REVISÃO DE PRESSUPOSTOS: O CULTURALISMO NOS EIXOS DA PÓSMODERNIDADE Bruno Maciel Aluno do Curso de Filosofia da UFJF. Membro do Núcleo de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos, da UFJF. [email protected] Abstract: This current article traces a general panorama concerning Miguel Reale’s thought in the scope of the General Philosophy. In this intention was did a synthesis of that are considerated, from the point view of our illustrious philosopher, the fundamental points of Philosophy. Being these Theory the knowledge, Axiollogy, Ethics, Aesthetic and Metaphysics. Key words: Theory the Knowledge, Axiollogy, Ethics, Aesthetic, Metaphysics. Resumo: O presente artigo traça um panorama geral acerca do pensamento de Miguel Reale no âmbito da Filosofia Geral. Neste intuito fizemos uma síntese daqueles que são considerados, aos olhos de nosso ilustre pensador, os pontos fundamentais da Filosofia. Sendo estes a Teoria do Conhecimento, a Axiologia, a Ética, a Estética e a Metafísica. Palavras-chave: Teoria do Conhecimento, Axiologia, Ética, Estética, Metafísica. I.CONSIDERAÇÕES INICIAIS Vítima de vários preconceitos, em função a sua relação, na juventude, com a Ação Integralista Brasileira (AIB), a obra de Miguel Reale (1910- 2006) foi por muito tempo marginalizada dentro das universidades. Foi necessário que o pensador alçasse reconhecimento ante a comunidade internacional, para que seus compatriotas legitimassem sua obra de monumental relevância para o pensamento brasileiro. Seus críticos, ao longo dos anos fundamentaram a respeito de sua obra diversas aporias depreciadoras, principalmente dentro da esfera política. Isto a nosso ver, ocorre de forma precipitada, uma vez que sua obra é deveras extensa, não somente em termos de dimensão, como também por envolver um grande leque de idéias. Pela causa mesma, não podemos realizar qualquer análise de seu pensamento enquanto expressão global a partir do estudo de obras isoladas. O que, aliás, é o que mais têm feito seus refutadores. Suas críticas mais intensas se devem, em grande parte, a seu envolvimento com a Ação Integralista na década de 30, tendo Miguel Reale como um de seus membros fundadores. Contudo, devemos destacar que a principio, o Integralismo surge como um movimento de caráter cultural, apropriado posteriormente por ideologias políticas. Além disso, devemos antes de qualquer coisa, saber que o pensamento integralista se divide em várias vertentes que variam desde modelos sociais democráticos a modelos autocráticos e totalitários, como bem frisa Ronaldo Poletti1. Portanto, não se pode jogar todo o pensamento Integralista dentro de um mesmo “balaio”, como o fazem de maneira preconceituosa e dogmática alguns adeptos do marxismo, do mesmo modo que não se pode ignorar que Reale foi com o passar dos anos se distanciando dessa corrente ideológica. Nossas pesquisas têm como foco o legado de Miguel Reale no âmbito da Filosofia Geral. Todavia, existe uma intrínseca relação entre os pensamentos político, jurídico e filosófico de nosso pensador, sendo o último reflexo dos demais. Portanto, existe um constante diálogo entre suas frentes de pesquisas, resultando, em última instância, em uma unidade insolúvel entre pensamento e ação. 1 POLETTI, Ronaldo. O Conceito de Democracia Social em Miguel Reale. In: Miguel Reale: Bibliografia e Estudos Críticos. Salvador: Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro, 1999. No âmbito da Filosofia geral, nosso pensador tem como grande mérito a realização de uma revisão de pressupostos que coloca o pensamento culturalista em sintonia aos parâmetros do sentido de pensar de nosso tempo. Com base em nossos estudos, constatamos que o pensamento de Reale se enquadra plenamente as demandas da sociedade pós-moderna. Uma vez que sua perspectiva ontognoseológica supera a típica antinomia existente na modernidade entre materialismo-idealismo e objetividade-subjetividade. Nosso ilustre pensador denúncia à existência de um fenômeno a que denomina “cansaço das ideologias”. Segundo ele o século 19 é caracterizado por uma parcial e dogmática visão do homem e do universo, ao passo que o século XX é o século da grande síntese do conhecimento. Neste sentido, Podemos dizer que o eixo central da filosofia de Reale se confunde a própria gênese do movimento culturalista, visto que seu pensamento insurge como refutação a pensamentos oitocentistas que exercem grande influência em nosso país, difundidos principalmente pelos positivistas2. O objetivo deste presente artigo é fazer algumas correções e esclarecimentos acerca dos pontos fundamentais da Filosofia Geral realiana, apresentados em trabalho recente. Buscamos com isso, edificar uma base sólida antes de dar seguimento aos estudos sobre este pensador, cujas obras de inquestionável relevância, levaram o prof. Ricardo Vélez, a considerá-lo como o maior filósofo de língua portuguesa do século XX. Tal posicionamento é reforçado por Roque Spencer Maciel de Barros, que atribui a Miguel Reale um papel aos povos de língua portuguesa, semelhante ao desempenhado por Ortega y Gasset ante os povos hispânicos. Para ambos a história do pensamento não obedece a padrões abstratos, mas sim a circunstâncias. É por isto que Reale acredita em uma Filosofia não constituída por sistemas rigorosos, mas sim que trate de problemas. No restante deste artigo iremos traçar um panorama geral acerca dos pontos que Reale acredita serem os mais importantes da Filosofia. Sendo estes; A Teoria do Conhecimento, a Axiologia, a Ética, a Estética e a Metafísica. 2 cf. CARVALHO, José Maurício de. Antologia do Culturalismo. Londrina: CEFIL, 1998 II. TEORIA DO CONHECIMENTO Devemos, antes de qualquer coisa, esclarecer que quando Miguel Reale fala em ciência positiva, ele está automaticamente discriminando as várias doutrinas que buscam situar a ciência. Sendo esta entendida não em sentido lato, mas sim sob uma acepção estrita a ótica do positivismo. Nosso pensador crítica a posição cientifico positiva, em função de que ela reduz a Filosofia a um mero instrumento a serviço da ciência, além de aplicar o mesmo método de investigação tanto para as ciências naturais quanto culturais, sucumbindo à última destas formas. Reale contra-argumenta que o pensamento do século XX caminha para um posicionamento contrário a esse modo de compreensão. Para ele, a exemplo do que ocorre em diversos outros pensadores da contemporaneidade, a Filosofia é vista como uma autônoma e importante dimensão do conhecimento que complementa as ciências. Nosso pensador alega não haver sentido algum indagar sobre o primado da ciência ou da Filosofia como forma suprema de entendimento, pois cada qual possui sua valia dentro de sua própria esfera. A Filosofia, a partir de sua natureza crítico-axiológica3, deve indagar sobre a validade dos pressupostos científicos, ao passo que os ditames da ciência de cada tempo determinam os rumos da especulação filosófica. Tratam se, em última ordem, de formas de conhecimento distintas, porém, mutuamente dependentes. Tal tendência pode ser observada, entre outros, nos pensamentos de Bergson, Husserl e Habermas. De forma mais especifica, podemos dizer que a doutrina positivista reduziu a Teoria do Conhecimento a Epistemologia. Tal fato causa graves intempéries, como a redução de conceitos ao que é empiricamente provado, ou ainda a exclusão de formas de conhecimento não objetivadas. 3 O criticismo, contudo, não é entendido aqui na acepção Kantiana da palavra, a critica de Reale se enquadra melhor aos parâmetros do realismo crítico ou neo-realismo. Esta corrente tem Husserl, Hartmann e Scheler como seus principais pensadores, tendo como ponto comum uma abnegação ao formalismo excessivo kantiano e a revalorização do objeto no processo de conhecimento. Reale encontra a solução para o paradoxo engendrado pelo positivismo a partir da criação de uma Teoria Geral do Conhecimento atuante ao mesmo tempo sob os valores objetivados pela ciência e sob a subjetividade criadora. Para realizar tal intento, o pensador brasileiro defende, a exemplo de John Dewey, o primado da Lógica em relação à Epistemologia, colocando a primeira como o cerne fundamental de todo conhecimento. Entretanto, Miguel Reale atribui ao conceito novo sentido, admitindo ao contrário de Dewey a possibilidade de uma lógica formal. A Teoria Geral do Conhecimento postulada por Reale pode ser puro e simplesmente chamada de Lógica, no sentido mais amplo da palavra, compreendendo não só a esfera da Lógica transcendental como também da Lógica empírico- positiva, baseandose na distinção outrora estabelecida por Kant. A Lógica transcendental abarca as questões mais fundamentais do conhecimento. Dentro desta perspectiva se situam as condições primeiras do filosofar, embora não se resuma a ela todos os problemas de ordem filosófica. Esta indaga sob os pressupostos mesmos do ato de conhecer e suas conexões diretas com a realidade. A Lógica transcendental também pode ser denominada por Ontognoseologia, termo criado pelo próprio Miguel Reale e que se dá pela junção dos conceitos de Ontologia e Gnoseologia. Quanto à origem do conhecimento, podemos dizer que as concepções realistas são essencialmente ontológicas. O termo Ontologia, contudo, não é entendido aqui na acepção tradicional de teoria do ser, mas sim no sentido de teoria do conhecimento sob o ponto de vista do objeto. Sendo esta última definição inaugurada por Husserl. Por outro lado, as perspectivas idealistas são preeminentemente gnoseológicas. Sendo o termo Gnoseologia, do mesmo modo, não empregado aqui no sentido corrente, sob o qual é empregado principalmente por pensadores anglo-saxãos, como algo similar a Epistemologia, mas sim no sentido de teoria do conhecimento enquanto subjetividade. Quanto às origens da Ontognoseologia, podemos dizer que a primeira grande contribuição para sua edificação foi dada quando Kant nos revelou o poder nomotético e criador do espírito. Seu criticismo, contudo, aponta aos olhos de nosso pensador algumas deficiências, sob qual Hegel tem um papel fundamental nesse processo de correção. Kant cria um eu transcendental estático e devido a sua formalização excessiva, não dá ênfase às exigências concretas do real. A filosofia hegeliana, por outro lado, resgata a realidade concreta a partir da relação que se estabelece entre realidade e racionalidade, promovendo grande avanço a Filosofia transcendental. Tal feito dá ao processo de conhecimento um caráter dinâmico ao estabelecer uma relação direta entre pensamento e realidade. No século XX Husserl promove um aprimoramento do criticismo transcendental kantiano, atestando a existência não só de um a priori formal, como também de um a priori material dentro do processo de conhecimento. O pai da fenomenologia nos permite a partir de seu tratado acerca da intencionalidade da consciência correlacionar o eu, enquanto (noesis), ou seja, enquanto fornecedor de sentido aos objetos materiais, e o objeto enquanto (noema), ou seja, enquanto transformador de objeto em objetivo. Este é o ponto de partida da indagação ontognoseológica, visto que a consciência intencional é o valor fundante da experiência cognitiva. Além disso, sua teoria acerca do lebenswelt (mundo da vida) revela a fonte de toda objetividade, fundamentando a correlação eu - mundo. Nesse sentido, podemos dizer que toda reflexão subjetiva para Husserl implica em uma reflexão histórica. Este processo de revalorização da objetividade inaugurado por Husserl vai ser posteriormente desenvolvido por pensadores como Hartmann, Scheller e Ortega e Gasset. Estes vão estabelecer as últimas condições para a construção de uma teoria que enfatize tanto o papel do sujeito, quanto do objeto no processo de conhecimento. Do ponto de vista aplicativo, podemos definir a Ontognoseologia como a condição lógica originária de toda possibilidade, visto que ela é essencial a toda a qualquer forma de experiência. Dela se originam toda forma de conhecimento científico ou filosófico, pois é na Ontognoseologia que se condicionam os esquemas do pensamento, sejam eles naturais ou históricos. Todavia, o pensamento vai se atualizando em diversos níveis de experiência, se desenvolvendo cada vez mais em campos de pesquisa mais delimitados. Cada um desses momentos é parte integrante do processo ontognoseológico global, sendo esta última à forma de conhecimento mais genérica existente. Podemos dizer que a Ontognoseologia não tem como objeto de estudo um campo especifico da realidade, mas sim seu sentido universal, ou seja, enquanto totalidade concreta. Por outro lado, o pensamento não é condicionado apenas por pressupostos universalizadores, ele também se subdivide em horizontes de realidade, uma vez que o conhecimento se amolda progressivamente e objetivamente em campos cada vez mais delimitados. Deste modo, podemos dizer que a Ontognoseologia não resolve por si só todos os problemas de ordem transcendental. É necessário também um campo estudo que se dedique a cada domínio da ciência particular enquanto transcendentalidade. Este papel cabe a Epistemologia, sendo esta o desenvolvimento da Ontognoseologia no plano da práxis. Tal forma de pesquisa põe o problema dos pressupostos transcendentais do conhecimento com referência a cada um de seus ramos. A Lógica positiva, por sua vez, é uma forma de conhecimento subordinada a Lógica transcendental e também se subdivide em duas frentes básicas de pesquisa, sendo uma de caráter funcional e outra formal. A primeira dessas ordens cabe a Lógica concreta ou metodologia, sendo esta compreendida pelos múltiplos processos técnicos que insurgem dentro da esfera da Epistemologia. A metodologia tem como objeto de estudo os diversos processos que disciplinam a pesquisa no campo da práxis, adaptando-se de acordo as peculiaridades de cada campo do conhecimento. O outro campo de pesquisa é a Lógica formal ou analítica, seu foco de estudo são signos e sua estrutura básica transcende a experiência, embora dependa dela para existir. Sob esta perspectiva, não importa sua adequação a realidade, mas sim com sua conseqüencialidade. Ela condiciona as estruturas do pensamento utilizadas pelas pesquisas metodológicas. Situando de forma breve os campos de pesquisa apresentados por Miguel Reale em sua Teoria Geral do Conhecimento, podemos dizer que as formas mais genéricas e elementares de conhecimento se enquadram no campo da Ontognoseologia, sendo os conhecimentos mesmos, subdivididos em campos de pesquisa cada vez mais restritos, passando a esfera das pesquisas de ordem epistemológica, metodológica e formal sucessivamente4. Para terminarmos nossa exposição, explanaremos um pouco sobre o método de pesquisa utilizado por Miguel Reale, a que ele atesta ser o ponto culminante do processo ontognoseológico. Tal método é denominado por reflexão crítico-histórica ou históricoaxiológica. 4 Cf. REALE, Miguel, Introdução à Filosofia, 4. Ed. São Paulo: Saraiva 2006. p 21- 28 Esta concepção metodológica tem como pórtico à idéia de quanto mais se revelam às fontes da subjetividade mais se conhece as fontes da objetividade. Em outras palavras, tal indagação alça a compreensão da subjetividade transcendental ao plano da concretude. O método crítico-histórico de Miguel Reale surge a partir de uma correlação entre o mundo da cultura, ou histórico-cultural e a concepção husserliana de intencionalidade da consciência. Nosso pensador, todavia, complementa esta asserção alegando que tal relação dialética só tem sentido dentro de uma indagação de ordem ontognoseológica, culminando com a própria superação do intuicionismo eidético de Husserl5. . III. AXIOLOGIA Miguel Reale atribui à capacidade de valoração um papel fundamental para a origem de todas as formas de experiência, sendo o valor a essência de todo processo ontognoseológico. Sem o valor não se realiza qualquer espécie reflexão, uma vez que todo ato cognoscitivo implica, em última instância, em um ato de valoração. Todavia, a ciência contemporânea, sob influência dos tratados kantianos e positivistas, reduz o sentido originário do conceito de valor, reduzindo-o a esfera daquilo que não pode ser comprovado empiricamente. Como resultado, tira-se as verdades físiconaturais da esfera dos valores, criando um gigantesco abismo entre ciências humanas e ciências naturais. Nosso pensador supera essa antinomia ao atestar a existência de um segundo mundo constituído sobre o mundo natural a que denomina mundo da cultura ou mundo históricocultural, este é o nome dado a sua teoria axiológica. 5 A reflexão crítico-histórica não é apenas uma reflexão acerca daquilo que se converte em vivência, mas também perspectiva e projeção do futuro, o que nos conduz a uma abordagem de vias axiológicas. O mundo histórico-cultural tem o valor como seu pórtico e compreende tudo aquilo que a humanidade edificou ao longo da história, não só sob o aspecto material, como também abarcando toda e qualquer espécie de significação produzida pelo homem. Quando falamos em cultura, também estamos automaticamente tratando de elementos valorativos, visto que são os valores que atribuem sentido ao mundo. Nem mesmo a natureza pode ser explicada a par do mundo da cultura, uma vez que ele inclui os mecanismos que o homem inventou ao longo da história para acessar a esfera dos fenômenos naturais. Neste sentido, podemos reportar no plano histórico-cultural a existência de uma complementar e harmônica convivência entre ciências humanas e naturais. Tal teoria é inspirada em algumas tendências que permeiam o pensamento contemporâneo, ao qual podemos destacar a hegeliana, a marxista e a diltheyniana. Todas essas tendências têm como denominador comum à negação da possibilidade de se compreender a problemática axiológica fora do âmbito da história. Nosso pensador compara seu conceito de mundo da cultura, a algo similar ao que Hegel chama de espírito objetivo, visto que para ambas perspectivas o valor é o espírito humano em sua universalidade. Reale ainda complementa que tal concepção só é possível em função ao espírito humano ser dotado de poder de síntese, como foi frisado por Kant. O espírito nomotético transforma dados desconexos e particulares advindos da experiência, em algo possuidor de uma unidade de sentido. Tal fato permite ao homem se compreender e subordinar a natureza de acordo com seus fins específicos. Partindo do que foi dito, podemos dizer que a perspectiva axiológica de Reale tem como valor fonte o próprio homem. Neste sentido, os valores não valem por si só, mas apenas enquanto referentes ao homem. O homem, todavia, é entendido aqui não enquanto individuo especifico, mas enquanto sujeito universal de estimativa, o que leva em conta sempre às experiências individual e coletiva. Esta relação se estabelece da seguinte forma; o indivíduo é a fonte de todos os valores, ao passo que a sociedade é a responsável por sua emergência6. Sob a teoria histórico-cultural dos valores, a questão do valor sempre se realiza em função a experiência humana, assumindo com o passar do tempo expressões diversas e 6 Cf. REALE, Miguel, Introdução à Filosofia, 4. Ed. São Paulo: Saraiva 2006. p- 179-182 ideais. A capacidade de valorar é algo inerente apenas ao homem, e é o que o torna o homem um ente em constante transcendência. Em outras palavras, podemos dizer que a axiologia enquanto parte integrante do processo histórico-cultural é o próprio homem em sua autoconsciência espiritual. Nosso pensador só se vale da axiologia enquanto objetividade em sua teoria histórico-cultural, visto que o valor objetivo é o que atribui sentido a história, ao passo que a história insere o valor objetivo dentro de uma realidade concreta. Para Reale, entre indivíduos e sociedade sempre existe uma relação de tensão. Esta se estabelece da seguinte forma; O homem a partir da experiência valorativa individual atribui sentido a história, como pode destacar os feitos dos grandes homens da história, ou mesmo daqueles que somente os relataram. Por outro lado, um feito só é considerado valioso quando obtém o reconhecimento da sociedade, o que lhe confere um papel igualmente importante ao mundo dos valores7. Para que se compreenda a concepção histórico-cultural dos valores, é necessário, antes de qualquer coisa, estar ciente da distinção outrora estabelecida por Dilthey, entre explicar e compreender. Dilthey reporta que as afirmações puramente explicativas consistem em indagações sob as causas e nexos lógicos de objetos já dados. Esta é a perspectiva que rege o caminho inquirido pelas ciências positivas. Deste modo, não é possível fazer em uma perspectiva científico positiva juízos de preferência, mas apenas juízos de realidade, o que remete sempre a características imanentes ao objeto. Pela causa mesma, eles excluem a possibilidade da fundamentação de uma ciência puramente histórico-cultural. Os positivistas, entretanto, denominam impropriamente estes juízos de realidade como juízos de existência. A compreensão, por sua vez, é típica das ciências histórico-culturais, e implica sempre nexos valorativos. Tal perspectiva busca explicações genéricas para existência humana, ou seja, que possuem características teleológicas. Toda forma de ciência históricocultural tem como base à compreensão, embora algumas formas científico culturais também partam de indagações de cunho explicativo, como é o caso das leis normativas. 7 Idem Como resultante deste processo às ciências positivas não admitem a possibilidade de uma ciência puramente histórico-cultural, por terem sempre afirmações explicativas como condição suficiente e razão. Neste caso a passagem do fato a lei é dado de forma direta, não perpassando por juízos de preferência como ocorre nas ciências históricoculturais. Existem, portanto, leis explicativas ou naturais e leis compreensivas ou culturais. As leis culturais, porém, podem ser explicativas, são as chamadas leis normativas, ou compreensivo-éticas. Este é caso do Direito e da moral que são sempre referentes à conduta humana. Quando as leis culturais são apenas compreensivas elas são chamadas de leis especulativas, como é o caso da História, da Filosofia e da Sociologia. Sob ambas as perspectivas, todavia, percebemos um mundo dividido em duas categorias fundamentais, sendo estas respectivamente denominadas de mundo da natureza e mundo da cultura. Nosso autor atribui à última, várias denominações que são empregadas em suas obras indiscriminadamente, sendo estas; mundo do espírito, mundo histórico, espírito objetivo e vida humana objetivada. Tal concepção é desenvolvida no século XVIII, tendo como ícones principais Voltaire, Montesquieu e Vico. Este último influencia diretamente a Filosofia da cultura alemã, desenvolvido principalmente por Herder e Hegel. Dilthey posteriormente fundamenta pressupostos epistemológicos para o campo da História, adequando-o de acordo com suas peculiaridades. Tal método é posteriormente adaptado a outros campos cientifico culturais. Torna-se possível agora se estabelecer uma distinção exata entre método cientifico natural e o cultural. IV. ÉTICA A indagação científico positiva não consegue resolver problemas referentes à conduta humana, visto que ela só se vale de nexos de causalidade. Contrapondo-se a esta concepção, Miguel Reale defende que a Ética consiste sim em uma indagação de ordem valorativa, o que está além dos limites da indagação positivista. Além disso, as questões científico positivas não estão sujeitas a sanções, a que a ética tem necessariamente de se valer, visto que o estudo das normas de conduta podem ter como resultante possíveis brechas circunstanciais. A sanção é algo que só se dá dentro da esfera das ciências culturais, enquanto escolha ou afirmação de normas conduta. Ela pode interferir sobre dada força a fim de garantir um bem comum, de modo que dada conseqüência pode se realizar ou não. Isto é algo impossível quando tratamos de ciências com alto grau de precisão, como almejam criar os positivistas8. Reale, todavia, não pretende com sua crítica substituir as ciências positivas por outra de via humanista, mas sim construir um humanismo integral, garantindo a harmonia do homem, enquanto dimensão ética e científica. Em outras palavras, a Ética para nosso pensador deve sempre possuir caráter interdisciplinar. Miguel Reale também se posiciona contra todas as iniciativas de se criar uma Ética puramente formal. Baseando-se nos postulados de Scheller e de outros pensadores neokantianos, nosso pensador defende que é uma necessidade de nosso tempo criar uma Ética que não fique restrita ao campo das abstrações, mas que, antes de tudo, atue no plano da práxis. Sendo a Ética nada mais do que a objetivação dos valores no plano histórico. Aproveitando também o ensejo de Ortega Y Gasset, cujo grande mérito foi associar o homem a sua circunstancialidade externa, nosso pensador fala sobre a possibilidade de uma Ética da situação. Sob esta perspectiva, devemos sempre indagar acerca dos bens que estão a serviço do homem e de seu progresso moral. Na Ética da situação indaga-se sobre o homem em seus ciclos axiológicos múltiplos, além do papel que o indivíduo exerce dentro deste contexto. De modo que a sociedade é vista como um conjunto de indivíduos autônomos que atuam sob uma mesma circunstância. Neste sentido, a Ética só se realiza dentro do binômio parte-todo, uma vez que só é possível medir o valor da subjetividade enquanto intersubjetividade e vice-versa, trata se de uma Ética da alteridade. A Ética é o meio por onde se realiza a renovação dos bens culturais, sendo a própria manifestação da liberdade humana. Em sua função adquirimos um aperfeiçoamento moral 8 , REALE, Miguel, Introdução à Filosofia, 4. Ed. São Paulo: Saraiva 2006. “Sansão é toda conseqüência que se agrega, intencionalmente, a uma norma, visando o seu comprimento obrigatório”. . p – 234 do homem e a determinação do que é o bem, tanto individual quanto social. Nosso pensador subdividiu estes bens em duas ordens. Sendo que a primeira possui caráter individual e a chamamos puro e simplesmente de moral. A outra ordem possui caráter comunitário, culminando em mais duas bifurcações, ao qual chamamos de Moral Social e Direito. Miguel Reale defende que todo homem tende ao bem, visto que assim determinam suas inclinações naturais. Deste modo, ele sempre está galgando uma unidade de ação entre indivíduos e sociedade9. Podemos destacar o valor do bem como momento espiritual, assim como força ordenadora da Ética, sendo este, em última instância, o valor possibilitador do convívio em sociedade. O valor do homem, todavia, é o pilar central da idéia de bem. O bem do indivíduo é objeto de estudo da moral, além de ser aquilo que o homem sempre busca como objetivo final. Todavia, a garantia do bem individual sempre depende do asseguramento do bem comum. O bem social, por outro lado, é objeto de estudo do Direito, além de determinar aquilo que chamamos de justo10. Sendo que a justiça tem como finalidade última alcançar um bem comum que atue permanentemente no decurso da história. Podemos dizer, em síntese, que existe uma distinção fundamental entre moral e Direito, sendo o primeiro referente ao bem individual e o segundo ao bem coletivo. Estes são os dois momentos mais relevantes da Ética. Todavia, contrariando as teorias de Gustav Radbruch e Giorgio Del Vecchio, Miguel Reale atesta a autonomia das regras de costume em relação às regras jurídicas a morais, atribuindo-lhe uma posição intermediária entre essas. Estas regras, a exemplo das de caráter jurídico tem como inclinação principal o indivíduo enquanto sociedade. 9 Após o término da Segunda Guerra Mundial, iniciasse um processo de melhoramento do bem estar social, a que Reale chama de “socialização do progresso”. A partir deste período, passa a se acentuar o caráter ético atribuído ao processo cultural. Estreitando de forma visceral às relações entre Ética e cultura, sendo a última o conjunto de todos os valores tanto realizados quanto prospectivos. 10 O Direito, entretanto, não ignora o bem individual, assim como a moral também não discrimina o bem social. O que ressaltamos foi apenas sua inclinação prevalecente. Quanto às relações indivíduo-sociedade, nosso pensador galga superar as visões individualistas e transpersonalistas, ao atestar a existência não de uma primazia por parte do indivíduo ou da sociedade dentro deste processo, mas sim atestando a existência de uma constante tensão e correlação entre os mesmos. Esta perspectiva é chamada de personalismo11. A teoria personalista dos bens sociais parte de uma consideração do indivíduo enquanto pessoa, enquanto alteridade. A alteridade, por sua vez, é entendida aqui como a essência da Ética e a medida da individualidade. Sob esta perspectiva é a circunstância que soluciona a tensão existente entre individualidade e coletividade. Deste modo haverá entre o indivíduo e o todo um valor dominante, sendo este o valor permanente da justiça. Neste intuito qualquer violação atentada contra o valor da pessoa humana, fere o ideal do que é justo, ao passo que o indivíduo não deve ceder a sociedade caso se viole esses valores. V. ESTÉTICA Como já foi visto, a Filosofia positiva analisa as ciências culturais sob a mesma metodologia das ciências em geral. Isto não ocorre de forma diferente no âmbito da Estética, visto que os positivistas tentaram transforma-la em uma disciplina rigorosa, extirpando de si todo seu conteúdo filosófico, substituindo-o por fatores fisiológicos, psicológicos ou sociológicos. Nesse sentido, podemos dizer que a Estética de Miguel Reale também insurge como uma forma de retaliação a indagação de ordem positivista, visto que esta despreza tanto a originalidade quanto a criatividade do artista. Contudo, esta contraposição se dá de forma ponderada, visto que o pensador brasileiro admite o mérito da filosofia Positivista em alçar a Estética no plano da realidade concreta, trazendo-a ao campo da objetividade. Reale resgata o aspecto filosófico da Estética ao reportar que esta não possui juízos teleológicos, ou seja, não busca algo distinto do objeto experienciado.. Seguindo a tradição kantiana, nosso pensador estabelece uma distinção entre experiência artística e experiência estética, sendo a primeira de caráter meramente contemplativo, ao passo que a segunda é a 11 cf. REALE, Miguel, Introdução à Filosofia, 4. Ed. São Paulo: Saraiva 2006. p- 240- 242. resultante de uma atitude objetivante a criadora do homem. Nosso pensador, todavia, empenha-se em uma especulação estética que leva em conta apenas a dimensão artística do belo, partindo da tendência que julga ser predominante no século XX Esta é compreendida neste sentido, si e somente si, em razão a experiência axiológica, tendo o valor do belo como fundamental. O belo, por sua vez, compreende uma relação de preferência, ao qual pode se dar tanto de forma espontânea quanto artística. Nosso pensador dá a sua teoria Estética uma dimensão antropológica, analisando a obra de arte sob o ponto de vista do homem que cria e do objeto criado. O que se dá por uma unidade essencial entre subjetividade e objetividade (ontognoseologia), implicando em uma correlação homem-natureza. Sob esta percepção, o artista no ato de criação produz uma realidade autônoma, de modo que a obra após ser concluída adquire um sentido distinto a sua intenção inicial. A exemplo do que faz Benedetto Croce, para o pensador brasileiro a obra artística possui um valor em si mesmo. Sendo esta sujeita a interpretações autônomas que transcendem as pretensões originárias do artista12. Embora Reale fundamente sua Estética a partir de Kant, ela vai além do plano transcendental, uma vez que o pensador brasileiro dá ao conceito uma acepção mais ampla que supera as dimensões do juízo estético. A Estética para o pensador brasileiro é compreendida em uma acepção mais ampla, compreendendo não só a percepção de espaço-tempo, mas também outras formas de sensibilidade como à imaginação criadora. A sensibilidade estética, por sua vez, é fundamental para a compreensão do homem, sendo à base da Antropologia Filosófica. Para nosso pensador, sempre que se pensa ou se percebe alguma coisa, estamos cometendo um ato de objetivação, ou seja, estamos convertendo um objeto em objetivo a ser alcançado, como é demonstrado no livro Experiência e Cultura. Quando um artista cria uma obra de arte ele esta objetivando o valor do belo como momento de sensibilidade. Miguel Reale denomina a criação do artista como uma forma de expressão comunicativa de natureza puramente imagética. Nela o poder de criação do artista se converte em imagem absoluta, ou seja, a totalidade dos motivos aparentes no processo de objetivação estética. Nesse sentido a sensibilidade é o momento final do processo estético não se reduzindo, contudo, a um mero juízo estético. A sensibilidade, a que Kant coloca como 12 cf. REALE, Miguel, Introdução à Filosofia, 4. Ed. São Paulo: Saraiva 2006. p- 257- 259 momento inicial do processo de conhecimento, passa em Reale a ser o resultado da teoria estética13. A arte depois de realizada se desprende de seu criador, objetivando-se como veículo de comunicação universal14. Quem contempla a arte efetivamente realizada, recebe suas impressões no plano puro da sensibilidade, isento de conceitos, identificando-se com seu criador gratuitamente, de forma isenta de interesses. A crítica da arte é uma especulação coerente sobre a possível intenção do artista, é a tentativa de re-criação da experiência por ele vivida. Reale ainda afirma a autonomia da experiência estética colocado-a como experiência última. VI. METAFÍSICA Todas as expressões do conhecimento até agora mencionadas perpassam direta ou indiretamente pelo crivo da experiência. Estas formas de conhecimento são denominadas transcendentais, ou seja, que permitem respostas de caráter universal, o que pode ocorrer tanto sob ordem formal quanto material. Existe, todavia uma dimensão do entendimento que está além dos limites do experienciável, tal forma é o que chamamos por Metafísica. Entretanto, isto não quer dizer que não exista espaço para a Metafísica dentro da filosofia realiana. Se não é possível falarmos em experiência metafísica, por outro lado podemos e devemos desenvolver discursos metafísicos. Seguindo a tendência inaugurada por Kant, para o pensador brasileiro existe uma drástica separação entre Metafísica e mundo dos fenômenos, sendo o último referente a tudo que é passível de verificação empírica e é possuidor de validade universal. Reale alega que sob a Metafísica nada podemos conhecer. 13 Idem A arte na contemporaneidade ganha um sentido de universalidade, visto que ela já não é mais privilégio de um seleto grupo de pessoas. A experiência artística é uma das que melhor demonstram a possibilidade de uma Teoria da experiência de dimensões globais. 14 Um discurso metafísico, sempre implica em uma análise crítica acerca de problemas como o ser, Deus, a natureza ou a cultura, vistos sempre enquanto totalidade. Esta idéia de totalidade, porém, vai muito além daquilo que podemos conhecer. Quando dizemos que o conhecimento metafísico sempre implica uma visão totalizante, queremos dizer que a Metafísica compreende desde a noção primordial as causas últimas das coisas, o que está além dos limites do experienciável. Buscamos com tal tipo de indagação manter o sentido daquilo que é empiricamente verificável e encontrar soluções que transcendem a suas limitações15. As ciências em geral têm um objeto de estudo definido e delimitado, a Metafísica, por sua vez, especula sobre a totalidade de sentido. Por exemplo, Reale reporta que quando especulamos acerca do ser estamos ao mesmo tempo tratando de todas as realidades existentes, embora esta seja a expressão mais abstrata do conhecimento. Em seu livro Verdade e Conjetura, Miguel Reale estabelece as bases de um raciocínio conjetural ou problemático como instrumento de investigação a serviço das ciências, sendo esta, aos olhos do pensador, a única função da Metafísica que possui alguma aplicabilidade. Reale ainda frisa que o pensamento conjetural não é um meio de se chegar a um conhecimento metafísico, mas é sim a própria Metafísica. A conjetura é algo que complementa aquilo que é experenciável, onde se busca a partir de soluções plausíveis, chegar a uma visão totalizante de dado raciocínio. A Metafísica em sua essência é sempre conjetural16. Em última análise, a Metafísica busca atingir o sentido global da realidade e das ciências assim como o sentido de nossa existência. Podemos dizer neste sentido, que a Metafísica é a própria complementação da Ontologia. 15 16 cf. REALE, Miguel, Introdução à Filosofia, 4. Ed. São Paulo: Saraiva 2006. p- 261- 264 Em seu livro Introdução à filosofia, Miguel Reale dá alguns exemplos de como se dá o funcionamento dessas especulações conjeturais. A partir de tal método nosso pensador chega à conclusão de que toda ciência tem a mesma realidade como objeto. Ele ainda conjetura, que como as ciências, a arte e as experiências quotidianas buscam manipular uma mesma realidade, embora essas se utilizem de vias diversas, chegando a conclusões harmonicamente conciliáveis. É nesse sentido que ele nos fala sobre a importância metódica da interdisciplinaridade, sob qual tanto frisa em Experiência e Cultura. BIBLIOGRÁFIA CONSULTADA BARROS, Roque Spencer Maciel de. A obra filosófica de Miguel Reale. In: Miguel Reale: Bibliografia e Estudos Críticos. Salvador: Centro de Documentação do PensamentoBrasileiro, 1999. CARVALHO, José Maurício de. Antologia do Culturalismo. Londrina: CEFIL, 1998 PAIM. Antônio. A obra filosófica de Miguel Reale. In: Miguel Reale: Bibliografia e Estudos Críticos. Salvador: Centro de Documentação do PensamentoBrasileiro, 1999. POLETTI, Ronaldo. O Conceito de Democracia Social em Miguel Reale. In: Miguel Reale: Bibliografia e Estudos Críticos. Salvador: Centro de Documentação do PensamentoBrasileiro, 1999. REALE, Miguel. Experiência e Cultura. São paulo: edusp.1977 REALE, Miguel. Introdução à Filosofia. 4. Ed. São Paulo: Saraiva 2006. SOUZA, Francisco Martins de. O problema do conhecimento em Miguel Reale e o “diálogo com Husserl”. In: Miguel Reale: Bibliografia e Estudos Críticos. Salvador: Centro de Documentação do PensamentoBrasileiro, 1999.