Tratado da reforma da inteligência. “Humildade, pobreza, castidade... Eis a maneira própria de um filósofo ser um grand vivant, e de fazer de seu próprio corpo um templo para uma causa por demais orgulhosa, demasiado rica, demasiado sensual”.1 O filósofo pode em diferentes localidades habitar, quanto em diversos meios conviver, mas à maneira de um eremita, de uma penumbra, pois, aonde quer que ele vá, só pede que o tolerem; e por essa tolerância julgará o quanto de democracia e verdade uma sociedade pode suportar.2 Digo isto por quê? Apenas verborragia? Na seriedade acadêmica isso não caberia... Cito tais palavras porque acredito que condizem com o espírito do filósofo que aqui será tratado, Baruch de Espinosa. Nascido em 1632 numa família de judeus de origem portuguesa, numa época de Holanda próspera, esse filósofo abnegou a herança de seu bem sucedido pai comerciante e preferiu entregar-se à absorção da religião e história de seu povo. 3 E, embora tenha sido discreto o viver de seus 45 anos, não quer dizer que Espinosa isolou-se do mundo, pelo contrário, correspondeu-se com grandes pensadores de seu tempo, como Tschirnhaus, Leibniz, Robert Boyle e Henrich Oldenburg. Inclusive, foi sua incansável atividade intelectual que o levou à excomunhão – por heresia – em 1656, e quase à morte pelas mãos de um fanático religioso que tentara assassiná-lo.4 Infelicidades que tornaram seus dias difíceis na comunidade em que vivia e, para seguir em sua filosofia, mudou-se ao subúrbio de Rijnsburg, tendo como sustendo o dar aulas e o polir de lentes óticas. Em 1660, escreveu o Breve tratado de Deus, do homem e de sua beatitude; em 1661, iniciou a redação da Ética e, em 1662, redigiu o Tratado da reforma da inteligência, ambas obras publicadas somente após a sua morte; em 1663, publicou Princípios da filosofia de Descartes e, em 1670, o Tratado teológico-político, este último anonimamente; em 1675, concluiu a Ética, mas desistiu de publicá-la devido a pressões calvinistas e, entre 1676/1677 dedicou-se ao seu último escrito, o Tratado Político, até ser silenciado pela tuberculose em 21 de fevereiro de 1677, ano em que postumamente ocorreram as publicações da Ética, das Correspondências, do Tratado da reforma da inteligência, do Tratado político e de um 1 DELEUZE, Gilles. 2006. Cf. DELEUZE, Gilles. 2006, p.10. 3 Cf. DURANT, Will. 1996. 4 Cf. PRADEAU, Jean-François (org.). 2012. 2 Compêndio de gramática hebraica; também postumamente, em 1687, foram publicados o Tratado sobre o cálculo algébrico do arco-íris e o Cálculo das probabilidades. Porém, sobre somente uma das obras se debruçará este trabalho, o Tratado da reforma da inteligência5, mas não quer dizer que as outras não serão citadas, quando necessárias. Para discorrer sobre tal obra, partirei dela própria, mais exatamente do parágrafo 49, no qual Espinosa resume os passos que agora percorrerei e, as primeiras questões a serem levantadas são: Qual a necessidade de reformar a inteligência? Qual foi o propósito do autor ao escrever o Tratado? Já sabemos que ele é uma excelente introdução para podermos entender a Ética, a obra-prima de Espinosa, mas seria pouco reduzi-lo a isso sem antes deixar claro de que ele se trata de um guia para “dirigir nossa inteligência, otimamente, ao verdadeiro conhecimento das coisas”6. Contudo, tal observação nos fornece nova questão: Por que devemos almejar o verdadeiro conhecimento das coisas? Segundo o filósofo, porque amamos aquilo que conhecemos, ou seja, “toda a nossa felicidade ou infelicidade reside só numa coisa, a saber, na qualidade do objeto ao qual nos prendemos por amor” 7. Sem saber ponderar, geralmente os homens tomam bens incertos como certos, e ao invés de encontrar remédio, arruínam-se. Transformam bens, que são meios, em sumo bem, que é fim... Bens que Espinosa reduz a três: o prazer dos sentidos, a riqueza e as honras, coisas que distraem a mente de tal maneira que fica difícil cogitar outro bem, porém, dentre essas podemos considerar o prazer dos sentidos como menos arruinador, pois, após nos entregarmos com ânimo a ele, nossa mente é perturbada por um arrependimento natural devido ao excesso. Quanto às riqueza e honras, não ocorre o mesmo, não há arrependimento natural devido ao excesso, pelo contrário, quanto mais as temos, mais as queremos, no entanto, as honras apresentam-se como maior empecilho, pois ao desejá-las, o homem dirige sua vida a outros homens. Por isso faz-se necessária a reforma da inteligência, para que o homem atinja sua natureza superior, que é o conhecimento da união da mente (por amor) com a Natureza inteira, e goze dessa natureza superior, se possível com outros homens, o que é o sumo bem8. Fim ao qual deve-se dirigir todos os nossos pensamentos. Mas que meios tenho para compreender as coisas e, assim, reformar minha inteligência? Segundo Espinosa, temos a percepção, que pode reduzir-se a quatro modos: a percepção pelo ouvir dizer, como por exemplo, saber o dia do meu nascimento; a percepção 5 Cf. TEIXEIRA, Lívio. 2004. Cf. ESPINOSA, Baruch. 2004. 7 Cf. ESPINOSA, Baruch. 2004, p. 8, § 9. 8 Cf. ESPINOSA, Baruch. 2004. 6 por experiência vaga, como sei que um dia hei de morrer, porque vi morrerem os meus semelhantes; e por esses dois primeiros modos, que formam o 1º gênero de conhecimento presente na Ética, é que conhecemos quase tudo na vida; o terceiro modo é a percepção em que a essência de uma coisa se conclui de outra, como por exemplo, ao conhecer a natureza da vista percebemos que algo a grande distância parece menor do que se o víssemos de perto, e disso concluímos que, entre outras coisas, o Sol é maior do que parece; já o quarto modo, é a percepção na qual se deduz o efeito da causa, ou seja, uma coisa é percebida pela sua essência, ou causa próxima que a produziu, e por isso, neste quarto modo não há perigo de erro na compreensão, o que faz dele o melhor, e o qual deve ser empregado ao máximo9. Vale lembrar que, Espinosa entende por modos as afecções de uma substância, ou seja, o que é em outra coisa e também é concebido por essa outra coisa; aquele que não se produz, não é causa de si10. 9 Cf. ESPINOSA, Baruch. 2004, p. 14 – 19. Cf. Ramond, Charles. 2010, p. 55 – 58. 10