INTRODUÇÃO Então a mulher apressou-se a limpar com o avental os livros, ou pelo menos a tirar-lhes o pó que os cobria, antes de que K. chegasse a pegá-los nas mãos. K. abriu o livro que estava por cima de todos, e diante dos olhos apareceulhe um desenho indecente. Tratava-se de um homem e de uma mulher despidos e sentados em um canapé; a intenção geral do desenhista era evidente, mas sua falta de talento havia sido tal que, no final das contas, não se via ali senão um homem e uma mulher com os corpos exageradamente feios que pareciam querer sair do desenho e que, em razão da falsa perspectiva pareciam voltar um para o outro apenas a custa de grandes esforços. K. não continuou folheando este livro, senão que, abrindo o segundo volume, leu somente o título; tratava-se de uma novela: Os padecimentos que Grete teve de sofrer de seu marido Hans. - “E estes são os livros jurídicos que se estudam aqui!” - disse K. - “E estes serão os homens que vão me julgar!” Franz Kafka, O Processo A literatura acadêmica e a pesquisa científica são comparáveis às experiências do homem do mar. O oceano, na sua imensidão assustadora, na sua vastidão incomensurável, na angústia da vista do olhar que o tem como intragável pela noção está à sua frente, à espera. À espreita. Às suas costas, a opressora força que o empurra para a lida aventureira como imperativo. Para além das necessidades imediatas do ofício forçoso, os homens do mar precisam navegar, e necessitam se embrenhar no infinito em busca de algo tão singelo quanto indizível. É possível empresar jornada aventureira pelo oceano do saber científico, confundindo a tola inconseqüência com a ousadia dos grandes fundadores do cânone. Mas, na maioria das vezes, a responsabilidade de um trabalho feito com temor ético, faz com que, de uma idéia grande investida para além dos horizontes, se tenha, em verdade, o avanço em apenas mais uma tábua do trapiche untada pela marola mais branda. A investigação acadêmica não precisa se envergonhar disso: não raro a vontade de avançar solapa os freios da prudência - e é bom que assim seja, por vezes. Mas em um mundo onde tudo já se disse, fez e propôs, os trapiches necessitam de mais e melhores tábuas enquanto os canais prescindem de embarcações que visivelmente irão a pique à tentativa de domar o mundo e prender o oceano pelas crinas. O presente trabalho vai embalado pelo espírito de uma embarcação que em uma manhã de sol ganhou as águas além dos molhes. Não para inventar as Índias e suas especiarias, nem para correr a linha da grande cascata onde findam o mar e o mundo - como tinham em crença os antigos - em proeza inédita e bravateira. Apenas, e sim, pelo prazer de ancorar na baía e mirar o porto sob nova perspectiva. Ter a cidade à frente e o vermelho do entardecer à nuca, para variar da monotonia. A idéia que vai permear a discussão é a da falibilidade de modelo de julgador (enquanto fruto decorrente de todo um universo epistemológico e de um ideal imagético de “operador jurídico” que a esse universo é correlato), caracterizado como eminentemente (meramente) técnico-legalista, e desconectado (conceitualmente) de possibilidades de que interferências subjetivas (psíquicas, emotivas, ideológicas) ajam em sua operação processualdecisória (tida, equivocadamente, como eminentemente lógica e racional). Igualmente, serão analisadas eventuais possibilidades de verdadeiro (re)direcionamento do conteúdo decisório com base na influência desses fatores psíquicos, desvelando certa fragilidade pragmática de institutos jurídico-processuais como o da imparcialidade e suas decorrências estruturais em meio à lógica do Processo Penal. O diálogo do sujeito de (do) Direito - o sujeito consciente, o sujeito que contrata, o sujeito da pecha racionalista e nela aprisionado, com o sujeito (do) inconsciente promove um choque teorético dos mais graves: importante esclarecer que o diálogo (na esteira do que lembra Jacinto Coutinho) entre o Direito e a epistemologia do inconsciente (desde Freud e para além dele) deve ser cuidadoso. Se não se pode - ao menos seriamente - inserir a fórceps noções em meio à racionalidade jurídica que não são junto a ela operantes, por outro lado, não podem fugir à lógica jurisdicional elementos que lidam com o mais profundo enlaçamento humano: o Direito, por ser o que é, lida (almeja lidar) com a regulação da vida, e por isso “nada do que é humano lhe é estranho”. Não se trata de fomentar a crítica exterior de “saberes em guerra”, como que aumentando o autismo epistemológico dentre o qual muitas vezes ricas fontes de idéias escasseiam, comparando objetivos diversos de pontos de vista opostos. Se a Psicanálise, a Psicologia Analítica e a Filosofia do inconsciente têm algo a fazer pela (mofada) racionalidade do sentido comum teórico dos juristas, essa tarefa reside sumamente no uso - respeitoso - desses saberes (sem outorgar-lhes o rótulo mesquinho da “auxiliaridade”, cúmulo da pretensão patética da “ciência” jurídica - e Kirchmann está aí para isso) enquanto pontes de crítica epistemológica. Sem dúvida, a fricção de edifícios teóricos diversos e in-complementares não pode fazer mal para uma (dita) ciência. E quanto à ausência de encaixe preciso desses saberes com o núcleo do pensamento jurídico, e principalmente com sua práxis, temos nossas dúvidas se não é hora de perder o medo e, em prol de uma otimização a muito devida encarar o desafio para assumir sua necessidade. Firmamos compromisso com a idéia de que a preocupação com a efetividade de um rol imprescindível de garantias constitucionais e direitos inerentes ao ordenamento democrático, no Processo Penal, sempre perpassa o estudo crítico e vigilante (no sentido de busca constante de adequação principiológica) da esfera legislativa e procedimental. Não se pode olvidar, por isso, dos elementos localizados fora da racionalidade eminentemente jurídica ou mesmo presentes dentre a construção dos instrumentos legais - ainda que obscurecidos por trás da legislação e da sistemática procedimental. A pesquisa acadêmica no campo das Ciências Criminais, pois, em nosso ver, tem de se caracterizar pela abordagem interdisciplinar, sob pena de um (falho) acolhimento monocromático de uma teia que comporta uma realidade complexa ao nível do impensável. Eis nosso ponto de partida e eis as considerações necessárias para que a leitura do presente trabalho se dê com um mínimo de adequação para com as propostas que vão nortear os temas a seguir abordados e as considerações críticas que lhes serão tributadas. A pesquisa foi dividida em três capítulos, cada um composto pelo somatório de tópicos específicos sobre temas derivados, conectados à temática nuclear do trabalho e relacionados diretamente à proposta levantada em seus respectivos capítulos-raiz (embora alguns tópicos demonstrem proposital e relativa independência - sem, contudo, ousarem em suas proposituras particulares a análise de minúcias em inserções e/ou subconclusões que ultrapassem as condições do global do trabalho e seu tema de fundo). Pode-se dizer, tranqüilamente, que não há nenhuma pretensão em definir de forma exaustiva os conteúdos psicanalíticos e filosóficos trabalhados, uma vez que o suporte discursivo e teórico é alicerce do trabalho e não um fim em si mesmo (descontado, igualmente, o fato de que uma exaustão das idéias a partir da Psicanálise não se encaixa nem em nossa proposta de pesquisa, nem em nossas habilidades para tanto). O mesmo se pode afirmar quanto aos aspectos da Psicologia Analítica que posteriormente serão abordados, para apresentar a idéia da escola junguiana (e pós-junguiana) sobre a estrutura psíquica do ser humano e definir o referencial que servirá de base para o cotejo crítico central do trabalho. Tentou-se demonstrar que, mesmo o mais rígido esquema de defesa/suporte de princípios constitucionais e processuais informadores de todo o encadeamento do Processo Penal, se mostra fragilizado quando é abandonado um cuidado com o vértice humano da aplicação dos ditames legais. Existe farta possibilidade de que o julgador termine por incutir (ou permitir que sorrateiramente sejam incluídos), em meio ao bojo do conteúdo das decisões, aspectos relativos única e exclusivamente a problemas, complexos e padrões de adequação emotiva e ideológica de cunho estritamente pessoal, em um verdadeiro uso do processo como instrumento de acting out (descarrego psíquico). O trabalho, dessa forma, transitou por esses termos e procurou expor um pequeno rol de hipóteses em que esse perigo (no instante em que solapadas a lógica e a função processual por um fator que não é passível de controle eminentemente jurídico-legal) adquire fertilidade. Apresenta-se, dessa forma, aqui, o compromisso de um trabalho que traz um notado conteúdo opinativo em meio às suas indagações e hipóteses, onde se procura apresentar o suporte doutrinário em que se fixa, se arriscando por vezes, ao mesmo tempo, à exposição, de forma perceptível, ainda que não direta. O trabalho se propõe científico-acadêmico, porém sem pretensões de assepsia metodológica e afastamento emotivo. Negar essa condição seria contradizer os próprios fundamentos da idéia que ora se expõe. E assim procuramos seguir, na moldura da voz dos reconhecidamente mais sábios: Meu velho um dia falou Com seu jeito de avisar: Olha, o mar não tem cabelos Que a gente possa agarrar Não sou eu quem me navega Quem me navega é o mar. Porto Alegre, agosto de 2009. Prefácio Lá pelos idos de 2003, Gabriel era um guri bom, recém-formado pela PUCRS e que estudava num Curso Preparatório para Concursos, inserindo-se no mundo dos “concursantes”. Conheci-o por acaso, por amizades comuns, superficialmente. Habitava o mundo onírico do direito. Certa vez, neste contexto e por acasos da vida, almoçamos juntos, e ele estava acompanhado de um bando de “coleguinhas” de curso. Faziam, como se pode imaginar sem maior esforço, o insuportável perfil “em formatação”, típicas vítimas dos cursinhos preparatórios tão disseminados por esse país, adoradores do senso comum teórico e jurisprudencial. Sem perceber, viviam num mundo autista, alienado (logo, diante da complexidade, o alienado ali-é-nada), onde o reducionismo é a regra para se obter a tão almejada (e ilusória) “segurança”. Foi um almoço recheado de pérolas jurídicas, de defesas da verdade real, do homem médio e até da mulher honesta.... Para mim foi um exercício de paciência e tolerância, que hoje não teria fôlego nem estômago para suportar. Estou ficando velho demais para isso. Mas, ao contrário de muitos e por incrível que pareça, Gabriel conseguiu descolar dessa matriz e sair desse lugar, reescrevendo sua história. E foi uma caminhada interessante, com muito esforço, sacrifício e uma grande dose de estudo. Hoje, sem qualquer exagero, é outro “ser”. Ingressou no Curso de Especialização em Ciências Penais da PUCRS e lá soube aproveitar ao máximo o que lhe foi oportunizado, mergulhando fundo nas leituras de Antropologia, Sociologia, Filosofia, Psiquiatria, Psicologia e, claro, em Direito Penal e Processual Penal. Mas o mais importante: foi capaz de requestionar as certezas, desconfiar das verdades e não ter medo do não-saber. Fez desse novo universo do (des)conhecimento um espaço de diversão. E se divertiu estudando. Matou a mulher honesta e o homem médio, riu da verdade real. Conheceu e abandonou Descartes para chocar com a complexidade do ato de julgar. O ingresso no Mestrado em Ciências Criminais foi o caminho natural de quem, como ele, estava em ebulição mental. É fantástico vê-lo(s) sair do ostracismo e do espaço da mediocridade, inseguros e desconfiados do saber. Mas nem todos chegam neste nível... Gabriel chegou, e passou... A interdisciplinaridade permitiu-lhe compreender a superação do monólogo científico (jurídico ou não) diante da complexidade. Criou condições de possibilidade para a construção de uma nova linguagem, um novo discurso, muito mais rico. Circunscreveu muito bem seu objeto de estudo: Decisão Judicial. Ainda que todo ato de julgar represente um “sentire” – superação do racionalismo cartesiano – é nos crimes sexuais que encontramos o terreno fértil para análise. Daí o foco neste espaço decisório. Para tanto, Gabriel Divan (melhor seria Divã?) mergulhou na psicanálise e na leitura de Jung, Freud, Nietzsche e Foucault. Mas é claro que o aventurar-se pelo oceano do saber científico é uma empreitada árdua, angustiante e muito perigosa. Mas navegar é preciso. E Gabriel navegou nas piores águas, no choque teorético entre o Direito (racionalista e moderno) e a epistemologia do inconsciente. E mostrou ser um excelente velejador, daqueles capazes de ver o vento e o buscar, para mesmo orçado, encontrar o través possível. De nada serve um sistema constitucional de garantias para o processo penal, se descuidarmos do “juiz”, não como figura jurídico-processual (actum trium personarum – Bulgaro), mas como “sujeito”. Não se navega no contra-vento, sem saber usá-lo. Isso é primário. Como bem aponta o autor, existe farta possibilidade de que o julgador termine por incutir (ou sorrateiramente incluir, é óbvio), em meio à maquiagem argumentativa jurídica, aspectos única e exclusivamente de cunho pessoal, de descarrego psíquico. Por elementar, não há como evitar isso, mas é fundamental desvelar e assumir a subjetividade. Só através da assunção desse risco é que poderemos construir mecanismos mais eficazes de redução de danos, até porque, a eliminação da subjetividade não é possível e tampouco desejada. Um conceito de “garantias” processuais somente pode ser concebido a partir da assunção dos riscos, ou seja, a falta sempre será constitutiva. Basta uma rápida mirada no sumário para constatar que não se trata de “mais um livro jurídico”. É uma obra complexa, séria e densa. Um deleite para quem gosta de ler uma boa obra. Mas, para isso, é fundamental estar de “espírito livre”, disposto a requestionar o pouco que se sabe, a navegar por águas desconhecidas, pagando o preço da intranqüilidade de abandonar o porto seguro, o mundo autista do direito. Da introdução, extraio um trecho muito representativo do que espera o leitor: O presente trabalho vai embalado pelo espírito de uma embarcação que em uma manhã de sol ganhou as águas além dos molhes. Não para inventar as Índias e suas especiarias, nem para correr a linha da grande cascata onde findam o mar e o mundo - como tinham em crença os antigos - em proeza inédita e bravateira. Apenas, e sim, pelo prazer de ancorar na baía e mirar o porto sob nova perspectiva. Ter a cidade à frente e o vermelho do entardecer à nuca, para variar da monotonia. Portanto, caro leitor, aproveite essa oportunidade e boa leitura. Tenho certeza de que valerá a pena. Aury Lopes Jr. Advogado Criminalista Doutor em Direito Processual Penal pela Universidad Complutense de Madrid Professor Titular de Direito Processual Penal da PUCRS Professor do Programa de Pós-Graduação – Especialização, Mestrado e Doutorado – em Ciências Criminais da PUCRS Coordenador do Curso de Especialização em Ciências Penais da PUCRS Pesquisador do CNPq Membro do Conselho Diretivo para Iberoamérica da Revista de Derecho Procesal www.aurylopes.com.br