usam o mesmo
conjunto de três termos para designar o processo de desenvolvimento embrionário e a
própria vida humana: “processo contínuo, coordenado e progressivo”. Eles repetem com
pequenas alterações uma fórmula usada nos documentos da Igreja Católica sobre o
embrião: “desenvolvimento coordenado, contínuo e gradual”(Pontifícia Academia para a
Vida, 2000).
O último expositor desse bloco, Dr. Rogério Pazetti35 de início confessou um
problema pessoal: sua esposa acabar de sofrer um aborto espontâneo. “Não perdi um
montinho de células”, tinha seis semanas, mas “já era meu filho” (p. 155). Com o tema “a
vida começa na fecundação”, quer sintetizar conceitos usados pelos especialistas de ambos
os lados para mostrar que haveria consenso sobre o tema principal da audiência. Para tanto
obteve citações de livros dos cientistas e de declarações na imprensa. Nos slides de texto, o
pano de fundo é a imagem do blastocisto arrebentado. Cita colocações sobre o início da
vida na fecundação com uma única célula e a formação de “a receita única, inédita, de uma
pessoa”. Rebate a afirmação de que o embrião seja um “amontoado de células” e argumenta
serem células ligadas umas às outras com informações precisas sobre a diferenciação desde
o primeiro instante. Recorta outras citações acerca da diversidade de aplicações clínicas das
células-tronco adultas no Brasil, do uso destas em terapias para doenças genéticas, dos
problemas que impedem o uso de células embrionárias em terapias (fraude e geração de
tumores), do estudo em modelos experimentais ou animais. Critica a proposta de resolver o
problema de rejeição das células embrionárias através da criação de um embrião a partir de
uma célula do paciente, como na clonagem. Quanto à ultima proposta, o expositor esclarece
que a técnica de clonagem terapêutica e de clonagem reprodutiva é a mesma, porém na
última o embrião será transferido para o útero, enquanto na terapêutica o embrião “ficará na
placa, será destruído, morto”. Pergunta sobre os limites da ciência e cita resposta de
35
Pesquisador em cirurgia torácica na USP e doutor em ciências (Faculdade de Medicina/USP). Dados do
Lattes,
34
Willmut, um dos criadores da Dolly: a tecnologia disponível, a criatividade do cientista e as
regras morais da sociedade naquela época e cultura. “Queremos, no Brasil, uma ciência que
não precise viver da desgraça alheia” (p. 160). O Brasil seria um dos países que mais curam
pacientes com essa terapia (de células adultas), o que significa, para o expositor, “o médico
salvando e não matando” (p.161).
Dr. Pazzeti faz a pergunta que enquadra todo o sentido desse debate legislativo:
quais os limites da ciência? O objetivo do debate na esfera jurídica é definir as regras
morais. Ele denuncia o uso de embriões em pesquisa como viver da desgraça alheia e apela
para a imagem tradicional do médico, já invocada por outros, como salvador de vidas.
As perguntas dos ministros
O Ministro Carlos Ayres Britto, relator do processo, após o final da exposição dos
blocos, com a antropóloga Débora Diniz, comentou as duas opiniões contrapostas e
antinômicas e observou que a decisão por cada corrente de opinião homenageava princípios
distintos da Constituição. Colocou três perguntas suas, uma do Ministro Ricardo
Lewandowski e a última do gabinete do ministro Eros Grau. O que é nascituro para as
ciências médicas e biológicas? Qual a importância médica ou biológica do marco dos três
anos de congelamento? O que é um embrião inviável? O Ministro Lewandowski perguntou,
uma vez que a legislação brasileira permite a fertilização in vitro, qual a melhor destinação
para os embriões extranumerários atualmente congelados nas clínicas? Do gabinete do
ministro Eros Grau veio a pergunta ao grupo que expôs sobre as células germinativas: por
que não são amplamente utilizadas, se podem gerar resultados ou resultar em doenças
degenerativas e se o alcance dessas células demanda procedimento de alto custo.
Pelo bloco defensor da lei de biossegurança, Dra. Débora Diniz respondeu a três
perguntas. O conceito de nascituro é vocábulo jurídico que migrou para o debate público.
Leu a definição de inviabilidade prevista pelo Decreto n° 5.591 da ANVISA:
XIII - embriões inviáveis: aqueles com alterações genéticas comprovadas
por diagnóstico pré implantacional, conforme normas específicas
estabelecidas pelo Ministério da Saúde, que tiveram seu desenvolvimento
interrompido por ausência espontânea de clivagem após período superior
a vinte e quatro horas a partir da fertilização in vitro, ou com alterações
morfológicas que comprometam o pleno desenvolvimento do embrião;
Observou que o decreto teve ampla participação das sociedades científicas por ocasião da
elaboração. O relator perguntou se esse conceito jurídico era aceito pacificamente pela
35
comunidade científica. O melhor destino para os embriões inviáveis seria aquele que
respeite a autonomia da vontade dos genitores.
Dra. Patrícia Pranke respondeu sobre a importância dos três anos de congelamento,
e comentou sua experiência dando assessoria na elaboração da Lei de Biossegurança. O
período de três anos foi entendido equivocadamente como marco de inviabilidade, mas o
objetivo era dar um prazo mínimo para o casal tomar a decisão de doar os embriões para
pesquisa. Observou que quanto mais tempo de congelamento, menor a viabilidade. O
relator então confirmou que o referencial do marco seria a vontade dos genitores.
Dr. Stevens Rehen respondeu que o outro grupo fizera as afirmativas sobre o
potencial das células germinativas de ter efeito semelhante ao das embrionárias. Salientou
terem sido apenas dois trabalhos, e alertou para a necessidade de outros
grupos
reproduzirem os resultados para que tais células sejam aplicadas em terapia.
O grupo questionador da Lei de Biossegurança respondeu de forma mais extensa.
Alguns aproveitaram para reagir à exposição anterior da Dra. Débora Diniz que comparou a
situação do uso de embriões em pesquisa e autorização para pesquisa clínica em crianças
com doenças terminais. Dra. Elizabeth Kipman Cerqueira observou que o termo nascituro
quase não é usado em literatura médica e científica, mas se refere à vida humana em
gestação, o que inclui o embrião, um ser humano em desenvolvimento para nascer. O
relator perguntou se a definição de “ser humano em desenvolvimento para nascer” não
identificaria uma vida em potencial na linguagem aristotélica. Ela negou, considerando que
a linguagem aristotélica pode gerar confusão acerca de algo que seria implantado em dado
momento na carne informe. Em sua opinião, seria sofisma misturar pesquisa com doente,
reconhecido como pessoa, e embrião.
Dra Lenise Garcia, quanto ao marco de três anos de congelamento, afirmou a
inexistência de tal prazo biológico, o que foi provado pelo nascimento de crianças após
treze anos de congelamento. Enfatizou que apenas os congelados na época da aprovação da
lei estariam incluídos. Todas as definições, que não o marco natural da fecundação, seriam
arbitrárias, frutos da reunião de “meia dúzia de pessoas” que resolvem quando termina o
direito de pessoa. Respondendo sobre o destino dos embriões congelados, comparou-o à
divisão do fruto de um roubo. Considerou que o congelamento romperia o marco ético,
36
denunciando que a reprodução assistida no Brasil está em vácuo legal. Com a ADI,
defende-se não um “punhadinho de embrião”, mas um princípio que não deve ser rompido.
Dra. Claudia Batista respondeu acerca do embrião inviável, comentando que as
clínicas de fertilização adotavam critérios morfológicos funcionais e sensorialmente
observáveis que seriam grosseiros. A certeza sobre a viabilidade viria apenas dando a
chance de implantar o embrião.
Dra. Alice Teixeira Ferreira retomou a questão sobre o potencial de células
germinativas assumirem a característica de embrionárias, conforme pesquisa realizada por
uma companhia de biotecnologia. Reconheceu a necessidade de confirmar os resultados
antes de se pensar em usar essas células para tratar doenças degenerativas.
Comparando as respostas a perguntas idênticas, fica explícito como o primeiro
grupo favorável ao uso de embriões em pesquisa está afinado com os valores do
individualismo liberal moderno, ao delegar aos “genitores” dos embriões a maior parte das
decisões. As definições de inviabilidade do embrião foram técnicas e resultantes de certo
acordo na comunidade científica, para elaboração do termo no regulamento da ANVISA. Já
o grupo que questiona a constitucionalidade da lei de Biossegurança, embora tenha uma
representação de pessoa como indivíduo, subordina suas conclusões ao valor máximo que é
a vida, querendo conceder ao embrião o estatuto de ser humano pleno. Em debate estavam
noções gradualistas da emergência da condição de pessoa do embrião e do feto, ou noções
essencialistas, em que o marco inaugural da concepção instaura um novo início
(Strathern,1992).
Considerações finais
A religião diretamente foi pouco mencionada na audiência. O relator falou no início
sobre as ramificações do tema em várias áreas do saber, inclusive os que estudam o tema
pelo prisma da religiosidade (p.3). Mayana Zatz citou os pais religiosos, evangélicos, de
duas meninas com atrofia espinhal, que defendiam as pesquisas com células-tronco de
embriões (p. 8). Stevens Rehen considera que a definição do início da vida depende do
momento histórico, da formação cultural e da formação religiosa de quem responde (p.29).
Débora Diniz quis demonstrar que o questionamento sobre o início da vida tem cunho
metafísico e religioso, pouco susceptível de julgamento razoável (p.212). No encerramento
37
da audiência, o relator considerou que houve contribuições de ordem religiosa, entre outras
(p. 216). Além do relator, apenas expositores do bloco identificado como contrário aos
valores religiosos mencionaram religião.
O bloco formado por pessoas convidadas pelo Procurador Geral da República e pela
CNBB não mencionou religião. A expositora Lenise Garcia deixou escapar um “graças a
Deus” ao dizer que fora gerada em ato de amor por seus pais (p. 62). Outra expositora do
bloco que questionava a Lei de Biossegurança, Elizabeth Kipman Cerqueira contou de
outro debate sobre o mesmo tema no qual uma pessoa justificara uma opinião com base na
ação de Deus. Ela usou o exemplo para desqualificar aquele argumento, pois o debate não
seria teológico, mas a discussão era de dados da Biologia. Os favoráveis ao uso de
embriões em pesquisa relativizam a religião como um dado cultural ou a consideram um
fator que atrapalha o julgamento razoável em estado laico e pluriconfessional. Os
expositores alinhados com a posição da CNBB não falam em Deus nem em religião para
mostrar que seus argumentos são fundados na Biologia. Onde fica o caráter religioso que
permeia as questões do debate? No conceito de vida.
Confira a citação de Elizabeth Kipman Cerqueira sobre o embrião: “Portanto, ele
traz uma unidade interior, essa unidade que é a vida e que o faz um ser vivo” (p.113). Essa
unidade interior remete aos valores transcendentes e não ao mero processo físico e
biológico. A fertilização in vitro e a atual discussão sobre o uso de embriões em pesquisa
retomam o debate do aborto entre os grupos pró-vida e os pró-escolha: para os grupos
contrários ao aborto, a vida é um dom supremo que deve ser respeitado, excluindo qualquer
possibilidade de escolha. Os grupos pelo direito de decidir, dentro do marco liberal
afirmam que sua própria posição permitiria a existência de vários modos de agir em relação
ao aborto, inclusive sua recusa (Boltanski, 2004, Franklin, 1991). A tentativa de esboçar um
estatuto legal a partir da atribuição de dignidade ao embrião fora do corpo levanta a questão
das fronteiras da humanidade (Boltanski, 2004).
Entre os contrários ao uso de embriões em pesquisa, alguns formularam sua
exposição com base nos principais argumentos do debate bioético para atribuir ou negar a
condição de pessoa do embrião. Claudia Batista e Dalton Ramos repetiram com pequenas
alterações uma fórmula usada nos documentos da Igreja Católica sobre o embrião:
“desenvolvimento coordenado, contínuo e gradual” (Pontifícia Academia para a Vida,
38
2000). A ênfase foi no início do indivíduo humano vivo. No grupo favorável à Lei de
Biossegurança, Diniz deslocou a discussão para ética em pesquisa, tendo antes refutado o
argumento da potencialidade dos embriões, isto é, sua capacidade de se manter vivos.
Nesse grupo, houve basicamente três posições: colocar a vida como um processo de
geração contínua, portanto, não haveria resposta sobre o início da vida; levar em conta o
contexto do embrião, afirmando ser a vida possível apenas após a implantação no útero
materno (perspectiva relacional) e fazer analogia com a definição de morte cerebral para
invocar
o
surgimento
do
sistema
nervoso
como
critério.
A
estratégia
foi
predominantemente evitar a questão da vida e se preocupar com a origem dos embriões e
seu destino. Dar o destino digno de salvar vidas também apela para valores religiosos.
Duarte (et. al, 2006) propõe o conceito de ethos privado não confessional, formado
por valores aparentemente laicos, mas que emergem de um pano de fundo religioso. O
conceito de ethos privado não confessional quer conta da “cosmologia estruturante,
reconhecendo que o espaço da ‘religiosidade’ abarca hoje aí muitos valores e
comportamentos oficialmente ‘laicos’ ou, pelo menos, ‘não-confessionais’” (Duarte et al.,
2006, p. 16). O ethos privado não confessional se caracterizaria pelo cultivo de valores
transcendentes tais como o da ‘vida’ e da ‘natureza’, invocados explicitamente tanto por
pessoas pertencentes a diferentes tradições religiosas quanto por outras que se consideram
laicas (Cf. Luna, 2006b). Isso levantaria a indagação quanto aos valores do ethos privado
não-confessional se derivarem das posições doutrinárias formadas ao longo da história do
cristianismo, que integram um fundo comum de idéias em que a vida humana aparece como
sagrada (cf. Luna, 2006b). Um dos vetores estruturantes desse ethos seria o individualismo,
e outro o naturalismo. A noção de vida tem múltiplas faces e não se restringe ao definido
como biológico. A defesa da vida do embrião e a defesa da vida dos pacientes integrariam
esse ethos mais amplo que nos informa.
A proposta em debate na audiência pública, sobre o início da vida humana, foi
ensejo para a colocação de um problema já analisado por Strathern: quando se pode
reconhecer em uma forma natural a presença de uma forma social? (1992, p. 141). Em se
tratando das concepções de embrião e de células-tronco, no debate, os fatos se tornaram
simultaneamente a base para argumentar e o assunto de interpretação. Nesse sentido, os
contrários ao uso de embriões em pesquisa queriam fazer coincidir a definição biológica de
39
embrião, tendo como referência o marco natural da fecundação, com o estatuto jurídico e
político de pessoa. Do lado oposto, Debora Diniz considerou falsa a premissa que a
descrição de um fenômeno biológico, no caso a fecundação, seria suficiente para se inferir
uma questão de ordem moral como a tutela devida ao embrião como pessoa. Tais questões
se colocam porque a natureza assume na cosmologia ocidental o valor de ordem moral (Cf.
Salem, 1995). A biologia como corpo estável, a-histórico e sexuado é fundamento
epistêmico para prescrições da ordem social desde a mudança de episteme ocorrida no
Iluminismo pela qual a natureza se tornou a base da realidade (Laqueur, 1992). Por isso, os
próprios grupos religiosos pró-vida, no caso do aborto, e contra a pesquisa com embriões,
deslocaram seus argumentos do reino da metafísica para o reino natural (cf. Franklin,
1991). Opor a biografia individual, que seria vida humana, ao processo biológico simples
da multiplicação celular, foram as duas visões de embrião presentes na audiência.
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