Dissertações 141 na extensão da mesma necessidade significa ser esta compatível com a contingência e com a liberdade, pelo que se distingue da necessidade precedente ou coagente. Anselmo concede, pois, que todo o ser é necessário, não segundo uma necessidade determinante, mas segundo uma necessidade derivada do ser. Para que algo seja necessário deste modo, é preciso que fosse já dado como sendo. De acordo com esta condição, pode porventura exprimir-se, através da ideia de dom, uma disposição mais primitiva do que a necessidade, na ordem das determinações do ser; a gratuidade. Pode efectivamente apurar-se, na obra de Santo Anselmo, uma noção de dom unificando três temas mores do seu pensamento: a liberdade, a Incarnação e a Processão (para além da Criação). Por um lado, a filosofia da liberdade solicita uma noção de dom para o sentido da posse da rectitude pela vontade; trata-se de um dom de natureza, mas inexplicavelmente recusável e só recuperável como graça acrescentada. Por outro lado, a necessidade soteriológica e escatológica do dom da Incarnação, à luz de uma teodiceia, não anula a sua fundamental gratuidade. Finalmente, Anselmo não afirma explicitamente que a processão divina é um dom, a fim talvez de que não pareça motivada por uma necessidade de privação, mas descreve-a perifrásticamente como um dom: um dom de ser (essência) e de ser outro (pessoa) em Deus. Em qualquer dos casos, o dom é absolutamente incondicionado por alguma indigência intrínseca à sua origem. Na medida em que esta característica é especialmente realçada no caso da processão divina, julgámos encontrar na teologia das Processões um contributo ponderoso para a afirmação do primado da gratuidade do ser em Santo Anselmo. A DINÂMICA DA RAZÃO NA FILOSOFIA DE ESPINOSA por Maria Luísa Araújo de Oliveira Monteiro Ribeiro Ferreira Dissertação de Doutoramento em Filosofia, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 1993, 633 pp. "...estamos intimamente persuadidos de que temos ainda mais hipóteses de encontrar um racionalismo sem mistura em Platão e em Aristóteles do que em Espinosa".1 A disseração que defendemos sob o título A dinâmica da razão na filosofia de Espinosa estruturou-se a partir de três "ideias-força". Em primeiro lugar, a da incontestabilidade do racionalismo espinosano, tese que praticamente todas as histórias da filosofia aceitam como dado inquestionável e à qual inúmeros comentadores dedicam estudos ilustrativos. Contrabalançando este lugar comum filosófico, impôs-se-nos como segunda ideia, a contestabilidade de uma razão I "(...) nous sommes done intimement persuades que nous avons encore plus de chance • de trouver un rationalisme sans melange chez Platon et chez Aristote que chez Spinoza". Emmanuel LEVINAS, Difficile Liberie, Paris, Albin Michel 1984, p. 157. 142 Dissertações rígida, ou seja, a consciência de que é ilegítimo considerar dogmaticamente um racionalismo em abstracto, enquanto pedra fundante do sistema espinosano. Como consequência lógica desta tese, surgiu o desejo de tornar explícita a génese da razão espinosana, concretizando-se tal intuito na tentativa de mostração de um percurso dinâmico das suas diferentes determinações. A terceira ideia-força foi pois a de que, em Espinosa, a razão é algo que laboriosamente se constrói, numa dialéctica constante com o que de início recusa mas do qual permanentemente se socorre, à maneira do martelo que no Tratado Breve nos é apresentado emergindo do ferro, de um modo progressivo e penoso pela acção de martelar.2 No "corpus spinozanum" bá uma imensidade de páginas dedicadas ao papel do corpo, da imaginação, dos afectos, da intuição e do amor. O relevo que lhes é dado c as funções que lhes são atribuídas levaram-nos a considerar estes temas como traves mestras do sistema. Foi nossa intenção mostrar que eles são essenciais na constituição de uma razão que o filósofo pretende tornar soberana, da qual não consegue contudo erradicar totalmente as impurezas, misturas ou mesmo fugas. Enquanto princípio, a razão é intocável. Enquanto faculdade, bebe em instâncias "infra", "para" e "trans-racionais". A nível de uma razão operacional, dá-se uma constante invasão de outros domínios que quer a delimitam, quer com ela se ligam, quer a servem, quer dela se servem. Daí as suas fragilidades e limitações, que, em lugar de a enfraquecerem, antes a tornam mais real, patenteando o caminho trabalhoso que teve que seguir para se impor. A leitura feita da razão espinosana não visou detectar-lhe falhas nem apontar-lhe hiatos e inconsistências. Pretendeu, sim, debruçar-se sobre o seu exercício, mostrando que ela se constitui como uma prática, um trabalho, o culminar de um esforço; tentámos não deturpar o pensamento do autor, mas apenas tornar presente o peso de instâncias não pertencentes à razão, sem as quais esta não conseguiria afirmar-se. Considerámos a inteligibilidade integral da realidade como um princípio determinante do espinosismo. Contudo, ao dar-lhe relevo, atendemos também a outras instâncias que o filósofo valorizou e cuja actuação foi determinante no sistema. Situando-se Espinosa no que por vezes se designa por "grande racionalismo"3 detectámos todavia que a razão se mistura com o irracional, servindo-se dele, usando-o ou mesmo dando-lhe valor4. Assim, a dialéctica razão/não razão está presente no espinosismo, sendo nossa intenção evidenciá-lo. 2 Tractatus de Intellectus Emendatione, G. II, pp. 13-14. 3 -Van RIET, "Actualité de Spinoza", Kevue Philosophique de Louvam, Louvain, 66 (1969), pp. 36-84 (pp. 39-40). 4 Tenhamos presente que quando falamos de irracional em Espinosa não pensamos num desvio ao "modus ponens" característico do racionalismo ocidental, assente em princípios lógicos indiscutíveis (Vide Umberto ECO, "O iracional, o misterioso, o enigmático" in: F. GIL (org.), Balanço do Século. Ciclo de Conferências promovido pelo Presidente da República, Lisboa, INCM, 1990, pp. 103-107 (p. 107). Atendemos, sim, a tudo o que se possa colocar em termos de "infra", "para" ou "trans-racionalidade". Dissertações 143 Quando nos propusemos trabalhar o tema referido, entendemos que deveríamos precisar o próprio conceito de razão, tal como o filósofo o perspectivou. Ao fazê-lo, impôs-se-nos como igualmente pertinente a delimitação de um pano de fundo onde tal razão se constrói. Assim, antes de trabalharmos a dinâmica da razão espinosana, optámos por duas abordagens da mesma: uma de cariz histórico, integrando algumas confluencias relevantes; outra de feição estrutural, tendo em conta a amplitude semântica do conceito. Consequentemente, a tese organizou-se em três partes: I - Implicações da tradição religiosa na emergência da razão espinosana; II - A amplitude semântica da razão: uma abordagem estrutural; III - O percurso da razão: uma abordagem dinâmica. Na primeira parte traçámos um dos cenários em que o pensamento espinosano se desenrolou: o da tradição religiosa. Ao fazê-lo pretendemos mostrar que o espinosismo se constituiu num diálogo com esta, dela recebendo um aparelho conceptual e, sobretudo, a oportunidade para se demarcar, afirmando a sua diferença. Quisemos também assinalar a impregnação religiosa de Espinosa, que o levou a transferir para a filosofia certas temáticas e valências pertencentes a outras áreas onde a razão nem sempre é soberana. A concluir este enquadramento do qual a razão emerge, analisámos o carácter redentor da metafísica espinosana, que se assumiu como verdadeira salvação. Na segunda parte atendemos ao estatuto da razão. Sendo prática corrente dar relevo à vertente racionalista no pensamento de Espinosa, interessou-nos considerar o modo como o filósofo aplicou o termo "ratio". A abordagem aqui processada foi essencialmente estrutural, situando-se num campo semântico. Adoptámos a terminologia escolástica de "ratio essendi", "existendi", "philosophandi", "cognoscendi" e "vivendi". Não só porque tal terminologia foi usada pelo filósofo, mas também e sobretudo por acentuar uma rigidez que entendemos ser apenas aparente, mostrando que no próprio seio da razão, e dialogando com ela, há instâncias não racionais. Na parte final a razão foi analisada no seu dinamismo. Cumpriu-sc aqui o projecto enunciado, tornando-se patente que em cada uma das grandes temáticas consideradas pelo filósofo, há um elemento estranho à razão, que no entanto a provoca e nela interfere, assumindo-se como impulsionador do seu percurso. Assim, no que respeita à metafísica, realçámos o papel do "conatus"; na ética demos relevo aos afectos; na política à potência; na antropologia ao corpo; na gnosiología à imaginação e à intuição. Dado que em todos estes domínios a razão teve a última palavra, foi nosso intuito manifestar como se constituiu tal soberania e quais os obstáculos que se transpuseram. Tentando demonstrar que o racionalismo espinosano não é um pressuposto pacífico mas sim o culminar dc um processo no qual a razão se foi progressivamente construindo.