REVISTA DA Escola Paulista da Magistratura Ano 14 - Número 2 Julho - 2014 Da fidúcia à securitização: as garantias dos negócios empresariais e o afastamento da jurisdição Visão crítica da alienação fiduciária de imóveis da Lei 9.514/97 ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURA Diretor DESEMBARGADOR FERNANDO ANTONIO MAIA DA CUNHA Vice-Diretor DESEMBARGADOR MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS Conselho Consultivo e de Programas DESEMBARGADOR ITAMAR GAINO DESEMBARGADOR ANTONIO CARLOS VILLEN DESEMBARGADOR ANTONIO CELSO AGUILAR CORTEZ DESEMBARGADOR LUIZ AUGUSTO DE SIQUEIRA DESEMBARGADOR FRANCISCO EDUARDO LOUREIRO DESEMBARGADORA MARIA DE LOURDES RACHID VAZ DE ALMEIDA JUIZ CLAUDIO LUIZ BUENO DE GODOY Coordenador da Biblioteca e Revistas DESEMBARGADOR WANDERLEY JOSÉ FEDERIGHI Comissão Editorial e Executiva da Revista DESEMBARGADOR ADEMIR DE CARVALHO BENEDITO DESEMBARGADOR ALBERTO SILVA FRANCO DESEMBARGADOR ANTONIO CARLOS MALHEIROS DESEMBARGADOR AROLDO MENDES VIOTTI DESEMBARGADOR CAIO EDUARDO CANGUÇU DE ALMEIDA JUIZ CARLOS DIAS MOTTA DESEMBARGADOR CARLOS EDUARDO DE CARVALHO DESEMBARGADOR CELSO LUIZ LIMONGI DESEMBARGADORA CLÁUDIA GRIECO TABOSA PESSOA MINISTRO ENRIQUE RICARDO LEWANDOWSKI DESEMBARGADOR FÁBIO GUIDI TABOSA PESSOA DESEMBARGADOR FRANCISCO DE ASSIS VASCONCELOS PEREIRA DA SILVA DESEMBARGADOR GILBERTO PASSOS DE FREITAS DESEMBARGADOR ITAMAR GAINO DESEMBARGADOR KIOITSI CHICUTA DESEMBARGADOR LUIZ CARLOS RIBEIRO DOS SANTOS MINISTRO MASSAMI UYEDA JUIZ RICHARD PAE KIM MINISTRO SIDNEI AGOSTINHO BENETI Manoel Justino Bezerra Filho Especialista em Filosofia e Teoria Geral do Estado, Mestre e Doutor em Direito Comercial pela USP. Professor na Graduação e Pós-graduação na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor e Coordenador da Área de Direito Empresarial da Escola Paulista da Magistratura. Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Da fidúcia à securitização: as garantias dos negócios empresariais e o afastamento da jurisdição Visão crítica da alienação fiduciária de imóveis da Lei 9.514/97 Escola Paulista da Magistratura São Paulo, 2014 Revista da Escola Paulista da Magistratura / Escola Paulista da Magistratura. Ano I, (1993). São Paulo, SP: Escola Paulista da Magistratura. 2001, v. 2 (1-2) 2002, v. 3 (1-2) 2003, v. 4 (1-2) 2004, v. 5 (1-2) 2005, v. 6 (1) 2006, v. 7 (1-2) 2007, v. 8 (1-2) 2009, v. 9 (1) 2011, v. 10 (1) 2012, v. 11 (1) 2014, v. 12 (1-2) 1. Direito. I. Escola Paulista da Magistratura. ISSN 1980-2374 Escola Paulista da Magistratura Rua da Consolação, 1.483 - 1º, 2º, 3º e 4º andares 01301-100 - São Paulo - SP Tels.: (11) 3255-0815 / 3257-8954 www.epm.tjsp.jus.br – [email protected] Sumário I – Introdução ........................................................................................... 17 1.1 – Justificativa para a escolha do tema .................................................. 17 1.2 – Fidúcia, alienação fiduciária e securitização como sistemas de garantia dos negócios ................................................................................. 21 1.3 – Lei 9.514/97 e Lei 10.931/04 .......................................................... 23 1.4 – A tentativa de neutralização da “incerteza da jurisdição” ................. 25 1.5 – O Direito como sistema de controle e a indeclinabilidade da jurisdição .................................................................................................... 27 II – Evolução histórica da fidúcia romana; a fidúcia em outros sistemas de direito ................................................................................................... 33 2.1 – Direito romano ................................................................................. 33 2.1.1 – Origem histórica da fidúcia ........................................................... 33 2.1.2 – Tipos diversos de fidúcia ................................................................ 40 2.1.3 – Fidúcia cum amico ......................................................................... 42 2.1.4 – Fidúcia cum creditore, pignus e hipotheca ........................................ 44 2.2 – Direito germânico ............................................................................. 47 2.3 – Direito anglo-saxão ........................................................................... 54 2.4 – Direito brasileiro ............................................................................... 58 III – Patrimônio e negócio fiduciário ..................................................... 65 3.1 – Patrimônio ........................................................................................ 65 3.1.1 – Teorias do patrimônio: clássica e moderna .................................... 65 3.1.2 – Patrimônio geral e especial (patrimônio separado ou de afetação) ... 69 3. 2 – Negócio indireto e negócio fiduciário ............................................. 74 3.2.1 – Negócio indireto e direto ............................................................... 74 3.2.2 – Negócio fiduciário e simulação ...................................................... 78 IV – Surgimento e evolução da securitização no direito brasileiro; aproximação a outros institutos .............................................................. 83 4.1 – Securitização, alienação fiduciária de imóveis e patrimônio de afetação ....................................................................................................... 83 4.2 – Lei 9.514/97 – alienação fiduciária de imóveis ................................ 93 4.3 – Lei 10.931/04 – patrimônio de afetação .......................................... 95 4.4 – Lei 11.101/05 – nova Lei de Recuperação de Empresas e Falência ... 96 V – Da fidúcia à securitização: evolução histórica ................................ 97 5.1 – Do direito romano ao direito brasileiro ............................................ 97 5.2 – Confiança (inicial) X garantia (atual) ............................................. 102 5.3 – Fidúcia no Código Civil ................................................................. 104 5.4 – Fidúcia em leis especiais ................................................................. 105 5.5 – Da fidúcia para a securitização ....................................................... 107 5.6 – Patrimônio de afetação ................................................................... 108 VI – A “blindagem” das garantias no direito positivo brasileiro ........ 111 6.1 – A natural busca de garantias para os negócios empresariais ........... 111 6.2 – Direito real (tradicional) de garantia .............................................. 115 6.3 – Alienação fiduciária de bem móvel ................................................. 117 6.4 – Alienação fiduciária de bem imóvel ................................................ 122 6.5 – Securitização de crédito imobiliário e patrimônio de afetação ....... 124 6.6 – Garantia contra o devedor, contra terceiros e contra a “jurisdição” ... 128 VII – A busca da eficiência do sistema de garantias pelo afastamento da jurisdição, no Brasil atual ................................................................ 133 7.1 – Racionalidade weberiana ................................................................ 133 7.2 – Previsibilidade da decisão como elemento de segurança da jurisdição .................................................................................................. 134 7.3 – Insegurança da lei positiva e afastamento da jurisdição ................. 136 VIII – Conclusão .................................................................................... 141 8.1 – O sistema de garantias do negócio empresarial de construção/ incorporação de imóveis ........................................................................... 141 8.2 – Afastamento da insegurança da lei e das decisões jurisdicionais .... 142 8.3 – Composição do conflito ................................................................. 146 IX – Bibliografia ..................................................................................... 149 Adendo – A execução extrajudicial do contrato de alienação fiduciária de bem imóvel – exame crítico da Lei 9.514, de 20.11.97 ...................... 157 8 NOTA DO AUTOR Dentro do sistema implantado oficialmente pela Diretoria do Desembargador Fernando Antonio Maia da Cunha, a Escola Paulista da Magistratura, por comissão de Desembargadores oficialmente formada para tanto, selecionou para sua segunda publicação, a tese de doutorado apresentada em janeiro de 2006, com a qual o autor obteve o título de “Doutor”, na Universidade de São Paulo, sob a orientação do Professor Doutor Paulo Fernando Campos Salles de Toledo. Esta louvável oportunidade aberta a todos os Magistrados do Estado de São Paulo certamente trará bons resultados para o aperfeiçoamento intelectual de todos e para que a Escola atinja seus objetivos neste campo. A tese ora publicada pretendeu, em parte, examinar a aplicação da Lei 9.514/97, que introduziu em nosso sistema a alienação fiduciária de imóveis, para tentativa de solução do grave problema da falta de moradias para a população. Sem embargo das declaradas boas intenções do legislador, o que se vê é que o sistema de garantia instituído em favor do financiador impôs uma draconiana execução extrajudicial que coloca o devedor em situação de iniquidade, no momento em que, seja por qual razão for, deixa de pagar as parcelas do financiamento. Com efeito, os artigo 26 e seguintes da referida Lei 9.514/97, estabelecem um sumaríssimo sistema de execução extrajudicial, na qual o resultado será a perda do imóvel pelo devedor, que nada receberá em devolução do valor já pago, conforme permite o § 6º do artigo 27. Em tese – e isto acontece na prática –, o devedor pode ter pago uma porcentagem bastante elevada de sua dívida, tornar-se inadimplente por um valor relativamente pequeno e, ainda assim, perder o imóvel e nada receber em devolução. Aliás, este sistema de garantia absolutamente exagerado e a execução extrajudicial acentuadamente expedita, foram fatores que colaboraram decisivamente para a chamada “crise do sub prime” nos Estados Unidos, sistema legal no qual se inspirou o legislador brasileiro. Os financiadores americanos não se preocuparam com a capacidade de endividamento daqueles a quem forneciam empréstimos para aquisição de imóvel, pois o sistema de garantia exacerbada acabava fazendo com que, quanto mais inadimplentes 9 houvesse, mais lucro houvesse para o financiador; bastava a este retomar o imóvel e manter consigo o valor já recebido, do qual nada devolvia. Ou seja, afastou-se o risco do negócio para o financiador e este não tinha mais qualquer razão para pesquisar a situação do pretendente ao dinheiro, pois, repita-se, quanto mais inadimplentes houvesse, maior seria o lucro. O risco é que desague o sistema implantado aqui no Brasil, na mesma crise na qual desaguou o sistema americano. Após a crise do sub prime de 2008, os financiadores, construtores, securitizadores, enfim, os que atuam neste campo, passaram a tomar cuidado com esta análise da qualidade dos pretendentes ao financiamento; no entanto, o distanciamento da crise faz com que os cuidados passem a ser menores. Por outro lado, a situação na qual é colocado o inadimplente executado extrajudicialmente, faz com que este procure imediatamente o Judiciário, opondo-se à reintegração de posse que é ajuizada após a sumaríssima execução extrajudicial, aumentando a litigiosidade e colocando em risco o sistema. Aliás, já começam a surgir, como era esperado, decisões judiciais nas quais o financiador é condenado a devolver valores por conta do que já foi pago, frustrando por outro lado a rápida reintegração que o sistema da Lei 9.514/07 implantou. A propósito, confiram-se os julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo que ou mandam devolver parte do valor pago pelo inadimplente ou mantém o devedor no imóvel mesmo após o leilão extrajudicial: Ap. 018259313.2008.8.26.0100, j. em 25.6.14; AI. 2011662-73.2013.8.26.0000, j. em 10.12.13; AI. 2010186-97.2013.8.26.0000, j. em 19.11.13; Ap. 015870515.2008.8.26.0100, j. em 29.8.13; AI. 2002662-49.2013.8.26.000, j. em 8.10.13; Ap. 0169661-56.2009.8.26.0100, j. em 18.2.2013; EI. 038065098.2008.8.26.0577, de 27.9.12; Ap. 9300853-02.2008.8.26.0000, j. em 18.4.12; Ap. 0382643-79.2008.8.26.0577, j. em 21.7.2011. Com o intuito de colaborar para que a lei seja melhorada e possa permitir que se caminhe no sentido de solução do grave problema habitacional brasileiro, a tese ora apresentada, em sua parte final, apresenta sugestões que poderiam encaminhar melhor solução para o funcionamento da lei, fazendo remissão ao artigo publicado na Revista dos Tribunais, volume 819, de janeiro de 2004, artigo que vai publicado como adendo no presente trabalho. São Paulo (SP), julho de 2014. 10 RESUMO O novo instituto da alienação fiduciária sobre imóveis despertou especial atenção a partir do estudo da Lei 9.514, de 20.11.97, com vistas ao julgamento – por sentenças de 29.7.03 –, de dois processos em andamento na 29ª Vara Cível Central de São Paulo, da qual este doutorando era então Juiz Titular. Tratava-se de duas ações ajuizadas por adquirentes de unidades imobiliárias diversas, dirigidas contra requeridos diversos. Os autores haviam deixado de pagar as prestações contratadas pelos motivos que aduziam na inicial, pretendendo então o desfazimento do negócio, com a devolução de parte do que já haviam pago; contra tais pretensões, rebelavam-se as requeridas – uma sociedade empresária de securitização em um dos feitos e, uma sociedade de empreendimentos imobiliários, em outro. Os aspectos processuais e mesmo o teor do julgamento não guardam maior interesse no momento. O que interessa é que o estudo da referida Lei 9.514/97 mostrou que, em favor das requeridas, havia sido criado um sistema de garantia tão sólido, que permitiria a pronta retomada extrajudicial do imóvel, eventualmente sem a devolução de qualquer valor, não importando quanto já tivesse sido pago. Esta retomada se apresentava possível por meio de uma execução extrajudicial extremamente expedita, incidindo sobre o imóvel alienado fiduciariamente. A solidez da garantia em favor da securitizadora (ou incorporadora/construtora) e a rapidez possível para a retomada do imóvel sem a devolução de qualquer parcela, demonstraram que havia sido criado um novo sistema extremamente eficiente, se comparado com os anteriormente existentes. Esta solidez da garantia veio a se tornar ainda mais efetiva, com a posterior promulgação da Lei 10.931, de 2.8.04. A partir de tais constatações é que se iniciou o presente estudo, para tentar determinar qual o novo tipo de garantia que havia surgido, constatando-se estar ela formada pelo acoplamento da fidúcia – alienação fiduciária – ao patrimônio de afetação e ao instituto da securitização. Tal tipo de garantia era resultado da busca constante que o meio empresarial sempre exerce para, como diz Ascarelli, criar novo instituto para atender novas necessidades por meio da junção de velhos institutos. 11 No caso, a necessidade a ser satisfeita era a eficácia ou eficiência da garantia. Não só eficiência no sentido de não sofrer concorrência de outros credores, mas também no sentido de tornar rápida e expedita a execução. E então, foi possível notar que parece ter sido tentada uma mudança qualitativa da garantia, pois o tipo de execução extrajudicial estabelecido parece levar à busca de garantia também contra a incerteza jurisdicional, com o afastamento da jurisdição. Até que ponto é verdade que se busca o afastamento da jurisdição como novo elemento de garantia e até que ponto isto é possível e seria solução nova para velhos problemas, este é o tema que se tentou enfrentar na conclusão. Este estudo passa por uma visão histórica e de direito comparado das garantias disponíveis ao campo empresarial, até se chegar a este novo sistema do direito brasileiro, ou seja: a junção da antiga fidúcia, na forma de alienação fiduciária, ao conhecido patrimônio especial de afetação, mais o recente instituto da securitização, tudo isto aparentemente secundado por uma tentativa de afastamento da intervenção do poder jurisdicional. São Paulo, janeiro de 2006. 12 ABSTRACT The new legal doctrine concerning chattel mortgage of real property has aroused special attention in a study of Law No. 9514, of November 20, 1997, in view of the judgment – by decisions of July 29, 2003 –, and of two proceedings in progress at the 29th Central Lower Civil Court of São Paulo, of which this doctorate candidate was then the Head Judge. It concerned two actions filed by acquirers of miscellaneous real property units against various respondents. The plaintiffs had failed to pay the installments for reasons that they presented in the complaint, thereby requesting annulment of the transaction, with return of the portion that they had already paid; the respondents – a securitization company in one of the cases and a real property development company in the other – challenged these pretensions. The procedural aspects and even the tenor of the judgment are not of any particular interest at this time. What really interests is that the study of the mentioned Law No. 9514/97 showed that a system of guarantee had been created in favor of the respondent that was so solid that it would enable prompt extrajudicial repossession of the property, potentially without return of any amount, regardless of how much had been paid. This repossession appeared possible by means of an extremely expeditious extrajudicial enforcement applied to a property that had been subject to chattel mortgage. The solidness of the guarantee in favor of the securitizing company (or developer/constructor) and the possible agility for repossession of the property without return of any installment, showed that a new and extremely efficient system had been created, if compared to those existing previously. This solidness of the guarantee became even more effective with the subsequent enactment of Law No. 10931, of August 2, 2004. This study commenced with these disclosures, in order to determine what type of new guarantee had arisen, and it was ascertained that it was formed by the joining coupling of the mortgage – chattel mortgage – with the affected property and with the legal doctrine of securitization. This type of guarantee resulted from the constant search that the business community always exercises to, as Ascarelli says, create a new legal doctrine to fulfill the needs by means of joining with old doctrines. 13 In this case, the need to be satisfied was the efficacy or efficiency of the guarantee. Not only efficiency in the sense of not incurring competition from other creditors, but also in the sense of enabling the enforcement to be more rapid and expeditious. Then it was noted that there seemed to be an attempt to change the quality of the guarantee, as the type of extrajudicial enforcement established appears to lead the search for guarantee also against jurisdictional uncertainty, with the removal of the jurisdiction. To what extent is it true that one seeks removal of the jurisdiction as a new element of guarantee, and to what extent is it possible and would be a new solution for old problems, this is the theme that one attempts to face in the conclusion. This study is subject to a vision of the history and of comparative law of the guarantees that are available for the field of business, until arriving at this new system of Brazilian law, i.e.: the joining of the old mortgage, in the form of chattel mortgage, with the well-known special affected property, plus the recent legal doctrine of securitization, all of which supported by an attempt of removal of the intervention of jurisdictional power. São Paulo, January 2006. 14 RIASSUNTO La nuova regolamentazione dell’alienazione fiduciaria sugli immobili ha suscitato particolare attenzione a partire dallo studio della Legge 9.514 del 20/11/97 ed in vista delle decisioni – a mezzo di sentenze del 29/07/03 –, di due processi celebrati presso la 29ª sezione civile del tribunale centrale di San Paolo, della quale il dottorando sottoscritto era giudice titolare. Si trattava di due azioni legali presentate da acquirenti di due diverse unita’ immobiliari, dirette contro due distinti destinatari. Gli autori avevano cessato di pagare le rate previste dal contratto per i motivi addotti nella petizione iniziale, pretendendo percio’ la rescissione dal contratto con la restituzione di una parte di quanto era gia’ stato versato; contro l’accoglimento di tali richieste si opponevano i destinatari – una societa’ finanziaria di credito mobiliare in uno dei due processi ed una societa’ immobiliare nell’altro. Gli aspetti processuali e lo stesso contenuto del processo non sono di grande interesse al momento. Ciocche interessa, e’ che lo studio della succitata Legge 9.514/97 ha dimostrato, che in favore dei destinatari, era stato creato un sistema di garanzia cosi’ solido, che rende possibile l’immediato rientro in possesso dell’immobile in via extralegale, eventualmente senza la restituzione di alcun importo, non contando quanto era gia’ stato versato. La reintegrazione del possesso era stata resa possibile mediante un’esecuzione extralegale veramente spedita, incidente sull’immobile alienato in via fiduciaria. La solidita’ della garanzia in favore della societa’ finanziaria di credito mobiliare (o di intermediazione finanziaria/edile) e la rapidita’ resa possibile per il rientro in possesso dell’immobile senza la restituzione di nessuna delle rate versate, hanno dimostrato che era stato creato un nuovo sistema estremamente efficiente se confrontato con quelli gia’ esistenti. La solidita’ della garanzia e’ divenuta ancor piu’ effettiva, con la susseguente promulgazione della Legge 10.931, del 02/08/04. E’ a partire da tali constatazioni che ha preso le mosse il presente studio, che cerca di determinare quale nuovo tipo di garanzia era sorto, per poi constatare che questa e’ formata dall’associazione della fiducia – alienazione fiduciaria –, sul patrimonio di riferimento e al finanziamento mobiliare 15 d’emissione. Tale tipo di garanzia era risultato dalla costante ricerca che l’ambito imprenditoriale sempre esercita per, come dice Ascarelli, creare nuova regolamentazione per soddisfare nuove necessita’ mediante l’unificazione di precedenti regole. Nella fattispecie, la necessita’ che doveva essere soddisfatta, era l’efficacia o efficienza della garanzia. Non solo efficienza nel senso di non dover soffrire la concorrenza di altri creditori, ma anche nel senso di rendere rapida e certa l’esecuzione. Percio’ e’ stato possibile notare che sembra sia stato tentato un cambiamento qualitativo della garanzia, giacché il tipo di esecuzione extralegale stabilito sembra portare alla ricerca della garanzia anche contro l’incertezza giuridica, con l’allontanamento della giurisdizione. Fino a che punto, e’ vero, che si ricerca l’allontanamento della giurisdizione come nuovo elemento di garanzia, e fino a che punto questo e’ reso possibile e costituirebbe nuova soluzione a vecchi problemi, e’ il tema che si e’ tentato di affrontare nella conclusione. Questo studio passa per una visione storica e di diritto comparato delle garanzie disponibili in campo imprenditoriale, per giungere a questo nuovo sistema del diritto brasiliano, ossia: l’associazione dell’antica fiducia, nella forma d’alienazione fiduciaria, al conosciuto patrimonio speciale di riferimento, piu’ la recente istituzione del credito finanziario, tutto cio’ apparentemente assecondato da un tentativo di allontanamento dell’intervento del potere giuridico. São Paulo, Gennaio 2006. 17 I – INTRODUÇÃO 1.1 – Justificativa para a escolha do tema 1.1.1 – Os postulados de direito que regem as relações comerciais, hoje melhor nominadas como relações empresariais, situam-se em um campo extremamente dinâmico; a rapidez com que as novas oportunidades de negócios se apresentam, exige do direito uma constante prontidão para que relações antes desconhecidas passem a ser reguladas pelo sistema jurídico. Além desta constante busca de regulamentação para situações novas, o sistema jurídico apresta-se também para solucionar jurisdicionalmente as demandas que surgem a partir das relações estabelecidas, sempre atento ao princípio constitucional e universal, da indeclinabilidade da jurisdição, segundo o qual toda lesão ou ameaça a direito estará necessariamente sob o campo de decisão da atividade jurisdicional, conforme estabelecido entre nós pelo inciso XXXV1 do artigo 5º da Constituição Federal de 1988. Se o dinamismo do direito empresarial pode causar certa dificuldade ao jurista, obrigando-o a constantes criações capazes de definir e regular novos institutos, por outro lado o cosmopolitismo também característico deste ramo, faz com que o exame seja facilitado a partir da observação do surgimento do mesmo instituto em outros países. Esta vocação cosmopolita deflui do próprio campo de atuação da atividade empresarial, que tem por território o mundo todo, tendo por fronteira apenas o interesse negocial da relação a ser estabelecida, superando na maioria das vezes as demais barreiras decorrentes da distância, da diferença de línguas e costumes, das resistências de fundo político, enfim, fazendo da terra como um todo o seu campo de atuação. É certo que o estudo do direito comparado traz também este tipo de auxílio em qualquer ramo do direito, pois ocorre sempre o que poderia ser entendido como certo mimetismo à distância entre os diversos sistemas de direito de países diferentes, às vezes sem que um tenha conhecimento do que ocorre no outro. Guido Fernando Silva Soares2, a propósito deste 1 2 XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça ao direito. Soares, p. 12. 18 aspecto, anota que o comparativismo jurídico mostra haver “uma série de diferenças de tratamento a um determinado fenômeno da vida do homem em sociedade, que outros sistemas nacionais propiciam, os quais, por coexistirem, no tempo e no espaço, com o brasileiro (onde se situa o analista), dão causa à criação de institutos jurídicos assemelhados. Seja por emulação (atividade recorrente em toda história dos sistemas jurídicos nacionais), seja por criação autônoma, as semelhanças e diferenças entre um mesmo instituto, em sistemas jurídicos nacionais diversos, despertam a curiosidade do cientista do Direito”. No entanto, no direito comercial, mais do que isto, o que ocorre é exatamente a aplicação no território de um país, de sistema que já vigora em outro, com o qual o primeiro mantém relações de comércio. 1.1.2 – Estas características de dinamismo e cosmopolitismo, ínsitas ao direito empresarial, impõem-se desde o início da sistematização de seus postulados, tornando-se dominantes quando do surgimento das primeiras cidades comerciais, originárias das feiras medievais. Vera Helena de Mello Franco, apontando o surgimento do sistema das “jurisdições especiais” aos agentes comerciais, anota que, originando-se nas cidades medievais italianas “generalizou-se pela Europa, atingindo a França, a Espanha, os Estados Alemães e a Inglaterra” desta maneira “afirmando-se o caráter internacional e cosmopolita do Direito Comercial”3. Da mesma forma, Antônio Martin ressalta o dinamismo incoercível do direito empresarial, observando que a “atividade empresarial... não é enquadrável em nenhum modelo estático, posto que o empresário tem em mira a constante ampliação dos mercados para seus produtos” do que decorre que “ao lado da instrumentalidade, o direito comercial apresenta-se como um ramo do direito essencialmente dinâmico”4. Esta capacidade de derrubar fronteiras, mesmo políticas, para espalhar-se por novos territórios é ressaltada com ênfase por Waldemar Ferreira, ao anotar que “o comércio é cosmopolita. Desconhece fronteiras. Se barreiras lhe opõe, aqui ou alhures, o nacionalismo contemporâneo, transpô-las é, para ele, questão de tempo”5. 1.1.3 – Fixando-se desde seu surgimento na época medieval, como sistema de direito não estático, dinâmico por excelência e, ademais, com plasticidade cosmopolita que o habilita a arrostar fronteiras e espalhar-se por 3 4 5 Franco, pp. 19/20. Martin, Tese de Doutoramento na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, dezembro de 1986, sob o título “Caracterização do Contrato de Fornecimento”, Biblioteca da Faculdade de Direito, p. 2. Ferreira, 1º volume, p. 438. 19 todas as nações do mundo então conhecido, o direito comercial mantém e aperfeiçoa tais especificidades nas Idades Moderna e Contemporânea, encontrando atualmente, nesta que já está sendo chamada de “Pós-Moderna”, as condições ideais de disseminação, com o advento da informática e da “internet”, com o mundo colocado “on line”, possibilitando negócios instantâneos, em tempo real, sem qualquer óbice decorrente da distância e sem os entraves das fronteiras materiais, inexistentes no mundo cibernético. 1.1.4 – No entanto, esta expansão dos negócios, que torna o mundo o palco dos negócios empresariais, cria outro tipo de necessidade, que diz respeito à segurança que se espera seja propiciada aos negócios empresariais, buscando-se elementos que mais e mais tragam garantias de que os contratos firmados serão cumpridos. Percebe-se aqui certa racionalidade, na medida em que a rapidez dos negócios e a distância física dos contratantes começam a exigir mais e mais garantias, para que o empresário sinta-se seguro para investir no negócio, com a confiança de que a obrigação contraída será satisfeita pelo outro contratante. Esta busca constante de maiores garantias para os negócios, exacerbada ainda com a relativização da garantia decorrente da hipoteca e do penhor, faz com que as buscas se voltem para a fidúcia, que se apresenta como a mais eficiente das formas garantidoras conhecidas, até por se tratar de sistema aberto, que admite a criação constante de novas figuras adaptáveis a novos negócios, como tem sido visto. Otto de Sousa Lima, comparando a segurança que deflui do penhor com aquela que vem da fidúcia, anota: “Estes mesmos inconvenientes que levaram à coexistência das duas figuras no Direito Romano, levam, ainda hoje, à procura de garantias mais fortes e mais seguras, ditando, também, o renascimento da própria instituição romana, revestida de novas vestes e adaptadas à sistemática jurídica moderna”6. 1.1.5 – Evidentemente, o Brasil, aberto como a grande maioria dos demais países à irresistível globalização dos negócios empresariais, segue também esta tendência e procura encontrar os meios jurídicos, entre outros, para que esta garantia acima lembrada se dê da forma mais eficaz possível. Para tanto, o sistema brasileiro tem se valido da fidúcia e de adaptações desta garantia às necessidades do dia a dia dos negócios; com salto histórico, poder-se-ia afirmar que o direito brasileiro tirou da “fiducia cum amigo” 6 Lima, p. 76. 20 de raízes romanas, o sistema de garantia que acoplou ao que se passou a denominar de “securitização”. O caminho que o pensamento e a técnica jurídica palmilharam para chegar da fidúcia à conjugação com a securitização, é o que se pretende examinar, avançando-se ainda no estudo específico de leis recentemente promulgadas que se dirigem para um ponto ainda mais avançado da segurança do negócio, objetivando afastar a própria atividade jurisdicional que passa a ser encarada como elemento de insegurança aos negócios empresariais, ante a incerteza da decisão. 1.1.6 – Sem qualquer preocupação em tentar definir aqui o que se entenderia pela expressão “mercado”, o que se pode constatar é que os interesses empresariais apresentam um extraordinário poder de pressão sobre o meio social e político, nos locais em que atuam em bloco. Tais interesses, à semelhança do poder que preenche o vazio, ocupam todos os espaços que acaso podem tomar, como fenômeno econômico que evidentemente não guarda qualquer preocupação de caráter social. Rachel Sztajn7 ressalta tal aspecto, lembrando que deve ser abandonada a ideia de que mercados livres venham a se preocupar com que a distribuição da riqueza seja justa ou socialmente adequada; diz que “esta visão, talvez, resulte da confusão inadmissível, entre a disciplina jurídica dos mercados e políticas sociais, a circulação de bens em mercados com a distribuição de riqueza. Políticas sociais podem apoiar-se em mercados, mas não se realizam por intermédio daqueles mercados organizados com fundamento na livre iniciativa; resultam de outra forma de organização”. Tanto é assim que, nas relações entre nações, não é incomum que o desentendimento comercial acabe desaguando na guerra pura e simples, outra forma de também fazer prevalecer os interesses que a pressão comercial não foi suficiente para fazer implantar. Carl von Clausewitz8, o teórico da guerra, constata que é “preciso sublinhar expressamente e exatamente a opinião também tão necessária na prática segundo a qual a guerra não é outra coisa senão a continuação da política por outros meios”. Ou seja, as garantias a serem propiciadas aos negócios empresariais devem ser preservadas por qualquer forma possível, sob pena de a própria atividade empresarial perecer. Antes, depois ou ao lado das garantias jurídicas objeto do estudo, a própria história demonstra que o braço armado foi auxiliar usado sempre que 7 8 Sztajn, “Teoria Jurídica da Empresa”, p. 35. Clausewitz, p. 65. 21 necessário à preservação do cumprimento dos negócios. Polanyi9 examinando alternativas ao processo de desvalorização interna da moeda para defesa de um mercado nacional, no período de meio século compreendido entre 1879 e 1929, observa, a propósito do caso específico que está examinando: “O aumento nas vendas de café ou de nitratos, por exemplo, poderia destruir o mercado, e repudiar uma dívida externa exorbitante poderia parecer preferível a depreciar a moeda nacional. O mecanismo do mercado mundial não podia se permitir correr tais riscos. Assim, enviavam-se navios de guerra para o local e o governo negligente, fraudulento ou não, se defrontava com a alternativa de um bombardeio ou um ajuste”. 1.1.7 – As técnicas de controle, em sociedades ditas desenvolvidas, devem ser sofisticadas, não se podendo imaginar a deflagração da guerra a cada interesse empresarial contrariado. Neste momento atual de globalização desenfreada pelo qual o mundo passa, há necessidade de se buscar instrumentos eficazes para preservar os interesses empresariais, para neutralizar as externalidades que possam influir negativamente no perfeito cumprimento dos contratos. O direito – especificamente a lei positiva –, como instrumento de controle social, mais e mais vai se tornando complexo à medida que os interesses a serem defendidos se espraiam pelo mundo todo, por nações com as mais diversas histórias e tradições10. 1.2 – Fidúcia, alienação fiduciária e securitização como sistemas de garantia dos negócios 1.2.1 – Como já anotado acima, o direito é sistema de controle social e, no que tange especificamente às atividades empresariais, deve ser o garantidor do cumprimento dos contratos firmados, afastando as incertezas que possam se apresentar como externalidades com carga de desmotivação suficiente para afastar o investimento do empresário. A garantia à atividade empresária é buscada por várias formas, não só com o aperfeiçoamento das leis como também com a análise de como devem ser aplicadas, de tal forma que o trabalho hermenêutico e jurisdicional não venha a colocar entraves ao bom 9 10 Polanyi, p. 244. Quanto maior o grupo social, mais sofisticado e complexo deve ser o arcabouço jurídico. Diz Vilhelm Aubert (p. 134): “Las comunidades con el nivel mayor de control social son comunidades pequeñas, homogéneas y estables – como las pequeñas sociedades tribales en regiones apartadas, o las aldeas más remotas en las naciones industriales”. 22 andamento da vida econômica da nação. Ou seja, é necessário que se tenham boas leis e que haja zelo na aplicação delas, de tal forma que a atividade econômica, que guarda interesse para a sociedade como um todo, não venha a sofrer freios na busca da maior produtividade e eficiência; este é, em linhas bastante gerais, um dos postulados dos defensores do bom andamento do mercado, agrupados na escola de pensamento do “direito & economia” ou da “análise econômica do direito”. 1.2.2 – A fidúcia presta-se, mais do que qualquer outro instituto, a fornecer garantias mais sólidas do que aquelas oferecidas pela hipoteca, penhor ou anticrese, tanto que na atualidade tem servido de base para a criação de diversos elementos de solidificação do laço garantidor que se estabelece entre a obrigação e a coisa. Isto porque, ao invés de se constituir direito real de garantia como ocorre nos outros institutos, o negócio fiduciário transfere a própria propriedade. Pontes de Miranda11 anota: “O fim fiducial pode ser o de garantia. Em vez de lançarem mão dos negócios jurídicos típicos de garantia (hipoteca, anticrese, penhor, caução de títulos, fiança), os declarantes ou manifestantes do negócio jurídico fiduciário para garantia utilizam atribuição patrimonial: em lugar de só se hipotecar, anticretizar, empenhar ou caucionar, o que apenas criaria direito real de garantia, o fiduciante transfere ao credor a propriedade, para que, vencido o crédito, sem ser solvido, fique com a coisa, ou, solvido, a devolva”. Otto de Sousa Lima, o grande estudioso deste instituto em nosso direito, ressalta que a fidúcia, por sua maleabilidade, presta-se a atender a todas as novas exigências que surgem no dia a dia do relacionamento humano, sem necessidade da criação de novos institutos, desde que feita a devida adaptação, dizendo12: “Mas, as necessidades da vida e o desenvolvimento das atividades humanas exigiam, sempre, novas formas e novos tipos jurídicos. De outro lado, é evidente que qualquer sistema jurídico não poderá ser renovado diariamente para a satisfação daquelas novas necessidades, e, aí, torna-se imprescindível a sua adaptação, visando a normalizar aquelas novas exigências sociais. Eis, pois, o campo de aplicação da fidúcia: tornar dúctil um sistema jurídico fechado”. Ascarelli, em lição de impressionante atualidade, em 1945 falava sobre a adaptação de velhos institutos a novas necessidades, fazendo especial referência à maleabilidade dos negócios indiretos, entre os quais se 11 12 Pontes de Miranda, “Tratado”, tomo III, p. 73. Lima, p. 127. 23 inclui a fidúcia. Dizia então13: “As novas necessidades são, então, satisfeitas, mas o são com velhos institutos. Nessa adaptação, a nova exigência é satisfeita através de um velho instituto que traz consigo as suas formas e a sua disciplina, e oferece à nova matéria, ainda em ebulição, um velho arcabouço já conhecido e seguro. As velhas formas e a velha disciplina não são abandonadas de chofre, mas só lenta e gradualmente, de maneira que, muitas vezes, por longo tempo, a nova função vive dentro da velha estrutura, e assim se plasma, enquadrando-se no sistema. ... ... Manifestação típica deste processo apresenta o fato de a ele (negócio indireto) recorrerem os particulares na atividade negocial, sendo este o lado da questão para o qual me permito chamar a atenção”. A atualidade da lição de Ascarelli mais ainda impressiona, quando se verifica a quantidade de adaptações a que se está prestando a fidúcia, para a solução dos problemas de segurança jurídica que se apresentam para os negócios empresariais os mais variados, nos dias atuais. 1.2.3 – Destas adaptações de antigos institutos, das quais fala Ascarelli, notável exemplo encontra-se na promulgação da Lei 4728/65 e do Decreto Lei 911/69, que adaptaram o instituto da fidúcia à necessidade de ativar a indústria de bens de consumo durável, criando a alienação fiduciária de bens móveis e despertando o interesse das instituições financeiras no fornecimento de financiamento para a aquisição, ante a segurança que a possibilidade da busca e apreensão do veículo – e de outros bens – passou a propiciar ao credor. A ductibilidade, para usar a expressão de Sousa Lima, do instituto da fidúcia, fica demonstrada de forma acentuada, ao se verificar a possibilidade de encaminhamento de solução a problemas relativos à ativação da indústria de bens duráveis, jungidos a problemas de criação de estímulos para financiamento bancário, todos calcados naquele secular sistema de garantia. 1.3 – Lei 9514/97 e Lei 10931/04 1.3.1 – Tão efetivo mostrou-se o sistema instituído pela Lei 4728/65 e pelo Decreto-lei 911/69, que se passou a examinar a possibilidade de extensão da garantia fiduciária também aos bens imóveis, logo que se constatou a inviabilidade da manutenção do antigo “Banco Nacional da Habitação” e do correspondente “SFH – Sistema Financeiro da Habitação”. 13 Ascarelli, “Problemas das...”, pp. 155/6. 24 Em consequência, veio a ser promulgada a Lei 9514/97 que, à semelhança do anterior decreto de 1969, volta-se para a tentativa de solução do problema habitacional de um lado, ao mesmo tempo em que tenta propiciar fontes de capital suficientes para a ativação do mercado de financiamento imobiliário. Este objetivo de atração de capitais está ligado diretamente ao problema da garantia para o financiador e, especialmente, da liquidez da garantia e, por este caminho, volta-se ao instituto da fidúcia, acoplada agora ao novo instituto da securitização e ao conhecido patrimônio de afetação, para criar uma forma mista de garantia e de financiamento, com emissão de títulos mobiliários. 1.3.2 – Esta lei estendeu a possibilidade de alienação fiduciária também para os bens imóveis14, fórmula antes restrita apenas aos bens móveis de consumo durável. Acoplou ainda à garantia fiduciária uma forma de securitização15, dos créditos representados pelas obrigações assumidas pelos adquirentes das unidades imobiliárias vendidas. A securitizadora, sociedade anônima de propósito específico, emite títulos mobiliários e os lança no mercado, tendo como lastro os créditos que recebeu em cessão da incorporadora/construtora. Faz os necessários acertos com a construtora e administra o resgate dos títulos mobiliários com os valores que vai recebendo dos adquirentes das unidades imobiliárias. É forma de captação da poupança popular, para a solução do problema nacional de habitação, ao mesmo tempo em que, constituídos os créditos de determinado empreendimento como patrimônio separado dos demais e afetados como lastro de emissão dos títulos mobiliários16, mesmo que ocorra falência, quer do construtor, quer da companhia securitizadora, sempre será preservado o direito dos adquirentes das unidades17. 1.3.3 – Em complemento a esta lei, veio a ser promulgada a Lei 10.931, de 2.8.04, trazendo incentivos para que o imóvel construído com captação 14 15 16 17 Art. 17. As operações de financiamento imobiliário em geral poderão ser garantidas por: ... ... IV–alienação fiduciária de coisa imóvel. Art. 8º. A securitização de créditos imobiliários é a operação pela qual tais créditos são expressamente vinculados à emissão de uma série de títulos, mediante Termo de Securitização de Créditos, lavrado por uma companhia securitizadora, do qual constarão os seguintes elementos: ... ... ... Art. 10. O regime fiduciário... ... submeter-se-á às seguintes condições: ... III – a constituição de patrimônio separado, integrado pela totalidade dos créditos submetidos ao regime fiduciário que lastreiem a emissão; III – a afetação dos créditos como lastro de emissão da respectiva série de títulos; ... Art. 15. ... Parágrafo único. A insolvência da companhia securitizadora não afetará os patrimônios separados que tenha constituído. 25 de financiamento por meio de títulos mobilários viesse a ser instituído como “patrimônio de afetação”, criando estímulos de ordem fiscal para os construtores que promovessem a afetação18. Aplica-se aqui ao imóvel o neologismo criado bastante recentemente, para dizer que a garantia está “blindada”19, com relação a eventual quebra ou insegurança financeira da incorporadora/construtora. Também para completar a “blindagem”, existe artigo na lei de recuperação de empresas e falências, recentemente promulgada, no sentido de que a cessão em favor da securitizadora não poderá sequer ser objeto de ação revocatória, a não ser que todos os títulos mobiliários lançados no mercado já estejam quitados20. Como a quitação destes títulos depende do integral pagamento por parte dos adquirentes e como, em tal caso, não haverá crédito algum da massa falida, constata-se que tendo havido emissão de títulos mobiliários, a cessão não será revogada em qualquer hipótese. 1.3.4 – Este é o objeto do trabalho, ou seja, o caminho que as garantias aos negócios empresariais encontram a partir da fidúcia do direito romano. O exame histórico dos institutos da “fiducia remancipacionis causa” e com fins especiais, “fiducia cum amico”, “fiducia cum creditore”, “pignus” e “hipotheca” do Direito Romano, “treuhander” do Direito Germânico e “use”, “trust” e “mortgage” do Direito Anglo-Saxão indicará o caminho que este instituto percorreu até ser recepcionado pelo nosso direito, como garantia dos negócios empresarias. Já o exame da situação de nosso atual sistema jurídico permitirá seguir o caminho que possibilitou o acoplamento da fidúcia à securitização. 1.4 – A tentativa de neutralização da “incerteza da jurisdição” 18 19 20 Art. 2º. A opção pelo regime especial de tributação de que trata o art. 1º será efetivada quando atendidos os seguintes requisitos: ... II – afetação do terreno e das acessões objeto da incorporação imobiliária, conforme disposto nos arts. 31-A a 31-E da Lei 4.591, de 16.12.64. – (Estes artigos 31-A e ss. foram introduzidos na Lei 4591/64 pelo art. 53 da Lei 10931/04). “Blindado” é usado aqui no sentido que lhe tem sido dado pelo jargão econômico, ou seja, significando patrimônio defendido de interferências externas ao próprio negócio que está sendo celebrado, no caso, ao próprio imóvel que está sendo construído. Houaiss (p. 469), sob o verbete “blindado”, anota o sentido metafórico da expressão como “que não é abalado por certos agentes ou ações; resguardado, protegido, defendido (alma blindada contra as paixões)”. Art. 136, § 1º, da Lei 11.101, de 9.2.05: “Na hipótese de securitização de créditos do devedor, não será declarada a ineficácia ou revogado o ato de cessão em prejuízo dos direitos dos portadores de valores mobiliários emitidos pelo securitizador”. 26 1.4.1– Um aspecto final ainda exigirá especial atenção. É que tanto a securitização quanto a segregação do patrimônio afetado, acoplados ainda à alienação fiduciária, são elementos fixados na lei para garantia do negócio feito como, aliás, vem sendo afirmado desde o início. No entanto, a Lei 9514/97 deu um passo adiante, ao tentar estabelecer garantia também contra a incerteza jurisdicional, prevendo uma forma de execução extrajudicial extremamente expedita. Na legislação brasileira, parece haver uma tendência que a cada dia mais se firma, no sentido de afastar da proteção jurisdicional, direitos que mais rapidamente serão satisfeitos por meios administrativos. Este afastamento da jurisdição é apresentado como colaboração para desafogar o Judiciário de questões que podem ser resolvidas sem a sua intervenção, preservando-o para os grandes problemas que exigem a efetiva decisão jurisdicional; presta assim a lei positiva, sua colaboração para que o crônico problema do excesso de trabalho exigido do Judiciário seja minorado. 1.4.2 – No entanto – e sem embargo da boa intenção anunciada –, há também outro aspecto subjacente a ser considerado de forma mais abrangente. Guiado pelos princípios que norteiam o pensamento da escola da análise econômica do direito, entende-se que a incerteza das decisões judiciais tem sido elemento de perturbação das relações de mercado e do próprio desenvolvimento da economia21. É certo que muitas vezes a decisão judicial coloca-se como entrave ao andamento de um negócio que teria grande interesse para o desenvolvimento da economia, da nação como um todo. Porém ao Judiciário compete exatamente encontrar o ponto de equilíbrio entre o direito das partes, sem que se possa pretender guiar sua decisão para que esta não venha a afetar interesses econômicos em andamento, se naquele caso especial o direito a ser preservado exigir o sacrifício de tal interesse econômico. 1.4.3 – Esta análise final que se pretende fazer parece oportuna porque, sem embargo da tentativa de “unificação” do direito comercial e do direito civil, ainda assim os empresários sentem especial necessidade de fixar limites para o risco do descumprimento dos contratos, risco que a cada dia mais se acentua com o direito do consumidor impondo-se como outro ramo a 21 Algumas críticas originam-se do próprio Judiciário, às vezes de sua cúpula dirigente. No jornal “Valor Econômico”, de 13.12.04, p. A-12, o Ministro Nelson Jobim prestou declaração dizendo que “a Justiça favorece a alta dos juros”, afirmando ainda que os juros apenas baixarão se “houver segurança do cumprimento de contratos”, pois “o sistema legal protege os devedores e, com isso, favorece os juros elevados”. 27 escapar da “unificação”, exigindo-se cada vez mais uma reacomodação dos conceitos anteriormente pacificados com os princípios do agora já esmaecido liberalismo do Século XIX. Entre as diversas consequências desta necessidade de nova acomodação, uma surge de forma acentuada, e diz respeito à necessidade que o empresário sente de que sejam criados mecanismos de defesa que propiciem o cumprimento do “feixe de contratos”, que é a própria razão de sua existência como empresário. Para o cumprimento destes contratos, o próprio empresário toma as medidas que estão ao seu alcance, todas de ordem econômica, pois sem tal cautela, o eventual descumprimento dos contratos pode levar a empresa à falência. Desta forma, prepara-se para a atividade empresarial com a projeção de todas as variáveis possíveis e com a pretensão de defender-se delas. No entanto, há variáveis que seriam “externalidades”, contra as quais muitas vezes, a atividade empresária não tem como se prevenir. 1.5 – O Direito como sistema de controle e a indeclinabilidade da jurisdição 1.5.1 – O tempo retirado ao trabalho normal do dia a dia e dedicado ao estudo – especialmente quando se trata de tese de pós-graduação em universidade púbica –, parece encontrar justificativa maior na exata medida em que pode propiciar a busca do aperfeiçoamento do meio social no qual se vive, preocupação recomendável na escolha do tema a examinar e no andamento das pesquisas a efetuar. O Direito, como sistema de ordenamento e controle das relações sociais, presta-se perfeitamente à satisfação deste postulado, sem embargo de se prestar também – e perigosamente –, ao trabalho puramente intelectual, distanciado da realidade e da solução de questões de maior interesse social. Evidentemente, não se cogita de criticar os trabalhos que examinam os grandes espectros intelectuais e filosóficos que norteiam o pensamento jurídico, imprescindíveis para o aperfeiçoamento do conhecimento humano; o que se pretende evitar é o esforço investido no trabalho que se descompromissa com a pessoa humana, distanciamento para o qual o estudioso sempre deve estar atento. Atento à máxima kantiana de que o homem é o centro do universo, recorde-se, com Oñate, que a ciência do direito serve ao indivíduo no seu relacionamento do dia a dia com as pessoas e as coisas, não devendo ser erigido a meio de gáudio intelectual, para mero objeto de especulação e sistematização, distanciada ou mesmo divorciada da realidade prática da vida humana. O questionamento ainda mais se justifica quando se recorda que, ao invés de objeto de especulação e sistematização, o direito deve servir à vida e 28 aos indivíduos em seu relacionamento cotidiano, possibilitando “la certeza de la vida social, garantizando la calificación de los comportamientos possibles”22. 1.5.2 – Este necessário apego à concretude mais se justifica quando se constata que, na realidade, o direito é um sistema de controle social. Como anota Tércio Sampaio Ferraz Jr., a partir de determinado ponto do pensamento não interessa discutir se o direito é sistema de controle; assume-se que é instrumento de controle social e, a partir de tal admissão, passa-se em seguida ao exame de como se exerce este controle. Diz o autor23: “Mantemos, por isso, a ideia diretriz que comanda nossa exposição, qual seja, de que o pensamento jurídico é um pensamento tecnológico específico, voltado para o problema da decidibilidade normativa de conflitos. Nestes termos, o modelo empírico deve ser entendido não como descrição do direito como realidade social, mas como investigação dos instrumentos jurídicos de e para controle do comportamento. Não se trata de saber se o direito é um sistema de controle, mas, assumindo-se que ele o seja, como devemos fazer para exercer este controle”. Esta questão assume aqui fundamental importância, para que se possa tentar fixar que tipo de controle é necessário para o ordenamento dos negócios empresariais; ou seja, até que ponto o controle (incluindo-se aí o mais direto controle, ou seja, o jurisdicional) pode ser exercido como forma de incremento da vida empresarial e de que forma estes controles podem opor barreiras profundamente prejudiciais ao bom andamento dos negócios. Sem que se entre em maiores perquirições, evidentemente, quando se fala em controle dos negócios empresariais, fala-se, por extensão natural, em controle sobre o mercado como um todo. Rachel Sztajn observa que a organização e o controle da atividade empresarial diz respeito diretamente ao mercado e aos contratos, envolvendo24 “... diferentes e importantes interesses que devem ser objeto de tutela. ... Não se estranha que mercados sejam considerados fundamentais para o desenvolvimento da economia, nem devem ser ignorados os conflitos que aparecem nas relações em mercados que têm ligação com a diversidade de interesses que neles se manifestam: políticos, econômicos, sociais”. 1.5.3 – Supera-se aqui a questão relativa à escolha do tema a ser examinado, questão de fundamental importância em qualquer trabalho de 22 23 24 Oñate, p. 75. Ferraz Jr., “A Ciência do Direito”, p. 23. Sztajn, “Teoria Jurídica da Empresa”, p. 174. 29 análise da realidade externa. Carnelutti25 fala sobre a extensão da realidade, sobre a infinitude do conhecimento, observando que quanto mais se avança no conhecimento, mais a realidade se apresenta com novos objetos de estudo, constatando então que a realidade ultrapassa a possibilidade humana de percepção, de tal forma que quanto mais se avança no processo do conhecimento, mais o objeto do conhecimento se expande, adiante, atrás, ao nosso lado. Ainda segundo Carnelutti, se não podemos pensar o infinito, pelo menos fiquemos alertas para o fato de que a realidade ultrapassa o nosso pensamento, de tal sorte que “se nos falta, em verdade, a compreensão do infinito, compreendemos, no entanto a insuficiência do finito para compreender a realidade”. Se de um lado a infinitude do conhecimento exige o cuidado de delimitar o ponto a ser objeto de exame, de outro surge o cuidado lembrado por Marchi26 de que, ao mesmo tempo em que se evitam temas por demais amplos, ao mesmo tempo não se pode perder de vista a busca de “certa” originalidade. 1.5.4 – Delimitado o campo ao exame das garantias dos negócios empresariais com fundamento na fidúcia, vai se caminhar até o estudo da securitização para, como ponto final, tentar verificar quais elementos existentes no sistema jurídico brasileiro atual, indicam a busca de garantia também contra a incerteza da jurisdição, vendo nesta um fator externo de insegurança. Esta externalidade, que interessa diretamente ao campo do direito, decorre do próprio texto da lei, em um primeiro momento que poderíamos chamar “momento legislativo”; a outra, na sequência, é a que decorre da atividade jurisdicional, ou seja, da aplicação da lei a cada caso concreto, com formação de jurisprudência em determinado sentido, jurisprudência cuja pacificação demanda tempo. Este especial aspecto, para fins de exame da segurança que o empresário espera para sua atuação no mercado, será aqui levado em consideração; tomar-se-á como exemplo tópico – e apenas para exame de caso que hoje bem retrata a situação de forma que deverá se apresentar paradigmática –, as Leis 9514/97 e 10931/04, que criaram a alienação fiduciária sobre imóveis e cujos primeiros casos estão chegando agora aos Tribunais. 25 26 Carnelutti, “Teoria Geral do Direito”, p. 28. Marchi, “Guia de Metodologia Jurídica”, p. 61. 30 1.5.5 – Esta tentativa de afastamento da instabilidade da jurisdição não é nova e apenas tomam-se as leis acima indicadas como paradigma de exame, porque guardam relação direta com o exame central do estudo, ou seja, a garantia fiduciária. Este sentimento de que a decisão judicial é um estorvo para a atividade econômica vem sendo cultivado pelo meio financeiro, que vê no desenvolvimento econômico a qualquer custo, o próprio bem comum que o direito persegue. É possível enumerar iniciativas do Legislativo que pretendem afastar a decisão econômica da atividade jurisdicional. Entre tais exemplos, pode-se lembrar, já perdido no tempo, o Decreto-lei 70/66, com sua até hoje não resolvida execução extrajudicial; o Decreto-lei 911/69, com a venda extrajudicial do bem buscado e apreendido judicialmente; ou ainda com a resistência judicial à previsão de direito positivo de prisão do fiduciante que não apresenta o bem a ser apreendido; a Lei 10820, de 17.12.03, que permite verdadeira execução extrajudicial direta e definitiva sobre verbas recebidas a título de salário, retiradas da conta corrente na qual são feitos os créditos salariais do devedor; o Decreto 4961, de 20.1.04, que regulamenta o artigo 45 da Lei 8112, de 11.12.90, para permitir o desconto na conta corrente salarial do servidor público civil da União; a Lei 8437/92, que tenta limitar ou impedir medida liminar contra atos do Poder Público; a Emenda Constitucional nº 45, promulgada em 8.12.04 e publicada no DOU de 31.12.04, estabelecendo súmula de caráter vinculante para os juízes das instâncias inferiores; a recuperação extrajudicial, portanto fora do poder jurisdicional, prevista nos artigos 161 a 167 da nova Lei de Recuperação de Empresas e Falência; e, objeto parcial do presente trabalho, a Lei 9514/97 e a recentíssima Lei 10931/04, que versam sobre execução extrajudicial de imóvel alienado fiduciariamente em garantia do pagamento das prestações estabelecidas contratualmente. 1.5.6 – Evidentemente, o teste final do funcionamento da lei ocorre no momento de sua aplicação, quando então se verá efetivamente qual é a interferência de sua letra no mundo exterior. Por isto, na busca do afastamento da incerteza jurisdicional, não bastam leis que levem a isto, é necessário que se acompanhe a aplicação da lei. O que intuitivamente se pergunta é até que ponto a súmula de natureza vinculante, introduzida pela Emenda Constitucional nº 45 poderá interferir na decisão monocrática de 31 cada juiz. Relembre-se com Maximiliano27 que a tentativa de tornar o juiz um mero homologador do que se pretendeu fixar na lei não tem surtido o êxito desejado: “A tendência racional para reduzir o juiz a uma função puramente automática, apesar da infinita diversidade dos casos submetidos ao seu diagnóstico, tem sempre e por toda a parte soçobrada ante a fecundidade da prática judicial. O juiz, esse ente inanimado, de que falava Montesquieu, tem sido na realidade a alma do progresso jurídico, o artífice laborioso do Direito novo contra as fórmulas caducas do Direito tradicional”. Com este exame, com a busca das respostas às questões levantadas, e com o exame do caminho que levou a garantia fiduciária a desembocar no sistema de alienação fiduciária acoplada à securitização e ao patrimônio de afetação, vai se tentar avaliar a eficiência do sistema de garantias. No entanto, a mais eficaz e justa forma de afastamento da jurisdição será atingida no momento em que as próprias partes perceberem que o pedido de socorro jurisdicional pode ser dispensado, porque o resultado final do processo não concederá nem mais nem menos do que aquilo que está sendo oferecido desde logo, independentemente de qualquer decisão jurisdicional. 27 Maximiliano, p. 39. 33 II – EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA FIDÚCIA ROMANA; A FIDÚCIA EM OUTROS SISTEMAS DE DIREITO 2.1 – Direito Romano 2.1.1 – Origem histórica da fidúcia 2.1.1.1 – Fidúcia (do latim fiducia-ae, substantivo feminino da 1ª declinação e do verbo fido-is-ere, fisus sum, respectivamente “confiança” e “confiar, ter confiança”), tem por significado a própria confiança. Na terminologia original do Direito Romano, significava a venda (fictícia) que se fazia ao credor, com a condição de que esta viesse a ser desfeita, devolvendo-se o bem ao devedor quando este viesse a pagar a dívida. Na “Lei das XII Tábuas”, ou “Legis XII Tabularum” ou ainda “Lex Decenviralis”, de 451 a.C., no período da Alta República, considerada pelo historiador Tito Lívio como a “fons omnis publici privatique juris”, a primeira estipulação da Tábua VI - I (Do Direito de Propriedade e da Posse) seria a fonte do negócio fiduciário ao dizer: “Quum nexum faciet mancipiumque, uti lingua nuncupassit, ita jus esto”28. Não há, porém sequer segurança sobre realmente quais seriam os termos da Tábua VI – I, como se pode comparar da tradução apresentada por Vicenzo Raguza e por Sílvio A . B. Meira, por exemplo29. De qualquer forma, e sem embargo da imprecisão histórica que o tempo muitas vezes impõe, a fidúcia era um negócio jurídico que tinha por fundamento a confiança, aspecto sobre o qual os autores não divergem. 2.1.1.2 – Para a imprecisão histórica sobre o surgimento do negócio fiduciário no mundo romano, colaboraram vários fatores. Em primeiro lugar, o agrupamento humano primitivo guia-se por regras que, embora tragam certa dose de coação de natureza religiosa ou moral, ainda assim 28 29 Esta versão é trazida por Otto de Souza Lima (p. 11), que anota que, na tradução de Vicenzo Ragusa (Le XII Tavole), significaria: “será lei entre as partes, quando sejam cumpridas as solenes formalidades verbais prescritas para assumir uma obrigação (nexum) ou para transferir a propriedade de uma coisa”. O texto traduzido, apresentado por Meira, p. 92, é: “Se alguém empenha a sua coisa ou vende em presença de testemunhas, o que prometeu tem força de lei”. 34 não se configuram como regras jurídicas. Não se pode sequer falar em uma estrutura de poder, havendo mais uma colaboração de natureza familiar ou tribal, sem embargo de mesmo a sociedade mais rudimentar fazer com que brotem regras para a convivência humana, fato reconhecido no brocardo “ubi societas, ibi jus”. A sociedade primitiva não necessitava também de regras jurídicas coercitivas, pois as regras de convivência – e o direito nada mais é do que a ciência da convivência, como afirma Gofredo – são respeitadas a partir de uma obrigatoriedade de fundo moral e religioso, do qual nasce a disposição espontânea para o cumprimento daquilo que é tido como forma correta de conduta ante os demais componentes da tribo. Não há necessidade de se distinguir o direito da moral ou da religião, o que se apresenta apenas em um estágio mais desenvolvido do agrupamento social. No princípio, o próprio pensamento romano considera o direito como “ars boni et aequi”, entendimento que só vem a ser aperfeiçoado após longa evolução, quando se definem os campos e se constata que “non omne quod licet honestum est”. Nascendo o instituto do simples uso da tribo primitiva, impossível fica fixar o momento de seu surgimento. Sousa Lima ressalta bem este aspecto, dizendo que “a fidúcia, fundada sobretudo na lealdade e na confiança foi, de início, uma convenção, ligada a um ato solene, constituindo uma cláusula secreta que, por isso mesmo, em sua origem, foi desprovida de qualquer sanção legal. Não há dúvida, portanto, que, nestas condições, difícil, ou mesmo impossível, será determinar-lhe, no tempo, a origem”. Longo30 anota que “Le informazioni que possediamo circa la fiducia non sono nel loro complesso abbondanti e sopra tutto hanna carattere framentario. Una trattazione, sia pure elementare come quelle che Gaio dà di tanti instituti, non ci è pervenuta da nessuna parte per la fiducia”. 2.1.1.3 – No entanto, no caso da fidúcia, não só esta falta de registro do uso da sociedade primitiva é causa de dificuldade para a perfeita fixação de suas origens. Outro fato histórico de absoluta relevância interferiu para que mais dificuldades se apresentassem. Por determinação do Imperador Justiniano, em 529 foi terminado o trabalho de coleção das leis promulgadas pelos imperadores, publicada sob o título de “Codex”. No ano seguinte, Justiniano encarregou Triboniano de selecionar as obras dos jurisconsultos clássicos que, dirigindo comissão nomeada para tanto, confeccionou o “Digesto” ou “Pandectas”, com cinquenta livros, reunindo partes de dois 30 Longo, p. 8. 35 mil livros clássicos. Os que se dedicaram a tal empreitada sob a direção de Triboniano foram autorizados por Justiniano31 a efetuar as alterações que fossem necessárias, para adaptar os textos recolhidos aos novos costumes então existentes em seu império, alterações que então foram chamadas de “Emblemata Triboniani”, hoje conhecidas como interpolações. A fidúcia, por se tratar de instituto que na época de Justiniano estava em desuso, foi especialmente objeto de interpolações, de tal forma que a reconstituição de suas origens sofre também severas restrições a partir de tal fato. Anota Alexandre Correia32 que “no direito justinianeu, desaparece a fidúcia, sendo as consequências jurídicas do penhor e da hipoteca as mesmas; mas ao passo que no penhor a posse passa ao credor, na hipoteca tal não se dá”. Anote-se apenas que as consequências não são exatamente as mesmas, pois a fidúcia transfere a própria propriedade do bem, enquanto a hipoteca e o penhor dizem respeito à posse. Conforme anota Sousa Lima, a fidúcia entrou em desuso, até desaparecer de vez pela obra de Justiniano. Diz Longo33 que “la fiducia si è perpetuata viva e vitale durante tutta l’epoca classica del diritto romano. ... Quanto all’etá postclassica, non v’é motivo di dubitare che il negozio fiduciario abbia continuato da principio ad essere praticato: ... ... Ma la fiducia, in prosieguo di tempo, col decadere dei due modi formali di trasferimento del domínio ai quali era legata (la mancipatio e la in iure cessio) ha dovuto necessariamente andare grado a grado in desutudine”. Pietro Bonfante também anota que a fidúcia34 “... costituiva un negozio di vasta aplicazione e di grande interesse nel diritto classico ... ma nel diritto giustinianeo essa è abolita”. 2.1.1.4 – É do clássico de Sousa Lima35 a observação que aponta o acréscimo desta dificuldade no estudo das origens da fidúcia: “Por fim, cumpre salientar que os compiladores do ‘Corpus Juris’ procuraram, de todos os meios e por todos os modos, excluir, por completo, da codificação, todos os 31 32 33 34 35 Meira (p.198) transcreve a autorização de Justiniano expedida na Constituição “Deo Auctore” (De conceptione digestorum) para as interpolações, do ano 530: “Desejamos que se encontrardes nos antigos livros alguma coisa que deve ser eliminado, supérfluo ou imperfeito, tenhais o cuidado, depois de haverdes suprimido as inutilidades e suprido as lacunas, de apresentar a obra com um conjunto harmonioso e perfeito. Observai também que nas velhas leis e nas velhas constituições que os antigos compilaram em seus livros, encontrareis algo inconveniente, o que deveis reformar e colocar em boa ordem, de forma que o que tiverdes colecionado e redigido é que será considerado perfeito e melhor, como se se tratasse da própria redação original; e que ninguém ouse, ao fazer comparação com a obra de que foi extraído, considerar imperfeito o novo texto”. Correia, p. 154. Longo, p. 163. Bonfante, “Istituzioni...”, p. 325. Lima, p. 11. 36 vestígios ou traços da fidúcia. Fizeram-no por interpolações, que só poderão ser apontadas através de indícios muitas vezes pouco seguros, de modo que se torna impossível uma conclusão absolutamente segura e certa”. No entanto, e este pensamento também é compartilhado por Sousa Lima, a profusão de indícios é suficiente para que a maioria dos estudiosos fixe o nascimento da fidúcia em período anterior à Lei das XII Tábuas, sem embargo da discussão que sobre este ponto se estabeleceu entre Accarias e Jacquelin, o segundo autor afirmando que a fidúcia teria se originado exatamente com a Lei das XII Tábuas, o primeiro defendendo o mesmo ponto de vista adotado por Sousa Lima. C. Accarias examina as formas usadas para a fidúcia, ou seja, a mancipatio e a in iure cessio para, admitindo que o tempo torna imprecisas afirmações peremptórias sobre datas, ainda assim dizer36: “Il est impossible de dire à quelle époque ces deux formes d’aliénation s’introduisirent. Mas sans aucun doute l’une et l’autre étaient déjà reconnues par la loi des Douze Tables (Fr. Vat., § 50); et certainement aussi elles se maintinerent jusqu’à Justinien, mais il n’em est plus question dan la législation de ce prince”. Jacquelin contesta Accarias, entendendo que este teria feito confusão entre o aparecimento da actio fiduciae e a própria fiducia cum amico, chegando, porém a conclusão que em termos de tempo, não chega a se distanciar, pelo menos de forma acentuada, daquele encontrado por Accarias, dizendo37: “Dès lors on peut dire que la fiducie elle-même est certainement antérieure au Vº siècle de Rome, et qu’elle date au moins du IVº; peut-être mème est-il parmi de hasarder l’opinion qu’elle était dejà em usage des l’époque de la loi des Douze Tables”. 2.1.1.5 – Em sua origem, o negócio fiduciário apresentou-se sob as duas formas clássicas que persistiram até Justiniamo. Uma delas foi a “fiducia cum amico”, aperfeiçoando-se com a transferência de uma propriedade a um amigo, para que este a mantivesse em sua propriedade, até quando fosse pedida em restituição. A segunda modalidade, que interessa diretamente ao estudo do contrato fiduciário futuro, era a “fiducia cum creditore”; nesta, o devedor transferia a propriedade do bem ao credor, especificamente para a garantia de uma dívida, assumindo o credor o compromisso de devolver a propriedade ao devedor, tão logo fosse feito o pagamento da dívida. Observe-se que o transmitente do bem perdia sua propriedade e aguardava, pela confiança 36 37 Accarias, p. 570. Jacquelin, p. 25. 37 que depositava no outro contratante, o cumprimento do prometido por este outro, que se tornava o efetivo titular do direito em questão, acordo com natureza aparente de gratuidade e com fundamento na boa fé. Na fidúcia do Direito Romano o poder do fiduciário era ilimitado relativamente ao bem, vez que se tornava proprietário dele, sem qualquer limitação. Ao fiduciante apenas restava confiar no fiduciário, pois se este se negasse à devolução do bem, aquele poderia valer-se apenas de medidas de ordem pessoal contra o credor que descumprisse a obrigação, sem qualquer possibilidade de atingir o bem, que estaria nas mãos do terceiro para o qual foi transmitido pelo fiduciário, que detinha de forma plena, todos os poderes da propriedade. Houve várias outras modalidades, como a “fiducia remancipationis causa”, venda fictícia de um filho feita por um “pater” a outro “pater familiae” para que este, em cumprimento à obrigação assumida, o libertasse, propiciando assim, de forma indireta, a emancipação, tendo permanecido, porém em evidência a fidúcia “cum creditore”. Na “Enciclopédia”, organizada por Mancini38 consta a observação do uso que se faz do direito do “pater familiae” de vender o filho, com o fito de emancipá-lo, sem os prejuízos decorrentes da emancipação, “... per cui il potere che al padre appartiene, di vendere il proprio figli, viene a convertir-se in un espediente per libertalo dalla pátria potestà”. 2.1.1.6 – Portanto, característica comum a qualquer das modalidades de fidúcia existentes no período romano, sempre foi a efetiva transferência da propriedade pelo fiduciante, assumindo o fiduciário a obrigação de devolver o bem após preenchida determinada condição ou satisfeita obrigação assumida, ou de dar ao bem a destinação acordada. O negócio fiduciário é assim composto por dois elementos essenciais, sem os quais não estará caracterizado: de um lado, o elemento real consistente na efetiva transferência da propriedade do bem, em decorrência do qual o fiduciário passa a exercer de forma plena todos os atributos inerentes à condição de proprietário, podendo até alienar o bem a terceiro e, em tal caso, restando ao fiduciante apenas a ação pessoal contra aquele. De outro lado, e sem prejuízo da plenitude da transferência da propriedade, compõe-se também o negócio fiduciário do elemento obrigacional, mediante o qual o fiduciário obrigava-se a devolver a coisa ao outro contratante na ocorrência do evento resolutivo previsto ou obrigavase a dar ao bem transferido a destinação adrede combinada entre as partes. 38 Mancini, p. 769. 38 Portanto, a fidúcia surge com uma dupla característica, a real e a obrigacional. 2.1.1.7 – A fidúcia se realizava pela mancipatio e pela in iure cessio, duas formas solenes de transmissão da propriedade no direito romano, institutos que operavam a transferência de direito real, com plena, absoluta e irrestrita outorga ao adquirente de todos os direitos decorrentes da propriedade real do bem. Como anota Sousa Lima39, a transferência em tal condição não era temporária nem subordinada a qualquer condição, embora o fiduciário assumisse obrigação de restituição futura, desde que ocorrido determinado fato; no entanto, se houvesse descumprimento desta obrigação por parte do fiduciário, a pendência seria resolvida apenas no campo do descumprimento das obrigações, sem que fosse afetada, de qualquer forma, a transmissão de direito real que havia se operado de forma plena. 2.1.1.8 – A mancipatio, também conhecida como imaginaria venditio, era forma solene de transmissão da propriedade, que se aperfeiçoava independentemente da causa da alienação. Embora se apresentasse como uma compra e venda, o preço era apenas simbólico, não correspondendo ao valor da coisa. A propósito deste ponto, Longo, descrevendo a solenidade, diz que o pagamento simbólico era feito pela entrega de uma barra de bronze, com a qual o adquirente havia tocado a balança empunhada por uma testemunha. Descreve assim a solenidade 40: “doveva percuotere col metallo la bilancia e dar il pezzo di rami all’alienante ‘quase pretii loco’. A questo pagamento meramente simbolico corrispondeva nel contesto dell’atto l’indicazione di um prezzo di vendita meramente figurativi, il ‘sestercius nummus unus’”. Realizava-se na presença de seis testemunhas, todos cidadãos romanos púberes, uma das testemunhas encarregada de empunhar a balança que seria tocada com a barra de bronze que simbolizava o preço da venda fictícia que então se aperfeiçoava. 2.1.1.9 – Da mesma forma que a mancipatio, também a in iure cessio era forma solene de transmissão da propriedade que porém, ao invés de na presença de testemunhas, ocorria in iure, na presença do magistrado. Também como na mancipatio, esta cessio era apta para operar a transferência da propriedade de um bem, processando-se por meio de uma reivindicação fictícia, portanto com o mesmo caráter de abstração daquela. As partes, 39 40 Lima, p. 46. Longo, p. 6. 39 adrede acordadas, compareciam à presença do magistrado e aquele a quem a propriedade deveria ser transferida, reivindicava-a, pronunciando a fórmula hunc hominem meum esse aio. O proprietário também presente mantinha-se calado e, na sequência, o magistrado atribuía à propriedade do bem àquele que a estava reivindicando. É também de Longo a observação41: “Quanto alla in iure cessio, essa aveva la forma esteriore di una legis actio, cioè di uma azione di rivendicazione, la quale però si concludeva in iure, dinanzi al magistrato”. Também o autor anota que na “mancipatio la causa apparente era fittizia” e que igualmente na in iure cessio também ocorria “una rivendicazione fittizia”. Portanto, aquele que pretendesse efetuar a transferência do bem para fins de fidúcia, poderia valer-se tanto da mancipatio quanto da in iure cessio. 2.1.1.10 – Além das diferenças de forma, Alexandre Correia rememora que a mancipatio apenas se prestava à transferência de propriedade de res mancipi, enquanto a in iure cessio prestava-se “para a transferência, quer duma ‘res mancipi’, quer duma res ‘nec mancipi’”, anotando ainda que “é a única forma de transferência para coisas incorpóreas (iura) para as quais não é possível a ‘mancipatio’”42. Este mesmo autor esclarece quais são os bens mancipi, quais os nec mancipi43, anotando como res mancipi os imóveis no solo itálico, escravos e animais de tiro e carga e as servidões rústicas mais antigas, (iter, actus, via, aquaeductus), sendo nec mancipi todas as demais, incluindo-se também as obrigações. Da própria essência do negócio fiduciário é a obrigação de devolução do bem transmitido, quando preenchido o fim ao qual o negócio se destinava, devolução que era feita da mesma forma solene pela qual havia se constituído, sendo obrigatória nova mancipatio ou in iure cessio. 2.1.1.11 – Relembrados assim os aspectos históricos que cercam o surgimento do instituto da fidúcia no direito romano, impõe-se examinar agora cada um dos dois tipos de negócios fiduciários mais comuns então existentes, quais sejam: a fidúcia cum creditore e a fidúcia cum amico. Antes, porém – e apenas à guisa de encerramento desta parte da exposição –, tornase oportuna a transcrição de uma das mais acatadas definições para a fidúcia, de Carlo Longo, que diz44: “Esso può definirse così: un negozio giuridico, per 41 42 43 44 Longo, p. 6. Correia, p. 138. Correia, p. 50. Longo, p. 5. 40 cui una delle parti, ricevendo dall’altra una cosa mediante la ‘mancipatio’ o la ‘in iure cessio’, si obbliga com apposita convenzione a restituirla al trasferente, ovvero a spogliarsea per darle una determinata destinazione”. 2.1.2 – Tipos diversos de fidúcia 2.1.2.1 – Nos dias atuais, o negócio fiduciário ganha cada vez maior destaque, como sistema que propicia formas eficazes de garantia aos contratos empresariais, sendo determinantes o seu aspecto econômico e a sua importância como substituto de garantias reais (v.g., penhor, hipoteca) que, aos poucos, foram perdendo credibilidade, ante a extrema dificuldade para execução da garantia, isto se superadas as preferências, especialmente de origem trabalhista e tributária, que aos poucos foram se sobrepondo às garantias reais tradicionais. 2.1.2.2 – No entanto, em suas primeiras manifestações no direito romano do qual é originária, a fidúcia destinava-se a solucionar aspecto atinente a relações de família, apresentando-se como um pacto mediante o qual um pater familiae vendia seu filho a outro pater familiae, este último assumindo a obrigação de libertá-lo, com o que se chegava ao resultado desejado, ou seja, a emancipação do filius familiae. Embora sem a conotação exclusivamente econômica que hoje dirige os negócios fiduciários, já se verifica que logo em seu início, a fidúcia surge para suprir falhas do sistema jurídico, valendo-se as partes de um ato (venda do filho) para atingir fim diverso (emancipação). Messina45 anota estes usos diversos para os quais vai se prestando a fidúcia, dizendo: “Lo stesso dicasi dell’emancipatio e, per quanto com essa coincide, dell’adoptio. Qui delle ‘mancipacionis’ del figlio del famiglia Paolo ci dice che consistono in un ‘deduci in imaginariam servilem conditionem’”. Tal característica mantida através dos séculos e até hoje componente marcante do negócio fiduciário, possibilita a transferência da propriedade do bem não com a intenção de aliená-lo efetivamente e sim, com o intuito de constituir uma das mais eficazes formas de garantia conhecidas no direito contemporâneo nos dias atuais, destinado a uso exclusivamente de natureza econômica e negocial, porém com sua origem também ligada à solução de relações familiares. 45 Messina, p. 132. 41 2.1.2.3 – Aliás, é curioso observar que este deslocamento de finalidade, ou seja, alterar-se a finalidade inicialmente perseguida, de natureza familiar para passar a perseguir uma finalidade econômica, ocorre em diversos institutos do direito romano. Alexandre Correia46, falando sobre a sucessão testamentária no primitivo direito romano, lembra que na mancipatio familiae o testador nomeia o herdeiro em solenidade com a presença do emptor familiae, ou seja, aquele que está comprando o patrimônio familiar, aduzindo que “isto revela talvez a primeira e original invasão do espírito patrimonial na instituição do testamento, invasão que, como veremos, assumirá grande importância no ulterior desenvolvimento da sucessão hereditária”. Mutatis mutandis, é a mesma invasão que o espírito patrimonial efetua também sobre a fidúcia remancipationis causa, de tal forma que desaparecida esta, permanece a fidúcia com fins exclusivamente de natureza econômica. 2.1.2.4 – Longo fala sobre as outras aplicações às quais se prestou o instituto da fidúcia, além de se destinar a formalizar uma garantia real a ser dada ao credor. Anota este autor que a tese defendida durante muito tempo com fundamento em Heck, segundo a qual a fidúcia cum creditore era a única aplicação de tal instituto, foi afastada pelos estudos críticos posteriores, que identificaram perfeitamente a fidúcia cum amico. Longo lembra a situação na qual o escravo entregue em penhor vem a praticar furto contra o credor pignoratício, situação em que o proprietário original poderia liberar-se da responsabilidade, entregando o escravo ao credor. Examinando texto recuperado47, Longo48 diz que “la prima parte del texto, allo stato attuale parla del furto commesso da uno schiavo dato a pegno a danno del creditore pegnoratizio, e decide que il debitore può liberarsi da responsabilità abbandonando al creditore il servo ‘pro noxae deditione’. Ora, questo sostitutivo della ‘noxae deditio’ non è spiegabile in un rapporto di pegno, perchè il debitore resta proprietario e il creditore non ha che il possesso, e quindi sarebbe possibilissimo che il primo operasse la normale ‘noxae deditio’ al secondo mancipandogli all’uopo lo schiavo”. Completa Longo o pensamento, dizendo que em tal caso o texto está se 46 47 48 Correia, p. 232. “Dig. 13, 7, 31 (Africano) Si servus fiduciae (pignori, Dig.) datus creditori furtum faciat, liberum est debitori servum pro noxae deditione relinquere... ... Eadem servando esse Julianus ait cum servus fiduciae causa amico mancipatus (depositus vel comodatus servus, Dig.) furtum faciat”. Longo, p. 149. 42 referindo a um escravo que foi entregue em fidúcia cum creditore, o que se conclui do exame da primeira parte. Já na segunda parte, anota Longo, “questa non può essere que la fidúcia cum amico di cui Gaio parla accanto aquella cum creditore”. 2.1.3 – Fidúcia cum amico 2.1.3.1 – Na fidúcia cum amico, como indica o próprio nome dado ao instituto, não havia, em princípio, obrigação econômica subjacente, tratandose apenas de medida que transferia o bem a um amigo, para que este o mantivesse íntegro e em lugar seguro, até que as condições que aconselharam tal cuidado viessem a desaparecer, quanto então o bem seria devolvido ao proprietário original. Desta forma, a fidúcia cum amico tinha finalidade diversa da fidúcia cum creditore, esta destinada à garantia do pagamento de dívida contraída. Há corrente que sustenta que ambos os tipos tinham a mesma finalidade de garantia, afirmando que a fidúcia cum amico apenas tinha como diferencial o fato de ser celebrada entre o devedor fiduciante e o “amigo” fiduciário que assumia então a obrigação de pagar a um terceiro o débito que o fiduciante havia assumido. Sousa Lima49, citando Emílio Costa, anota que Heck era um dos defensores de tal ponto de vista que, no entanto, não logrou aceitação entre os estudiosos, prevalecendo o entendimento no sentido de que os dois tipos de fidúcia eram conhecidos dos romanos que os destinavam a finalidades diversas e perfeitamente delimitadas. 2.1.3.2 – Em um primeiro momento, ou melhor dito, entre as primeiras razões que levaram ao uso da transferência fiduciária, está a tentativa de suprir a insuficiência da lei que, em sua origem, não conhecia a transferência temporária da propriedade, a transferência ad tempus. Por tal razão, aquele que quisesse fazer o empréstimo de um bem a um amigo, valia-se da fidúcia cum amico que substituía assim a figura ainda desconhecida do comodato. No entanto, mesmo depois de introduzido no direito romano o comodato, ainda assim coexistiram durante determinado tempo ambos os institutos, com a mesma finalidade de empréstimo gratuito ao amigo. Disto dá notícia Franco Pastori50 que anota “che la fiducia cum amico e il commodato abbiano per um certo período consentito ai privati di perseguire scopi paralleli. In un primo 49 50 Lima, p. 70. Franco Pastori, apud Lima, p. 73. 43 tempo, accanto al negozio fiduciario, che veniva usato per il trasferimento di cose socialmente rilevanti, in particolare imobili, per scopi svariati, non escluso quello di consentire il prestito d’uso gratuito, vi era, al di fuori di ogni considerazione giuridica, la prassi di concedere cose di limitata relevanza sociale, abitualmente mobili, in prestito di uso gratuito. In um secondo tempo, in seguito all’intervento del diritto nella regolamentazione di quela prassi, se ebbe la coesistenza di due rapporti parelleli, i quali, pur com struttura diversa e indipendente, potevano praticamente adempire ad analoghe finalità; accanto alla fiducia cum amico si pose il commodato”. Durante esta fase de coexistência, sem embargo das funções assemelhadas, a fidúcia destinava-se ao empréstimo de imóveis, enquanto o comodato era instituto destinado ao empréstimo de coisas móveis. 2.1.3.3 – Embora incidentalmente a fidúcia cum amico tenha se prestado a servir à finalidade do comodato, atuou mais propriamente como forma para assegurar a defesa de um bem de propriedade de uma pessoa em condições de debilidade social, política ou com qualquer outra origem, por outra pessoa em situação de maior força. Esta segunda pessoa, o fiduciário, seria o amigo que, adquirindo a propriedade do bem pela fidúcia, poderia melhor manter sua defesa em casos como de guerra, perseguições políticas, lutas internas, enfim, qualquer situação que pudesse trazer dificuldade ao fiduciante de manter a integridade do bem de sua propriedade. Superadas estas condições adversas, voltando as coisas à normalidade do dia a dia, o bem seria devolvido ao fiduciante da forma como havia sido entregue. Como diz Fransceschelli51 tratava-se de “... trasferimenti fatti, in condizioni politicamente malsicure o incerte (guerre, razzie, lotte intestine, ecc.), da persona deboli, o incapaci di difendere le proprie sostanze, o compromesse, ad individui aventi uma posizione sociale e política tale da poter assicurare e garantire la difesa e l’integrità dei beni trasferiti”. Esta seria uma função da fidúcia cum amico que se poderia dizer de origem social ou política. 2.1.3.4 – Prestava-se também a fidúcia cum amico a um fim de natureza precipuamente jurídica, ou seja, a transferência do bem para um amigo, em caso de ameaça jurídica ao bem, por meio de uma ação ou algum tipo de expropriação. Novamente Franscescelli é que anota que, neste caso “viene invece in primo piano un elemento piu schiettamente giuridico, e sta ad indicare 51 Franceschelli, p. 521. 44 i trasferimenti fatti in occasione per es. di una lite o di una espropriazione, per salvare il proprie sostanze dalle conseguenze di tali avvenimenti, fornecendo al fiduciario il mezzo piú forte, energico e sicuro (la proprietá) per difenderle”. 2.1.3.5 – Como visto acima, durante algum tempo a fidúcia cum amico prestou-se a fazer às vezes do contrato de comodato. Não só deste; também por deficiência do direito romano, a fidúcia cum amico prestava-se também a substituir o contrato de depósito. Não era incomum, nos tempos políticos agitados que se sucediam, ver-se alguém de posses, obrigado a abandonar a cidade ou mesmo a região na qual exercia suas atividades, muitas vezes às pressas, sem tempo para maiores disposições sobre seus bens. Em tais casos, valia-se a pessoa da fidúcia cum amico, transferindo seus bens para um terceiro, até que as mudanças no meio social permitissem sua volta, quando então receberia de volta os bens que havia transferido fiduciariamente. 2.1.3.6 – Enfim, do exame do que se tem conseguido coletar sobre a fidúcia romana, resulta claro que a fidúcia cum amico manteve características de favor prestado por um amigo a outro em situação que constituía perigo para a defesa ou conservação do bem. Não havia neste tipo de fidúcia qualquer dívida contraída entre as partes, ao contrário do que ocorre na fidúcia cum creditore, cuja formalização tinha por objetivo exatamente garantir com a transferência, o pagamento de uma dívida, sempre fxando-se a estipulação de que o bem deveria voltar ao patrimônio do fiduciante, quando e se houvesse o pagamento do débito contraído. 2.1.4 – Fidúcia cum creditore, pignus e hipotheca 2.1.4.1 – Alexandre Correia cataloga a “fiducia cum creditore” entre as três formas sucessivas de garantias reais existentes no Direito Romano, seguindo-se-lhe os institutos do “pignus” e da “hypotheca”. Anota que52 “No desenvolvimento do direito romano há três formas sucessivas de garantias reais: ‘fiducia cum creditore, pignus, hypotheca’. A ‘fiducia cum creditore’ consistia numa ‘mancipatio’ pela qual o devedor transferia ao credor a propriedade duma coisa, com o pacto (pactum fiduciae) que obrigava o credor a retransferir a propriedade da mesma ao devedor soluto”. No entanto, como visto, o negócio fiduciário no Direito Romano importava em transferência do bem de forma absoluta, 52 Correia e outro, p. 154. 45 apenas assumindo o fiduciário a obrigação de restituir o bem; se faltasse com esta obrigação assumida, ao fiduciante não haveria possibilidade de pedir a restituição em espécie, cabendo-lhe apenas discutir o descumprimento da obrigação. Giuseppe Messina53, ao examinar o “uso non consentito dal transmitente” afirma: “Á questo peró non restava che il ricorso ai mezzi generici dell’adempimento delle obligazioni – salvo talune sanzioni di carattere penale per la lesione della fides’. Dall’osservanza di questa il trasmittente poteva soltanto attendere l’adempimento specifico del’obbligo assuntosi dal fiduciario”. Tanto se tratava de transferência absoluta da propriedade que o negócio fiduciário era feito pela mancipatio ou pela in iure cessio, duas formas solenes de transmissão do direito pleno de propriedade, cuja devolução exigia outra destas formas solenes, como já acima analisado. 2.1.4.2 – De todas as modalidades existentes no direito romano, a mais conhecida é a fidúcia cum creditore, referida sempre nas diversas fontes de consulta. Sem embargo da posição de Alexandre Correia, à época em que a fidúcia cum creditore surge em Roma, ainda eram desconhecidos o pignus e a hipotheca, não havendo também qualquer possibilidade de transferência da propriedade com condição resolutória. Na falta destes institutos, e ante a necessidade de garantia para as obrigações, é que passa a ser usada a fidúcia cum creditore. Aliás, o penhor e a hipoteca surgem exatamente em decorrência do fato de a fidúcia desapossar o fiduciante do bem, com todos os inconvenientes decorrentes do fato de privar alguém do uso de bem que apenas se destina a garantir o pagamento da dívida contraída. Sobre este ponto, Sousa Lima54 ressalta que “a fidúcia cum creditore, tirando o bem ao ‘fiduciae dans’, tirava-lhe, consequentemente, o crédito e este inconveniente fez nascer não só o penhor, como também a hipoteca, formas de garantia que, não privando o devedor de seus bens, permitia-lhe a obtenção de novos créditos”. 2.1.4.3 – No entanto, ocorreu no direito romano um fato que, depois será visto, repetiu-se de forma profundamente acentuada nos tempos atuais no direito brasileiro. No direito romano, mesmo depois do surgimento do penhor e da hipoteca, ainda assim persistiu em uso a fidúcia cum creditore, pela superioridade que tal instituto apresentava, a partir da visão do credor. 53 54 Messina, p. 106. Lima, p. 77. 46 Este se tornava proprietário do bem, recebendo a mais ampla garantia real que poderia ser formalizada, pois não se limitava apenas a garantir a dívida, pois, mais que isto, passava o domínio do bem ao credor. Como diz Longo, “è la piú ampla e energica che possa concepirse, perchè si attua, non com l’attribuzione al creditore di un ius in re limitato, ma addirittura con l’attribuzione al creditore della proprietà della cosa”. Adiantando aspecto que será examinado mais adiante, no direito brasileiro atual ocorreu – e está ocorrendo –, fenômeno semelhante, com uma busca pertinaz e constante de aplicação da garantia fiduciária aos negócios empresariais, ante a fragilização que mais e mais começou a atingir os institutos do penhor e da hipoteca, que coloca o credor comercial em posição sensivelmente subalterna em relação a outros tipos de credores, especialmente o credor trabalhista e o credor fiscal. O veio aberto na atualidade pela “redescoberta” da garantia fiduciária parece agora fonte inesgotável de novos tipos de garantia, sempre mais sofisticados e oferecendo cada vez mais garantias que efetivamente satisfazem o empresário na busca de segurança. 2.1.4.4 – O tipo de garantia oferecido pela fidúcia cum creditore bem se adaptou ao espírito romano, que tratava com extremado rigor o devedor, o qual até a Lex Poetelia Papiria, de 428 a.C., respondia com seu corpo pelas dívidas assumidas, prevendo a Tábua Terceira a divisão do corpo do devedor em tantos pedaços quantos fossem os credores. É de Sousa Lima55, comentando texto de Carlo Longo, a observação: “Esta longa página do grande romanista põe em nítido relevo não só a dureza com que eram tratados os devedores em Roma, mas também o egoísmo dos credores, e, ainda, que a garantia real só poderia objetivar-se através da fidúcia. A fidúcia cum creditore era, então, não só uma imposição do próprio sistema jurídico dos romanos, senão também, uma imposição do sistema creditório daquele povo. Mas, apesar de ser ela a resultante de um sistema fechado de Direito, assumia, porém, uma alta valia como forma garantidora de créditos, assegurando, de maneira ampla e enérgica, o direito dos credores”. 2.1.4.5 – Durante toda a época clássica do direito romano, a fidúcia cum creditore é o meio do qual as partes lançam mão para a garantia das obrigações assumidas. Mesmo no período pós-clássico, teria sido ainda usado este tipo 55 Lima, p. 78. 47 de garantia que começa, porém a cair em desuso, com o desaparecimento da mancipatio e da in iure cessio, formas pelas quais se formalizava a fidúcia. Tanto que a legislação pós-clássica do Império não demonstra qualquer interesse maior em regular o negócio fiduciário, que acaba por desaparecer de vez na legislação de Justiniano, com interpolações que o afastam do direito então posto. Curiosamente, a falta de um tipo de garantia para os negócios fez com que surgisse no direito romano a fidúcia, que acaba por desaparecer, com o prestígio que o penhor e a hipoteca assumem como possibilidade de garantia. Na sequência, o desprestígio destas garantias pignoratícias e hipotecárias faz ressurgir novamente a fidúcia, outra vez chamada a preencher lacunas negociais que não se satisfazem mais com as fórmulas existentes. Ainda é de Sousa Lima56, em 1962, portanto antes da criação da alienação fiduciária em garantia pela Lei 4728/65 e pelo Decreto-Lei 911/69, as proféticas palavras que hoje mais ainda se justificam: “Mas, a realidade é que este instituto ressurgiu no direito moderno, como uma imposição da própria vida jurídica e para preencher, como no direito romano, lacunas e deficiências da legislação atual”. Este ressurgimento é anotado também por Restiffe Neto57, na recente edição do ano 2000 de sua obra: “O ressurgimento da fidúcia na atualidade, incorporada ao direito positivo como espécie nova de garantia, decorre da crise constatada na prática de utilização de outros tipos de direitos reais de garantia clássicos. Sobretudo a hipoteca, precisamente pela sua estrutura de direito real de garantia constituído sobre bem alheio, expõe, por isso (bem alheio), a sua maior fragilidade, exacerbada pela crise de entupimento da Justiça”. 2.2 – Direito Germânico 2.2.1 – Já na época de Justiniano, como visto, a fidúcia havia caído em desuso, tanto que as interpolações fizeram desaparecer seus últimos vestígios como lei positiva. Exatamente deste sistema de direito fundado em lei escrita, os povos germânicos mantinham absoluto distanciamento, ligados apenas ao direito consuetudinário, acatando como regras apenas aqueles costumes que o uso havia consagrado. Sem embargo de tudo isto, com a disseminação de negócios entre os povos e a penetração do direito romano, superior ao sistema germânico, acaba por ocorrer a recepção daquele como, aliás, normalmente 56 57 Lima, p. 87 Restiffe Neto, p. 21 48 sucede quando há contato de duas culturas e uma delas acha-se em estágio superior de desenvolvimento. Desta maneira, inúmeros institutos do direito romano vão se espalhando na civilização germânica, sofrendo alterações e criando novas formas, embora assemelhadas àquelas da origem. 2.2.2 – Sousa Lima credita tal recepção do direito romano pelos germanos, principalmente ao fato de se considerarem estes como os verdadeiros sucessores do grande Império Romano, cultivando a propósito uma ideia de retorno ao esplendor antigo. Pierre Arminjon58, Professor das Universidades de Genebra e Lausanne, no grande tratado de direito comparado que escreveu em conjunto com Baron Boris Nolde, da Universidade de Petrogrado e com Martin Wolff, da Universidade de Berlim, falando sobre as influências decorrentes das relações entre os dois sistemas, diz: “Mais les relations commerciales s’étendant de plus en plus, d’endroit en droit, de pays en pays, le besoin d’un droit unifié devint imperieux. Il parait avoir grande depuis la fin du XV° siècle et fut satisfait em partie par la réception du droit romain. Toutefois cette réception ne peu s’expliquer ni par le besoin d’unification ni par l’a admiration qu’inspirait la technique du droit romain ni par les idées des humanistes. Ces raison, em particulier l’aspiration vers un ‘retour à l’antiquité’, existaient également hors d’Allemagne. L’explication de la réception em Allemagne du Droit Romain ‘in complexu’ doit être cherchée dans lê fait que seul le Reich Allemand se considérait comme successeur de l’Empire Romain e que seul l’Empereu Allemand passait pour occuper le trône de Justinien. La réception du droit romain ne se fit donc pas en vertu de lois spéciales entrées em vigueur à des dates précises”. No entanto, o mesmo Arminjon reconhece também a existência de uma evolução integrada de todos os direitos, que acabam encontrando soluções semelhantes pelo fato de que os problemas são semelhantes, especialmente em direito comercial. Em outra parte de sua obra, propõe uma questão e passa em seguida a respondê-la: “On peut se demander si toutes ces institutions, étrangères aux Romains, ont une origine commune? L’uniformité ou, plus exactement, la similitude des institutions de droit privé em vigueur dans lês différents pays s’explique, em somme, par la similitude des besoins et des intérêts économiques, sociaus et politique de ces pays. Cela saut aux yeus quand on pense au développement du droit commercial et industriel moderne”59. 58 59 Arminjon, vol. 2, p. 190/191. Arminjon, vol. 1, p. 87/8. 49 2.2.3 – Especialmente no âmbito da matéria que estamos examinando, é possível localizar no direito germânico traços que indicam institutos com grande semelhança à fidúcia de origem romana, encontrando-se diversas vezes o uso do próprio termo “fidúcia”. Messina60 diz: “Ma, piú che per queste leggi, l’uso del termine fiducia há dato modo di pensare ad una perpetuazione dell’istituto romano pel suo frequente ricorso in formule, diplomi e carte que rimontano dal VI al XII secolo”. Muitos documentos de compra e venda da época, por exemplo, traziam cláusula declarando que a coisa não havia sido objeto de alienação, doação ou fidúcia e, embora o termo se referisse mais à obrigação do que propriamente à fidúcia, ainda assim o uso de palavras originárias do direito romano demonstra a profundidade de sua influência sobre a cultura jurídica germânica, mais ainda quando se constata que o negócio fiduciário já havia sido banido do próprio Império Romano do Ocidente após Justiniano. No entanto – e é o próprio Messina que adverte61 –, a simples semelhança de nomenclatura não pode ser alçada a prova definitiva de que a fidúcia germânica proveio diretamente da romana: “I rilievii fatti accennano già al difetto di base storica delle tesi, che sulla sola base terminológica, vogliono sostenere o la persistenza della fiducia romana oltre la cerchia del mondo romano, o la figliazione da essa di istituti germanici. Ma con ciò non è ancora detto che tra questi, pur senza legami di filiazione, non si possano riscontrare rapporti riavvicinabili al tipo fiduciario romano”. 2.2.4 – O “affiduciatum” do direito germânico, sem embargo da semelhança das palavras, na realidade diz respeito a “un istituto di diritto germanico, in cui non si riscontrano i caratteri sostanziali della fidúcia romana”62. Este tipo especial de fidúcia que Messina chama l’affiduciatum era na realidade uma forma aproximada do penhor, diferindo da conhecida fidúcia romana, porque não transmitia a propriedade do bem para o terceiro, credor que apenas recebia o direito de usar a coisa até que o débito existente fosse extinto. Assemelha-se ao instituto do direito romano, na medida em que permanece a obrigação de providenciar a devolução do bem após o pagamento da dívida, não havendo porém qualquer transmissão de propriedade. Sousa Lima cita Schupfer63, que se refere ao affiduciatum como 60 61 62 63 Messina, p. 138. Messina, p. 139. Messina, p. 139. Lima, p. 91. 50 pignus ad frugiandum, transferência do bem sem a perda da propriedade por parte do transferente, que permanecia proprietário e que receberia a coisa tão logo pago o débito ou cumprida a obrigação garantida pelo bem. 2.2.5 – O affiduciatum ou pignus ad frugiandum, embora com semelhanças com o direito romano, não podia, no entanto ser visto como um negócio fiduciário propriamente. Surgiu, porém no direito germânico uma forma de penhor de propriedade que poder-se-ia dizer idêntico em seus detalhes à fiducia cum creditore, pela qual o credor recebia do devedor o bem, em formal e plena transferência de propriedade, firmando ainda o compromisso de devolução tão logo satisfeita a dívida. Como se pode verificar, este sistema de penhor de propriedade repetia, em todos os seus detalhes, a fidúcia de origem romana, sendo a propriedade transferida pela chamada carta venditionis firmada pelo devedor, o qual recebia do credor uma contracarta, com a promessa de devolução tão logo efetuado o pagamento. O que torna este instituto praticamente idêntico à antiga fidúcia é exatamente o fato de o bem ser transferido de forma integral, passando à propriedade do credor. 2.2.6 – Outra forma ainda na qual havia traços da fidúcia consistia no negócio celebrado com a intervenção do manus fidelis, intermediário que recebia em doação um patrimônio para que dele dispusesse de acordo com seus próprios critérios, praticando porém atos com a finalidade de propiciar a salvação da alma do doador, com direito de vender o patrimônio doado e aplicar o resultado em atividade pia. O manus fidelis era assim o intermediário na chamada donatio pro anima, com direito de alienação que podia ser exercido mesmo durante a vida do doador, em tal caso com cláusula de usufruto que garantisse a entrega do bem apenas após a morte. O negócio com o manus fidelis era formalizado por regras solenes que exigiam a entrega a ele da traditio cartae; havia porém outra forma de doação para cumprimento de obrigação após a morte do doador, que se referia à libertação de escravos e, em tal caso, também cercado de formalidades, era outorgada a carta libertatis, normalmente atuando como intermediário um sacerdote, para a manumissão do escravo após a morte do senhor. 2.2.7 – No direito germânico havia ainda a figura do salmann, que inicialmente era aquele que recebia poderes do alienante, ficando assim habilitado a transmitir os bens constantes do negócio à terceira pessoa indicada, na realidade o destinatário final do bem. O instituto evoluiu, de 51 tal forma que passou o salmann a atuar como fiduciário do adquirente e não do alienante, como ocorria no negócio fiduciário romano; passou o salmann a receber outorga de poderes por parte do interessado na aquisição do bem para que efetivasse a pretendida compra. Quando houvesse qualquer tipo de impedimento ao interessado na aquisição do bem, este fazia a aquisição por meio da interposta figura do salmman que recebia o bem e tornava-se titular de um direito real, porém limitado tal direito ao fim determinado desde logo. No entanto, ainda assim não se podia ver no salmann um simples mandatário, tanto que se eventualmente dispusesse do bem de forma diversa daquela que havia sido estipulada, cabia ao que havia transmitido a ele a possibilidade de aquisição, o direito real de reversão. A este propósito, é Sousa Lima quem afirma que “embora como intermediário, recebia o ‘salmann’ a propriedade, passando a exercer sobre ela um direito real, enquanto não a transmitisse ao destinatário determinado. Este direito, entretanto, era limitado pelo fim que determinava a intervenção do ‘salmann’. Vinham estas limitações da própria ‘lex traditionis’ ou da ‘lex donationis’”64. Cariota-Ferrara fala também do poder limitado que o salmann recebia e as consequências da não observância dos limites impostos: “Nel diritto germânico, invece, la determinazione dello scopo esercitava la sua influenza limitatrice non per la via obbligatoria, ma direttamente nella sfera de potere giuridico del fiduciario (salmann), potere que si piegava in um certo modo al fine avuto di mira: il diritto si acquistava condizionato risolutivamente. Veniva così reso realmente inefficace ogni uso contrario allo scopo, il quale provocava un ritorno del bene al fiduciante o agli eredi, anche a danno del terzo acquirente”65. 2.2.8 – No direito germânico da atualidade, o treuhand é tido como recuperação ou ressurreição de antiga figura já existente e que teria caído em esquecimento por força da entrada do direito romano na região dos germanos, abafando assim os institutos próprios. No entanto, esta figura tem pouca coisa a ver com o direito fiduciário anterior, pelo menos em suas manifestações atuais. Assim é que, por exemplo, o § 29 da lei de 13.7.1899, prevê a nomeação de treuhander a ser feita por fiscais estatais de crédito, para que este defenda os interesses dos possuidores de obrigações fundiárias, zelando para que a cobertura esteja sempre de acordo com as exigências legais, 64 65 Lima, p. 96. Cariota-Ferrara, p. 10. 52 com amplos poderes de fiscalização e consulta aos documentos internos. Uma corrente vê no treuhander um representante dos portadores das obrigações fundiárias; outra corrente entende que ele é titular de um direito próprio que exerce, porém no interesse do terceiro. Não importa a qual corrente se filie o observador, o que se verifica é que não há semelhança maior entre o treuhander atual e as figuras do direito antigo ligadas ao negócio fiduciário. 2.2.9 – Assim, embora com origem no direito romano, porém com fundamental diferença, surge a fidúcia do direito germânico, que estabelece forma que não admite a transferência incondicionada da propriedade, de tal maneira que passa a se garantir ao fiduciante a retomada do bem, em caso de descumprimento da obrigação de devolução por parte do fiduciário. Esta transformação também se presta a ilustrar o que mais adiante será ressaltado, ou seja, o caminho do negócio fiduciário em direção a um efetivo negócio de garantia de obrigações, com o desaparecimento de qualquer tipo de confiança, confiança que foi a base histórica determinante da fidúcia, aliás, razão de seu próprio nome. Cariota-Ferrara, realçando o pensamento de Schultze, afirma que tanto a fidúcia romana quanto a germânica são insufladas pelo mesmo espírito e tendem ao mesmo fim e, indica precisamente a diferença de ambas, dizendo: “Questi nella fiducia romana riceveva um potere giuridico dal punto de vista reale illimitato: lo scopo per cui il diritto gli era transferito operava solo indirettamente per la via del rapporto obrigatório, in base al quale il fiduciario era tenuto a fare del diritto l’uso stabilito, a trasferirlo alla persona indicata dal fiduciante o a restituirlo al fiduciante stesso a mezza di un suo attodi trasferimento”. Completa o pensamento, dizendo que se o fiduciário descumprisse sua obrigação, ao fiduciante restava apenas a ação para ressarcimento do dano. Já “nel diritto germanico, invece, la determinazione dello scopo esercitava la sua influenza limitatrice non per la via obbligatoria, ma direttamente nella sfera del potere giuridico del fiduciario (Salmann), potere che si piegava in un certo modo al fine avuto di mira: il diritto si acquistava condizionato risolutivamente. Veniva così reso realmente inefficace ogni uso contrario allo scopo, il quale provocava um ritorno del bene al fiduciante o agli eredi, anche a danno del terzo acquirente”66. Efetivamente, esta é a diferença fundamental entre o sistema romano e o sistema germânico. 66 Cariota-Ferrara, p. 10. 53 2.2.10 – Seguindo o fio da história da fidúcia, caminha-se para o antigo instituto germânico, que tem como origem os princípios do direito romano, porém com diferenças que já mostram o caminho que o instituto vai seguindo. Como se acabou de ver, o credor fiduciário romano goza de direito indiscutido e ilimitado sobre a coisa, a ponto de afastar de qualquer sequela o bem, se este, em desacordo ao combinado, vier a ser transmitido a terceiro. O terceiro adquirente estará a salvo de qualquer persecução patrimonial e a questão terá que ser resolvida, em caráter pessoal, exclusivamente entre credor fiduciário e devedor fiduciante. Partindo desta base, o direito germânico deu um passo extremamente avantajado no sentido de caminhar para o negócio fiduciário como hoje é conhecido. Desaparece, no direito germânico, o poder absoluto do credor fiduciário, estabelecendo-se ao fiduciário titularidade sobre o bem do devedor fiduciante, não porém com o poder absoluto da fidúcia romana e sim, com uma limitação de natureza resolutória. Esta natureza resolutória passa a ter eficácia “erga omnes” gravando o bem não como direito de propriedade e sim, como limitação a tal poder, que atinge tanto o direito do credor fiduciário quanto o do devedor fiduciante. Surge, portanto o ônus que impede a ambos os contratantes o gozo ilimitado do poder de propriedade, de tal forma que terceiro adquirente do bem sofrerá as consequências desta limitação, com a perda do bem se a transação se fizer em prejuízo de qualquer dos dois contratantes originais. 2.2.11 – Percebe-se a diferença de natureza fundamental entre a fidúcia de origem romana e aquela de origem germânica, com passo de extremo significado – como já acima anotado –, no caminho que sai dos primórdios do negócio fiduciário e chega à situação jurídica dos dias de hoje. Messina67 observa que “l’affiduciatum del diritto longobardo era uma forma de pegno mediante la quale il debitore trasmeteva il possesso dela cosa affinchè questi ne godesse ed usasse fino all’estinzione de debito. La proprietà restava al pignorante, il quale non la perdeva se com clausola special non era prevista nell’atto costitutivo del pegno la devoluzione di essa al creditore in caso di non pagamento del debito assicurato”, o que demonstra que, ao contrário do que ocorria no Direito Romano, a propriedade permanecia com o devedor, e apenas seria transferida ao credor se houvesse cláusula expressa em tal sentido e desde que o débito não fosse honrado nos termos estipulados. Enfim, a diferença qualitativa 67 Messina, pp. 147/148. 54 entre a fidúcia romana e a germânica, para o aspecto que interessa para este estudo, situa-se exatamente nesta mudança da natureza da transferência do bem. Como ressalta Lima68: “Nota-se, assim, acentuada diferença entre o fiduciário romano e o germânico. Aquele torna-se titular pleno da propriedade e este, embora com direito real sobre ela, tinha, apenas, uma propriedade limitada”. 2.2.12 – Neste caminho vai se percebendo o distanciamento da “confiança” (fidúcia) e o estabelecimento de garantias formais, registradas e conhecidas de terceiros, limitativas do direito de propriedade de ambos os contratantes, a ponto de desaparecimento da própria noção de confiança e do estabelecimento de regras rígidas exatamente para que não fiquem as partes dependentes da boa fé do outro contratante, com garantias estabelecidas tanto para o fiduciário ante o fiduciante, quanto em sentido contrário, para o fiduciante ante o fiduciário. 2.3 – Direito anglo-saxão 2.3.1 – No direito inglês antigo, surge o “mortgage” e, conforme anota Franceschelli já anteriomente citado, o instituto guarda semelhanças marcantes em suas estruturas, caracteres, finalidades e desenvolvimento com a fiducia cum creditore do direito romano, embora tivessem ambos os institutos desenvolvimento autônomo, distanciados tanto no tempo quanto no espaço, possivelmente sem comunicação. Aliás, este é um aspecto que sempre chama a atenção do estudioso do direito comparado, ao ver surgir, às vezes em países distantes e sem comunicação, institutos que apresentam grande semelhança, o que às vezes ocorre por criação autônoma dos diferentes sistemas jurídicos. Também levantando tal tipo de questionamento, Messina69 pergunta-se: “Il quesito anzi può estendersi, e tenendo conto della grande influenza che il diritto germanico ha avuta sull’inglese, ci si può chiedere se quest’ultimo per avventura non conosca figure modellate anche sulla fiducia germanica” para em seguida anotar a dificuldade que se apresenta para a resposta: “Nella dottrina c’è tanto rispondere affermativamente nell’un verso e nell’altro, ed il rapporto pignoratizio racchiuso nel ‘mortgage’ immobiliare e l’esecuzione testamentaria servono rispettivamente di base all’affermativa”. 68 69 Lima, p. 96. Messina, p. 166. 55 2.3.2 – Sem embargo de toda esta discussão estabelecida sobre a base histórica que teria dado origem ao “mortgage”, o que se constata é a grande semelhança que guarda da fidúcia cum creditore do direito romano, sem traços porém da fidúcia cum amico. E a semelhança se constata ao verificarse que tanto o instituto romano quanto o anglo-saxão configuram-se como negócio jurídico no qual o fiduciante assume a posição de devedor, enquanto o fiduciário a de credor, relativamente a uma obrigação que passa a ser garantida pelo bem objeto do negócio fiduciário. Aproximando-se da fidúcia atualmente conhecida, o devedor fiduciante transfere determinado bem ao credor fiduciário, firmando-se desde logo a obrigação no sentido de que, cumprida a obrigação do fiduciante, o bem ser-lhe-á devolvido pelo fiduciário. Sousa Lima70 fala na “... identidade estrutural dos dois institutos. Em ambos – romano e inglês – há a transferência da coisa, através de um elemento real e a obrigação de restituir, assumida por um elemento obrigatório, quando solvida a dívida”. 2.3.3 – É possível, nesta linha de pesquisa, identificar os termos romanos e anglo-saxões correspondentes, respectivamente na fidúcia cum creditore e no mortgage. O fiduciante romano era o feoffor inglês, enquanto ao fiduciário correspondia o feoffe, ou seja, respectivamente, aquele que faz e aquele que é destinatário do feoffment. Em época posterior, as denominações passam a mortgagor para o fiduciante e mortgagee para o fiduciário. Não só a terminologia encontra analogia quando se comparam os dois sistemas; também a forma de transferência e devolução do bem objeto da fidúcia era semelhante, aproximando-se a mancipatio do feoffment with livery of seisin, bem com a in iure cessio do common recovery, respectivamente para as res mancipi e as nec mancipi. A common recovery consistia em ação ajuizada pelo feoffe à qual o feoffor não resistia, em decorrência da qual o bem era transferido ao fiduciário, sem que constasse a razão da transferência ou qualquer menção a preço do negócio, tal como ocorria na in iure cessio do correspondente romano. O exame comparativo da mancipatio romana e do feoffment with livery of seisin do direito anglo-saxão também leva ao mesmo resultado, pois ambos eram institutos destinados à transferência do bem, por intermédio de solenidade celebrada não em presença do magistrado e sim, em presença de testemunhas e com a apresentação do bem ou, ao 70 Lima, p. 101. 56 menos, de algo que simbolizasse o bem que estava sendo objeto do negócio. Ante tal situação histórica, Sousa Lima71 conclui que “... a forma inglesa de transferência da propriedade apresentava notável semelhança com a forma romana. Como consequência, em um, como em outro sistema, o fiduciário adquiria, por força do ato de transferência, o direito de propriedade sobre os bens transferidos. Assim, o direito de propriedade adquirido pelo fiduciário era, no direito inglês, como no romano, absolutamente ilimitado e pleno, de modo que, tanto pelo jus civile como pela common law, adquiria ele a qualidade de dominus, podendo, consequentemente, exercer uma ‘signoria piú assoluta sulla res’”, segundo Franceschelli. 2.3.4 – Sobre este ponto, manifesta-se Messina afirmando72 que “... al ‘mortgage’ immobiliare classico dell’antico diritto inglese posteriore alla conquista romana, se ne trova ripetutamente affermata la similitudine, per non dire eguaglianza, alla fiducia romana ‘pignoris jure’. Non s’asserisce con ciò la derivazione storica dell’istituto inglese dal romano, perchè vi s’oppone non soltanto la soluzione di continuitá intercedente tral il nascere del primo e l’estinzione del secondo, ma soprattutto il traspasso dell’instituto inglese attraverso quelle stesse fasi che il romano há percorse”. Logo adiante Messina prossegue: “Noi dubitiamo che l’accennata somiglianza esista. A parte, difatti, la erronea valutizione di taluni caratteri della fiducia, posta a base del riavicinamento tra i due istituti, basta notare che il diritto immobiliare (estate) attribuito dal ‘mortgage’ al creditore è concepito come un diritto condizionato, per intendere che siamo fuori dei termini della fiducia romana”. Com efeito, como já visto anteriormente, na fidúcia romana a transferência do bem era feita de forma integral, de tal maneira que o fiduciário, se quisesse, poderia descumprir o trato feito e alienar o bem a terceiro, situação em que ao fiduciante apenas cabia a ação contra aquele com quem contratara, vez que não lhe restava qualquer possibilidade de sequela do bem, que havia sido transferido de forma plena e completa em decorrência da entrega fiduciária anteriormente feita. 2.3.5 – De qualquer forma, esta discussão se estabelece a partir da fase originária do mortgage, pois em uma fase posterior, já nos fins do Século XIV, passa a intervir no negócio o Estado, representado pelo Chanceler que, 71 72 Lima, p. 103. Messina, pp. 166/167. 57 como representante do poder real, e in equity, ou seja, pela imperatividade da consciência, passa a conceder ao mortgagor a equity of redemption, para impedir que este perca a coisa em favor do mortgagee por não cumprimento da obrigação no dia fixado. Concedia-se assim um prazo para cumprimento e com isto evitava-se a perda do bem de valor acentuadamente superior ao débito existente. Com a reiteração desta concessão, a equity of redemption passa a fazer parte integrante do próprio instituto do mortgage, mesmo que não estivesse declarado em seu ato constitutivo. Desta forma, a propriedade original no mortgage perde a característica de plena, tornandose condicionada, aproximando-se mais da fidúcia moderna – ou mesmo da fidúcia germânica –, com a propriedade resolutiva, do que do instituto romano da fiducia cum creditore. A propósito deste ponto, anota Sousa Lima73: “Assim, sendo a transferência da propriedade feita resolutivamente no direito inglês e completa, plena e ilimitada no direito romano, não há dúvida de que os dois institutos, apesar das semelhanças apontadas, são inegavelmente distintos e diferentes”. Anote-se finalmente que, no direito moderno, tanto inglês, quanto americano, o mortgage está alinhado ao instituto da hipoteca, configurando agora mero direito de garantia. Sousa Lima conclui seu pensamento afirmando que 74 “em remate, cumpre salientar que o ‘mortgage’ do direito inglês afasta-se consideravelmente da fidúcia romana, apesar de acentuadas semelhanças, e mais se aproxima da fidúcia germânica, sobretudo pelo caráter resolutivo da propriedade transferida”. 2.3.6 – O trust do direito inglês, embora alguns estudiosos queiram ver nele uma derivação do fideicomisso romano, na realidade, segundo a maioria dos autores, é originário do use, relação jurídica a partir da qual o feoffee to use era investido do direito de uso de um patrimônio que lhe era entregue pelo feoffor cujos frutos deveriam ser entregues em benefício de uma outra pessoa, o cestui que use. Pelo trust, o fiduciante, antes feoffor, agora settlor, transmite os bens ao fiduciário, antes feoffee to use, agora trustee, para que este tenha tais bens e os administre em benefício do cestui que use, posteriormente cestui que trust, agora beneficiário. 2.3.7 – De qualquer forma, mesmo abstraindo-se a discussão da origem 73 74 Lima, pp. 106/7. Lima, p. 108 58 exata do trust, seja ele derivação do fideicomisso romano, seja originário do use, o que se verifica é que se trata de negócio que tem por fundamento a confiança, a fidúcia, configurando instituto de tão vasta aplicação, que até se torna difícil precisar-lhe o conceito, como anota Lima, citando Messina75. Falando sobre a extensão da aplicação do instituto do trust na atualidade, diz Messina76: “Oggidì esso pervade tutta la vite giuridica inglese, e chi volesse provarsi a tracciarne ancha sommariamente le concrete applicazioni, dovebre tosto dichiarare che il trust ha la stessa universalità e elasticità del contratto e che però – data la grande liberta riconosciuta alle parti nel modellarlo – l´impresa é altrettanto vana quanto il voler classificare i contratti riguardo al loro contenuto concreto”. 2.4 – Direito brasileiro 2.4.1 – Fixados os momentos históricos do aparecimento (e posterior desaparecimento) da fidúcia no direito romano, bem como do seu surgimento e manutenção tanto no direito germânico quanto no direito anglo-saxão, necessário agora é o exame da recepção do instituto da fidúcia no nosso sistema de direito. Sem embargo de o exame neste momento ter apenas o intento de fixação histórica, já era possível notar fato que posteriormente será objeto de exame especial, qual seja: a tendência de procura de formas cada vez mais seguras para a garantia dos contratos. A fidúcia que, em um primeiro distante momento, era ditada apenas pela mais absoluta confiança do fiduciante no fiduciário, com a entrega do próprio filho à autoridade de outro pater familiae na remancipancionis causa, com intuito de emancipação, vai aos poucos se voltando para outro objetivo absolutamente diverso, até desgarrar-se do próprio significado de seu nome: fidúcia, confiança. Ao contrário, os institutos jurídicos ligados à fidúcia, cada vez mais se aperfeiçoam no sentido de, guiados pela desconfiança de que a outra parte poderá não cumprir o contratado, propiciar sistemas de garantia mais e mais eficientes e satisfativos. As garantias tradicionais, especialmente as da hipoteca e do penhor, não mais oferecem segurança de cumprimento, especialmente pelo patamar de preferência que se outorgou a diversos outros tipos de crédito, entre eles despontando em lugar privilegiado, o de natureza trabalhista e o de natureza tributária. O espírito do estudo é, portanto, desde já tangido 75 76 Lima, p. 110 Messina, p. 183 59 por este aspecto que se poderia resumir como a tentativa de se examinar o caminho que levou da confiança absoluta à desconfiança, que exige, cada vez mais e mais, garantia de satisfação contra toda e qualquer eventualidade de descumprimento. Diz Restiffe Neto77 que “o ressurgimento da fidúcia na atualidade, incorporada ao direito positivo como espécie nova de garantia, decorre da crise constatada na prática de utilização de outros tipos de direitos reais de garantia clássicos. Sobretudo a hipoteca pela sua estrutura de direito real de garantia constituído sobre bem alheio, expõe por isso (bem alheio), a sua maior fragilidade, exacerbada pela crise de entupimento da Justiça”. 2.4.2 – Sousa Lima aponta exatamente para este aspecto, anotando a redução da eficácia das garantias reais tradicionais, especificamente o penhor e a hipoteca, dizendo78: “Estes mesmos inconvenientes que levaram à coexistência das figuras no Direito romano, levam, ainda hoje, à procura de garantias mais fortes e mais seguras, ditando, também, o renascimento da própria instituição romana, revestida de novas vestes e adaptadas à sistemática jurídica moderna”. Cariota-Ferrara79, referindo-se ao negócio fiduciário, fala em “un’eccedenze del mezzo sullo scopo”, o que é decorrência da “contínua adaptação de velhos institutos a novas funções” de que fala Ascarelli80. Em seu extraordinário texto sobre o negócio indireto, Ascarelli traz uma passagem que demonstra exatamente como um instituto como a fidúcia atravessa os séculos e vem a ser resgatada para tentar resolver o problema atual da necessidade de eficácia da garantia: “As novas necessidades são, então, satisfeitas, mas o são com velhos institutos. Nessa adaptação, a nova exigência é satisfeita através de um velho instituto que traz consigo as suas formas e a sua disciplina, e oferece à nova matéria, ainda em ebulição, um velho arcabouço já conhecido e seguro. As velhas formas e a velha disciplina não são abandonadas de chofre, mas só lenta e gradualmente, de maneira que, muitas vezes, por longo tempo, a nova função vive dentro da velha estrutura, e assim se plasma, enquadrando-se no sistema”. A propósito, Messina inicia seu “Scritti Giuridici” sobre “Negozi Fiduciari”81 dizendo: “La dottrina dei negozi fiduciari non si propone di riesumare figure svanite nella storia del passato giuridico, ma vorrebbe precisare la disciplina 77 78 79 80 81 Restiffe Neto, pp. 21/22. Lima, p. 133. Cariota-Ferrara, p. 40. Ascarelli (Problemas), p. 154/155. Messina, p. 1. 60 generale propria di una serie di complessi negozi della vita moderna, nei quali si dice particolarmente operativa la fiducia”. 2.4.3 – Quando em 1500 o Brasil foi descoberto por Portugal, lá vigoravam as Ordenações Afonsinas, de 1446; em 1521, são substituídas pelas Manuelinas e, em 1603, pelas Filipinas. Estas últimas, no Título IV do Livro IV, traziam regras sobre a chamada “venda a retro”, também conhecida com a denominação de “venda fiduciária”, dizendo: “Licita cousa he, que o comprador e vendedor ponham na compra e venda, que fizerem, qualquer cautela, pacto e condição, em que ambos acordarem, com tanto que seja honesta, e conforme o direito: e por tanto, se o comprador e vendedor na compra e venda se acordassem, que houvesse pola cousa vendida, até tempo certo, ou quando quizesse, a venda fosse desfeita, e a cousa vendida tornada ao vendedor, tal avença e condição, assi acordada pelas partes, val; e o comprador, havendo a cousa comprada a seu poder, ganhará e fará cumpridamente seus todos os frutos e novos, e rendas, que houver da coisa comprada, até que lhe o dito preço seja restituído”. Examinando-se a determinação transcrita, constata-se a previsão no sentido de que possam as partes (comprador e vendedor) reservar ao vendedor a possibilidade de devolver o preço pago e com isto possibilitar o desfazimento da compra, voltando então à situação jurídica anterior ao momento da celebração do negócio. Estabelece ainda o texto legal que enquanto o comprador mantiver o bem consigo, terá direito a todos os frutos e rendas. 2.4.4 – No entanto, apesar de também ser conhecida sob a denominação de “venda fiduciária”, a “venda a retro” não configurava um negócio fiduciário, até porque as próprias “Ordenações” fixavam que tal tipo de estipulação não poderia se prestar a garantia de dívida. A retrovenda, posteriormente, permaneceu em nosso sistema, nos artigos 1140 do Código Civil de 191682, embora já em desuso, como anota Washington de Barros Monteiro83. “A estipulação acha-se presentemente quase em desuso, porque o vendedor, utilizandose dela para recobrar o imóvel, terá de reembolsar o comprador não só do preço como de todos os gastos (despesas da escritura, sisa, emolumentos do registro), além de perder, ele próprio, os dispêndios que realizou”. Não obstante, foi mantida 82 83 Art. 1140. O vendedor pode reservar-se o direito de recobrar, em certo prazo, o imóvel que vendeu, restituindo o preço, mais as despesas feitas pelo comprador. Monteiro, 5º volume, p. 100. 61 no artigo 505 do Código Civil de 200284. Como anota Cândido Rangel Dinamarco85, antes do surgimento da alienação fiduciária sobre móveis, pela Lei 4728/65, havia o uso de pacto de retrovenda para instituição de garantia que tivesse por objeto um imóvel, preferindo o credor este tipo de negócio, ante os riscos que decorriam da garantia hipotecária. De qualquer forma, tal instituto não se prestaria atualmente a bem servir como garantia em negócios empresariais em substituição à fidúcia, pelas formalidades, despesas e demora que normalmente cercam os negócios de compra e venda imobiliária que, neste caso, dependeriam de escritura pública tanto para a formalização da venda quanto para a retrovenda. 2.4.5 – A figura do fiduciário, com esta denominação, vem prevista nos artigos 1733 e seguintes do Código Civil de 1916, disposições de direito positivo que trazem regras sobre a instituição do fideicomisso, por meio do qual fica instituída em favor do fiduciário a propriedade da herança ou do legado, não em sua plenitude e sim, como propriedade restrita e resolúvel86. Quando da instituição do fideicomisso, assume o fiduciário a obrigação de, preenchida determinada condição, transmitir ao fideicomissário a herança ou legado recebidos87. Enquanto não ocorrer tal transmissão, com o que se completará aquilo que foi pretendido pelo fideicomitente, ou, nas palavras de Monteiro88, “até que se opere a substituição (quando dies fideicomissi venit), o fiduciário vem a ser proprietário sob condição resolutiva, enquanto o fideicomissário o é sob condição suspensiva”. Como se vê, há aqui uma transmissão de propriedade sob condição, impondo-se ao fiduciário que proceda de determinada forma quando preenchida aquela, o que em linhas gerais acaba configurando um tipo de propriedade fiduciária, mais próxima da fidúcia cum amico, distanciada porém da fidúcia cum creditore, vez que não há qualquer garantia de dívida. No entanto, ocorre aqui a expressão já acima lembrada de Cariota-Ferrara que diz existir na fidúcia “un’eccedenze del mezzo sullo scopo”. No caso, o que se pretende é simplesmente uma forma de substituição para fins de transmissão de herança e, no entanto, 84 85 86 87 88 Art. 505. O vendedor de coisa imóvel pode reservar-se o direito de recobrá-la no prazo máximo de decadência de três anos, restituindo o preço recebido e reembolsando as despesas do comprador, inclusive as que, durante o período de resgate, se efetuaram com a sua autorização escrita, ou para a realização de benfeitorias necessárias. Dinamarco. “Alienação Fiduciária de Bens Imóveis”, RDI. 51/237. Art. 1734. O fiduciário tem a propriedade da herança ou legado, mas restrita e resolúvel. Art. 1733. Pode também o testador instituir herdeiros ou legatários por meio de fideicomisso, impondo a um deles, o gravado ou fiduciário, a obrigação de, por sua morte, ou sob certa condição, transmitir ao outro, que se qualifica de fideicomissário, a herança, ou legado. Monteiro, p. 231. 62 opera-se uma efetiva transferência de propriedade. No entanto, a lembrança tem apenas valor histórico, pois o que se objetiva neste trabalho é o exame da fidúcia no que diz respeito à garantia que propicia aos contratos. Observe-se finalmente para complementação, que este instituto permanece com formas semelhantes no Código Civil de 2002, sob o título de “substituição fideicomissária”, regrada pelos artigos 1951 a 1960. O Código atual cuidou também especificamente da propriedade resolúvel e da propriedade fiduciária, o que examinaremos mais adiante, por uma questão de ordem de exposição. 2.4.6 – A fidúcia, como garantia dos negócios empresariais, foi resgatada pelo direito positivo brasileiro a partir da promulgação da Lei 4728, de 14.7.65, que “disciplina o mercado de capitais e estabelece medidas para o seu desenvolvimento” e que, em seu artigo 66, criou a alienação fiduciária de coisa móvel, estabelecendo em favor da instituição financeira financiadora (credor fiduciário) a possibilidade de buscar e apreender o bem objeto do negócio, se houver descumprimento do pagamento por parte do adquirente do bem (devedor fiduciante). Pouco mais de quatro anos depois, este artigo 66 foi alterado pelo Decreto-lei 911, de 1.10.69, estabelecendo a forma de alienação fiduciária que funcionou mais ou menos nos mesmos moldes até os dias atuais, com alteração agora estabelecida pelas Leis 9514, de 20.11.97 e 10931, de 2.8.04. 2.4.7 – A Lei 9514/97, que “dispõe sobre o sistema de financiamento imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências”, trouxe, como alteração fundamental, a possibilidade de ser o bem imóvel instituído como garantia fiduciária e a criação de um sistema de “securitização” do débito do adquirente de unidade imobiliária. A Lei 10.931, de 2.8.04, em seus artigos 55 a 57, alterou a alienação fiduciária sobre bens móveis e imóveis. Instituiu ainda (inciso II do artigo 2º) a afetação do terreno e das acessões incorporadas, em seu artigo 53. Todos estes institutos são trazidos como sistema de garantia aos contratos empresariais, atuando no mercado como estímulo para o desenvolvimento e expansão dos negócios de financiamento de bens móveis e como tentativa de incremento do mercado imobiliário. 2.4.8 – Neste ponto do trabalho, ficam fixados tais momentos legislativos, que serão detalhados no capítulo “IV” adiante. Ressalte-se apenas que os artigos 26 e 27 da Lei 9514/97, instituem uma forma de execução extrajudicial em caso de inadimplemento por parte do adquirente 63 da unidade (devedor fiduciante), de acentuada rapidez. Conforme se tentará demonstrar adiante, este sistema de execução extrajudicial cria sólida garantia em favor do empresário da construção, tornando porém o devedor fiduciante “refém”89 do credor fiduciário ou da empresa securitizadora. 2.4.9 – Quanto ao direito positivo, além das leis acima, outras também, de forma direta ou indireta, passaram a tratar de aspectos relativos à garantia fiduciária. A Lei 4864, de 29.11.65, introduziu a cessão fiduciária em garantia; o Decreto-lei 167, de 14.2.1967, em conjunto com a Circular 75, de 10.2.67, do Banco Central do Brasil, possibilitou alienação fiduciária em garantia na cédula de crédito rural; o Decreto-lei 406, de 31.12.1968, bem como a Lei Complementar 87, de 13.9.1966, trouxe regras sobre aplicação de impostos em negócios de alienação fiduciária em garantia; o Decretolei 413, de 9.1.1969 possibilitou alienação fiduciária para financiamentos ao consumidor e às indústrias; a Lei 5768, de 20.12.1971 estendeu esta possibilidade de garantia para consórcios destinados à aquisição de bens. 2.4.10 – Finalmente, a Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, o “novo” Código Civil, além de manter a “substituição fiduciária” na parte do direito das sucessões como visto acima, passou a tratar da alienação fiduciária em garantia, nos artigos 1361 a 1368, definindo (art. 1361) como fiduciária “a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor”. No capítulo imediatamente antecedente (artigos 1359 e 1360), o Código trata da propriedade resolúvel, em termos bastante assemelhados à forma como a matéria era tratada na codificação anterior, nos artigos 647 e 648. 2.4.11 – Estes sistemas de garantia, valem-se fundamentalmente, além da fidúcia, do patrimônio de afetação e da securitização; estes dois últimos institutos serão rapidamente analisados mais adiante, em suas grandes linhas teóricas. 89 A expressão é usada no sentido que lhe dá Rachel Sztajn (p. 13 de seu “Teoria Jurídica da Empresa”), de absoluta subordinação de um contratante ao outro. 65 III – PATRIMÔNIO E NEGÓCIO FIDUCIÁRIO 3.1 – Patrimônio 3.1.1 – Teorias do patrimônio: clássica e moderna 3.1.1.1 – Relativamente ao patrimônio, o ponto de especial interesse ante o tema ora objeto de estudo, é o que diz respeito ao tipo de garantia que a partir dele se pode constituir para os negócios e contratos a serem realizados. Em princípio, em afirmação que se pode ter como truísmo, o patrimônio é a garantia comum de todos os credores, afirmativa que poderia, porém ser contestada pela corrente que afirma que também as dívidas fazem parte do patrimônio. A partir de uma visão econômica, certamente o patrimônio garantidor dos credores não se compõe também das dívidas, que por ele, patrimônio, são garantidas. É de Barreto Fº90 a observação: “Em muitos casos, o direito acolhe a concepção econômica aplicando o princípio segundo o qual; ‘bona non intelleguntur nisi deducto aere alieno’. Esse princípio é fundamental, pois, constituindo o patrimônio do devedor a garantia comum dos credores, o titular do patrimônio não pode admitir como ativo de que possa livremente dispor, senão aquela parte que exceda ao passivo”. Assim, sob esta visão, as dívidas não poderiam ser consideradas como parte do patrimônio de uma pessoa. No entanto, o próprio autor esclarece que no patrimônio incluemse os elementos ativos e passivos e que, a diferença que restar do ativo depois de solvido o passivo constitui o patrimônio líquido. Bem próximo de tal conceito, Pontes de Miranda91, com sua forma às vezes econômica de expressão, assevera que “no Código Civil e no Código Comercial, patrimônio é o ativo, que, se há passivo, é atingível por esse”, fixando na realidade a concepção de patrimônio líquido. 3.1.1.2 – De qualquer forma, e independentemente das questões acima postas, efetivamente o patrimônio de uma pessoa responde por suas dívidas. 90 91 Barreto Filho, p. 48. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, Tomo V, p. 372. 66 Relembra Von Tuhr92 o pensamento de Bekker para quem “el índice juridico del carácter patrimonial resulta de la calidad para responder por las deudas del titular; en efecto, por lo general, el problema nace cuando el derecho tiene que considerarse como objeto de ejecución o como integrante de la masa concursal”. Serpa Lopes lembra que, sem embargo do conteúdo originário de acentuada carga ética da obrigação, ainda assim quando há o descumprimento, a questão se objetiva e a busca de satisfação dirige-se para a apreensão do patrimônio do devedor, vez que a violência sobre a esfera física do inadimplente deixou de existir, ao menos conceitualmente, a partir da Lex Poetelia Papiria. Diz então93: “Se o devedor não realizar a prestação pela forma e tempo devidos, estando o credor aparelhado com título executório, pode, desde logo, promover a execução da obrigação, pedindo a penhora dos bens pertencentes ao devedor, tantos quantos bastem ao pagamento do débito. Disto resulta a necessidade de se estudar a situação do patrimônio do devedor, a partir do momento em que nasce a obrigação do devedor”. 3.1.1.3 – O Código Civil de 1916, em seu artigo 5794, referia-se ao patrimônio – e à herança – como universalidades, sendo entendimento de Clóvis Beviláqua o de que também as dívidas faziam parte de sua composição: “Patrimônio é o complexo das relações jurídicas de uma pessoa que tiverem valor econômico. Nele se compreendem os direitos privados economicamente apreciáveis (elementos ativos) e as dívidas (elementos passivos). Para o Código Civil, o patrimônio é uma universalidade de direito”95. Para Lafayette Pereira96 “patrimônio é o acervo de todos os nossos haveres: constitui uma universalidade de direito, um todo composto de bens diversos reunidos sob a unidade da pessoa a que pertence”. O Código Civil de 200297, em seu artigo 91, traz disposição bastante semelhante, reconhecendo no patrimônio uma universalidade de direito. Von Tuhr, criticado em diversos aspectos por Pontes de Miranda, afirma inicialmente98 que “se denomina activo el conjunto de los derechos que integran el patrimonio; se le opone el pasivo, vale decir, las obligaciones que 92 93 94 95 96 97 98 Von Tuhr, p. 388. Lopes, vol. II, p. 497. Art. 57. – O patrimônio e a herança constituem coisas universais, ou universalidades, e como tais subsistem, embora não constem de objetos materiais. Beviláqua, p. 290. Pereira, p. 77. Art. 91. Constitui universalidade de direito o complexo de relações jurídicas, de uma pessoa, dotadas de valor econômico. Von Tuhr, p. 395. 67 deben ser cumplidas con él, o que, al menos, en caso de incumplimiento, pueden originar una obligación de carácter patrimonial”. Embora este autor afirme que o passivo não integra o patrimônio de uma pessoa, logo adiante completa seu pensamento para, falando sobre patrimônio líquido, dizer que “el importe neto del patrimonio resulta de la diferencia entre el activo y pasivo, computado en dinero; constituye una magnitud continuamente cambiante, denominándose balance su comprobación en un momento dado”. Os doutrinadores modernos não discrepam de tal entendimento, afirmando Erasmo Valladão que99 “o patrimônio, que é uma universalidade de direito, abrange todas as relações jurídicas ativas e passivas”. Tal forma de exame encontra respaldo ainda na precisa diferenciação feita por Barreto Fº100, segundo a qual universitas juris abrange um conjunto de direitos compostos tanto por relações ativas quanto por relações passivas, enquanto a universitas facti é conceito que se refere ao conjunto de objetos de direito. 3.1.1.4 – Inúmeras teorias foram formuladas para a tentativa de conceituação do patrimônio. Barreto Fº lembra que para a conceituação do patrimônio, a ideia que predomina é a que se prende à responsabilidade, anotando que embora não haja determinação específica na lei positiva, ainda assim esta ideia está pacificada na doutrina101. 3.1.1.5 – Não há efetivamente pacificação acerca do conceito de patrimônio, diversas teorias tendo sido formadas a respeito. Sem embargo das especificidades de cada uma, podem ser classificadas em dois grandes grupos: de um lado, a teoria clássica, subjetiva e personalista, cujos principais representantes são Aubry e Rau; de outro, a teoria moderna, objetiva, de Duguit, Brinz e Bekker. Para a teoria clássica, o patrimônio é o conjunto de bens da pessoa configurando uma universalidade de direito, ligada à ideia de personalidade, bens todos sujeitos à disposição de uma só vontade, expressando assim o poder no qual a pessoa se acha investida em relação ao conjunto dos bens. Desta forma, o conceito de patrimônio está indissoluvelmente ligado à existência de um titular, pessoa jurídica ou física que, como pessoa só pode ter um patrimônio, uno e indivisível como a própria personalidade, susceptível, porém de divisão em quotas ou partes França, p. 20. Barreto Filho, p. 45. 101 Barreto Filho, p. 51. 99 100 68 ideais. Esta teoria, também conhecida como “teoria da personificação”, levaria a se afirmar a existência de “capacidade de direito, autônoma, do patrimônio”, ideia que é calorosamente afastada por Pontes de Miranda, que faz outro magnífico raciocínio para fundamentar sua crítica à teoria clássica. Diz que, se se aceitasse a ideia de personificação do patrimônio, precisariam ser aceitas também102 “a transmissão do patrimônio especial para outro, a do comum para o especial, a do geral para o especial e vice-versa”. No entanto, como se observa das coisas do dia a dia, mesmo com a alteração, por exemplo, de patrimônio comum para especial, nem por isto há alteração na titularidade de eventual ação judicial, o que afasta a possibilidade de se aceitar a ideia de personalização do patrimônio. 3.1.1.6 – De forma precisa, Marcelo von Adameck anota, em trabalho de conclusão do 1º semestre de 2004, Mestrado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo103: “Adota-se a nomenclatura ‘teoria moderna’ exclusivamente por ser corrente em doutrina. Trata-se, porém, de uma concepção centenária. A. Brinz, um dos representantes desta corrente de pensamento e responsável pela formulação da ‘Theorie des subjektlosen Zweckvermögens’ nasceu em 1820 e faleceu em 1887, e a sua obra é de 1860 (Lehrbuch der Pandekten, II, Erlangem, 1860). E. I. Bekker, outro expoente desta teoria, escreveu dois famosos ensaios sobre o tema em 1861 e em 1872. Trata-se, pois de uma decana teoria moderna”. Esta chamada teoria moderna, afastando o subjetivismo clássico, entende que o vínculo que dá ao patrimônio sua característica de universalidade, diz respeito não à pessoa e sim, à finalidade, de tal forma que patrimônio é o conjunto de relações jurídicas afetas a um fim específico. Barreto Filho fala na coesão dos elementos integrantes do patrimônio, a partir da destinação comum a ele emprestada, dizendo104: “A teoria moderna adota uma concepção objetiva do patrimônio, procurando justificar a coesão dos elementos que o integram pela sua destinação comum. Patrimônio é, portanto, o conjunto de bens coesos porque afetados a um fim econômico determinado. Rompem-se, destarte, os princípios da unicidade e da indivisibilidade do patrimônio. Admitese, em consequência, a possibilidade de coexistência de um patrimônio geral e patrimônios especiais”. À teoria moderna filia-se o direito brasileiro, que afasta Pontes de Miranda, p. 392. Von Adamek, trabalho inédito. 104 Barreto Filho, p. 50. 102 103 69 o conceito criado a partir do titular para voltar-se para a finalidade à qual o patrimônio é destinado, como anota Pontes de Miranda, falando sobre as esferas jurídicas diferentes, debaixo das quais analisa-se a administração do patrimônio105: “O direito contemporâneo, principalmente o brasileiro, permite que cada pessoa tenha duas ou mais esferas jurídicas diferentes, de jeito que, a despeito da unicidade de titular, ressalta a pluralidade de patrimônios. Se a administração de todos pertence ao titular, ou a outrem, a pessoa tem de atuar como se fossem duas ou mais pessoas o administrador”. 3.1.2 – Patrimônio geral e especial (patrimônio separado ou de afetação) 3.1.2.1 – O patrimônio responde pelas obrigações de seu titular, configurando o que a doutrina chama de “massa de responsabilidade”, ante o princípio aceito universalmente no direito de que o devedor responde com todos os seus bens, presentes e futuros, pelo cumprimento de suas obrigações. No entanto, sem embargo de se tratar de uma universalidade de direito, não se pode afirmar que se trata de noção ligada à pessoa do titular, sendo admissível a ideia de caracterização patrimonial pela identidade de fim, podendo uma mesma pessoa ter mais de um patrimônio, existindo, em consequência, patrimônios especiais ou separados, porque ligados a determinados fins, podendo tomar-se, como exemplo, no direito comercial, o patrimônio da massa falida, embora não seja este o patrimônio objeto da análise ora feita. Messineo distingue patrimônio separado e patrimônio autônomo, lembrando como exemplo deste último o patrimônio para a formação de pessoa jurídica; já o patrimônio separado, embora reconhecido pela lei depende do impulso do interessado para sua constituição. Ao precisar a distinção entre um e outro tipo. Messineo106 diz que a expressão patrimônio autônomo significa coisa diferente do patrimônio separado. O autônomo ocorre “quando si voglia indicare, non giá il distacco di un determinato núcleo di beni, che continua ad appartenere al medesimo titolare, ma il fatto che, com elementi tratti da un altro, o – più spesso – da più altri patrimoni, si formi un patrimonio a sè stante e nuovo, con un proprio soggeto colletivo o, quanto meno, con proprie finalità”, como se dá, por exemplo, “... nela formazione della persona giuridica” , situação na qual “... incidòno autonomi diritti e obblighi”. 105 106 Pontes de Miranda, op. cit., p. 392. Messineo, p. 386. 70 Pontes de Miranda observa que o patrimônio sempre terá como característica distintiva a titularidade única, seja por um titular ou por vários titulares em comum, porém sempre em unicidade. Adverte, porém que “isso não quer dizer que a cada pessoa só corresponda um patrimônio; há o patrimônio geral e os patrimônios separados ou especiais”107. Biondi diz, de forma taxativa108: “un soggeto, un patrimonio”. Bevillaqua109 anota que a doutrina brasileira corrente adota a solução segundo a qual a um patrimônio, corresponde um único titular, excepcionando-se apenas os casos de “benefício de inventário, da separação dos bens concedidos aos credores do falecido e da sucessão dos bens do ausente”, situações, porém provisórias, sem qualquer definitividade possível. Carvalho Santos110 afirma que não se pode conceber um patrimônio sem um sujeito para o qual convergem as relações jurídicas patrimoniais; sem embargo, como o sujeito não é elemento do patrimônio e sim centro de convergência, torna-se possível cindir o patrimônio, cisão não possível do sujeito. Von Tuhr111, na mesma linha de abordagem afirma que “el patrimonio resulta de un conjunto de derechos que reciben unidad por corresponder a un mismo sujeto; de esta unidad se deriva que los hechos juridicos y las relaciones que atañem al titular producen sus efectos sobre todos los derechos que en cada momento integran el patrimonio”. 3.1.2.2 – Von Tuhr está se referindo ao conceito de patrimônio geral, no sentido já acima lembrado de que o patrimônio do devedor, em princípio como um todo, é a garantia do cumprimento de suas obrigações. Esta seria a esfera mais ampla dentro da qual estaria situado o patrimônio de um determinado titular, na qual se pode vislumbrar o patrimônio como uma unidade, composta por bens que estão sob o poder de disponibilidade do titular. Embora o patrimônio seja a garantia do cumprimento das obrigações, não deixa de constituir patrimônio do titular aqueles bens que são despidos desta característica de garantia, como ocorre por exemplo, em nossa legislação, com os bens impenhoráveis listados no artigo 649 do Código de Processo Civil, ou o bem de família, previsto na Lei 8009, de 29.3.90; nem por isto também perde o patrimônio sua característica de Pontes de Miranda, op. cit., p. 368. Biondi, p. 106 109 Bevilaqua, “Teoria Geral...”, p. 175. 110 Santos, p. 61. 111 Von Tuhr, p. 406. 107 108 71 unidade ligada ao titular, visto que “todo patrimônio é unido pelo titular único, ou por titulares em comum, mas únicos”112. Na expressão de Von Tuhr, “la unidad no se anula por el hecho de que ciertos objetos se encuentren en situaciones jurídicas especiales (p.ej.: si son inenajenables ou inembargables)”. Este conceito guarda relação com a fixação do patrimônio geral, examinado o patrimônio como a universalidade de direito com “calidad para responder por las deudas del titular”, extraído da expressão de Bekker acima anotada. Diz Biondi que113 “in linea di massima il patrimonio legalmente è uno solo ed in confronto dei creditori, ... per cui il debitore risponde com tutti i beni presenti e futuri”, acrescendo porém que remonta ao direito romano o conceito de patrimônio separado, contemplando a lei “la possibilita di complessi separati”. 3.1.2.3 – Este sistema de representação do patrimônio a partir de “esferas jurídicas”, umas inserindo-se no interior de outras, sempre lembrado por Pontes de Miranda, Von Tuhr e outros autores, presta-se efetivamente a perfeito simbolismo que facilita a análise. No interior da esfera maior que representa o patrimônio geral, outra menor se insere e que diz respeito ao patrimônio especial, composto por bens que não configurariam mais a garantia das obrigações do devedor de forma geral e que estariam ligados ao cumprimento de determinadas obrigações, consubstanciando o que a doutrina denomina de patrimônio especial. A unidade do patrimônio lembrada mais acima, perde-se, segundo Von Tuhr114 , em tais situações: “En cambio, la unidad se pierde cuando un conjunto de derechos, cuyos elementos posiblemente son mutables, está regido por normas especiales. En el ambito del patrimonio existe, entonces, una esfera jurídica más restringida, delimitada por criterios determinados y susceptible de desarrollo económico propio de la misma manera que aquél. Háblase en este caso de patrimonio especial o de bien especial”. 3.1.2.4 – O patrimônio compreendido pela esfera maior, abrangendo o conceito de patrimônio geral, serve aos fins aos quais pretenda destinálo o titular; sobre os bens que o compõem, tem o titular plena e irrestrita disposição, de tal forma que dá a eles o fim por ele pessoalmente pretendido, sendo exemplo típico de tal disponibilidade a constituição de garantias reais, tal como a hipoteca sobre determinado imóvel para garantia de determinada Pontes de Miranda, p. 368. Biondi, p. 106. 114 Von Tuhr, p. 406. 112 113 72 dívida. Neste sentido é que Von Tuhr115 assevera que “El patrimonio normal sirve a fines generales que, en principio, su titular fija libremente, o a los que su representante legal debe perseguir de acuerdo con los deberes que le incumben”. Em contraposição, o titular não tem a disponibilidade acima anotada, para os bens que constituem patrimônio especial e que se destinam a uma finalidade especial, por força de lei, fazendo Von Tuhr a diferenciação, ao dizer logo em seguida: “En cambio, es específico el fin al cual se destina el patrimonio especial. ... El fin que acabamos de mencionar explica cómo integram el patrimonio especial derechos que no podían corresponder al titular del patrimonio general, del que fué separado”; nesta última parte está se referindo ao instituto do Código Civil alemão que diz respeito à reserva da mulher ou ao patrimônio livre do filho menor sob administração do marido, cujos bens componentes devem servir às necessidades daqueles e não do marido administrador e também titular do patrimônio. Barreto Filho filia-se ao pensamento de Von Tuhr e para a conceituação do patrimônio especial ressalta três características marcantes116: “1º, a situação peculiar do patrimônio especial decorre dos fins próprios e específicos que lhe são prefixados, ao contrário do que sucede com o patrimônio normal, o qual serve a fins gerais que, em princípio, são fixados livremente pelo titular ou seu representante legal; 2º, às vezes, a administração do patrimônio separado é conferida a pessoa diversa do seu titular, ou daquela que detém a administração do patrimônio geral, embora em outros casos seja atribuída ao mesmo titular a administração de ambos patrimônios, cabendo-lhe manter a separação entre as duas massas patrimoniais; 3º, os limites entre o patrimônio especial e o principal são marcados pela lei, de sorte que, naquele, ingressam todos os direitos que a lei consigna, integrando-se neste todos os demais”. Pontes de Miranda117 afirma que o patrimônio especial é destinado a uma finalidade própria diferente daquela do patrimônio geral e que “esse fim é que lhe traça a esfera própria, lhe cria a pele conceptual, capaz de armá-lo ainda quando nenhum elemento haja nele”. Como anota Mauro Rodrigues Penteado, ao lado do patrimônio geral coexistem os patrimônios separados ou especiais, que por isto mesmo estão “voltados a um determinado fim, concentrando as relações jurídicas ativas e passivas necessárias à sua consecução”. Von Tuhr, p. 408. Barreto Filho, p. 54. 117 Pontes de Miranda, p. 379. 115 116 73 3.1.2.5 – Barreto Filho118 cita como exemplos de patrimônio especial o dote (hoje não mais existente na codificação civil)119, a comunhão matrimonial de bens, o patrimônio do ausente e a herança jacente, todas configurando massas de bens submetidas a um regramento jurídico particular e tratados pela lei como massas distintas do patrimônio geral, pelo fim a que se destinam. Indica como exemplo mais marcante de patrimônio especial no campo mercantil ou empresarial, a massa falida, destacada do patrimônio do devedor e destinada ao fim de liquidação para satisfação dos credores. Pontes de Miranda120 lembra o dote também como exemplo, listando ainda a quota na herança, os bens particulares dos cônjuges, o fideicomisso, a massa concursal, o patrimônio das sociedades não-personificadas, a herança indivisa, os bens da comunhão conjugal, entre outros. 3.1.2.6 – Os termos “patrimônio especial”, “patrimônio separado” ou “patrimônio de afetação” têm sido usados indiferentemente pelos autores, para significar o mesmo fenômeno jurídico consistente na especialização de determinada quantidade de bens que se caracterizam pelo fato de estarem destinados a uma finalidade própria, diferente da finalidade do patrimônio geral que é a de servir de garantia ao cumprimento das obrigações assumidas pelo titular do patrimônio. Orlando Gomes, mostrando o uso comum destas expressões diferentes, salienta que o patrimônio pode ser “geral ou especial” e que121 “a ideia de afetação explica a possibilidade de patrimônios especiais”. Sem adentrar aqui a discussão sobre a oportunidade de valer-se de nomes diversos para identificar o mesmo fenômeno e sem tentar precisar eventuais diferenças teóricas, ainda assim faz-se necessário tentar extrair a diferenciação que se pretende estabelecer para o termo “afetação”, o que será necessário para o exame futuro da “afetação” como forma de garantia de obrigações. A rigor, todo patrimônio especial é patrimônio separado, no sentido de que está separado do patrimônio geral; este patrimônio separado sempre se configurará também como patrimônio de afetação, na exata medida em que estará sempre afetado a um determinado fim. Desta forma, a massa falida é um bem afetado ao pagamento dos credores habilitados, da mesma forma Barreto Filho, p. 53. O fato de Barreto Filho referir-se a institutos do Código Civil de 1916 não invalida o exemplo, que é trazido apenas para demonstrar o tipo de incidência de regras jurídicas diversas daquelas que incidem sobre o patrimônio geral. 120 Pontes de Miranda, p. 377. 121 Gomes, “Introdução...”, p. 203. 118 119 74 que o bem de família da Lei 8009/90 está afetado à satisfação do direito de moradia que a lei quer garantir a qualquer pessoa. 3.1.2.7 – Pontes de Miranda122 diz que nada impede que, no interior do círculo correspondente a um patrimônio especial passe a existir outro patrimônio especial. Da mesma forma, no interior do patrimônio geral pode haver vários patrimônios especiais, podendo o patrimônio especial abranger bens em quantidade maior do que aquilo que resta para a composição do patrimônio geral não especializado. Logo adiante ressalta que “os patrimônios especiais têm os seus fins, ou fixados pela manifestação de vontade, ou pela lei (fins do usufruto pelo marido, ou pelo titular do pátrio poder; fim da liquidação concursal)”. Para o estudo no qual se prosseguirá adiante, importante é desde logo deixar fixado que o patrimônio especial ou separado, sempre estará necessariamente afetado a um determinado fim e que – este é o ponto a ser ressaltado –, a afetação pode se dar tanto por força da lei, quanto por escolha do próprio titular do patrimônio desde que permitida por lei. A fixação está sendo feita, para que se possa adiante examinar o patrimônio especial aproveitado como garantia dos negócios empresariais, com a afetação de determinada parte do patrimônio ao cumprimento daquele determinado negócio. Diz Pontes de Miranda123 que o fim é que “liga” o patrimônio, ou seja, fim ao qual está afeto aquele patrimônio, fim a cuja satisfação destina-se o patrimônio afetado. Sylvio Marcondes Machado, após fazer um erudito e detalhado levantamento sobre as conceituações de patrimônio, arremata que a evolução do pensamento, da doutrina clássica para a moderna, afirma a possibilidade de patrimônios distintos sob a mesma titularidade, dizendo que124 “cada porção, assim afetada, formará uma universalidade, um patrimônio separado, tendo ativo e passivo distintos”. 3.2 – Negócio indireto e negócio fiduciário 3.2.1 – Negócio Indireto e Direto 3.2.1.1 – Tullio Ascarelli125, sobre este ponto, produziu escrito que permanece cravado como marco do pensamento jurídico, no que diz respeito Pontes de Miranda, p. 378. Pontes de Miranda, p. 369. 124 Machado, p. 238. 125 Ascarelli, “Problemas...”, p. 152/253. 122 123 75 a negócio indireto. Com sua proverbial clareza, Ascarelli fala sobre a inércia jurídica, resultado do misoneismo peculiar ao campo jurídico, um certo tipo de reação adversa a mudanças, de um lado; de outro, a busca de segurança e certeza nas soluções que urge encontrar a cada momento para novos problemas da vida prática. Conjugados estes fatores, resulta que “as novas necessidades são, então, satisfeitas, mas o são com velhos institutos”. Observa Ascarelli, em linguagem quase poética, a presença de velhos institutos nas novas soluções, senectude cujos traços apenas muito lentamente vão desaparecendo, até que o novo instituto se afirme e possa caminhar por sua própria conta. Embora parte já esteja citada (1.2.2.), ainda assim é aconselhável a transcrição mais completa do texto de Ascarelli, por sua beleza 126 : “As velhas formas e a velha disciplina não são abandonadas de chofre, mas só lenta e gradualmente, de maneira que, muitas vezes, por longo tempo, a nova função vive dentro da velha estrutura, e assim se plasma, enquadrando-se no sistema. Pode isto contrariar a simetria e a estética do sistema, mas oferece, às vezes, a vantagem da conciliação, de progresso e conservação, da satisfação de novas exigências, respeitadas a continuidade do desenvolvimento jurídico e a certeza de disciplina decorrente da utilização de institutos já conhecidos, que já foram objeto de elaboração por parte da doutrina e da jurisprudência, sujeitos à prova da experiência e, por esta, moldados”. Em tal situação, especialmente na atividade negocial rica em situações novas que constantemente exigem também soluções originais, é comum que os interessados lancem mão do negócio indireto, que se corporifica “sempre que as partes recorrem, no caso concreto, a um negócio determinado visando a alcançar através dele, consciente e consensualmente, finalidades diversas das que, em princípio, lhe são típicas”127. Ocorrem situações nas quais as partes se veem impedidas de criar tipos especiais de negócios, pelas mais variadas espécies de óbice de natureza jurídica e, em tal situação, tentam se valer dos negócios jurídicos existentes para atingir o fim desejado. Postos os contratantes frente a tal contingência, especialmente no criativo meio dos negócios empresariais, “o processo a que deitam mão é o de usar conjuntamente várias formas jurídicas, muitas vezes contraditórias, combinadas e entrelaçadas de maneira tal que por intermédio delas se possa chegar a resultados novos”, como diz Ferrara128. Galgano129 diz Ascarelli, “Problemas...”, p. 155/6. Ascarelli, “Problemas...”, p. 156. 128 Ferrara, p. 77. 129 Galgano, “Il Negozio Giuridico”, p. 429. 126 127 76 que “si parla di contratto indiretto quando un determinato contratto viene utilizzato dalle parti per realizzare non la funzione che corrisponde alla sua causa, ma: a) la funzione corrispondente alla causa di um diverso contratto, oppure b) uno scopo non realizzabile mediante alcun contratto”. 3.2.1.2 – Ascarelli extrai do direito romano antigo, exemplos de tal tipo de procedimento, mencionando a mancipatio, que juntamente com a coemptio, prestava-se à instituição da tutela fiduciária da mulher. Este mesmo instituto da mancipatio, bem como o instituto da in iure cessio, prestavam-se também para o negócio indireto que deu origem à criação da fidúcia cum creditore como instituto garantidor de dívida, constituindo diretamente um negócio de transferência da propriedade e, indiretamente, uma forma de garantia; a mancipatio para “res mancipi” e a “in iure cessio” para a “mancipi” e as “nec mancipi”, como já anteriormente examinado130. Cariota-Ferrara131 anota que “... è voluto un negozio solo, il trasferimento (mentre non è voluta la costituzione del diritto di pegno), con la sola particolarità che esso è voluto a scopo di garanzia, il quale si riflette nel rapporto obligatorio, che è ugualmente voluto”, citando a seguir Ascarelli, ao anotar que neste mesmo sentido “acutamente nota al riguardo l’Ascarelli pei negozi indiretti in genere...”. A pesquisa histórica aponta também situação semelhante que exigiu a celebração de negócio indireto, no use e no trust, originalmente no direito anglo-saxão, passando posteriormente ao uso corrente do direito norte-americano. Ascarelli aponta também diversos exemplos extraídos do antigo direito germânico e do direito medieval italiano. 3.2.1.3 – Para conceituar o negócio indireto, Ascarelli propõe a questão sobre tratar-se de um único, ou da combinação de diversos, respondendo logo a seguir que quando se trata da conhecida transmissão de propriedade com fins de garantia – ou seja, garantia fiduciária –, poder-se-ia pensar na existência de dois negócios. A importância da resposta a tal indagação exsurge evidente “à vista da diversa disciplina dos dois negócios assim distinguidos”. Afirma a seguir ser necessário pesquisar-se a existência de “unicidade da fonte”, não sendo, porém a resposta positiva suficiente para que se afirme a existência de negócio único, pois embora com manifestação única de vontade, as partes 130 131 Item 2.1.1.10, retro, p. 31 deste. Cariota-Ferrara, p. 50. 77 podem celebrar mais de um negócio; é porém necessário prosseguir para perquirir o elemento volitivo das partes, pois “quando as intenções econômicas das partes estão ligadas entre si, há um negócio único”. Finalmente, se se concluir que houve negócio único, ainda é necessário indagar se o contrato é “nominado”, correspondendo a um tipo especificamente disciplinado na legislação ou se é “inominado ou misto”, para que se aplique a teoria do contrato respectivo. Ascarelli conclui seu pensamento dizendo que no negócio indireto, é possível encontrar tanto negócio único quanto pluralidade deles; no sentido rigoroso da expressão, apenas no negócio único se poderia falar de negócio indireto. No entanto, em qualquer situação, “a causa do negócio indireto é sempre individuada ‘per relacionem’ à do negócio direto; a concorrência de outras intenções empíricas não é bastante para romper o nexo do negócio indireto com o negócio direto e aproximá-lo de um contrato misto”. Esta perquirição é fundamental, pois em princípio, a sujeição do negócio indireto ao direto e à disciplina jurídica deste último, decorre exatamente de “desejarem conscientemente as partes afastar-se o menos possível do terreno conhecido dos negócios nominados, aproveitando, portanto, a disciplina jurídica desses negócios”. Isto é exatamente o que ocorre no negócio fiduciário, talvez o que mais se vale do negócio indireto, tanto que Ascarelli, ao estudar a aplicação do negócio indireto no direito moderno diz que132 “é para alguns desses fenômenos do moderno direito mercantil que, prescindindo da hipótese agora assaz conhecida e discutida dos negócios fiduciários, eu me permito chamar a atenção”. O pensamento de Ascarelli é citado por Cariota-Ferrara133: “Il Goltz, il Ferrara e lo Schony, per quanto non si propongano espressamente la quistione, la risolvono nel secondo senso, afermando que nel negozio fiduciario sono contenuti due contratti, l’uno reale positivo, l’altro obbligatorio negativo. ... L’Ascarelli esamina questo problema, in genere, pei negozi indiretti, non mancando, però, di soffermarsi anche espressamente sui negozi fiduciari, per i quali ultimi lo risolve nel senso dell’unicitá del negozio”. Especificamente com relação ao negócio fiduciário, cujo exame direto será retomado logo a seguir, Galgano134 observa que não se pode afirmar a existência de contrato único, anotando que “si è più volte tentato, in passato, di costruire il contratto fiduciario come un unitario contratto, avente una propria causa, la ‘causa Ascarelli, “Problemas...”, p. 155. Cariota-Ferrara, p. 28. 134 Galgano, p. 427. 132 133 78 fiduciae’; ma è tentativo de tempo abbandonato. La costruzione oggi accreditata è quela secondo la quale il contratto traslativo ed il patto fiduciario constituicono contratti separati, anche se tra loro collegati; e la nozione di ‘causa fiduciae’ altro non esprime se non il collegamento fra i due contratti”. 3.2.1.4 – Evidentemente, para uma tentativa de delimitação teórica mais rigorosa do contrato fiduciário, é necessário o exame do negócio indireto, que lança luzes sobre as demais questões a serem apreciadas. Sem embargo, Sousa Lima135 não entende relevante tal tipo de preocupação, dizendo que “esta questão, entretanto, é de pequena importância, porque ela não exerce influência alguma na conceituação do negócio fiduciário. Incluindo-se ou não na categoria dos negócios indiretos a verdade é que o negócio continua com a sua característica própria”, não havendo qualquer alteração em seus elementos estruturais. 3.2.2 – Negócio Fiduciário e Simulação 3.2.2.1 – Examinando o negócio indireto, de forma geral, ante o negócio simulado, Ascarelli136 afirma “reconhecer que o negócio indireto, não é negócio simulado e não está, por conseguinte, sujeito ao regime da simulação” embora ressalte que “é para a simulação que instintivamente se dirige o pensamento em todas as hipóteses supracitadas, e que parece, haja, em substância, negócios com causa simulada. A causa do negócio seria simulada e a verdadeira causa constituída pela finalidade ulterior que as partes se propõem realizar. O negócio, portanto, seria simulado e sujeito ao regime da simulação”. Na simulação, as partes manifestam uma vontade que está em desacordo com o efetivamente desejado. Segundo Monteiro137, a simulação “caracteriza-se pelo intencional desacordo entre a vontade interna e a declarada, no sentido de criar, aparentemente, um ato jurídico que, de fato, não existe, ou então oculta, sob determinada aparência, o ato realmente querido”. Clóvis Beviláqua138 diz que “simulação é uma declaração enganosa da vontade, visando produzir efeito diverso do ostensivamente indicado”. A doutrina em geral ensina que normalmente o ato simulado decorre de declaração bilateral de vontade, podendo, no entanto, decorrer também de ato unilateral segundo alguns outros doutrinadores. Na bilateralidade, concertam-se as partes sobre os atos Lima, p. 208. Ascarelli, “Problemas...”, p. 178/9. 137 Monteiro, 1º volume, p. 207. 138 Beviláqua, 1º volume, p. 353. 135 136 79 a serem praticados ou as declarações a serem feitas, de tal forma que o ato ou a declaração não corresponde ao que efetivamente pretendem as pessoas neles envolvidas; geralmente a simulação destina-se a iludir terceiros. 3.2.2.2 – Ante o objeto do estudo, cumpre agora examinar especificamente o negócio fiduciário, para que se tente delimitar as semelhanças e diferenças entre o negócio fiduciário e o negócio simulado, considerando-se a existência de autores que, embora defendendo corrente já agora afastada, afirmam ser o negócio fiduciário um negócio simulado. Sousa Lima139 anota que “a confusão do negócio fiduciário com o negócio simulado tem constituído um dos maiores entraves ao perfeito conhecimento de nosso instituto, causando incertezas várias sobre ele”. Esta confusão, embora já tenha sido sanada, encontra justificativa racional, pois o negócio efetivamente realizado na operação fiduciária transfere a propriedade do bem, quando na realidade as partes não têm qualquer intuito de efetuar qualquer compra e venda, pretendendo apenas instituir um tipo de garantia ao outro negócio que está sendo celebrado. Levando-se em conta que a simulação pode ser definida como declaração enganosa, por meio da qual se pretende produzir um efeito diverso daquele que está sendo declarado, considerando-se ainda que no negócio fiduciário as partes declaram que estão transferindo a propriedade de determinado bem, transferência porém não querida pelas partes, que apenas pretendem instituir uma garantia para o negócio que está sendo celebrado, justificase a confusão que Sousa Lima aponta como um dos maiores entraves ao perfeito conhecimento do instituto da fidúcia, citando, como exemplo, o posicionamento adotado por Antonio Butera e Filippo Pestalozza, entre os mais representativos dos defensores de tal corrente de pensamento. Como relembra o autor, para tal confusão terá eventualmente contribuído a própria origem do negócio fiduciário que, como já examinado anteriormente, em seus primórdios romanos era formalizado por intermédio da mancipatio que Gaio chamava de imaginaria venditio ou alternativamente pela in iure cessio, reivindicação ficta. 3.2.2.3 – A doutrina é sólida no sentido de afastar do negócio fiduciário a simulação, tendo praticamente apenas valor histórico a lembrança da 139 Lima, p. 192. 80 corrente que entendia de forma diversa. Cariota-Ferrara140 afirma de maneira taxativa que “i negozi fiduciari si distinguono nettamente dai simulati: è questo un punto fermo nella dottrina”, relacionando extensa lista de doutrinadores que assim entendem: Oertmann, Cosack, Ennecerus, Ferrara, N. Coviello, Regelsberger, Lang, Schony, Brutt, Goltz, Leist, Wulff, Bovensiepen, Schless, Fadda e o nosso Ascarelli. E é correto o entendimento de tal corrente, pois no negócio fiduciário não há efetivamente qualquer simulação, não havendo qualquer intuito de se formalizar uma declaração distante da verdade. O que as partes pretendem é efetivamente, celebrar um contrato por meio do qual se constitui uma garantia que fica aperfeiçoada com a transferência da propriedade do bem. Esta intenção de constituir garantia é conhecida de todos os participantes do contrato e também de terceiros que venham a tomar conhecimento dele, especialmente nos dias atuais com a sempre frequente exigência de registro de tais tipos de negócios, exatamente para que terceiros eventualmente interessados no bem tomem conhecimento de que sobre ele incide ônus de garantia fiduciária. O exame da fidúcia, tanto na atualidade, quanto sob o aspecto histórico, não pode deixar qualquer dúvida sobre o que pretendem as partes no momento em que celebram o negócio fiduciário, não só para as próprias partes como também para terceiros que dele tomem conhecimento, demonstrando que o instituto presta-se a preencher uma necessidade atual, preenchimento para o qual não se encontrou solução entre os institutos existentes, sendo necessário assim valer-se do tronco dos velhos institutos para que se renovem, criando novos contratos e preenchendo novas funções, na expressão de Ascarelli. 3.2.2.4 – Sousa Lima, após detalhado exame do direito comparado e de percuciente análise dos aspectos teóricos incidentes, afirma141: “Estas noções põem bem claro que não se poderá ver, no negócio fiduciário, qualquer identificação com o negócio simulado. As partes, embora usando de meios diversos, querem, realmente, não só o meio, mas também o fim. É a própria vontade das partes que se concretiza no negócio fiduciário, o que afasta, sem dúvida, qualquer ideia de simulação”. Os autores insistem na incontestável afirmação de que as partes queriam efetivamente o resultado a que chegaram com a celebração do contrato e que, desta forma, fica afastada característica fundamental para que se 140 141 Cariota-Ferrara, “I negozi fiduciari”, p. 43. Lima, p. 200. 81 pudesse reconhecer a existência de simulação. Outro autor nacional, Antão de Moraes142, no mesmo sentido, diz: “Trata-se, portanto, de um negócio sério, em que não há simulação, porque o fiduciário é, para todos os efeitos, o legítimo dono provisório dos bens adquiridos, com a só obrigação pessoal e não real, de respeitar a fidúcia ou confiança nele depositada ... ... Não há falar em simulação, porque a transmissão realizada corresponde, exatamente, à vontade das partes”. Túlio Ascarelli também afirma o afastamento da simulação, como já acima anotado. Anna Canepa e Umberto Morello lembram que143 “La Cassazione ripete da tempo la regola che il negozio fiduciario è realmente voluto per raggiungere gli scopi che le parti si propongono, mentre il negozio simulato è solo apparente”. 3.2.2.5 – No direito comparado, o entendimento é igualmente no sentido de inexistência de simulação, no contrato que envolve garantia fiduciária. Galgano anota que o contrato fiduciário é nulo, sempre que é celebrado para evitar a aplicação de norma imperativa, configurando-se em tal caso uma fraude à lei; lembra exemplos de fidúcia para evitar a aplicação da lei de locação, situação na qual o negócio é nulo, ressalvando, porém que, salvo casos de fraude, o contrato fiduciário não pode ser tido como resultado de simulação. Diz que144 “il contrato fiduciario si distingue dal contratto simulato per il fatto che, a differenza di questo, mira a realizzare effetti che sono voluti della parti; queste vogliono, nei casi ora esaminati, sai il trasferimento della proprietà da un contraente all’altro sai, in forza del patto fiduciario, il suo ritrasferimento (dal secondo al primo o dal secondo al terzo). Esso è, in linea di principio, valido ed efficace (salvo che non rivesta gli estremi del contrato in frode alla egge, como si dirà nel prossimo paragrafo)...”. Ferrara examina todos os elementos que compõem o negócio fiduciário e em seguida compara-o com o negócio simulado, para concluir pela inexistência de simulação. Admite que no negócio fiduciário existe uma divergência entre o fim econômico e o meio jurídico empregado, sendo necessário no entanto verificar-se que ambas as partes pretendem efetivamente o fim econômico ao qual se chega. Por isto mesmo, a divergência apontada não é suficiente para submeter o contrato ao regime aplicado para os casos de simulação. Diz145: “O negócio simulado é um contrato fingido, não real; o negócio fiduciário é um negócio Moraes, p. 386. Canepa, p. 709. 144 Galgano, p. 426. 145 Ferrara, p. 90. 142 143 82 querido e existente. O negócio simulado efetiva-se para produzir uma aparência, um engano: o negócio fiduciário pretende suprir uma ordem jurídica deficiente ou evitar certas consequências dum negócio. O negócio simulado é um negócio único, vazio de consentimento: o negócio fiduciário é uma combinação de dois negócios sérios, um real e outro obrigatório, neutralizando-se em parte e tendo influência contrária”. Cariota-Ferrara, já acima lembrado, compara o negócio fiduciário e o negócio simulado, entendendo que o elemento volitivo é determinante para demonstrar a inexistência de simulação na fidúcia, dizendo146: “Um raffronto fra le diverse situazioni che si determinano negli uni e negli altri non è, però, privo d’interesse e d’utilità, specialmente al fine di lumeggiare meglio la natura dei primi. L’elemento distintivo fra l’una e l’altra specie di negozi è uno solo: la volontà. Essa manca nel negozio simulato, esiste nel fiduciario”. CariotaFerrara lembra Schoni, que também se voltando para o exame do aspecto volitivo, ressalta que as partes estão de acordo em que não se transfira a propriedade, mas que todas estão de acordo em que se verifiquem todos os efeitos jurídicos que defluem da referida transferência. 3.2.2.6 – Examinada inicialmente neste capítulo a teoria do patrimônio, para que se fixasse juridicamente a instituição do patrimônio de afetação, a seguir foi visto o negócio fiduciário, elementos que serão posteriormente analisados em conjunto com a securitização, para que se possa identificar o novo tipo de garantia que está se formando para os negócios empresariais. Este novo tipo de garantia surge da junção destes três elementos aparentemente independentes entre si – patrimônio afetado, fidúcia e securitização –, fiel à tendência apontada por Ascarelli de adaptação de velhos institutos – ou pelo menos de institutos já conhecidos –, para que novas funções sejam preenchidas em atendimento a situações emergentes para as quais os instrumentos conhecidos não oferecem satisfação plena. Para o prosseguimento, neste momento é suficiente encerrar este exame do negócio fiduciário, com a definição proposta por Sousa Lima147, segundo a qual “negócio fiduciário é aquele em que se transmite uma coisa ou direito a outrem, para determinado fim, assumindo o adquirente a obrigação de usar deles segundo aquele fim e, satisfeito este, de devolvê-los ao transmitente”. 146 147 Cariota-Ferrara, p. 44. Lima, p. 170. 83 IV – SURGIMENTO E EVOLUÇÃO DA SECURITIZAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO; APROXIMAÇÃO A OUTROS INSTITUTOS 4.1 – Securitização, alienação fiduciária de imóveis e patrimônio de afetação 4.1.1 – A securitização surgiu recentemente em nosso sistema de direito, de tal forma que mesmo sua nomenclatura ainda é causa de confusão, não havendo segurança sequer com relação a este ponto. Recomendável assim é localizar a origem da palavra, para que a partir daí se tente delimitar seu real significado. O termo não consta do “Vocabulário Jurídico”, de De Plácido e Silva, na edição de 1988; não consta igualmente da “Enciclopédia Saraiva”, edição de 1977 e da “Enciclopédia Brasileira de Administração e Negócios”, da Editora Fundo de Cultura, edição de 1968. No “Dicionário Houaiss”, de 2001, consta como termo ligado à “economia”, significando o “ato de tornar uma dívida qualquer com determinado credor em dívida com compradores de título no mesmo valor” e ainda como “conversão de empréstimo (bancário, p. ex.) e outros ativos em ‘securities’, a serem vendidas a investidores”. O “Novo Aurélio”, na edição de 1999, também cataloga o termo como do campo da “economia”, com o significado de “operação de crédito caracterizada pelo lançamento de título com determinada garantia de pagamento” como “consolidação de uma dívida mediante a emissão, pelo devedor, de novos títulos, que incluem garantias adicionais” ou ainda com o significado de “operação de empréstimo externo caracterizada pelo lançamento de títulos garantidos por receitas futuras de exportação”. Anota finalmente, sob o aspecto etimológico, que a palavra formou-se a partir “do radical inglês ‘securit’, como em ‘securitário+izar’”. Curiosamente, portanto, as enciclopédias brasileiras de direito não registram o termo, enquanto os dicionários registram-no ligado à área não do direito e sim, da economia. 4.1.2 – Casio Martins Penteado Jr. observa que o nome “securitização” chega a encobrir a essência da operação à qual se está referindo, levando inicialmente a se imaginar um negócio relacionado a seguros, do qual se origina o termo adjetivando o negócio de “securitário”. Observa o referido 84 autor:148: “Provém a designação do aportuguesamento, infeliz como todos que são comuns nos dias de hoje (v.g., deletar, formatar) da expressão ‘securities’, que em inglês se refere a valores mobiliários, de tal forma que securitizar tem o significado de converter os créditos bancários ou de outra natureza em lastro para a emissão posterior de títulos ou valores mobiliários”. Esta palavra, originária do termo “securitisation” do inglês, é na realidade um jargão do mercado financeiro, que agora está incorporado ao jargão jurídico, fenômeno que ocorreu tanto na língua inglesa quanto no português. Oriunda da expressão inglesa “security”, que pode ser traduzida para “valor mobiliário”, o termo foi introduzido em nosso sistema jurídico sem maiores cautelas, o que já começa a oferecer dificuldades, passando a ser usada para diversas situações que não guardam qualquer semelhança entre si. Uinie Caminha relata a origem acidental do termo, dizendo que em 1977, uma jornalista entrevistou Lewis Ranieri149 “... indagando-lhe o nome que ele dava àquele processo; por falta de um termo melhor, ele o chamou de securitização. Antes de ser publicada a coluna, a jornalista teve que confirmar o nome da operação com o autor, pois o editor do jornal não o aceitou de pronto, alegando ter a jornalista usado de inglês impróprio. O termo securitização foi então publicado, pela primeira vez, com uma nota esclarecendo que se tratava de um termo pinçado por ‘Wall Street’, não sendo, assim, uma palavra ‘de verdade’”. Melhim Namem Chalhub, advogado e professor, que prestou constante assessoria na elaboração da Lei 9514/97, criadora da securitização de recebíveis imobiliários, também indica a década de 1970 como início das operações de securitização nos Estados Unidos, a partir de iniciativa tomada pela Government National Mortgage Association, que emitiu os denominados “GNMA pass-though”, que eram títulos vinculados a créditos hipotecários relativos a financiamentos para aquisição de casas da Federal Housing Administration e da Veterans Administration150. No entanto, e sem embargo da etimologia da palavra, anote-se que as operações de securitização, como estão sendo implantadas nos negócios empresariais do Brasil atualmente, não guardam qualquer relação com o conceito de “security” do direito americano, sendo na realidade decorrentes das operações que nos Estados Unidos são chamadas de “asset securitization”, lá surgidas na década de 1970151. Este mesmo sistema de negócio surgiu na Penteado Jr., “RDM”, p. 120. Caminha, p. 36. 150 Chalhub, p. 332. 151 Gaggini, p. 26. 148 149 85 França em 1983, com o nome de titrisation ou securitisacion a la française. Chalhub lista os nomes adotados nos diversos países que têm adotado este sistema de negócio152 que na Espanha é chamado de titulización; no México, bursatilización; na Colômbia, titularización; No Chile e na Argentina, com o mesmo nome adotado no Brasil, é chamado de securitización. 4.1.3 – Para evitar as armadilhas às quais o falso cognato sempre conduz, é recomendável, mesmo antes de buscar um conceito para o termo brasileiro securitização, afastá-lo de vez do termo security do direito americano, vez que este instituto do direito brasileiro eventualmente pode se aproximar do trust, não tendo porém qualquer relação com security. Nos Estados Unidos, o termo security é objeto das leis federais Securities Act, de 1933; Securities Exchange Act, de 1934; Public Utility Holding Company Act, de 1935; Investment Company Act, de 1940 e Investment Advisers Act, também de 1940. Relembre-se, a propósito, que a securitização no direito americano surgiu apenas em 1977153. Conforme anota Leães154, as definições trazidas pela lei para o termo security são praticamente idênticas, com mínimas diferenças que são irrelevantes para a perfeita interpretação, ademais diferenças todas afastadas ante a interpretação judicial que vem sendo dada sobre os tópicos destas diversas leis. A definição então aceita é, literalmente: “The term ‘security’ means any note, stock, treasure stock, bond, debenture, evidence of indebtedness, certificate of interest or participation in any profit-sharing agreement, collateral-trust certificate, preorganization certificate or subscription, transferable share, investment contract, voting-trust certificate, certificate of deposit for a security, fractional undivided interest in oil, gas, or others mineral rights, or, in general, any interest or instrument commonly know as a security, or any certificate of interest or participation in, temporary or interim certificate for, receipt for, guarantee of, or warrant or right to subscribe to or purchase, any of the foregoing”. Tal definição é corretamente criticada por Leães155, porque não delimita corretamente o objeto do exame e não traz de forma exauriente suas características essenciais, de tal forma que pode haver confusão com outros institutos. Ademais, traz relação de determinados tipos de security e, fundamentalmente, deixa a definição em aberto quando inclui “any interest or instrument commonly know as a security”. Chalhub, “Negócio Fiduciário”, p. 332. Caminha, p. 36. 154 Leães, Revista de Direito Mercantil nº 14, pp. 41/60. 155 Leães, idem, p. 43. 152 153 86 4.1.4 – Evidentemente, a abrangência de tal expressão choca-se com a precisão que se espera de qualquer definição, pois se está definindo pelo definido, vez que apenas será conhecido como security aquilo que efetivamente é security. Em outras palavras, todo instrumento ou direito comumente conhecido como security será conhecido de tal forma porque seus contornos se adaptam à definição e não porque é comumente conhecido assim. De qualquer maneira, o que se pretende aqui é afastar o termo securitização do termo security, pois este corresponde mais exatamente a “valor mobiliário”. Novamente é Leães156 que, ressaltando a dificuldade que naturalmente existe quando se pretende traduzir uma palavra que carrega atrás de si todo um complexo de instituições de um outro sistema legal, conclui: “Assim, não existe em português um vocábulo que corresponda ao termo ‘security’, havendo o legislador brasileiro, como se vê das passagens acima transcritas, traduzido por ‘títulos e valores mobiliários’. Se bem que as conotações dessa expressão não tenham ainda sido exploradas, existem alguns conceitos arraigados que, em princípio, tornam a tradução feita uma traição (traduttore, tradittore)”. Sem embargo, a constatação suficiente é que efetivamente a securitização do direito brasileiro não se originou do security do direito americano, havendo apenas uma semelhança no termo, sem qualquer semelhança dos institutos, embora como se verá adiante, a securitização opere com títulos mobiliários. 4.1.5 – Ainda antes de tentar a sempre difícil conceituação do que compreende o termo securitização, é curioso examinar texto de Armindo Saraiva Matias, Professor da Universidade Autônoma de Lisboa157, no qual é feito um apanhado geral da introdução do instituto da securitização nos países da Europa. Este autor observa que o primeiro país no qual surgiu o negócio da securitização foi nos Estados Unidos, na década de 1970; como vimos já anteriormente, o termo surgiu pela primeira vez, no ano de 1977. Na Alemanha começaram a ser praticadas operações de “titularização”, hoje comumente celebradas por bancos privados e públicos, que emitem títulos mobiliários a partir de créditos hipotecários originários de construções destinadas tanto à habitação quanto ao comércio. Na França, a titrisation passou a ser celebrada a partir de 1983, seis anos depois de surgir nos Estados Unidos; guarda características diversas dos sistemas usados nos demais 156 157 Idem, ibidem, p. 59. Matias, “Revista de Direito Mercantil”, vol. 112, pp. 48/54. 87 países e tem tido um incremento bastante lento, especialmente pelos custos que a operação costuma envolver. O sistema legal italiano, que traz regras limitativas à emissão de títulos mobiliários atípicos pelos agentes atuantes em tal mercado, acaba criando óbice ao desenvolvimento de negócios de securitização, de tal forma que não houve boa recepção para este tipo de operação. A Inglaterra, com sistema legal originariamente semelhante ao norte-americano, tornou-se a nação na qual a titularização mais se introduziu, superada apenas pelos Estados Unidos; da mesma forma que na Alemanha, incide quase exclusivamente sobre empréstimos hipotecários relacionados a sociedades de créditos imobiliários. Na Espanha, a partir de 1980, os negócios efetuados por meio de titularização de créditos, passaram a ganhar maior incremento, também com incidência sobre negócios hipotecários. Na Bélgica, é conhecida sob o mesmo nome de titrisation adotado na França, no qual, aliás, o sistema inspirou-se; apesar disto e apesar do sistema francês guardar grandes diferenças do sistema anglo-saxão, este sistema belga criou um tipo de fundo, fond commum de créances, que se assemelha ao trust do modelo inglês. Finalmente, o autor relata a experiência em sua terra, Portugal, anotando que embora não haja regras específicas, ainda assim há contratos celebrados tanto na forma do modelo francês de titrisation quanto do modelo anglo-saxão de securitisation. A seguir, este autor faz um exame do funcionamento de cada um dos tipos de contrato nos negócios portugueses, aqui não examinados por não se tratar de objeto do estudo em curso. 4.1.6 – Em todos os sistemas examinados, é possível notar que a securitização ocorre preferencialmente com relação a créditos hipotecários, porque a extensão dos pagamentos no tempo e a maior segurança decorrente da garantia sobre bens imóveis oferecem melhores condições de manejo do instituto. No entanto, Matias158 anota o fato de que “a imaginação dos operadores tenha feito (a securitização) enveredar por muitas outras espécies de activos. Serão certamente, porém, menos duráveis e, porventura, menos seguros que os activos hipotecários”. No exame do direito brasileiro, embora a securitização também ocorra relativamente a outros tipos de créditos, o exame será centralizado nos créditos garantidos por alienação fiduciária de imóveis, sobre os quais passou a incidir o instituto, após a promulgação da Lei 9514/97 e da recente Lei 10931/04. Por outro lado, na presente altura da 158 Matias, idem, p. 49. 88 exposição, já examinada a origem da nomenclatura “securitização”, afastada em seguida a possível confusão que poderia advir a partir do “security” do direito americano com o qual o objeto do presente estudo não guarda relação de origem e, lembrada a forma de recepção em diversos países europeus deste novo instituto, passa-se agora à tentativa de definição da “securitização”, atento ao princípio inserto no brocardo “definitio fit per genus proximum et differentiam specificam”. Não se perde de vista a recomendação de Paulo Toledo, no sentido de que a tentativa de definir não deve ser feita no início do estudo, pois tal método159 “... parece não ser o melhor, na medida em que se tem em mente que definir é estabelecer limites. Ora, para tanto, ou seja, para que se possa traçar os contornos, isto é, o continente, é preciso que o conteúdo, que o conforme e o configura, seja conhecido”. 4.1.7 – A imprecisão do termo “securitização” já está se refletindo na jurisprudência dos tribunais do País, que têm usado este nome para se referir a fenômenos jurídicos que, embora semelhantes, não podem ser confundidos. Assim é que a Lei nº 9.138, de 29.11.95, que “dispõe sobre o crédito rural, e dá outras providências” prevê em seu artigo 5º, a possibilidade de “alongar” as dívidas dos produtores rurais, concedendo-lhes prazo maior para o pagamento160 de dívidas contraídas ante as instituições e agentes financeiros que atuam neste segmento de operações de crédito. Esta lei prevê um complexo sistema de garantias para a dívida cujo prazo de pagamento foi alongado, por meio do § 1º de seu artigo 6º161 e inciso I do § 6º-C do artigo 5º162, com emissão e financiamento de títulos do Tesouro Nacional, que garantirão o pagamento dos saldos devedores encontrados. Trata-se, portanto de um tipo de renegociação de dívida com possibilidade de garantia Toledo, RDM 80, p. 133 Art. 5º São as instituições e os agentes financeiros do Sistema Nacional de Crédito Rural, instituído pela Lei nº 4.829, de 5 de novembro de 1965, autorizados a proceder ao alongamento de dívidas originárias de crédito rural, contraídas por produtores rurais, suas associações, cooperativas e condomínios, inclusive as já renegociadas, relativas às seguintes operações, realizadas até 20 de junho de 1995. 161 Art. 6º É o Tesouro Nacional autorizado a emitir títulos até o momento de R$ 7.000.000.000,00 (sete bilhões de reais) para garantir as operações de alongamento dos saldos consolidados de dívidas de que trata o art. 5º. § 1º A critério do Poder Executivo, os títulos referidos no caput poderão ser emitidos para garantir o valor total das operações nele referidas ou, alternativamente, para garantir o valor da equalização decorrente do alongamento. 162 Art. 5º, §6º-C. As instituições integrantes do Sistema Nacional de Crédito Rural – SNCR, na renegociação da parcela a que se referem os § 6º, 6º-A e 6º -B, a seu exclusivo critério, sem ônus para o Tesouro Nacional, não podendo os valores correspondentes integrar a declaração de responsabilidade a que alude o § 6-A, ficam autorizadas: I – a financiar a aquisição dos Títulos de Tesouro Nacional, com valor de face equivalente ao da dívida a ser financiada, os quais devem ser entregues ao credor em garantia do principal. 159 160 89 de pagamento com a aquisição de títulos do Tesouro Nacional, operação que não guarda qualquer característica de securitização, pelo menos da forma como vem sendo entendida em nosso meio jurídico. No entanto, esta operação de alongamento ficou conhecida no meio jurídico e na jurisprudência como de “securitização”, notando-se o uso indiscriminado do termo, mesmo nos julgados do Superior Tribunal de Justiça163. Apenas como exemplo, no Agravo Regimental 320.989-RS, o Relator Ministro Ari Parglender faz menção à “obrigatoriedade de alongamento da dívida do recorrido, securitizando a dívida”; no Recurso Especial 227.587-SP, o Ministro Barros Monteiro, em seu voto expressa-se assim; “Firmou-se a jurisprudência desta Corte no sentido de que o alongamento (securitização) da dívida rural previsto na Lei 9138...”. No julgamento do Recurso Especial 470.806-RS-, o Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito parece indicar que entende impreciso o termo, tanto que fala: “... novo termo da renegociação, mesmo que esta significasse, a partir de então, benefício para o devedor, como ocorre na denominada securitização” (sem grifo no original). Aliás, é natural que assim ocorra, pois como já advertia Ascarelli quando falava sobre negócio indireto, este evolver do direito na busca de novas soluções para problemas antigos, muito embora contínua, ainda assim é lenta, e nada mais natural que se aguarde um certo tempo até que o próprio sentido da expressão possa ser pacificado. 4.1.8 – Impõe-se, portanto, a busca da definição de securitização. Sob um aspecto puramente econômico – e é na economia que esta palavra tem origem -, pela securitização o que o credor procura é conseguir formas novas de financiamento, cedendo para uma sociedade de propósito específico os créditos que tem a receber a longo prazo, de tal forma que esta outra sociedade lance no mercado, para compra pelo público em geral, valores mobiliários garantidos pelos créditos que o credor possui para recebimento a médio e longo prazos. Estes créditos são o lastro dos valores mobiliários que serão lançados pela sociedade de propósito específico, a sociedade empresária “securitizadora”. Toda esta sequência de operações, que acaba por desaguar na captação de dinheiro do público investidor é que tem sido aqui chamada de “securitização”. É forma bastante criativa para desintermediar a transformação de crédito em dinheiro, tomando-se o termo desintermediação como a 163 Acessando-se o site do STJ (www.stj.gov.br), no ícone “jurisprudência”, há 75 julgados que tratam esta operação como de “securitização” (pesquisa efetuada em 27.12.05). 90 possibilidade de captação imediata de dinheiro por conta de crédito futuro, diretamente do público investidor, sem a intermediação do sistema bancário em geral. A operação assim estruturada envolveria diversos participantes, cujos nomes é necessário fixar e, para tanto, imagine-se a operação de securitização que diz respeito à construção de prédio de apartamentos para venda a prazo. A primeira figura da cadeia negocial é o “devedor”, ou seja, aquele que adquiriu o apartamento para pagamento a prazo normalmente longo e que, no ato da aquisição, assume uma dívida, sendo credor o incorporador ou construtor do imóvel. Este incorporador ou construtor é chamado “originador”, pois dará origem à operação de securitização, ao fazer a cessão de seus créditos a uma SPE, sociedade de propósito específico, também chamada VPE, veículo de propósito específico ou ainda SPC, special purpose company. Esta sociedade de propósito específico é a sociedade anônima chamada de “securitizadora”; ao receber os créditos em cessão, fará de imediato ou a determinado prazo, os acertos financeiros com o “originador” e emitirá títulos, chamados de “certificados de recebíveis imobiliários” ou simplesmente “recebíveis”. Estes “recebíveis” são os títulos mobiliários (security do direito americano) que serão vendidos no mercado aos investidores. Em linhas gerais, é desta forma que se configura uma operação de securitização de dívidas imobiliárias (o exemplo imobiliário foi tomado apenas para facilitar a exposição), com o que se capta dinheiro da poupança popular ou de poupadores institucionais, chamados de investidores, possibilitando o rápido giro do dinheiro do construtor ou incorporador, que terá assim reposto seu capital sem necessidade de qualquer intermediação do sistema bancário. Portanto, quase que em ordem cronológica de aparecimento, temos: devedor, originador, securitizador e investidor, com cessão de crédito do originador para o securitizador e com emissão de recebíveis do securitizador para o investidor. 4.1.9 – Com estes elementos, é possível ter a visão do funcionamento de um processo de securitização; a propósito, em linhas bastante gerais e didáticas, Borges164 apresenta os passos sequenciais de uma operação de securitização, expondo-os de forma ordenada: “Tudo começa com uma relação comercial entre a originadora das receitas e seus clientes. O passo seguinte é a constituição de uma SPE, que segregue o risco da originadora; essa SPE compra os créditos de que a originadora é titular perante seus devedores. Os pagamentos 164 Borges, “Revista de Direito Bancário...”, p. 264. 91 periódicos desses devedores passam a ser feitos à SPE ou, mais provavelmente, a um agente de cobrança autônomo (servicer), e auditados por empresa independente, que emitirá relatórios, verificando a regularidade da cobrança dos créditos. A SPE contrata uma agência de classificação de risco para emitir um ‘rating’ sobre a própria SPE e sobre os títulos de sua emissão, garantindo o seu acompanhamento. A SPE emite os títulos (commercial papers ou debêntures, normalmente) e escolhe um agente fiduciário que irá representar os detentores desses valores mobiliários, convocando assembleias, emitindo relatórios e, eventualmente, executando a SPE. Os títulos são então emitidos, normalmente através de corretoras em caráter público (com registro na CVM) ou privado, e adquiridos pelo mercado. Os recursos apurados são pagos à SPE diretamente ou a um ‘trustee’ contratado, que cuidará de repassá-los à sociedade originadora. Com os pagamentos feitos pelos devedores originais, a SPE resgatará os títulos emitidos, fechando a operação. Se for o caso, repetir-se-á o ciclo novamente”. De forma bastante concisa, porém de maneira igualmente esclarecedora, Uinie Caminha165 diz que a securitização inicia-se com a segregação que o originador faz de determinado ativo de seu patrimônio geral, cedendo-o a uma VPE; esta, tendo como lastro o ativo cedido, emite títulos e os oferece aos investidores, conseguindo assim uma receita que demandaria ainda tempo para ser realizada pelo originador. 4.1.10 – Retomando a linha de pensamento a partir do item 4.1.6 acima, pode-se agora tentar uma definição para o termo securitização, na forma como atualmente se encontram em curso tais tipos de negócio. Embora a melhor técnica legislativa recomende que não compete à lei e sim à doutrina, auxiliada pela jurisprudência, a definição de institutos, ainda assim a Lei 9.514, de 20.11.97, em seu artigo 8º, traz elementos definidores para determinado tipo de securitização, ao estabelecer que “a securitização de créditos imobiliários é a operação pela qual tais créditos são expressamente vinculados à emissão de uma série de títulos de crédito, mediante Termo de Securitização de Créditos, lavrado por uma companhia securitizadora, do qual constarão os seguintes elementos”; a seguir, em três incisos, a lei lista os elementos que devem constar do termo de securitização. Os autores nacionais que têm estudado a matéria estão se preocupando com a necessária definição do termo. Chalhub166 diz que “securitização é um processo de distribuição de riscos mediante agregação 165 166 Caminha, p. 41. Chalhub, p. 332. 92 de instrumentos de dívida num conjunto e consequente emissão de um novo título lastreado por esse conjunto”. Sem embargo da autoridade da fonte, a definição passa a ideia de que um novo título será emitido a partir do lastro representado pelo crédito transferido pelo originador, quando na realidade centenas ou milhares de títulos mobiliários é que deverão ser emitidos, exatamente para que se possa atender à necessidade que ditou a criação da securitização, ou seja, o adiantamento de valores a receber em decorrência da captação da poupança de investidores pessoais ou institucionais. Por outro lado, é possível securitizar não só créditos existentes como também previsão de fluxo futuro de caixa ou expectativa de recebimento futuro de valores em geral, tal como previsão de lucro líquido. 4.1.11 – Borges, em sua proposta de definição, faz a distinção entre securitização, com interveniência de sociedade de propósito específico e sem tal interveniência. Para os casos nos quais a operação é feita sem a interveniência de sociedade de propósito específico, o autor propõe a seguinte definição167: “Securitização é o termo utilizado para identificar aquelas operações em que o valor mobiliário emitido, de alguma forma, está lastreado ou vinculado a um direito de crédito, também denominado de direito creditório ou simplesmente recebível. Uma receita que é uma expectativa de resultado, torna-se um recebível quando surge uma relação jurídica que lhe dê respaldo, originada de um contrato ou de um título de crédito”. Para os demais casos, nos quais o credor original efetua a operação de securitização valendo-se de sociedade de propósito específico, o autor propõe outra definição, dizendo ser “... o processo pelo qual o fluxo de caixa gerado por recebíveis ou bens é transferido para uma outra empresa (neste caso mais voltada para as operações de giro), criada para esse fim, suportando uma emissão pública ou privada de títulos (ou valores mobiliários), que representam uma fração ideal do total dos ativos”. Pela leitura, verifica-se que a definição padece de certa falta de concisão, sem prejuízo de sua qualidade. 4.1.12 – Antônio Martin168 diz: “Ensina a doutrina que a securitização de recebíveis é o processo por meio do qual se agrupam determinadas formas de crédito, a partir dos quais são emitidos valores mobiliários no mercado de 167 168 Borges, “Revista de Direito Bancário...”, p. 258. Martin, “Comentários à Lei de Recuperação...”, p. 473. 93 capitais, repassando (e pulverizando) o risco para terceiros, que são investidores adquirentes dos valores mobiliários”. Uinie Caminha propõe uma definição com grande abrangência e que mantém a necessária concisão, dizendo169: “Assim, pode-se definir securitização como um conjunto de contratos que visa à emissão de títulos garantidos por um ativo específico, segregado geralmente em veículo de propósito exclusivo do patrimônio geral da sociedade beneficiária final dos recursos captados”. Trazidas todas estas definições, passa-se a propor a abaixo, que pretende abranger a securitização feita diretamente pelo credor sem a intervenção de sociedade de propósito específico bem como aquela feita com tal intervenção, com a consideração também de que a securitização apenas se configura com a sequência de contratos e operações, que se estendem no tempo. Assim, por securitização, entende-se a sequência de contratos e operações mediante os quais o credor original, segregando em patrimônio especial, créditos de médio ou longo prazo ou fluxos financeiros futuros, promove de forma direta ou por meio de cessão de direitos a uma sociedade de propósito específico, a emissão de títulos representativos de parcelas do total, títulos lastreados nos direitos referidos, a serem oferecidos a investidores, para a captação de recursos. 4.2 – Lei 9514/97 – Alienação fiduciária de imóveis 4.2.1 – Como visto, a securitização pode ter por objeto os mais diversos tipos de créditos; no entanto, mostrou-se especialmente eficaz para o atendimento da necessidade de capitalização no mercado imobiliário, tendo, aliás, seu nascimento, na década de 70, nos Estados Unidos, ligado exatamente a este tipo de negócio. Anota Uinie Caminha170 que naquela década “a demanda por recursos para financiamento à habitação e a pouca oferta de capitais fizeram com que o mercado encontrasse mecanismos alternativos ao financiamento imobiliário tradicional”. Conforme já acima anotado, também na Europa, nos países nos quais a securitização tem sido bem aceita, é dirigida quase que preferencialmente, se não exclusivamente, para o mercado de créditos hipotecários. Igualmente, aqui no Brasil, embora tenha sido usada anteriormente para outros tipos de créditos, especialmente em operações de exportação, acabou decididamente sendo dirigida também 169 170 Caminha, p. 39. Caminha, p. 39. 94 para os negócios imobiliários, especialmente impulsionada pela crise que se afigura insolúvel dos créditos destinados ao mercado imobiliário pelo antigo Banco Nacional da Habilitação, dentro do sistema conhecido como “SFH”, Sistema Financeiro da Habitação, que não conseguiu atingir a meta almejada de encaminhar solução para o grave problema da falta de habitação. Chalhub, falando sobre a necessidade que se apresentou de criação de novos mecanismos de solução para a crise imobiliária, anota171: “Dada essa realidade, considerando que esse sistema de garantias inibe o carreamento de recursos para o setor imobiliário, a nova lei tem em vista criar as condições necessárias para a revitalização e expansão do crédito imobiliário e, partindo do pressuposto de que o bom funcionamento do mercado, com permanente oferta de crédito, depende de mecanismos capazes de imprimir eficácia e rapidez nos processos de recuperação dos créditos, permitiu a utilização da alienação fiduciária como garantia nos negócios imobiliários”. 4.2.2 – Este direcionamento para o campo específico do setor imobiliário foi coroado pela promulgação da Lei 9514, de 20 de novembro de 1997, que “dispõe sobre o sistema de financiamentos imobiliários, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências” e que já em seu artigo 3º172 delimita o campo de atuação das companhias securitizadoras de créditos imobiliários, instituições não financeiras com a finalidade específica de adquirir e securitizar os créditos, oferecendo no mercado financeiro o que se conhece como “CRI”, certificados de recebíveis imobiliários, com o intuito de, sem intervenção do sistema bancário, abrir uma fonte de capitalização rápida para o setor imobiliário. As grandes construtoras e incorporadoras têm constituído sociedades securitizadoras das quais são as próprias controladoras, permanecendo o financiado, adquirente da unidade imobiliária, como devedor fiduciante e ela mesma, securitizadora, como credora fiduciária, de tal forma que se houver descumprimento por parte do devedor original, a execução é feita pela própria securitizadora. 4.2.3 – Observe-se que o legislador traz uma inovação marcante, que consiste no fato de estender ao bem imóvel a possibilidade de incidência da 171 172 Chalhub, p. 197. Art. 3º “As companhias securitizadoras de créditos imobiliários, instituições não financeiras constituídas sob a forma de sociedade por ações, terão por finalidade a aquisição e securitização desses créditos e a emissão e colocação, no mercado financeiro, de Certificados de Recebíveis Imobiliários, podendo emitir outros títulos e prestar serviços compatíveis com as suas atividades”. 95 alienação fiduciária que anteriormente era possível apenas sobre bens móveis. Nesta lei, destinada a fornecer melhores condições para a criação de fontes de financiamento para a indústria imobiliária, há uma primeira conjugação da garantia fiduciária, pela alienação fiduciária do bem imóvel e há ainda uma outra conjugação da garantia fiduciária, no momento em que esta garantia é transferida para a titularidade da companhia securitizadora, o que será examinado adiante. Importa agora ressaltar que esta conjugação ocorre com vistas a aumentar a garantia ao negócio celebrado, ante o desprestígio no qual caiu a garantia hipotecária e ante a solidez da garantia que a prática havia demonstrado para os financiamentos de bens móveis, por meio do Decretolei 911/69. O exame da Lei 9514/97 será retomado no capítulo seguinte; no momento, é suficiente fixar o início da criação de um novo instrumento de garantia ao financiamento imobiliário, pela junção de dois institutos já conhecidos, a securitização e a alienação fiduciária para formação de um novo instituto, perseguindo a satisfação de novas necessidades na forma lembrada por Ascarelli. 4.3 – Lei 10.931/04 – Patrimônio de afetação 4.3.1 – A Lei 10.931, de 2.8.04, veio juntar à securitização e à alienação fiduciária, a segregação pelo patrimônio de afetação. Na realidade, a Lei 9514/97, ao instituir a garantia fiduciária, já falava em patrimônio de afetação173, incidindo sobre o patrimônio separado constituído pelos direitos de crédito transferidos por cessão à companhia securitizadora. A nova lei avança um pouco mais na busca de solidez das garantias e possibilita a afetação da própria incorporação, ou melhor, dos terrenos e bens objeto da incorporação, bem como bens e direitos a ela relativos. 4.3.2 – Junta-se portanto aqui o terceiro elemento antigo e já conhecido, ou seja, o patrimônio de afetação, aos outros dois também já conhecidos – fidúcia e securitização –, criando um novo instituto que traz o aumento da garantia perseguida pelos que atuam no mercado de construção imobiliária. O exame dos mecanismos estabelecidos para a garantia pretendida possibilitará também o exame do que foi obtido em termos de efetiva extensão e eficácia da garantia. 173 Art. 10. O regime fiduciário será instituído mediante declaração da companhia securitizadora ... que... submeter-se-á às seguintes condições: I ... II – a constituição de patrimônio separado, integrado pela totalidade dos créditos submetidos ao regime fiduciário que lastreiem a emissão; III – a afetação dos créditos como lastro da emissão da respectiva série de títulos ... . 96 4.4 – Lei 11.101/05 – Nova Lei de Recuperação de Empresas e Falência 4.4.1 – A análise até agora efetuada está dirigida ao exame dos elementos componentes do moderno negócio de securitização, sempre porém com a vista também voltada para o que significam os institutos da fidúcia, da securitização e do patrimônio de afetação, em termos de segurança para os negócios empresariais relacionados à construção de imóveis. Se de um lado há necessidade de garantias em favor do empresário, de outro há também necessidade de garantias “contra” o empresário. Esta proteção das garantias torna-se especialmente necessária para o caso de eventual falência da sociedade empresária que cuida da incorporação ou construção do imóvel. 4.4.2 – Com vistas a tal proteção, a Lei 11.101, de 9.2.05, a Lei de Recuperação de Empresas e Falências, estabelece, no parágrafo 1º de seu artigo 136174, a impossibilidade de o negócio de cessão da construtora para a securitizadora ser declarado ineficaz ou revogado. Desta forma, em caso de falência desta última, a possibilidade de ação revocatória ou declaração de ineficácia fica afastada. 174 Art. 136 ... § 1º Na hipótese de securitização de créditos do devedor, não será declarada a ineficácia ou revogado o ato de cessão em prejuízo dos direitos dos portadores de valores mobiliários emitidos pelo securitizador. 97 V – DA FIDÚCIA À SECURITIZAÇÃO: EVOLUÇÃO HISTÓRICA 5.1 – Do direito romano ao direito brasileiro 5.1.1 – Como já anteriormente examinado, Carlo Longo, em seu Corso di Diritto Romano, rememora que a fidúcia nos moldes do direito romano, já como fidúcia cum creditore, manteve-se presente durante toda a época clássica, o que se comprova pela presença de regulamento do negócio fiduciário nos editos dos pretores, bem como por ser tratada como um instituto prático pelos jurisconsultos romanos, entre os quais alinha Gaio, Pompônio, Africano, Marcelo, Giuliano, Ulpiano, Paolo e Modestino, este o último representante da jurisprudência da época clássica. Na fase pós-clássica, Longo afirma que175 “non v’è motivo di dubitare che il negozio fiduciario abbia continuato da principio ad essere praticato; nè sarebbe naturale che fosse avvenuta cosa diversa”. No entanto, com o decurso do tempo, o negócio fiduciário acaba caindo em desuso no sistema do direito romano, entre outras razões até como consequência da decadência dos institutos da mancipatio e da in iure cessio, modos formais de transferência da titularidade do direito de propriedade em toda sua plenitude, respectivamente para as res mancipi e para as res nec mancipi. Ainda no fim do quarto século, foi possível localizar as últimas anotações históricas que indicam o uso, mesmo que de forma extremamente rara da fidúcia. O fragmento “Vaticani” traz ainda forma de regulamento jurídico do negócio fiduciário; também uma constituição de Arcádio e Onório, do ano de 395, traz anotação que embora não possa ser considerada regulamento da fidúcia “ricorda almeno la fidúcia obligatio accanto alla pignoris obligatio”176. Bonfante177 anota que a fidúcia constituía “... um negozio um negozio di vasta applicazione e di grande interesse nel diritto clássico...; ma nel diritto giustinianeo essa è abolita completamente”. No entanto, Bonfante acrescenta ainda que já na fase clássica do direito romano, o penhor, o depósito e o comodato recebiam uma vasta e Longo, p. 163. Longo, p. 164. 177 Bonfante, pp. 325/6. 175 176 98 generalizada aplicação, o que vai resultar nas interpolações de Justiniano sobre os textos que tratam da fidúcia, então em desuso. Sousa Lima faz afirmação exatamente neste sentido, anotando que após a fase clássica do direito romano, deixa a fidúcia de ser usada de forma frequente e variada, entrando em declínio juntamente com o abandono da mancipatio e da in iure cessio, até seu completo desaparecimento na “legislação de Justiniano, onde só encontramos vestígios de sua existência pelo exame de textos, alguns visivelmente interpolados, e, outros, de interpolação duvidosa”178. 5.1.2 – Em prosseguimento ao texto acima transcrito, é também de Sousa Lima a afirmação no sentido de que “... este instituto ressurgiu no direito moderno, como uma imposição da própria vida jurídica e para preencher, como no direito romano, lacunas e deficiências da legislação atual”. Gomes, referindose, entre outros, à alienação fiduciária, fala que “são, realmente, figuras originais que foram criadas para atender a novas exigências econômicas...”179. A necessidade especial que determinou o ressurgimento da fidúcia repousa na busca por garantias cada vez mais efetivas para os negócios em geral, especialmente para financiamentos e, dentre estes, mais especificamente aqueles fornecidos pelo capital financeiro em geral, por meio das instituições bancárias. E a transferência da propriedade pela fidúcia prestou-se com tal perfeição a tal tipo de garantia, pois como ressalta Galgano, neutraliza-se a possibilidade de concorrência de outros credores vez que180 “... il bene é sotrrato all’azione executiva dei creditori personali del proprietario fiduciário e cosí via”. A relevância com que tal questão se apresenta nos dias atuais prendese à necessidade do fornecimento de capital para as atividades produtivas, sem o que inviabiliza-se a própria atividade empresarial geradora de bens, empregos e riquezas que formam a base do desenvolvimento econômico e social de uma nação. O crédito possibilita o uso imediato por um empresário, do numerário que apenas seria entregue a ele depois que, terminado todo o processo produtivo, viesse o bem produzido a ser vendido no mercado, o que em consequência exigiria de referido empresário uma reserva de capital que a rapidez dos negócios atuais não mais torna possível. Como diz Fran Martins181, pelo fornecimento de crédito, apresenta-se a “possibilidade de Lima, p. 87. Gomes, p. 458. 180 Galgano, “Il Negozio...” p. 421. 181 Martins, “Títulos de Crédito”, p. 5. 178 179 99 uma pessoa gozar, hoje, de dinheiro cujo pagamento será feito posteriormente (dinheiro presente por dinheiro futuro)” pelo que “pode alguém, hoje, ser suprido de determinada importância, empregá-la no seu interesse, fazê-la produzir em proveito próprio”, isto porque assumiu o compromisso de devolver, dentro de determinado tempo, o dinheiro que lhe foi entregue pelo financiador, mais os frutos do capital. É a mesma expressão de Ascarelli182 para quem, graças aos títulos de crédito e, evidentemente, ao próprio crédito “... o direito consegue vencer tempo e espaço, transportando, com a maior facilidade, representados nestes títulos, bens distantes e materializando, no presente, as possíveis riquezas futuras”. 5.1.3 – Esta frenética busca por capital financeiro para o incremento e manutenção da produção na sociedade capitalista, determina o surgimento de outro problema, para o qual há necessidade de busca de solução. Com efeito, não basta ao mundo empresarial que o capital seja farto e abundante, pois é necessário que também seja barato ou, pelo menos, não seja caro a ponto de obrigá-lo a despender valor maior do que aquele que virá a lucrar com a venda do bem produzido ou do serviço prestado. O preço do capital, ou seja, os juros, serão tanto menores quanto maiores forem as garantias de retorno do valor emprestado e, na outra ponta, serão tanto maiores quando menores forem as garantias. Relembre-se ainda que a necessidade de fornecimento de crédito se faz sentir não só por parte do produtor de bens ou serviços, como também por parte daquele que vai consumir tais bens ou valer-se dos serviços oferecidos, dentro da cadeia que o sistema capitalista de produção exige para seu contínuo funcionamento. Desta forma, a oferta de garantias mais sólidas apresenta-se cada vez com emergência maior, necessidade que não encontraria satisfação pronta e a tempo, ante a característica inércia jurídica a que se refere Ascarelli e que impede a mudança constante do sistema, o que viria a causar insegurança e incerteza nas relações das quais se espera cada vez maior solidez e eficácia. Daí, o surgimento da necessidade de se lançar mão de velhos institutos para o atendimento desta nova necessidade, também como lembra Ascarelli; e daí também, o ressurgimento da fidúcia no direito moderno brasileiro. 5.1.4 – Em fins do século XIX e início do século XX, na Europa, esta busca por maiores garantias para o incremento do crédito começou a se fazer sentir, na 182 Ascarelli, “Teoria Geral dos Títulos de Crédito”, p. 25. 100 medida em que as garantias tradicionais da hipoteca e do penhor começaram a se mostrar insuficientes para a segurança pretendida por parte dos fornecedores de crédito, com risco de travar tal fornecimento ou, alternativamente, de fazer com que o risco de não pagamento decorrente da ausência de garantia sólida fizesse com que os juros tornassem desinteressante e antieconômico ao devedor, valer-se de qualquer tipo de busca de financiamento. Surge aí um aspecto dialético curioso que vale a pena ressaltar, se não por outro motivo, pela simples curiosidade da constatação. Na época de Justiniano, exatamente a hipoteca e o penhor vieram substituir a fidúcia, que tirava das mãos do devedor o uso do bem dado em garantia, impedindo-lhe o exercício de sua atividade produtiva e dificultando a produção que se pretendia incrementar com o crédito fornecido; estes mesmos institutos que baniram do sistema romano a fidúcia, são agora banidos pela mesma fidúcia, com nova roupagem que torna a garantia mais sólida, sem tirar das mãos do devedor o bem, que continua a ser por ele usado normalmente, até a quitação da dívida assumida com o financiamento. Voltando, no entanto, à trilha do pensamento que está sendo exposto, a hipoteca e o penhor, nos tempos modernos, deixaram de apresentar a mobilidade e a solidez que a sociedade industrial e de serviços exige, por duas razões fundamentais. A primeira diz respeito aos custos e ao tempo exigidos para a constituição de tais garantias, especialmente a hipotecária, a exigir formalidades que não se compadecem com a agilidade dos negócios do mundo comercial ou empresarial. Basta lembrar as inúmeras solenidades exigidas para formalizar a garantia hipotecária, com celebração de escritura pública ou documento equivalente, a qual valerá erga omnes após o registro na circunscrição imobiliária correspondente. 5.1.5 – Não só esta morosidade constituiu-se o óbice que se apresentou e que acabou por resgatar novamente para os dias atuais a garantia fiduciária. É que a constituição destas garantias tradicionais, na medida em que deixa ao devedor a propriedade do bem em sua plenitude, passou a sofrer interferências dos sistemas jurídicos que estabeleciam privilégio em favor de outros credores sem garantia constituída, porém de natureza social preponderante, especialmente os créditos tributários dos três planos do poder público – União, Estados e Municípios –, como também a partir dos créditos trabalhistas, por sua característica de dívida de natureza alimentar. É 101 exatamente o que ressalta Moreira Alves183, quando diz: “É de notar-se, ainda, que, se a transmissão da propriedade, com escopo de garantia, serve, hoje, para atender à proteção do credor sem o desapossamento, do devedor, de coisas que lhe são indispensáveis até para obter os recursos necessários ao pagamento do débito – e essa necessidade já se fazia sentir, com intensidade, nos fins do século passado e no início deste, em países como a Alemanha – ... na Idade Média servia para fraudar a proibição canônica da percepção de juros, como acentua H. Jung...”. E completa seu pensamento dizendo que “o que é certo, portanto, é que, a partir, precipuamente, do século passado, se tem sentido, cada vez mais, a necessidade da criação de novas garantias reais para a proteção do direito de crédito”. A urgência de se encontrar novos instrumentos de garantia para a satisfação da complexidade dos negócios da atualidade – que a cada dia vão mais e mais se sofisticando-, é constatação unânime dos autores dedicados ao estudo fidúcia, anotando Chalhub184 serem “inúmeros os casos em que se reclama a construção de novas figuras para suprir necessidades de natureza negocial e de proteção da economia popular”. 5.1.6 – Praticamente afastado de qualquer prática nos países de tradição romana, o negócio fiduciário exigia uma formulação teórica moderna, para que pudesse se prestar ao atendimento do novo tipo de garantia que a sociedade passou a exigir após a revolução industrial. Esta nova formulação veio inicialmente de Regelsberger, em 1880, após a análise que dois anos antes havia sido feita por Kohler, este estabelecendo a precisa diferença teórica entre “negócio encoberto” ou negócio simulado de um lado e, de outro, do negócio indireto, ao quais Ihering considerava idênticos, configurando um simples desdobramento do outro. Também na Alemanha, em 1910, Lothar Kaul publica estudo sobre o negócio fiduciário, anotando Moreira Alves que toda esta agitação intelectual em torno do assunto não produziu maiores reflexos no Brasil, quer entre os juristas quer nos Tribunais. Escrevendo a primeira edição de seu livro antes do ano de 1973, anota este autor que podia na ocasião perceber-se já uma busca por tipos alternativos de garantia mais eficientes, “haja vista, na ex-Guanabara, a larga utilização da retrovenda com escopo de garantia, que pode configurar negócio jurídico indireto”185. Neste mesmo Alves, p. 3. Chalhub, p. 72. 185 Alves, p. 6. 183 184 102 sentido, é a observação de Martins no sentido de que, no Brasil, mesmo antes de qualquer introdução oficial de qualquer tipo de negócio fiduciário, tal tipo de negócio era bastante usado, por meio de negócios simulados186. 5.1.7 – Estas foram as condições que determinaram a introdução, em nosso sistema jurídico, da garantia fiduciária que até então era, pelo menos oficialmente, desconhecida em nossa prática empresarial, não sendo em consequência objeto de decisão de nossos tribunais. Fixadas aqui as razões históricas determinantes, em tópico posterior serão examinadas, na medida do necessário, as leis que dizem respeito a tal tipo de negócio. 5.2 – Confiança (inicial) x garantia (atual) 5.2.1 – Como já observado quando do exame da evolução histórica da fidúcia a partir de seu nascimento no direito romano, a confiança sempre foi a razão básica e fundamental que norteava as partes que se dispunham a celebrar um negócio fiduciário. Tome-se, como exemplo, o dono de um escravo que o entregava em fidúcia a um terceiro, para que este promovesse sua libertação, em caso de morte do fiduciante. Evidentemente, apenas a mais estrita confiança do fiduciante no fiduciário é que funcionava como permissivo para que o negócio se aperfeiçoasse. Aliás, tanto é assim que a própria palavra – fidúcia –, da qual se originou a nomenclatura do negócio, é sinônimo da palavra confiança. Nos dias atuais, apesar de conservada a mesma denominação, não se pode mais falar na existência de qualquer tipo de confiança, passando o negócio a ser feito como simples forma de garantia, garantia, aliás, que apenas se torna imprescindível exatamente porque existe, da parte do credor, a desconfiança de que o débito que está sendo contraído pode vir a deixar de ser honrado após o vencimento. Portanto, a força motriz que passou a exigir a garantia fiduciária centrou-se na desconfiança, a qual, à medida que vai aumentando, vai novamente exigindo o acoplamento de novos institutos do direito já conhecido, para ir criando garantias mais sólidas, como será examinado também adiante. 5.2.2 – Os autores em geral, sem embargo de certas nuances, afirmam o desaparecimento da confiança que foi o fundamento do negócio fiduciário em suas origens. Restife Neto, no entanto, entende que ainda existente tal 186 Martins, “Contratos e Obrigações Comerciais”, p. 183. 103 confiança, anotando que não se confunde ela com a boa fé comum a todos os negócios, completando, porém, que a confiança continua presente, pois “o transferente confia na lealdade e honestidade da outra parte, em se servir da propriedade ou direito solenemente transferido, apenas para a destinação internamente convencionado”187. Chalhub anota que “a despeito de, nos negócios dessa modalidade, a transmissão da propriedade não mais repousar unicamente na confiança que o fiduciante depositava no fiduciário, como no direito romano, a verdade é que esse elemento – confiança – continua presente”, confiança que se caracterizaria pelo fato de o fiduciante transferir seu bem ao fiduciário. No entanto, a prática demonstra a inexistência de confiança neste sentido, pois mesmo que o fiduciário quisesse trair a confiança que o autor entende existir, estaria impedido pelos registros dando conta da existência de propriedade resolúvel e também porque o bem sempre estaria na posse do fiduciante, enquanto estivesse sendo cumprido o contrato. Pontes de Miranda, com sua proverbial precisão, afirmando o desparecimento da confiança, diz: “Se a lei transforma esse material de confiança, criado no terreno deixado à autonomia das vontades, e o faz conteúdo de regras jurídicas cogentes, a fidúcia passa a ser elemento puramente histórico do instituto, salvo no ato mesmo de se escolher a categoria”. Sousa Lima comunga deste entendimento, afirmando igualmente a ausência de qualquer confiança, que apenas teria existido nos primórdios do instituto, no direito romano antigo. Examinando a situação atual de nosso direito, diz: “Assim, pode-se dizer que a fidúcia se afasta, para se tornar simples elemento histórico, à medida que o sistema jurídico evolui, prevendo hipóteses antes regidas por ela”188. A propósito, como anota de passagem Moreira Alves189, o direito transferido ao credor no negócio atual de alienação fiduciária no sistema brasileiro, é cercado de tantas limitações, que se afigura impossível ao fiduciário abusar por qualquer forma da propriedade que lhe está sendo transferida. Com efeito, nos negócios atualmente em voga, o bem fica na posse direta do devedor, o que já estabelece uma severa dificuldade para qualquer tipo de venda. Por outro lado, os tipos de controles estabelecidos por meio de registros públicos da existência de ônus sobre o bem estão de tal forma aperfeiçoados, que efetivamente afigura-se extremamente difícil a possibilidade de abuso por parte do credor, o que torna dispensável a Restiffe Neto, p. 32. Lima, p. 174. 189 Alves, p. 33. 187 188 104 existência de qualquer tipo de confiança, seja do fiduciante no fiduciário, seja confiança em sentido inverso. Luiz Augusto Beck da Silva190 diz que a introdução da alienação fiduciária em garantia em nosso sistema “elidiu o fator confiança próprio dos negócios fiduciários. A parcela de fidúcia que contém, em realidade, é mínima, diante da cláusula resolutiva existente”. 5.3 – Fidúcia no Código Civil 5.3.1 – O negócio fiduciário, no sentido em que está sendo examinado neste trabalho, é aquele que se formaliza como meio de garantia a um negócio, normalmente de financiamento, celebrado entre devedor e credor, transferindo aquele a este a propriedade de um bem, de tal forma que, se não paga a dívida, fica o credor autorizado a fazer com que a execução recaia sobre o bem entregue em fidúcia. Neste sentido, o Código Civil de 1916 não conheceu o negócio fiduciário; aliás, como já visto acima, exatamente nesta época, ou seja, entre fins do século XIX e início do século XX é que iniciaram-se estudos que propiciaram o restabelecimento posterior da fidúcia, porém por iniciativa de autores alemães, praticamente sem qualquer reflexo no campo jurídico brasileiro, que não tinha previsão de qualquer tipo de negócio fiduciário em garantia. 5.3.2 – O Código Civil de 1916, no Livro IV, ao tratar “Do Direito das Sucessões”, prevê a possibilidade de instituição de herdeiros ou legatários, por meio do instituto do fideicomisso, consistente na imposição a um deles da obrigação de, por sua morte, transmitir a herança ao outro. Este outro o Código denomina de “fideicomissário”, enquanto aquele a quem a imposição é dirigida é chamado de “gravado” ou “fiduciário”, tudo conforme previsto no artigo 1733. O artigo imediatamente seguinte, artigo 1734, fixa a propriedade da herança na pessoa do fiduciário, estabelecendo que tal propriedade é “restrita e resolúvel”. No fideicomisso está presente o elemento confiança, que é parte integrante dos negócios ou disposições que giram em torno da fidúcia; o testador confia no fiduciário191, a quem entrega os bens carreando-lhe a obrigação de dar a eles certo destino, dentro de determinadas condições. Com algumas alterações, o Código Civil de 2002, manteve a instituição do fideicomisso, cuidando dele nos artigos 1951 a 1960. 190 191 Silva, in RT 688/50. Monteiro, 6º vol., p. 232. 105 5.3.3 – Como anotado, a substituição fideicomissária apenas foi lembrada, por se tratar de instituto que também, como parte de seu fundamento, a confiança, estabelecendo também encargos ao fiduciário, que mantém propriedade restrita e resolúvel, termos repetidos no artigo 1953 do atual Código. No entanto, o novo Código, em seu Livro III, que trata do “Direito das Coisas”, dedica os artigos 1361 a 1368 à propriedade fiduciária, estabelecendo (art. 1361), tratar-se da “propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor”. Os demais artigos, até o 1368, trazem diversas estipulações relativas à propriedade fiduciária. Finalmente, no que se refere aos artigos do Código Civil que dizem respeito à fidúcia, observe-se que a Lei 10.931, de 2.8.04, criou o artigo 1368-A, que passa a integrar o Código, trazendo estipulações relativas à aplicação de legislação especial a casos de propriedade ou de titularidade fiduciária. 5.4 – Fidúcia em leis especiais 5.4.1 – A discussão que se estabeleceu na Europa, especialmente na Alemanha, no início do Século XX, não teve maiores reflexos no Brasil, cujo sistema, tanto social quanto econômico, naquela ocasião, ainda não havia feito aflorar a necessidade de se criar instrumentos novos a partir do instituto romano da fidúcia. A tentativa de se estabelecer um tipo de garantia mais efetiva para que o fornecimento do crédito tivesse um fluxo maior passou a ser buscada após a instalação no País dos governos militares instaurados a partir de 1964. Buscava-se, de um lado, a efetividade da garantia que estimulasse o sistema bancário a fornecer crédito em quantidades maiores e por formas mais simples, para tornar possível o incremento do parque industrial brasileiro, com a instalação de indústria de bens de consumo, especialmente veículos, ao mesmo tempo em que se propiciava ao público consumidor a possibilidade de aquisição de tais bens, para o escoamento da produção. Instalados os governos militares a partir de abril de 1964, a primeira lei que veio restabelecer o negócio fiduciário em nosso meio foi a Lei 4.728, de 14 de julho de 1965, a chamada “Lei do Mercado de Capitais”, que em seu artigo 66 criava a figura da “alienação fiduciária de bem móvel”, sistema de garantia no qual o credor ficava com o domínio da coisa alienada até a liquidação da dívida garantida. A posse direta do bem ficava com o devedor, enquanto a posse indireta e a propriedade resolúvel eram do credor, possibilitando um tipo de garantia que se antepunha a qualquer 106 outra obrigação que pudesse ser assumida pelo devedor, ficando o bem livre destas execuções de terceiros, até que houvesse o pagamento integral do financiamento concedido. Como anota Moreira Alves192 – e como ainda está na lembrança de todos que viveram aquela época –, a alienação fiduciária teve “ampla utilização na tutela do crédito direto ao consumidor, concedido pelas instituições financeiras, abrindo-se, assim, perspectiva de aquisição a uma larga faixa de pessoas que, até então, não a tinha, e, possibilitando, em contrapartida, o escoamento da produção industrial, especialmente no campo dos automóveis e dos eletrodomésticos”. Este artigo 66 da Lei 4728/65 teve sua redação alterada pelo Decreto-lei 911, de 9.1.1969, especialmente para a modificação de normas de natureza processual, de tal forma a possibilitar, em caso de não pagamento por parte do devedor, a execução da garantia por meio de busca e apreensão liminar do bem financiado. 5.4.2 – Em 29.11.1965, portanto quatro meses após a promulgação da Lei do Mercado de Capitais, a cessão fiduciária em garantia foi introduzida em nosso sistema pela Lei 4.864, que permitia às Caixas Econômicas e às sociedades de crédito imobiliário a cessão fiduciária dos direitos decorrentes dos contratos de compra e venda das unidades habitacionais, estabelecendo o artigo 23 ser o credor titular fiduciário dos direitos cedidos até o pagamento integral da dívida, respondendo ainda o adquirente da unidade por eventual saldo devedor, se o valor da venda do bem não fosse suficiente para o pagamento integral da dívida assumida. Inúmeros outros decretos, decretos-lei e leis passaram a cuidar da fidúcia em suas mais diversas formas de apresentação, diplomas cuja relação aqui se torna dispensável; relação completa e detalhada pode ser encontrada na recente obra de Restiffe Neto193 sobre a garantia fiduciária. 5.4.3 – Integrado a nosso sistema a fidúcia, tornou-se a alienação fiduciária um instrumento de uso constante para os mais diversos tipos de financiamento, mantendo-se, porém a possibilidade de tal tipo de ônus incidir apenas sobre bens móveis, proibida sua aplicação a bens imóveis. Esta barreira, porém veio a ser superada pela Lei 9.514, de 20.11.97, que “dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui alienação fiduciária de 192 193 Alves, p. 13. Restiffe Neto, p. 36 e seguintes. 107 coisa imóvel e dá outras providências”. O inciso IV do artigo 17 desta lei passou a admitir que as operações de financiamento imobiliário em geral pudessem ser garantidas, entre outras modalidades, pela alienação fiduciária do imóvel. Este tipo de garantia guarda estreita relação com aquela instituída pelo Decreto-lei 911/69, estabelecendo o artigo 22 que é o negócio no qual “... o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel”. Esta lei sofreu algumas alterações pela Lei 10.931, de 2.8.2004, aperfeiçoando-se o sistema de “securitização” da dívida e criando incentivos para a formação de patrimônio de afetação, aspectos que serão adiante examinados. 5.5 – Da fidúcia para a securitização 5.5.1 – A Lei 10.931/04 instituiu a alienação fiduciária de bem imóvel, dentro do espírito sempre lembrado de que existe uma busca constante nos negócios empresariais por garantias mais e mais sólidas, eficientes e prontamente executáveis. Por isto mesmo é que, bem sucedido o sistema de alienação fiduciária sobre bem móvel, esta lei estendeu o sistema também para os bens imóveis, ao que o sistema de construção imobiliária do País foi levado tangido especialmente pelo fracasso do antigo SFI – Sistema Financeiro de Habitação e anteriormente do BNH – Banco Nacional da Habitação. Não só por isto; foi tangido também pela falência da empresa Encol, que teve sua falência decretada e que deixou desprotegidos milhares de mutuários que haviam já adiantado valores para os imóveis que estavam em construção, a qual foi interrompida após o decreto de quebra, prosseguindo-se apenas algumas construções, por intermédio de comitê de mutuários, que tomaram a si o término delas. 5.5.2 – Norteado por tal finalidade, o legislador estabeleceu sistema de garantia que parece apresentar-se mais sólido ainda do que a alienação fiduciária do Decreto-lei 911/69, pois à garantia fiduciária que pesa sobre o imóvel, acoplou-se o sistema de securitização das dívidas assumidas pelos interessados na aquisição das unidades construídas, prevendo-se um novo negócio fiduciário, desta vez com a garantia incidindo sobre os créditos da incorporadora/construtora, a garantir o pagamento dos títulos mobiliários a serem emitidos no processo de securitização e a serem vendidos ao público investidor, como forma de captação da poupança popular, a ser direcionada à solução do problema de moradia atualmente existente. Estabelece o artigo 108 9º desta lei que a companhia que vier a atuar como securitizadora, após receber a cessão da incorporadora/construtora, poderá “instituir regime fiduciário sobre créditos imobiliários, a fim de lastrear a emissão dos Certificados de Recebíveis Imobiliários, sendo agente fiduciário uma instituição financeira ou companhia autorizada para esse fim pelo BACEN e beneficiários os adquirentes dos títulos lastreados nos recebíveis objeto desse regime”. No inciso I do artigo 10, estabelece-se a forma de criação do regime fiduciário sobre os créditos que servirão de lastro; o inciso II prevê que estes créditos passarão a constituir patrimônio separado e o inciso III prevê a afetação dos créditos à emissão dos títulos mobiliários. 5.5.3 – A busca de garantias as mais eficazes foi muito bem conduzida pelos redatores das leis que adiante serão examinadas e que se destinaram a criar uma nova estrutura de segurança para os negócios imobiliários. Tal constatação pode ser demonstrada, entre outros pontos, pela escolha de busca e financiamento público por intermédio de títulos mobiliários, para os quais o sistema legal brasileiro da atualidade tem dirigido elementos de proteção bastante sólidos, exatamente com o intuito de criar entre os investidores a sensação de segurança necessária a tais tipos de negócios, pois tal tipo de cultura é que pode tornar sólido o funcionamento do mercado de títulos mobiliários. Como cita Paulo Toledo, comentando o sistema de tutela judicial instaurado para o mercado de valores mobiliários, o legislador reconhece 194 “... implicitamente, a existência, na hipótese, de interesses metaindividuais. Em outras palavras, pode-se afirmar que o legislador admitiu que as relações estabelecidas no mercado de valores mobiliários transcendem os interesses imediatos e diretos dos investidores, das empresas e agentes de mercado”. 5.6 – Patrimônio de afetação 5.6.1 – Na busca de garantia a mais eficaz possível, estabeleceram-se duas linhas de garantia fiduciária, uma sobre o imóvel a ser incorporado e construído; outra sobre os créditos imobiliários que passam a existir a partir do momento no qual a unidade imobiliária é prometida à venda para terceiro interessado. Desde logo estabeleceu-se também separação de patrimônio para os créditos imobiliários, afetados à liquidação dos títulos mobiliários emitidos. 194 Toledo, RT. 667, p. 71. 109 5.6.2 – Pela Lei 10.931, de 2.8.04, subiu-se mais um degrau na escala de garantias do negócio, para que se configurasse como patrimônio separado o próprio imóvel em construção, também afetado ao pagamento dos títulos mobiliários. Esta Lei 10931/04 incluiu o artigo 31-A na Lei 4591, de 16.12.1964 (Lei de Incorporações Imobiliárias), prevendo a possibilidade de, a critério do incorporador, criar-se patrimônio especial de afetação, de tal forma que o terreno e as acessões incorporadas, bem como demais direitos vinculados, ficam apartados do patrimônio do incorporador e “constituirão patrimônio de afetação, destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes”. Foram incluídos diversos outros artigos, até 31-F, cuidando deste patrimônio de afetação, estabelecendo-se ainda, como estímulo para que o incorporador opte por tal sistema, regime especial de tributação para quem optar por tal sistema (artigos 1º e 2º da Lei 10931/04). 5.6.3 – Estas são as premissas que acumulam os dados necessários para que se possa agora dar início ao exame da natureza das garantias instituídas para tais tipos de contratos empresariais, que pretendem construir uma forma de garantia de tal maneira aperfeiçoada, tentando neutralizar até efeitos decorrentes da incerteza da jurisdição, como se verá adiante. 111 VI – A “BLINDAGEM” DAS GARANTIAS NO DIREITO POSITIVO BRASILEIRO 6.1 – A natural busca de garantias para os negócios empresariais 6.1.1 – A “Revolução Industrial”, termo que se consagrou a partir do uso atribuído a Stuart Mill em 1848, Karl Marx em 1867 e Blanqui em 1878195, referindo-se às acentuadas transformações econômicas na sociedade europeia dos séculos XVIII e XIX, consolidou o predomínio político da burguesia, propiciou profunda expansão da produção de bens e, para a distribuição destes, valeu-se dos mercados que já haviam sido consideravelmente expandidos pela anterior Revolução Comercial, a partir do Século XII. As cidades, que haviam decaído de importância com as invasões bárbaras da Alta Idade Média logo após a queda do Império Romano do Ocidente, começam a se reestruturar e, embora a princípio, integrassem domínios feudais, aos poucos vão adquirindo sua liberdade, até com o auxílio dos reis aos burgueses, interessados respectivamente no predomínio político aqueles e, na liberdade comercial, estes196. As feiras dão solidez ao comércio medieval e passam a possibilitar o estabelecimento de relações de negócios que até se poderiam ver como de comércio internacional, ocorrendo nas principais cidades: Londres e Sockbridge, na Inglaterra; Paris, Lyon e Reims, na França; Lille, Ypres, Douai e Bruges, na região de Flandres; Colônia, Frankfurt e Lubdck, na Alemanha, entre diversas outras. 6.1.2 – Rachel Sztajn relembra a propósito que aí se situa, historicamente, o nascimento do que se poderia chamar “mercado”, muito embora sua natureza jurídica seja preocupação mais recente do direito197: “Para o direito, a discussão quanto à natureza de mercados é recente, dando a impressão de Souto Maior, p. 410. Aspecto dialético extremamente curioso ocorre também aqui. Os mercadores são auxiliados pelo rei, que vê na expansão das cidades e das feiras, uma forma de solapamento do poder dos senhores feudais com o consequente aumento de seu (do rei) poder. Esta classe de mercadores, alguns séculos depois, é que vai constituir a base da burguesia nascente, que então se volta, em 1789, contra o poder do rei, afastando o absolutismo que havia prestado auxílio inicial para a formação desta mesma burguesia. 197 Sztajn, “Teoria...”, p. 33. 195 196 112 que é uma criação dos modernos economistas. Nada mais enganoso, porque a origem dos mercados pode ser retrotraída à Idade Média, às feiras. Indisputado que mercados ganham maior visibilidade após a Revolução Industrial porque a produção em massa leva à distribuição massiva dos bens produzidos seriadamente. Essa é uma explicação para que a análise dos mercados passasse a atrair a atenção dos estudiosos; mercados tornam-se importantes à medida que permitem divisar soluções inovadoras para problemas complexos de produção e distribuição de bens”. A palavra vem do latim “mercatus-us”, significando primeiramente o local físico no qual são feitos negócios, passando a significar posteriormente o próprio comércio, tomado como um todo abstrato e genérico. Termo mais de natureza econômica 198, passa a ter interesse para a ciência do direito especialmente no momento em que se discutem as interferências das leis e das decisões de natureza jurisdicional como elementos a serem sopesados para o próprio ordenamento do dito “mercado”. 6.1.3 – Novamente é de se lembrar Rachel Sztajn199 que propõe entender-se o mercado como “instituição”, com a característica de “criar incentivos, reduzir incertezas, facilitar operações entre pessoas” bem como sua observação de que o mercado não serve como instrumento para que se estabeleça a distribuição de riqueza justa ou socialmente adequada. Com efeito, ao mercado interessa o máximo de criação de riquezas e, neste ponto, lembrando-se a propósito a afirmação da escola de pensamento do “direito & economia”, segundo a qual as ações devem ser norteadas pelo chamado “conceito de eficiência”, ante a necessidade de maximização da riqueza tendo em vista os escassos bens existentes. Poder-se-ia, portanto, afirmar que o “mercado” é, sobretudo, uma técnica de incentivos, de redução de incertezas, de maximização de resultados, de facilitação de operações entre pessoas e que, como técnica, procura a eficiência. No entanto, Galgano 200 adverte para o perigo de se pretender ver no direito um “simple accesorio de la economía, mera técnica de regulación de las relaciones económicas” dizendo que tal visão choca-se com a exigência de proteção aos empresários economicamente De Plácido e Silva, p. 530: “Mercado. Na técnica de economia, designa a relação estabelecida entre a oferta e a procura de bens e/ou serviços e/ou capitais. Designa ainda o conjunto de pessoas e/ou empresas que oferecem ou procuram bens e/ou serviços e/ou capitais, caracterizando a relação mercadológica”. 199 Sztajn, opus cit., p. 34. 200 . Galgano, “Historia del derecho...”, p. 219. 198 113 mais fracos, bem como “... a la masa de los consumidores y, em general, a los restantes grupos sociales”. 6.1.4 – Para o âmbito da análise aqui pretendida, verificado que o mercado procura a eficiência, constata-se que, como instrumento de busca da eficiência, em seu interior atuam as sociedades empresárias ou “firmas”. Embora falando especificamente sobre direito societário, Salomão Filho201 anota que a chamada “análise econômica do direito”, originária do direito antitruste, que consagra o imbricamento dos raciocínios de natureza econômica e jurídica, ganha solidez teórica com o pioneirismo dos estudos de Calabresi e Coase, pensamento que se expande nas décadas de 70 e 80 para os diferentes campos do direito. No entanto, embora a princípio a escola da “análise econômica do direito”, tenha indicado corretamente a necessidade do estudo aprofundado das ferramentas de busca da eficiência, passou a ostentar o que Salomão Filho chama de “distinta conotação ideológica”, influenciada pela Escola de Chicago, de ideário acentuadamente liberal, anotando que202: “Em especial a partir do final dos anos 70 e durante os anos 80 a análise econômica do Direito ganha uma distinta conotação ideológica. Isso por uma razão muito simples. Grande parte, se não a quase totalidade, de seus seguidores faz parte da chamada Escola de Chicago, cujo ideário liberal é fartamente conhecido. Por essa razão, a partir sobretudo desse período, a análise econômica do Direito passa a ser identificada ou talvez confundida com a chamada ‘teoria da eficiência’. Essa indevida identificação responde por muitas de suas críticas e até por seu declínio teórico nos anos 90”. Passa a pretender orientar a própria atividade legislativa para que, sob o “princípio da eficiência”, sejam afastados todos os eventuais elementos de incerteza que podem “atrapalhar” o perfeito funcionamento do sistema, que deve estar pronto para propiciar o máximo de formação de riqueza para as empresas que atuam no mercado. Salomão Filho203 aduz em complemento que a “teoria da eficiência”, sob o ideário liberal da Escola de Chicago “não pretende ser apenas analítica, como é a análise econômica do Direito. Pretende – isso, sim – erigir o parâmetro de orientação das normas jurídicas, o chamado ‘princípio da eficiência’. Segundo esse princípio, as normas jurídicas são eficientes ‘quando permitem a maximização de riqueza global, Salomão Filho, p. 28. Salomão Filho, p. 29 203 Salomão Filho, p. 29. 201 202 114 mesmo que isso seja feito à custa de prejuízo a um agente econômico específico’. Em termos econômicos essa definição liberal de eficiência consiste na negação da definição de eficiência de Pareto, segundo a qual uma solução é eficiente quanto traz vantagens a um dos participantes sem prejudicar os outros. O fundamento é a afirmação da insustentabilidade da definição de Pareto em um sistema de direito privado cuja ideia básica é a autonomia da vontade, e não a igualdade”. 6.1.5 – Esta visão pretende transferir poder ao interesse da atividade empresarial, ao interesse do mercado, ao defender exclusivamente a maximização da produção, da riqueza e do lucro, o que redundará na transferência da riqueza acrescida para aqueles com maior poder de pressão, ou seja, para aqueles que já possuem a riqueza. O poder não se detém, não tem autorregularão e sobe os degraus que se lhe antepõem se não for coartado; aqui, aparece desde logo um aspecto curioso, um degrau galgado e que examinaremos adiante. Ou seja, para a defesa do interesse do mercado ante o “princípio da eficiência”, o domínio da atividade legislativa não é mais suficiente, sendo necessário caminhar no sentido do afastamento da incerteza jurisdicional, o que já está sendo procurado, como tentaremos demonstrar adiante. 6.1.6 – O princípio constitucional estabelecido no País é o da livre iniciativa, para as pessoas e para as empresas que quiserem atuar no mercado, como se constata da leitura do artigo 170 da Constituição Federal e de seu parágrafo único204, liberdade, porém desde que observados os demais princípios também estabelecidos nos incisos do artigo, de especial interesse agora o inciso V (defesa do consumidor), na medida em que se pode albergar no conceito de livre mercado, a eficiência perseguida pela escola do “direito & economia” e, no conceito de defesa do consumidor, a busca do princípio da equidade. A defesa do mercado é a defesa do interesse empresarial, a defesa do consumidor é a tentativa de consecução do objetivo social do direito. 6.1.7 – O que interessa sobretudo nesta análise, é constatar que a busca da eficiência, a busca de resultados positivos, passa a ser um dos elementos de definição do mercado. E, nesta busca de eficiência, um dos campos de atuação dirige-se naturalmente para a tentativa de fixação de garantias cada 204 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios. Parágrafo único. “É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvos nos casos previstos em lei”. 115 vez mais sólidas e, como já anotado anteriormente, de execução mais rápida, para os negócios empresariais. O neologismo que acaba se consagrando na atualidade, para o ponto ideal de fixação das garantias, emerge na expressão “blindagem”, no sentido de – como tentaremos demonstrar –, efetuar uma defesa das garantias de tal forma sólida que não permita a nenhum elemento exterior de perturbação influir deleteriamente em tais negócios. A “blindagem” pretende ser tão eficiente que chega a ensaiar os primeiros passos, no sentido de impedir até que a atividade jurisdicional venha a se caracterizar como elemento “exterior” de perturbação. 6.2 – Direito real (tradicional) de garantia 6.2.1 – Sempre é curioso constatar, no exame histórico dos institutos de direito, o verdadeiro movimento pendular que pode ser observado através das modificações que se apresentam, às vezes separadas por distância de dezenas de séculos. No presente caso, em um primeiro momento do direito romano, a fidúcia cum creditore demonstrou ser um instrumento eficaz para o estabelecimento de garantias em favor do credor, instituto que porém trazia o sério inconveniente de tirar do devedor a propriedade e a posse direta do bem que eventualmente poderia ser necessário a ele, exatamente para manter uma atividade econômica que lhe possibilitasse o pagamento da dívida contraída. Como diz Longo referindo-se à fidúcia cum creditore, esta destinavase à constituição de garantia mais eficaz, pois “presuppone, come ogni, altra forma di garanzia reale, una obligazione del fiduciante verso il fiduciario, cioè un credito di quest’ultimo alla cui migliore assicurazione essa è destinata a servire”205. Completa ainda seu pensamento, aduzindo que “la garanzia inerente alla fiducia cum creditore è la più ampia ed energica che possa concepirsi, perchè si attua, non con l’attribuzione al creditore di un ius in re limitato, ma addirittura con l’attribuzione al creditore della proprietà della cosa”. Antão de Moraes206 diz: “A escassez dos esquemas jurídicos, previstos pelo legislador, é que obriga as partes a recorrer a esse meio indireto para obter a solução de certas dificuldades criadas pelas circunstâncias especiais de seus negócios. É o que bem explica Ferrara”, lembrando a seguir que o autor italiano diz que o recurso a tal tipo de negócio deve-se à inexistência de “... una forma corrispondente ad un certo intento economico...”. 205 206 Longo, p. 69. Moraes, p. 386. 116 6.2.2 – Sem embargo de tudo isto, e exatamente pelo inconveniente de tirar do devedor a propriedade e a posse do bem garantidor do débito, o negócio fiduciário vai caindo em desuso, até tornar-se desnecessário ao funcionamento do sistema então existente, desaparecendo até o registro de sua existência, pelas interpolações determinadas por Justiniano, como já anteriormente examinada. C. Accarias207, falando sobre a fidúcia no direito romano, diz que ela “présentait de grave inconvénients pour le débiteur: en effet, outre qu’elle lut ôtait l’usage de sa chose, elle l’exposait à ne la recouvrer que détériorée par le fait ou la négligence du créancier”. Este tipo de inconveniente desaparecia com a instituição da hipoteca, pela qual o bem imóvel permanecia na integral propriedade do devedor, de tal forma que o sistema existente após Justiniano afastou de vez o negócio fiduciário e instituiu as garantias da hipoteca e do penhor. 6.2.3 – No entanto, muitos séculos depois, com a necessidade de aperfeiçoamento das garantias para a distribuição dos bens produzidos em série como consequência da revolução industrial, a hipoteca, o penhor e a anticrese perderam a efetividade esperada, suplantadas que eram as preferências do credor garantido por uma série de outros credores, vistos como mais privilegiados do que o garantido. Arnoldo Wald, escrevendo em 1969, antes da edição do Decreto-lei 911/69, porém já criado o instituto de alienação fiduciária sobre móveis pelo artigo 66 da Lei 4728/65 anotava que208 “para o atendimento do crédito ao consumidor, as formas tradicionais de garantia, como o penhor mercantil e a venda com reserva de domínio, se apresentam como ineficientes”. Posteriormente, em 1971, desta vez examinando a possibilidade de fixação legislativa de alienação fiduciária sobre imóvel, Wald dizia que209: “No tocante à garantia na venda de imóveis a prestação, reconheceu-se, desde logo, que os aspectos tradicionais da hipoteca e da promessa de compra e venda não atendiam às novas necessidades”. Escrevendo em 1900, Bonfante já anotava esta perda de valor da garantia real, dizendo que210 “... le garantie reali non rappresentano se non cause di prelazione a favore de creditore, che in questa generale direzione si vuol assicurare um posto migliore”, comparando a perda de solidez relativamente ao direito primitivo, ao acrescentar que “diversa è la struttura e diversa la funzione della garantie reale nell’ordinamento primitivo”. Accarias, p. 731. Wald, “Da Alienação Fiduciária”, RT-400/25. 209 Wald, “Novos instrumentos para o direito imobiliário: Fundos, Alienação Fiduciária e Leasing”, RT. 432/251. 210 Bonfante, “Diritto Romano”, p. 428. 207 208 117 6.2.4 – Entre os créditos que passaram a suplantar a preferência decorrente das garantias tradicionais da penhora e da hipoteca, alinharamse especialmente os créditos tributários com o fortalecimento do Estado, e o crédito trabalhista, a partir do entendimento de que a propriedade e os bens devem ser examinados a partir de sua função social. Não só este tipo de objeção passou a existir, pois também a ele se somava a dificuldade que sobrevinha quando da execução judicial de tais bens, com a demora que o andamento processual acarreta para a satisfação da dívida em aberto. Todos estes elementos é que levaram, de um lado, ao ressurgimento do negócio fiduciário e, de outro lado, à tentativa de solucionar a demora do provimento jurisdicional satisfativo. O negócio fiduciário, juntamente com o patrimônio de afetação e a securitização trazem eficácia à garantia instituída; a execução extrajudicial neutraliza, por afastamento da jurisdição, a demora da prestação jurisdicional, possibilitando a rapidez que os negócios empresariais hoje exigem. 6.3 – Alienação fiduciária de bem móvel 6.3.1 – O último capítulo do Título III (Da Propriedade) do Livro III (Do Direito das Coisas), que engloba os artigos 1361 a 1368 do Código Civil de 2002, trata da propriedade fiduciária, matéria que não era tratada no Código de 1916. Não haveria mesmo qualquer razão para que esta matéria fosse tratada no anterior Código, pois naquele momento o sistema jurídico brasileiro prescindia do uso deste instituto, sendo então suficientes os sistemas tradicionais que visavam garantir os negócios. A necessidade de instituição de garantia com maior eficácia e que possibilitasse uma execução mais expedita apenas passou a se impor quando se tentou, a partir da década de 60, o desenvolvimento da indústria nacional, então com especial ênfase na produção de veículos automotores. O Título III do novo Código cuida “Da Propriedade”, enquanto o Título X cuida das garantias tradicionais: penhor, hipoteca e anticrese. Não obstante, ambos os títulos, nos respectivos primeiros artigos, fazem menção ao direito de garantia instituído sobre a propriedade. Por questão de método, talvez teria sido mais correto incluir a fidúcia como garantia no Título X e não no Título III; de qualquer forma, como há propriedade fiduciária não só para garantia, como também para fins de administração (v.g., titularidade fiduciária sobre créditos para fins de lastro em securitização, conforme artigo 9º da Lei 9514/97), justifica-se a distribuição da matéria como constante do Código. Outra situação tomada apenas como exemplo de fidúcia sem que se configure necessariamente 118 garantia, é a prevista no artigo 41211 da Lei das S/A. Tal artigo menciona que “... a instituição depositária (adquire) a propriedade fiduciária das ações”, dizendo respeito à custódia dos valores. Guerreiro212 anota que “não se trata, portanto, de propriedade fiduciária em sentido amplo, mas de modalidade adstrita unicamente à prestação de tais serviços, que incumbem às instituições autorizadas pela CVM”. 6.3.2 – Curioso também é verificar que o Código Civil, em seu artigo 1361213, cuida apenas da propriedade fiduciária sobre bens móveis, silenciando sobre bens imóveis. Quando o Código foi promulgado, em 10.1.02, já estavam em vigor diversos diplomas legais que estabeleciam a propriedade fiduciária sobre bens imóveis, como a Lei 8668/93 que se refere aos imóveis integrantes das carteiras dos fundos de investimento imobiliário, como também a Lei 9514/97, que possibilitou a alienação fiduciária sobre imóveis, tipo de negócio anteriormente apenas restrito a bens móveis. A explicação pode ser buscada no fato de o Código Civil ter se originado de projeto do ano de 1973, época na qual a alienação fiduciária apenas era possível de ser instituída sobre bens móveis. Não obstante a restrição que o Código Civil fez ao mencionar apenas o bem móvel, não houve qualquer manifestação, quer doutrinária ou jurisprudencial, no sentido de que teria havido revogação de outros tipos de propriedade fiduciária, o que, aliás, está correto, visto que a revogação apenas ocorreria se tivesse havido declaração expressa, se houvesse incompatibilidade com a lei anterior ou se o novo Código regulasse inteiramente a matéria tratada pelas leis anteriores, o que não ocorreu. Ademais, tratando-se o Código Civil de lei nova de caráter geral sobre matéria já tratada em outras leis, não há revogação nem modificação destas leis às quais não houve referência expressa de revogação, na forma dos parágrafos 1º e 2º do artigo 2º214 do Decreto-lei 4657/42, Lei de Introdução ao Código Civil. Art.41. “A instituição autorizada pela Comissão de Valores Mobiliários a prestar serviços de custódia de ações fungíveis pode contratar custódia em que as ações de cada espécie e classe da companhia sejam recebidas em depósito como valores fungíveis, adquirindo à instituição depositária a propriedade das ações”. 212 Guerreiro, p. 51. 213 Art. 1361. Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor. 214 Art. 2º ... § 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. § 2º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior. 211 119 6.3.3 – Além da alienação fiduciária e da cessão de direitos creditórios sobre bens imóveis, previstas nas Leis 4.864/65, Decreto-lei nº 70/66, Lei 9.514/87 e Lei 10.931/04, que serão objeto de análise logo abaixo, o sistema jurídico brasileiro prevê a cessão fiduciária de ações, na Lei 6.404/76 e a garantia cedular para financiamentos com cédula de produtor rural (CPR), na Lei 8.929/94. Neste tópico, está sendo examinada especificamente a alienação fiduciária de bem móvel que foi introduzida em nosso sistema pela Lei 4.728/65, posteriormente alterada pelo Decreto-lei 911/69. Chalhub215 anota que é característica de todos estes casos, a formação de um patrimônio autônomo diretamente vinculado à garantia do negócio que está sendo feito, garantidor assim do débito assumido, transferindo-se a titularidade do bem ao credor, na confiança de que a propriedade de referido bem se tornará plena na pessoa do devedor tão logo seja efetuado o pagamento da dívida. Sousa Lima, escrevendo em 1962, portanto antes da introdução da garantia fiduciária pela Lei 4728/65, quase que de forma premonitória anota a necessidade de que todas as legislações modernas passem a lançar mão da garantia fiduciária, iniciando seu argumento com a pergunta sobre a necessidade ou não do renascimento da velha instituição romana para, em seguida responder216: “As condições atuais da vida e as necessidades práticas da civilização moderna, sem dúvida alguma, impõem uma resposta afirmativa. O crescer contínuo das atividades sociais, hoje como ontem, impõe novas formas jurídicas, denunciando a insuficiência das atualmente existentes”. 6.3.4 – A alienação fiduciária instituída com a Lei 4728/65 e com o Decreto-lei 911/69, aproxima-se do negócio fiduciário do direito germânico, no qual a propriedade era transferida ao credor de forma limitada, resultando daí que, se acaso o credor vendesse o bem entregue pelo fiduciante a um terceiro, este receberia uma propriedade “resolúvel”, na medida em que deveria devolver o bem caso houvesse o pagamento do débito. Como já examinado anteriormente, se na fidúcia cum creditore do direito romano, o credor faltasse à confiança nele depositada e vendesse o bem, o devedor fiduciante não teria contra o terceiro qualquer ação, vez que o terceiro estaria na situação de proprietário pleno, tendo o credor exercido apenas um dos poderes decorrentes da propriedade, ou seja, a venda do bem. Em 215 216 Chalhub, p. 140. Lima, p. 157. 120 tal caso, ao devedor fiduciante que houvesse pago o débito, restaria apenas a possibilidade de ação direta contra o credor fiduciário, com quem havia celebrado o contrato, nada podendo pleitear contra o terceiro adquirente. L. Kaul, citado por Moreira Alves217 a partir de seu “Das Fiduziarische Rechtsgeschaft” anota que “... tinha o transmitente – o fiduciante – no direito germânico uma posição muito mais segura do que no direito romano. A distinção fundamental se baseava no próprio poder jurídico outorgado: o fiduciário romano obtinha um direito pleno, ao passo que o fiduciário germânico tinha um poder jurídico real limitado pela destinação”. 6.3.5 – No entanto, a própria conceituação da natureza da propriedade que está sendo alienada vem inçada da controvérsia desde a criação deste novo instituto, iniciando-se pela adequação do termo “propriedade resolúvel” ante o que dispunha o Código Civil, em seu artigo 647, praticamente repetido em todos os seus termos pelo artigo 1359 do Código de 2002, com alteração de apenas dois termos. Orlando Gomes218 diz que não há resposta conclusiva sobre a questão de ser ou não possível a formação de propriedade fiduciária com a substituição do ato físico da tradição pela celebração do contrato. Wald desde logo manifestou o entendimento de que219 “caracteriza-se a alienação fiduciária pelo fato de constituir, em favor da instituição financeira, uma propriedade resolúvel e onerada com encargo. É propriedade resolúvel na forma do artigo 647 do Código Civil, porque extingue-se em virtude do pagamento total do débito pelo alienante”. Moreira Alves220, diz que se trata de propriedade resolúvel, resolução que se dá com a extinção da obrigação, ou com a venda pelo credor, ou com a renúncia da modalidade da propriedade instituída. Sem embargo da importância de tal discussão, ainda assim no presente trabalho é necessário ressaltar aspectos que digam respeito mais diretamente à eficácia da garantia instituída, bem como o princípio do que poderia ser visto como tentativa de distanciamento da atividade jurisdicional, o que vai se acentuando nas leis posteriores. 6.3.6 – Não há mais qualquer discussão jurisprudencial sobre o fato de efetivamente ter o credor fiduciário a propriedade resolúvel do bem alienado Alves, “Da alienação fiduciária em garantia”, p. 155. Gomes, “Contratos”, p. 460. 219 Wald, “Da Alienação Fiduciária”, RT. 400/25. 220 Alves, “Da Alienação Fiduciária em Garantia”, p. 161. 217 218 121 fiduciariamente, sendo possuidor indireto, vez que a posse direta é atribuída ao devedor fiduciante, que se transforma em depositário do bem. Não se desconhece a farta discussão que pode se estabelecer sobre a natureza jurídica da propriedade, posse e depósito fixados na legislação, interessando, porém à presente discussão o resultado final em termos de se propiciar ao credor a mais eficaz forma de execução do contrato em caso de descumprimento por parte do devedor, sendo possível identificar os passos que foram sendo dados em tal sentido, a partir do exame das modificações que foram sendo feitas na legislação. Inicialmente, o parágrafo 8º221 do artigo 66 da Lei 4728/65 estabelecia que, em caso de inadimplemento das prestações por parte do devedor fiduciante, era dado ao credor fiduciário o direito de reivindicar a coisa. No entanto, a reivindicação se faria por intermédio de ação de rito ordinário, o que não propiciaria a rapidez necessária à execução da garantia e à retomada do bem. Moreira Alves222 faz detalhada análise das discussões que então se estabeleceram, sobre o meio processual cabível em caso de inadimplemento. Esta “incerteza legislativa e jurisdicional” foi “consertada” pela promulgação do Decreto-lei 911, de 1.10.69 que deu nova redação ao artigo 66 e, em seu artigo 2º223, tentou dar solução final ao problema da incerteza, colocando à disposição do credor a ação de busca e apreensão. 6.3.7 – A observação do que ocorreu a partir de 1969 denota que, efetivamente, o decreto-lei foi elaborado com a primordial preocupação de tentar resolver a demora que então estava ocorrendo para a execução da garantia. Em sua obra sobre a matéria, Moreira Alves224 anota que ante a controvérsia que se estabeleceu jurisdicionalmente “começou a haver o risco de o instituto da alienação fiduciária ser marginalizado, porquanto, na prática, a garantia dele decorrente não tinha a eficácia que seria mister para efetivamente dar maior proteção ao crédito”. Em outras palavras, a necessária interpretação jurisdicional que deve ser dada a todo texto de lei estava se constituindo em empecilho para a eficácia perseguida pelo sistema econômico, que necessitava § 8º Nos casos do § 5º, o proprietário fiduciário ou aquele que comprar a coisa, poderá reivindicá-la em mãos do devedor ou de terceiros. 222 Alves, pp. 11-21 faz exaustiva análise sobre o caminho percorrido entre o texto inicial do artigo 66 na Lei 4728/65 e sua alteração por meio do Decreto-lei 911/69. 223 Art. 3º O proprietário fiduciário ou credor poderá requerer contra o devedor ou terceiro a busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, a qual será concedida liminarmente, desde que comprovada a mora ou o inadimplemento do devedor. 224 Alves, p. 19. 221 122 fornecer ao empresário fabricante de bens, uma forma eficaz de execução. 6.3.8 – Também na tentativa de afastar qualquer discussão jurisdicional sobre a forma de venda do bem apreendido, o artigo 2º do Decreto-lei 911/69 estabeleceu que esta seria feita extrajudicialmente, com devolução de eventual saldo credor ao devedor fiduciante, que sempre ficaria responsável pelo saldo devedor, se o valor apurado na venda extrajudicial não fosse suficiente para o pagamento do saldo devedor (§ 5º do artigo 66, na redação dada pelo Decreto-lei 911/69). Anote-se também – o que será necessário para o exame das modificações posteriormente introduzidas no sistema da alienação fiduciária -, que o artigo 4º do referido decreto estabeleceu que se o bem não fosse localizado, o credor poderia requerer a conversão do pedido de busca e apreensão em ação de depósito, prevista nos artigos 901 a 906 do Código de Processo Civil, anotando-se que o parágrafo único do artigo 904 prevê que, frustrada a entrega do bem ou de seu equivalente em dinheiro, será decretada a prisão do depositário infiel. É necessário ressaltar este ponto, pois se o Decreto-lei 911/69 foi eficaz no sentido de afastar a discussão processual que exigiria a ação reivindicatória de rito ordinário, colocando em seu lugar a ação de busca e apreensão, não teve a mesma eficácia quando pretendeu estabelecer a prisão do devedor em caso de ausência de devolução do bem ou pagamento do saldo devedor existente. 6.4 – Alienação fiduciária de bem imóvel 6.4.1 – Mário Júlio de Almeida Costa, Catedrático da Faculdade de Coimbra, em artigo publicado em 1978225, anota a perda de credibilidade que sofrem as garantias clássicas da fiança, penhora, hipoteca e anticrese, anotando que tais garantias “... não satisfazem importantes áreas creditícias em que apresentam consideráveis desvantagens, tais como o custo, a morosidade em executá-las e até a sobreposição de privilégios a favor de certos créditos, especialmente do Estado e de outros entes públicos”. Sugere então este autor, examinando o instituto da alienação fiduciária introduzido pelo Decreto-lei 911/69 – e manifestando admiração pela criatividade do direito brasileiro –, que tal tipo de garantia estenda-se também aos imóveis financiados, o que veio há ocorrer dezenove anos após, com a promulgação da Lei 9514/97. 225 Costa, RT. 512/11. 123 Aliás, curiosamente, este autor chega a formular um sistema que se aproxima bastante do sistema de securitização de créditos imobiliários ora instaurado no Brasil, por meio da Lei 9.514, de 20.11.97, com as alterações posteriormente introduzidas pela Lei 10.931, de 2.8.04. Observe-se a semelhança entre a securitização atual e a sugestão do autor, em 1978226: “As soluções de que cogitamos, no âmbito da alienação fiduciária em garantia, são as seguintes: a) Consiste uma delas em o construtor proprietário das unidades habitacionais e devedor da entidade financiadora, transferir a esta última, em garantia, o seu direito de propriedade sobre essas unidades, sendo a transmissão condicionada, resolutivamente, ao pagamento da dívida. Como forma de refinanciamento do construtor, poderia o mesmo ceder o seu direito expectativo a terceiros e estes, ao ultimarem o pagamento da dívida à entidade financiadora, transformarse-iam em proprietários das unidades habitacionais”. Sete anos antes da publicação deste artigo do Professor de Coimbra, Arnoldo Wald, em artigo publicado em 1971, falando sobre a necessidade de aporte de capitais para os financiamentos imobiliários, já preconizava que227 “uma solução adequada para o problema poderia ser a extensão aos imóveis da alienação fiduciária, mediante nova regulamentação da matéria. Embora não se pretenda identificar, na sua totalidade, o regime da alienação fiduciária de bens móveis e imóveis, é incontestável que o novo instituto, que permitiu o extraordinário desenvolvimento do crédito ao consumidor, é suscetível de uma adequada transposição e adaptação para o mercado imobiliário”. 6.4.2 – Tanto a alienação fiduciária de bem imóvel quanto à securitização dos créditos imobiliários estão previstos na Lei 9514/97 que “dispõe sobre o sistema de financiamento imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências”. Em seu artigo 17228, esta lei estabelece as formas de garantia para as operações de financiamento imobiliário, prevendo, entre outras, a alienação fiduciária do imóvel, estendendo assim este tipo de garantia que anteriormente apenas poderia incidir sobre bens móveis. A lei dedica o seu Capítulo I (artigos 1º a 21) ao “sistema de financiamento imobiliário” e após criar a possibilidade de incidência de alienação fiduciária sobre imóvel no artigo 17, dedica todo o seu Capítulo II, sob o título “Da alienação fiduciária Costa, RT. 512/18. Wald, “Novos Instrumentos para o Direito Imobiliário: Fundos, Alienação Fiduciária e ‘Leasing’”, RT. 432/250.. 228 Art. 17. As operações de financiamento imobiliário em geral poderão ser garantidas por: I ... II ... III ... IV– alienação fiduciária de coisa imóvel. 226 227 124 de coisa imóvel” (artigos 22 a 33) a fixar as regras de constituição deste tipo de garantia (artigos 22 a 25), execução da garantia em caso de inadimplemento do fiduciante (artigos 26 a 31) ou sua falência (art. 32). 6.4.3 – O que a lei objetivou ao fixar determinado tipo de execução extrajudicial foi, ao lado da sólida garantia que a propriedade fiduciária propicia, tentar afastar os entraves que a demora da prestação jurisdicional opõe ao direito do credor. A própria extensão da alienação fiduciária aos bens imóveis decorreu da constatação de que a forma tradicional de financiamento pelo “SFH”, o sistema financeiro de habitação, havia se inviabilizado, pelo desinteresse dos empresários ante a dificuldade de execução em caso de inadimplemento, com os percalços e protelações que a garantia hipotecária sempre propicia. Portanto, neste ponto, a lei inovou, ao substituir a garantia hipotecária pela alienação fiduciária, até porque a experiência havia se mostrado frutífera no que tangia ao financiamento de bens móveis, especialmente veículos. Se por este lado, o negócio empresarial de construção de imóveis encontrava defesa contra a inadimplência do adquirente, colocado então na situação de devedor fiduciante, por outro lado a securitização objetivou permitir a defesa do próprio empreendimento contra a eventualidade de azares administrativos e financeiros do incorporador e ou construtor. 6.5 – Securitização de crédito imobiliário e patrimônio de afetação 6.5.1 – Da mesma forma que no exame da alienação fiduciária, a preocupação com a garantia é um dos pontos que salta à vista na análise da securitização, pois é sistema que pretende garantir o pagamento aos adquirentes de títulos mobiliários emitidos pela sociedade de propósito específico, em qualquer situação de descumprimento, seja do incorporador construtor, seja do adquirente da unidade construída ou em construção, seja da própria companhia de securitização. Luiz Ferreira Xavier Borges229 ressalta o que a operação de securitização significa em termos de garantia para o investidor que adquire os títulos mobiliários emitidos pela companhia, afirmando que o sucesso deste tipo de operação deve-se aos “mecanismos de cobrança dos créditos, cada vez mais sofisticados, que dão segurança e 229 Borges, “Revista de Direito Bancário...”, p. 260. 125 operacionalidade à transação, bem como a possibilidade de se constituir garantias necessárias e suficientes para dar segurança aos investidores”. Com efeito, na operação de securitização, os créditos imobiliários que servem de lastro à emissão dos títulos mobiliários constituem patrimônio especial segregado e afetado aos títulos emitidos, como determina o artigo 10230 da Lei 9514/97. Portanto, neste tópico da lei, estabelece-se regime fiduciário sobre os créditos que lastreiam a emissão, formando tais créditos um patrimônio especial separado, afetado como lastro de pagamento dos títulos mobiliários emitidos pela companhia securitizadora. 6.5.2 – Esta determinação da lei vem na esteira do que já havia sido previsto no artigo 8º231, estabelecendo em que consiste a operação de securitização dos créditos cedidos pela construtora/incorporadora, ou seja: a vinculação de tais créditos aos títulos mobiliários (securities, daí a origem da imprecisa nomenclatura) emitidos e colocados à venda para o público investidor. Portanto, percebe-se que o legislador lançou mão de vários institutos, para criar um sistema eficaz para o financiamento imobiliário nacional, valendo-se em um primeiro momento da extensão da alienação fiduciária a imóveis; em um segundo momento, da instituição do regime fiduciário sobre créditos transferidos pela construtora/incorporadora; concomitantemente, valeu-se também do instituto da securitização e, logo em seguida, lançou mão do patrimônio especial constituído pelos créditos transferidos afetando-os ao pagamento dos títulos mobiliários emitidos pela companhia securitizadora. 6.5.3 – Anote-se que nos países da Europa continental (Alemanha, França, Itália, Espanha, Bélgica), já foi introduzida, com maior ou menor sucesso, a operação de securitização, com lastro em garantia hipotecária sobre o imóvel, como anota Armindo Saraiva Matias, Professor da Universidade de Lisboa. Também na Inglaterra e nos Estados Unidos é Art. 10. O regime fiduciário será instituído mediante declaração unilateral da companhia securitizadora no contexto do Termo de Securitização de Créditos, que, além de conter os elementos de que trata o art. 8º, submeter-se-á às seguintes condições: ... II – a constituição de patrimônio separado, integrado pela totalidade dos créditos submetidos ao regime fiduciário que lastreiem a emissão; III – a afetação dos créditos como lastro da emissão da respectiva série de títulos... 231 Art. 8º. A securitização de créditos imobiliários é a operação pela qual tais créditos são expressamente vinculados à emissão de uma série de títulos de crédito, mediante Termo de Securitização de Créditos, lavrado por uma companhia securitizadora, do qual constarão os seguintes elementos... 230 126 comum tal tipo de operação, anota este autor232. No Brasil, porém, ao ser introduzida a securitização sobre imóveis pela Lei 9514/97, o lastro dos títulos mobiliários passou a advir da alienação fiduciária de imóveis e não de garantia hipotecária. Neste ponto é que se apresenta original a securitização brasileira, pois a transferência fiduciária da propriedade imobiliária não é a garantia existente nos demais países. A propósito, Mário Júlio de Almeida Costa, Catedrático da Universidade de Coimbra233 anota que “a doutrina alemã, apesar da larga utilização das transferências de propriedade em garantia (‘Scherungsubertragung’) no respeitante a móveis, desaconselha-as pelo que toca aos imóveis, tanto por razões de direito civil, dada a multiplicidade de actos que a operação envolve, como por razões de direito fiscal, que a tornariam muito onerosa para as partes”. 6.5.4 – A Lei 9514/97 criou este novo sistema, com alienação fiduciária sobre o imóvel, atuando como sistema de garantia eficaz ante a possibilidade de descumprimento das obrigações assumidas por parte do adquirente da unidade imobiliária. Ao mesmo tempo, criou também a securitização do crédito imobiliário, bem como a afetação deste crédito ao pagamento dos títulos mobiliários. Com tais elementos, possibilitou uma firme garantia em favor do investidor, pois colocava-o a salvo de qualquer percalço financeiro ou administrativo que viesse a atingir a companhia securitizadora, tendo em vista que o crédito cedido transformava-se em patrimônio afetado; garantiu também a higidez da negociação em caso de inadimplemento por parte do adquirente da unidade imobiliária, pois criou um sistema de execução extrajudicial da garantia fiduciária extremamente expedito, nos artigos 22 a 33, permitindo uma rapidíssima execução, em cujo segundo leilão o imóvel será alienado por qualquer valor, desde que igual ou superior ao valor da dívida em aberto, em tal caso considerando-se extinta a dívida do devedor fiduciante. Fecha-se assim o círculo criado para proteção do crédito do investidor adquirente de títulos mobiliários, tanto contra a eventual insolvência da companhia securitizadora, quanto em relação ao eventual inadimplemento do adquirente da unidade imobiliária, tudo por meio de execução extrajudicial. 232 233 Matias, “Titularização, um novo instrumento financeiro”, RDM. 112/48-54. Costa, “Alienação Fiduciária em Garantia e Aquisição de Casa Própria”, RT-512/14. 127 6.5.5 – No entanto, como se pode verificar, havia necessidade de guarnecer outro flanco na proteção instituída, pois sempre haveria o risco de percalços financeiros e até mesmo de falência da sociedade incorporadora/ construtora, temor que se apresentava especialmente atual tendo em vista a falência da sociedade empresária Encol, que possuía empreendimentos imobiliários espalhados por todo o País. Este aspecto veio a ser cuidado inicialmente pela Medida Provisória 2.221, de 4.9.01, que introduziu na Lei 4.591/64 os artigos 30-A até 30-G, posteriormente substituídos pelo artigo 53 da Lei 10.931/04, que introduziu os artigos 31-A234 até 31-F; em resumo final, por meio desta legislação veio a ser criada a possibilidade de instituição de patrimônio especial, afetado à incorporação e entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes, de tal forma que mesmo a eventual falência da incorporadora/construtora não viria a permitir a arrecadação do terreno e das acessões sobre ele existentes. Pelo artigo 1º235, esta Lei 10931/04 pretendeu reforçar ainda mais as garantias, criando incentivos para que a incorporadora do imóvel em construção providenciasse a afetação do terreno e das acessões; para tanto, criou um sistema de tributação especial, outorgando benefícios fiscais ao incorporador que transformasse terreno e acessões em patrimônio especial de afetação. 6.5.6 – Embora não objeto específico do presente trabalho observe-se ainda assim que a Lei 10931/04 pode eventualmente ser entendida como inconstitucional, pois em seu artigo 1º declara estar instituindo “regime especial de tributação aplicável às incorporações imobiliárias, em caráter opcional e irretratável enquanto perdurarem direitos de crédito ou obrigações do incorporador junto aos adquirentes dos imóveis que compõem a incorporação”. No entanto, esta lei cuida de diversas outras questões estranhas ao aspecto tributário, o que é vedado pelo artigo 7º da Lei Complementar nº 95, de 26.2.98, que dispõe “sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona”. Tal Art. 31-A – A critério do incorporador, a incorporação poderá ser submetida ao regime de afetação, pelo qual o terreno e as acessões objeto de incorporação imobiliária, bem como os demais bens e direitos a ela vinculados, manter-se-ão apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação, destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes. 235 Art. 1º - Fica instituído o regime especial de tributação aplicável às incorporações imobiliárias, em caráter opcional e irretratável enquanto perdurarem direitos de crédito ou obrigações do incorporador junto aos adquirentes dos imóveis que compõem a incorporação. 234 128 lei complementar, em seu artigo 7º236, estabelece que o primeiro artigo da lei aprovada indicará seu objeto, complementando que a lei não pode conter matéria estranha a seu objeto ou vinculada a ele por afinidade, pertinência ou conexão. A Lei 10.931/04 tem sofrido este tipo de crítica, tendo, aliás, já sido julgada inconstitucional por uma das Câmaras do Tribunal de Justiça de São Paulo237. 6.5.7 – Aliás, esta preocupação com a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade tem também sido motivo de cuidado por parte das sociedades empresárias atuantes no campo do financiamento imobiliário. A “ABDE – Associação Brasileira de Instituições Financeiras de Desenvolvimento” apresentou consulta ao Professor Cândido Rangel Dinamarco sobre este ponto, tendo a resposta sido publicada na Revista de Direito Imobiliário nº 51. Concluiu Dinamarco que238 “... o sistema legal de garantia aos créditos mediante a alienação fiduciária de bens imóveis não se choca com a garantia constituiconal do ‘due process of law’”, indicando que o recurso ao controle jurisdicional é possível em dois determinados momentos e com duas finalidades, ou seja, “logo ao início, quando da notificação para purgar a mora ou durante o procedimento perante o registro imobiliário destinado a esse fim”. Além destes momentos, outros também surgirão e que propiciarão o pedido de socorro jurisdicional, pois como reitera Dinamarco, “tudo, com apoio na promessa constitucional de acesso à Justiça, que a lei não arreda nem poderia arredar”. 6.6 – Garantia contra o devedor, contra terceiros e contra a “jurisdição” 6.6.1 – No direito atual do Brasil, a junção destes diversos institutos – fidúcia, patrimônio de afetação e securitização – pelos diplomas legais referidos, esteve voltada para a busca da maior eficácia possível ao sistema de Art. 7o O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios: I - excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto; II - a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão; III - o âmbito de aplicação da lei será estabelecido de forma tão específica quanto o possibilite o conhecimento técnico ou científico da área respectiva; IV - o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando a subsequente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa. 237 Agravo de Instrumento nº 7.011.347-2, 23ª Câmara de Direito Privado do TJSP. julgado em 29.6.05. 238 Dinamarco, RDI 51, p. 241. 236 129 garantias ligadas ao negócio imobiliário. Cria-se um cinturão de proteção ao negócio imobiliário como um todo, de tal forma que qualquer instabilidade da incorporadora/construtora, mesmo sua falência, não interferirá na garantia constituída pela alienação fiduciária do imóvel e sua instituição como patrimônio de afetação. Relembre-se que na forma estabelecida no Decretolei 911/69, a falência do devedor fiduciante interferia na garantia, pois “uma vez decretada a falência a lei determina que não mais pode ser intentada a ação de depósito, só admitindo a restituição, conforme jurisprudência do STF e das demais cortes do país”, nas palavras de Wald239. Da mesma forma, e também pelo patrimônio de afetação e instituição da garantia fiduciária sobre os créditos cedidos pela incorporadora/construtora em favor da companhia de securitização, estão as garantias a salvo de problemas que possam vir a atingir esta companhia. Por outro lado, pela execução extrajudicial da garantia constituída pela alienação fiduciária da unidade imobiliária em construção – ou já construída –, será possível neutralizar qualquer efeito deletério que certamente viria do inadimplemento por parte do adquirente da unidade imobiliária, sendo possível a retomada rápida do imóvel, sem que haja obrigação de devolução de qualquer valor já pago, não importando quanto já tenha sido pago. Portanto, a par das garantias constituídas relativamente às partes que atuam no negócio, a lei indica também uma forma de garantia contra a própria jurisdição, pretendendo colocar os negócios imobiliários a salvo de pendências judiciais. 6.6.2 – Autores têm apontado o que entendem como dificuldade decorrente da falta de adaptação do Judiciário às exigências de uma nova economia. Diz Borges240 que “A economia brasileira, mais desestatizada e regulamentada, tornou-se mais complexa. A velocidade do processo de mudanças tornou mais voláteis as variáveis envolvidas no processo de negociação de crédito bem como no gerenciamento de investimentos próprios e de terceiros. ... As dificuldades do nosso Judiciário em adaptar-se a essa volatilidade também devem ser consideradas como geradoras da mudança”. Às vezes, a crítica estende-se também para outras instituições que cuidam das relações jurídicas que interferem nos negócios, dizendo o mesmo autor pouco adiante241: “Algumas Wald, “Os efeitos da falência sobre a alienação fiduciária”, RF. 284/451. Borges, p. 257. 241 Borges, p. 266. 239 240 130 das principais barreiras ao crescimento das operações de securitizações de recebíveis estão nos problemas de nosso aparelho Judiciário para dar celeridade às lides envolvendo o Mercado de Capitais e, especialmente, nas causas trabalhistas, fiscais e falimentares, bem como nas barreiras regulatórias, quer do Bacen quer da CVM”. Esta perspectiva de análise trouxe repercussões no meio legislativo e aos poucos se vem notando a tendência de dispensar-se a intervenção do Judiciário para a solução de questões decorrentes de negócios, tendência que se mostrou especialmente fortalecida na edição da Lei 9514/97, com o sistema de execução extrajudicial nela instituído. 6.6.3 – Tal tipo de execução extrajudicial está previsto em dois artigos da Lei 9514/97, os artigos 26 e 27. Estabelece o artigo 26 que se o fiduciante não pagar o saldo devedor vencido, a propriedade consolidar-se-á em nome do fiduciário. O fiduciante será intimado pelo Oficial do Registro de Imóveis para o pagamento no prazo de quinze dias, não havendo previsão de prazo para qualquer tipo de defesa. Se o fiduciante pagar, o Oficial do Registro entregará ao fiduciário o valor recebido; se não pagar, providenciará o registro, em nome do fiduciário, da consolidação da propriedade. Segundo estabelece a lei, a propriedade deixará de ser resolúvel e passará a plena, em favor do fiduciário, em prazo que, teoricamente, será de dezesseis dias, visto que se o pagamento não for feito no prazo de quinze dias, a consolidação da propriedade se dará de pleno direito. É necessário que se ressalte que não há qualquer previsão de defesa por parte do fiduciante, tendo em vista que a intimação é para “satisfazer, no prazo de quinze dias, a prestação vencida e as que se vencerem até a data do pagamento, os juros convencionais, as penalidades e os demais encargos contratuais, os encargos legais, inclusive tributos, além das despesas de cobrança e intimação”. Se no prazo de quinze dias não for efetuado o pagamento, “... o oficial do competente Registro de Imóveis, certificando esse fato, promoverá, à vista da prova do pagamento, pelo fiduciário, do imposto de transmissão ‘inter vivos’, o registro na matrícula do imóvel, da consolidação da propriedade em nome do fiduciário”. Como se nota, houve um avanço extraordinário relativamente à alienação fiduciária de bens móveis, pois o Decreto-lei 911/69 previa a busca e apreensão imediata do bem, precedida, porém de determinação judicial em tal sentido; a propriedade do bem móvel apenas se consolidaria pela sentença que viesse a julgar procedente a ação, estabelecendo aquela legislação que “a sentença... consolidará a propriedade e a posse plena e exclusiva nas mãos do proprietário fiduciário”. No caso de imóvel, a consolidação da propriedade prescinde de qualquer apreciação judicial. 131 6.6.4 – A Lei 9514/97, após estipular esta forma de execução extrajudicial em seu artigo 26, prossegue prevendo no artigo 27 as providências a serem tomadas após a consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário. Em rápido resumo, deverá o credor providenciar a venda do imóvel no prazo de trinta dias a contar do registro que consolidou a propriedade, em leilão público extrajudicial, no qual o imóvel poderá ser vendido por valor não inferior ao do próprio bem, ao qual se chegará a partir dos elementos constantes do contrato no qual foi estipulada a alienação fiduciária. Caso não haja lance igual ou superior ao valor encontrado, o segundo leilão será feito no prazo de quinze dias, podendo então o imóvel ser vendido pelo maior lance, desde que igual ou superior ao total da dívida mais encargos. Se houver arrematação por valor superior à dívida, o fiduciário devolverá ao fiduciante o que sobejar; caso não haja oferta de valor igual ou superior à avaliação no segundo leilão, a lei manda considerar extinta a dívida do fiduciante, dando o fiduciário a respectiva quitação. Deixando de lado aspectos processuais que não interessam ao objeto do presente estudo, o que se verifica, a final, é que se não houver licitantes, o imóvel terá retornado à propriedade do credor fiduciário, sem qualquer devolução de dinheiro ao fiduciante, não importando quanto tenha sido pago por ele242. 6.6.5 – Este também é um aspecto que traz severas preocupações, pois foge aos princípios de equidade que devem nortear as relações entre as pessoas – mesmo abstraindo-se a discussão relativa à aplicação do Código de Defesa do Consumidor – o fato de uma parte do contrato perder tudo que pagou, bem como o bem que pretendia adquirir. O Banco do Desenvolvimento do Espírito Santo, por seu departamento jurídico, também manifestou preocupação relativamente a este ponto e, na resposta à consulta formulada, Arnoldo Wald responde de forma ampla no sentido de entender correta tal previsão, recomendando, no entanto243: “Assim, não obstante as ressalvas expostas, ‘ad cautelam’, o que se pode sugerir sob esse aspecto é a cláusula que encampe a proibição legal de perda das prestações pagas, adicionando-se uma ressalva pertinente à hipótese da não obtenção do valor igual ou superior ao da dívida no segundo leilão...”. A propósito, há duas ações de rito ordinário em andamento no Foro Central de São Paulo, Processos nºs. 000.01.301700-4 e 000.02.224107-8, nos quais os argumentos são, respectivamente, no sentido de que: do valor aproximado do imóvel no total de R$ 139.000,00, já foram pagos R$ 84.653,96 e do valor aproximado inicial de R$ 130.000,00 já foram pagos R$ 184.875,59; se houvesse execução extrajudicial, os devedores fiduciantes poderiam perder o imóvel e perder todo o valor pago, sem qualquer devolução. 243 Wald, RDI 51, p. 272. 242 132 6.6.6 – Até este momento, conforme previsto na lei, todas as providências terão sido tomadas no âmbito administrativo, sob a direção do Oficial do Registro de Imóveis ou por iniciativa do credor fiduciário, seja o incorporador/construtor, seja a companhia securitizadora, para quem os créditos imobiliários eventualmente terão sido transferidos. Observe-se que não há qualquer controle jurisdicional do andamento das providências, não havendo também qualquer previsão legal no sentido de que o devedor fiduciante possa apresentar qualquer “defesa” no procedimento administrativo previsto, competindo a ele ou pagar o valor da notificação ou aguardar que a propriedade se consolide em favor do credor fiduciário. Apenas o artigo 30 é que prevê a necessidade de provimento jurisdicional, na eventualidade de o devedor recusar-se a entregar o imóvel ao arrematante ou ao credor fiduciário; em tal eventualidade, está previsto que “a reintegração na posse do imóvel... será concedida liminarmente, para desocupação em sessenta dias”. 6.6.7 – Apresentado neste capítulo o sistema de garantias instaurado para os financiamentos imobiliários, os demais aspectos serão examinados no capítulo VIII, dedicado ao exame das conclusões a que se pode chegar a partir da análise em conjunto de todos os dados coletados. 133 VII – A BUSCA DA EFICIÊNCIA DO SISTEMA DE GARANTIAS PELO AFASTAMENTO DA JURISDIÇÃO, NO BRASIL ATUAL 7.1 – Racionalidade weberiana 7.1.1 – Para Weber, a ideia de ordem prende-se ao preenchimento da expectativa, no sentido de que quanto mais previsível for o resultado de um julgamento, maior legitimidade haverá do sistema judiciário e maior prontidão existirá para a obediência. Falando sobre os diversos tipos de legitimidade de um determinado ordenamento, Weber diz que244 “la forma de legitimidad hoy más corriente es la creencia em la legalidad: la obediência a preceptos jurídicos positivos estatuídos según el procedimiento usual y formalmente correctos”. 7.1.2 – Há, portanto, necessidade não só de um sistema de produção de leis formalmente corretos, como também de leis suficientemente claras e corretamente elaboradas, que permitam uma aplicação a casos concretos de tal maneira que tudo isto venha a formar uma fundada expectativa de que, determinados tipos de julgamento serão repetidos sempre que as condições objetivas se apresentem de forma semelhante. 7.1.3 – Este controle, que permite formar a expectativa dentro do sistema de racionalidade proposto por Weber como método de análise, é busca para a qual deve estar voltado o próprio sistema, como condição de funcionamento eficiente. Evidentemente, para a parte é de interesse que sua expectativa seja preenchida; no caso presente – exame que se inicia a seguir – criou-se um novo tipo de garantia imobiliária, tendo a legislação procurado restringir ao máximo a possibilidade de que haja soluções diferentes, deixando à decisão jurisdicional apenas questões que poderíamos chamar de residuais. 244 Weber, p. 30. 134 7.2 – Previsibilidade da decisão como elemento de segurança da jurisdição 7.2.1 – A previsibilidade de que fala Weber, da qual decorre a prontidão para a obediência, por outro lado, leva ao pensamento da Escola de Chicago, com a aplicação da teoria econômica a todos os campos do direito em benefício da segurança e da previsibilidade; aliás, no caso, tratando-se de aspecto fundamentalmente econômico – financiamento imobiliário –, mais ainda é de se lembrar tal forma de abordagem, sempre ligado aqui à previsibilidade da decisão. Segundo esta escola de pensamento, o estudo, a interpretação e as aplicações jurídicas devem ter como centro de suas preocupações os aspectos relativos à eficiência da lei bem como os custos que serão gerados a partir da opção por determinado tipo de interpretação e aplicação da lei. Desta forma, os agentes econômicos poderão trabalhar e produzir em favor da sociedade de forma mais eficiente, desde que os juristas – e os juízes na aplicação das leis – tenham como norma de conduta a lembrança de que “o único valor social a ser considerado é o da ‘eficiência alocativa’, de forma que todos os problemas jurídicos devem ser ‘traduzidos’ e, portanto, considerado apenas seu viés econômico (o direito exsurge assim mais seguro e previsível)”. Paula Forgioni245, severa crítica da análise econômica do direito, transcreve o texto acima para tomá-lo como base para afirmar que tal pensamento não se sustenta, trazendo exemplo relativo à lei antitruste, para afirmar em seguida que246 “o direito é fenômeno complexo que não pode ficar enclausurado nos limites da economia”, embora não negue utilidade à aplicação da teoria econômica à análise do direito. Tanto é assim que ressalta logo em seguida que “a ciência econômica... na medida em que explica a realidade, é um poderoso e indispensável instrumental na mão do jurista”. De qualquer forma, o que interessa aqui diretamente ao exame objeto do presente estudo é a constatação da busca de previsibilidade da decisão judicial, para que os agentes econômicos e as pessoas que participam dos negócios por eles ofertados, possam guiar-se em suas atitudes de tal forma que seja possível prever, com certo grau de segurança, qual será o resultado de determinado ato pelo qual se optou. 245 246 Forgioni, p. 178. Forgioni, p. 180. 135 7.2.2 – A escola de pensamento do “Direito & Economia”, cujos alicerces teóricos podem ser identificados na obra de Adam Smith ou Jeremy Bentham, apresenta delineamentos teóricos mais sólidos a partir da década de 60, especialmente com Posner e Calabresi, perdendo, porém prestígio à medida que passa a pretender que as normas jurídicas e julgamentos sejam orientados pelo “princípio da eficiência”, tentando transplantar para a elaboração e aplicação da norma, uma certeza matemática que apenas existe (ou pode existir) na economia. Salomão Filho disseca o equívoco subjacente a este pensamento, dizendo247: “Esta construção contém dois sérios equívocos, um conceitual, outro lógico. O equívoco conceitual está em pensar que, demonstrada a interdisciplinariedade entre Direito e Economia naquelas áreas em que o operador do Direito deve necessariamente levar em consideração as relações causais sugeridas pela teoria econômica, a aceitação das premissas teóricas utilizadas para desenvolver a teoria deva ser automática. Ou seja: o mesmo modelo teórico utilizado para explicar as relações causais deve ser utilizado para determiná-las, pois, uma vez aceita a veracidade das relações causais, a aceitação dos pressupostos implica necessariamente concordância com os resultados. Tal pretensão claramente desconsidera o momento valorativo tanto da criação quanto da aplicação de qualquer norma jurídica, seja em matéria empresarial ou não”, terminando por afirmar que a análise econômica do direito é um instrumento necessário, porém meramente analítico, sem qualquer caráter valorativo ou preceptivo. O pensamento de Salomão Fº caminha no mesmo sentido do pensamento de Paula Forgioni, como se pode observar. 7.2.3 – Embora falando sobre a lei antitruste, o atual Ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Roberto Grau, escrevendo o prefácio do livro de Paula Forgioni acima citado, traz observação que se adapta também à matéria ora sob exame, dizendo: “Insegurança e imprevisibilidade ‘versus’ segurança e previsibilidade. E, diante dessa abertura, de um lado o agente econômico, doutro o Estado implementador de políticas públicas e a sociedade”. Esta delimitação das partes em conflito – ou em colaboração – é especialmente importante, pois não se pode perder de vista que em tal tipo de análise, na maioria das vezes haverá de um lado um empresário – o agente econômico de que fala Grau – e de outro lado o particular – a 247 Salomão Filho, p. 30. 136 sociedade de que fala Grau. O que se busca é a segurança e a previsibilidade da lei e de sua aplicação, não sendo porém possível olvidar a posição de risco que o empresário optou por assumir, o que não ocorre com o particular. Sendo a atividade empresarial de risco, é natural que tanto a lei quanto a jurisprudência, instada a avaliar ou julgar um determinado caso concreto, acabe optando por carrear o prejuízo decorrente do risco ao empresário e não ao particular. Galgano248 pergunta-se: “ma come se identifica... l’impreditore” e ele mesmo responde: “La risposta può, a prima vista, sembrare ovvia: l’impreditore è colui che, nell’attività di produzione o di scambio, rischia la propria ricchezza. Si è giá ricordato che questo è il critério in base al quale la figura dell’impreditore è identificata dalla scienza econômica: l’impreditore viene distinto dagli altri soggetti che intervengono nel processo produttivo – viene distinto, in particolare, dai capitalisti e dai lavoratori – como il soggetto sul quale incide il rischio del processo produttivo”. 7.2.4 – Sem prejuízo desta opção institucional do empresário pelo risco, opção da qual não participa o particular, se a lei e a jurisprudência não trouxerem segurança a seus (do empresário) negócios, certamente não haverá negócios, o que acabará por prejudicar também o particular, com o desastre que consequentemente será causado à economia do País como um todo. Ademais, sempre haverá questões postas em juízo, nas quais ambas as partes, autor e réu, são empresários e nem por isto se poderá, por óbvio, descurar da previsibilidade e segurança. Arnoldo Wald bem sintetizou esta questão, ao indicar que o interesse de ambas as partes deve ser preservado com segurança e previsibilidade, ao falar da necessidade de justiça eficiente, rápida e de qualidade249 “... mas não uma justiça que esteja exclusivamente a serviço da economia, sacrificando os direitos individuais ou, em certos casos, afetando até o respeito dos contratos e a sua fiel execução”. Complementa seu pensamento com a citação de que direito e mercado necessitam um do outro para a própria sobrevivência, pois o direito sem o mercado seria a absoluta imobilidade enquanto o mercado (ou qualquer outra atividade, acrescentamos) sem o direito, é o caos. 7.3 – Insegurança da lei positiva e afastamento da jurisdição 248 249 Galgano, “L’ Impreditore”, p. 165. Pinheiro, prefácio de Arnoldo Wald a fls. XXII. 137 7.3.1 – Mas a insegurança contra a qual ocorre insurgência não é só aquela que vem da diversidade das decisões de natureza jurisdicional; a insatisfação subiu um degrau e há clamor contra a insegurança que advém da própria lei positiva, vista às vezes como também responsável pelas decisões jurisdicionais conflitantes. O economista Edmar Lisboa Bacha250 credita a redução da oferta de crédito e o aumento da taxa dos juros no Brasil ao que chama de incerteza jurisdicional, esclarecendo que por este termo entende o “poder do Estado, no exercício de sua soberania, de legislar e administrar a Justiça”. Já em 1969, havia clamor contra a falta de clareza da lei; em tal ano, em artigo que escreveu após a promulgação da Lei 4728/65 e antes de baixado o Decreto-lei 911/69, Wald clamava por uma solução a partir da promulgação de nova lei, dizendo que251 “é evidente que uma solução se impõe a curto prazo e que ela deve ser legislativa, pois não há tempo para aguardar que, nos próximos quatro ou cinco anos, o Supremo Tribunal Federal venha unificar a jurisprudência existente na matéria…” até porque “acresce que os problemas econômicos exigem soluções rápidas…”. Relembre-se que na época, com o recesso do Congresso Nacional por força do AI-5, foi possível solucionar rapidamente estas questões processuais, com a promulgação do Decreto-lei 911/69. Wald, escrevendo em fevereiro de 1969, transcreve artigo publicado no jornal “O Estado de São Paulo”, de 8.12.68, no qual o articulista comenta a diversidade de provimentos jurisdicionais que estavam sendo expedidos, alguns juízes entendendo que a ação cabível seria reivindicatória pelo rito ordinário, outros entendendo que a busca e apreensão seria ação preparatória, alguns outros entendendo cabível a ação de imissão de posse, e diz252: “De qualquer forma, temos como certo que os reflexos decorrentes da interpretação judiciária referida, trarão pesados ônus ao mercado de capitais com consequências danosas para a indústria e comércio, com a retomada da inflação de custos, pela queda do consumidor final”. Anota ainda no mesmo artigo, que os próprios juízes reconheciam então a necessidade da promulgação de uma lei que viesse a trazer solução para os problemas processuais que haviam surgido para a execução do contrato de alienação fiduciária, em caso de descumprimento por parte do devedor fiduciante. Pinheiro, prefácio de Edmar Lisboa Bacha a fls. XXIII. Wald, “Da Alienação Fiduciária”, RT. 400/29. 252 Idem ibidem, p. 28. 250 251 138 7.3.2 – As leis que tomamos como objeto de exame – Lei 9514/97 e Lei 10.931/04 – visaram, a par de tentar trazer solução para a grave crise de habitação do País, estabelecer uma forma de proteção ao negócio imobiliário que o deixasse imune a qualquer influência deletéria externa, partissem tais influências da construtora/incorporadora, da companhia securitizadora ou do adquirente da unidade em construção. No entanto, para que a lei consiga atingir o fim visado, é necessário guardar extrema cautela que, grande parte das vezes, não é observada. Jorge Lobo recomenda que na elaboração de uma lei se busque “a sua adequada inserção no sistema jurídico como um todo”, relembrando manifestação do Ministro do STF, Victor Nunes Leal, que dizia253: “Tal é o poder da lei que a sua elaboração reclama precauções severíssimas. Quem faz a lei é como se estivesse acondicionando materiais explosivos. As consequências da imprevisão e da imperícia não serão tão espetaculares, e quase sempre só de modo indireto atingirão o manipulador, mas podem causar danos irreparáveis”. 7.3.3 – A lei tende a ser o resultado do sentimento médio da população em determinado momento histórico, brocardo, porém que não se adapta perfeitamente às leis de natureza econômica, pois em tais casos o sentimento médio referido pode ter sua influência mascarada pela qualidade de articulação que os detentores do grande capital podem desencadear. Exemplo recente desta capacidade de articulação para alterar projetos de lei em andamento pode ser encontrado na competente pressão que o capital financeiro desencadeou para alterações na nova lei de recuperação, tendo como último, mas não único nem mais importante resultado, a classificação do crédito com garantia em posição mais privilegiada relativamente ao crédito tributário (art. 83 da Lei 11.101/05). No entanto, e sem embargo dos defeitos conhecidos, este tipo de pressão para alteração dos projetos não é caminho fácil de trilhar, exatamente pela quantidade de interesses divergentes em choque. Mesmo que não fosse assim e mesmo que se estivesse numa fase de excepcionalidade política e fosse possível – como era no tempo do AI-5, sob o qual foi expedido o Decreto-lei 911/69 – promulgar lei exatamente nos termos pretendidos por determinado grupo de pressão, ainda assim não se teria a segurança perseguida, pois o teste final ocorreria no momento da aplicação da lei pelos tribunais. 253 Lobo, p. 261. 139 7.3.4 – Carlos Dias Motta adverte que no processo de aplicação da lei ao caso concreto, o juiz deve ter em vista o adequado manejo dos princípios jurídicos, com a especial valoração da hermenêutica, valendo-se do poder discricionário guiado pelo juízo de equidade, até porque254: “O direito positivo não é perfeitamente harmônico e não está livre de conflitos e lacunas... Devemos reconhecer a inevitabilidade dos conflitos normativos, para que possamos desenvolver instrumentos capazes e eficazes para seu controle, guiados sempre pela busca da harmonia, já aludida, entre a segurança jurídica e o justo”. 7.3.5 – Retomando aqui o ponto já examinado no item “6.6.5”, o campo extremamente restrito que a Lei 9514/97 pretendeu deixar à atividade jurisdicional, diz respeito à necessidade do uso da violência da qual o Estado tem o monopólio, para que o fiduciante, executado extrajudicialmente, seja retirado do imóvel, caso resista a atender à solicitação administrativa do exequente. Esta resistência, aliás, pode até ser esperada, tendo em vista o valor que está em jogo, ou seja, a moradia, normalmente do contratante e de sua família. Assim, pelo que se pode verificar, nos termos em que está redigida, esta lei não terá condições de impedir o pedido de socorro jurisdicional, o que em princípio é uma meta que seria recomendável atingir-se. A lei descurou-se do aspecto social e apartou-se do que Rachel Sztajn255 diz ser razoável esperar-se do sistema jurídico, ou seja: “a exigência atual é garantir a segurança da circulação da riqueza e a estabilidade das relações jurídicas de modo a promover a produção/circulação de bens e serviços, satisfazer as necessidades sociais e criar riquezas”. Algumas eventuais modificações na lei talvez possam torná-la apta a permitir que as questões se resolvam sem intervenção jurisdicional, aspectos a serem examinados a guisa de conclusão da tese. 254 255 Motta, p. 344. Sztajn, p. 11. 141 VIII – CONCLUSÃO 8.1 – O sistema de garantias do negócio empresarial de construção/ incorporação de imóveis 8.1.1 – Como se tentou demonstrar, estamos diante do antigo fenômeno conhecido no direito, especialmente na área do direito comercial, por meio do qual os agentes econômicos valem-se da junção de diversos institutos jurídicos já conhecidos para tentar solucionar problemas novos, para os quais não se encontram soluções no sistema jurídico vigente; como resultado de tal fenômeno, surge um terceiro instituto, ainda não existente no arcabouço institucional. O presente estudo iniciou-se com o nascimento da fidúcia nos primórdios do direito romano, prosseguindo até os dias atuais do direito brasileiro. Em 1965 e 1969, a alienação fiduciária surgiu no Brasil, exatamente como instituto novo destinado a propiciar uma forma de garantia, com eficácia e rapidez suficientes para convencer o sistema bancário de que deveria fornecer financiamento que propiciasse o escoamento dos bens duráveis de consumo, para o qual se pretendeu dirigir a economia do País, no esforço de industrialização então existente. Da mesma forma, está surgindo agora a alienação fiduciária sobre imóvel, jungida ao patrimônio de afetação e à securitização da dívida, tudo redundando em um instrumento novo também destinado à tentativa de captação de investimento, para solução da crise de habitação do País. 8.1.2 – A alienação fiduciária sobre bens móveis já é figura conhecida de nosso sistema há quarenta anos, tempo no qual demonstrou ter efetivamente criado uma forma de garantia eficaz, de tal maneira que as instituições financeiras destinam enorme volume de sua disponibilidade de investimentos para tal tipo de negócio, pela garantia de que, em caso de inadimplemento, a execução será rápida e o retorno do dinheiro investido estará cercado de garantia sólida. Funciona, portanto – a alienação fiduciária – como estímulo para o fluxo de capitais do sistema bancário para o financiamento, tendo assim, em princípio, capacidade de fazer com que outros setores fornecedores de capital – v.g., poupança popular –, também se interessem pelo investimento. Esta alienação fiduciária sobre o imóvel é 142 garantia destinada tanto ao incorporador/construtor quanto ao fornecedor do capital destinado ao investimento imobiliário. 8.1.3 – Na criação do novo instituto, além da alienação fiduciária o legislador valeu-se também do patrimônio de afetação, de tal forma que o terreno sobre o qual o imóvel está sendo construído, bem como as acessões sobre ele existentes, podem ficar afetados à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes. É patrimônio segregado dos bens pertencentes à incorporadora/ construtora e que responde apenas por obrigações vinculadas ao próprio imóvel, impossível de ser atingido mesmo em caso de falência do empresário da construção, não sendo os bens passíveis de arrecadação ou sequer objeto de ação revocatória. 8.1.4 – Com a base da garantia negocial pavimentada pela alienação fiduciária e pelo patrimônio de afetação, o novo sistema trouxe elementos para resolver a terceira e última questão, ou seja, estimular o fluxo de capitais para permitir a ativação e o contínuo desenvolvimento do mercado imobiliário, valendo-se então do novel instituto da securitização, propiciando a busca de capitais entre o público investidor em títulos mobiliários, tentando carrear a poupança popular para a atividade de construção de imóveis. Esta busca da poupança popular por meio de títulos mobiliários já está sendo efetuada há relativamente bastante tempo nos demais países desenvolvidos do mundo, se bem que substituindo-se naqueles a alienação fiduciária pela garantia hipotecária. Pelo criativo e bem ordenado sistema implantado pelas duas recentes leis examinadas (Leis 9514/97 e 10.931/04), fecha-se o que se poderia chamar o “círculo virtuoso” necessário ao encaminhamento da solução da grave crise de habitação, colaborando-se ainda, incidentalmente, para o encaminhamento da solução de diversos outros problemas, v.g, a crise de desemprego, sabido que a construção civil é a que mais se presta a propiciar empregos à mão de obra não qualificada. 8.2 – Afastamento da insegurança da lei e das decisões jurisdicionais 8.2.1 – Para que se fechasse de vez o referido “círculo virtuoso” um único ponto deveria ainda ser “blindado”: aquele que dizia respeito à medida a ser tomada em caso de inadimplência por parte do adquirente da unidade imobiliária, ponto para o qual não se havia encontrado solução nas tentativas anteriores de encaminhamento do problema, tendo sido, aliás, a causa mais 143 acentuada do insucesso do antigo “Banco Nacional da Habitação” e do correspondente “SFH – Sistema Financeiro de Habitação”. Neste ponto, o atual sistema poderia vir a ser perturbado por externalidades fora do círculo, decorrente em especial da imprecisão da lei e da imprevisibilidade da atividade jurisdicional. Para a solução da primeira possível externalidade – imprecisão da lei –, veio a ser editada a Lei 10.931/04, que aperfeiçoou diversos dispositivos do diploma anterior. Curiosamente, repete-se aqui o que ocorreu com a introdução da alienação fiduciária sobre móveis, criada com o artigo 66 da Lei 4728, de l965, aperfeiçoado posteriormente o instituto pelo Decreto-lei 911, de 1969. Para a solução da segunda externalidade – imprevisibilidade da decisão judicial –, optou-se por um caminho já trilhado em outras situações, ou seja, a dispensa ou o afastamento da jurisdição, pela criação de rapidíssima execução extrajudicial, sem previsão sequer de possibilidade de defesa ao executado. No entanto, neste ponto, de forma absolutamente infeliz, a lei não andou bem, o que é mais de se lamentar quando se verifica que poderia ela ter solucionado de vez a questão. E não andou bem porque, como visto, colocou o adquirente inadimplente em tal situação que o tornou “refém” do credor, não lhe dando qualquer outra opção a não ser valer-se do Judiciário, como única possibilidade de tentativa de composição. 8.2.2 – Não se coloca em discussão que as normas legais devem objetivar, tanto na fase de elaboração legislativa quanto no momento da aplicação jurisdicional, a promoção da eficiência do sistema social, postulado da teoria da análise econômica do direito, ressaltando-se, porém que a “eficiência do sistema social” não se confunde com a “teoria da eficiência”; a primeira é preocupação do direito, a segunda da economia. A previsibilidade das decisões judiciais é elemento necessário para a eficiência, em qualquer uma das duas modalidades ora lembradas e deve, portanto, ser constantemente buscada. Por outro lado, a oferta de garantias de cumprimento dos contratos por parte do sistema legal, é condição para o incremento da atividade empresarial e da captação de qualquer tipo de investimento, visto que os agentes econômicos apenas atuam a partir da perspectiva de que o benefício que vão auferir da atividade é superior ao custo exigido, imprescindível, portanto a garantia do retorno. No entanto, não se pode perder de vista, como anota Rachel Sztajn256, que a cadeia produtiva perseguida pelo sistema econômico apenas 256 Sztajn, “Teoria...”, p. 13. 144 estará integrada e funcionará adequadamente desde que “ninguém se torne refém de procedimentos de qualquer outro integrante do processo”. A existência do “refém” é elemento de perturbação das relações contratuais, porque este procurará sempre alguma forma de compensação, pois sua atividade nesta procura sempre será inferior ao custo exigido. Exposto de outra forma: o “refém” não terá qualquer benefício se concordar com a aplicação fria dos termos do contrato, pois em caso de estrito cumprimento das regras contratuais, perderá tudo; portanto, a atividade de discordar sempre exigirá esforço inferior ao custo exigido, exatamente porque o custo da concordância é máximo, é perder tudo. Sem embargo da advertência de Alpa, de que se o que se pretende é evitar o descumprimento do contrato257, “la legge deve irrogare una sanzione corrispondente almeno al costo dell’adempimento”, não é razoável irrogar uma sanção exagerada se se pretende que a parte não recorra à jurisdição. Como diz Rachel Sztajn corretamente258, “se as pessoas agem visando promover seus interesses, a forma de alterar-lhes o comportamento é demonstrar que será de seu interesse fazê-lo”. Se o interesse da lei é evitar a busca da jurisdição por parte do devedor inadimplente, deve demonstrar que para ele, devedor, será interessante evitar o ajuizamento de qualquer medida judicial. 8.2.3 – Um exame integrado dos aspectos jurídicos e econômicos talvez possa levar à solução buscada, ou seja, à prescindibilidade da busca da jurisdição, desde que haja disposição para alterações legislativas relativamente simples. O “mercado”, como diz Rachel Sztajn, não se presta a propiciar distribuição de riqueza de forma justa e socialmente adequada, pois a “teoria da eficiência” leva necessariamente à busca constante de “transferência de riqueza àqueles que possuem maior poder de barganha nas transações, ou seja, àqueles que já possuem riqueza” 259. Roppo260, neste mesmo sentido, falando do contrato “substancialmente injusto”, alerta para que não se confunda o interesse geral da sociedade com o interesse apenas da parte que está em situação dominante, por força de sua colocação no modo de produção. Ao lado da teoria econômica da eficiência, é necessário considerar a preocupação jurídica da “eficiência do sistema social”, para a integração perfeita das relações contratuais e para que as partes se sintam desestimuladas de buscar proteção Alpa, p. 96. Sztajn, “Os custos...”, p. 75. 259 Salomão Filho, p. 30. 260 Roppo, p. 38. 257 258 145 jurisdicional, por entendê-la desnecessária. Precedentes, tanto extraídos da história quanto colhidos de fatos atuais, podem ajudar a fundamentar o pensamento que se está pretendendo formular. 8.2.4 – Um exemplo histórico pode ser tirado do sistema de transferência fiduciária do direito anglo-saxão, no qual “o direito de propriedade adquirido pelo fiduciário era, no direito inglês, como no romano, absolutamente ilimitado e pleno, de modo que, tanto pelo ‘jus civile’ como pela ‘common law’, adquiria ele a qualidade de ‘dominus’, podendo, consequentemente, exercer uma ‘signoria piú assoluta sulla res’” 261. Em decorrência da plenitude da propriedade, se o devedor não cumprisse a obrigação assumida no dia determinado, perderia a coisa transferida fiduciariamente. Ficava o devedor na situação de “refém”, submetido a uma condição iníqua, de tal forma que o Chanceler, como representante do Rei, a partir do século XIV, passou a intervir na relação estabelecida entre as partes, fazendo com que as partes comparecessem à sua presença e impondo ao credor determinada forma de comportamento, que restabelecesse a equidade na relação. Completa Sousa Lima, observando: “Intervinha, assim a ‘equity’ para modificar uma situação definitiva decorrente da ‘common law’, e isto porque, sob o ponto de vista da ‘equity’, seria iníquo que o ‘mortgagor’, por não ter cumprido a prestação no dia fixado no ato constitutivo, perdesse irremediavelmente a ‘res’, cujo valor era consideravelmente maior do que o montante do débito”. Evidentemente, trata-se de outro sistema diferente do nosso civil law; de qualquer forma, denota que a busca quase instintiva de eficiência social em prejuízo da teoria da eficiência, é preocupação que norteia a aplicação do direito já há séculos. 8.2.5 – Este é um exemplo histórico de busca da jurisdição, para evitar que a perda seja absoluta e total para o devedor. Em outra ponta, há um exemplo da atualidade, de eficaz desestímulo de busca da jurisdição, exemplo extraído de pequena alteração que houve na lei do inquilinato atual. No Foro Central de São Paulo, a partir de 1991, após a edição da Lei 8245/91 que cuida das locações, houve uma queda acentuada no ajuizamento de ações de despejo por falta de pagamento, em consequência da determinação inserida no inciso V do artigo 58, que estabelecia que os recursos interpostos contra as sentenças passavam a ter efeito meramente devolutivo. O inquilino 261 Lima, p. 104/5. 146 inadimplente passou a considerar que, se deixasse de pagar o aluguel e se fosse acionado, seria despejado em prazo relativamente curto (em torno de três meses), de tal forma que deixar de pagar o aluguel não lhe propiciaria maior benefício do que pagá-lo, ao contrário do que ocorria no regime da lei anterior, que previa efeito suspensivo para os recursos e que, em consequência, permitia que o inquilino permanecesse residindo no imóvel por vários anos sem pagar aluguel. No sistema da lei anterior, o locador era “refém” do locatário inadimplente; uma pequena mudança legislativa tornou a lei “boa” e colocou as partes em posição tal, que dissuadiu a inadimplência e o socorro à jurisdição262. 8.2.6 – Um exame e uma aplicação mais abrangentes dos próprios postulados da escola do “direito e economia” podem ajudar a encontrar o ponto que afastaria a incerteza jurisdicional, trilhando o caminho já iniciado pelas Leis 9514/97 e 10.931/04, ou seja, o caminho que afastaria a jurisdição, porém por outra motivação. O princípio constitucional da indeclinabilidade da jurisdição, consagrado no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição de 88263, sempre será óbice para que a execução extrajudicial possa chegar a seu final sem intervenção jurisdicional, mesmo que as duas leis sob exame não prevejam qualquer tipo de defesa para o devedor. Por outro lado, havendo aqui o “refém” de que fala Rachel Sztajn, a busca da proteção jurisdicional será certa e o cumprimento do contrato, não será assegurado nos termos em que foi celebrado. Enfim, por mais que a atividade legislativa traga óbices à discussão jurisdicional, esta se instaurará sempre que necessário e sempre que solicitada. 8.3 – Composição do conflito 8.3.1 – Mas, como anotado acima, relembre-se uma das premissas da análise econômica do direito, segundo a qual “agentes econômicos são Apesar da dificuldade para se conseguir dados estatísticos mais precisos, foi possível conseguir, na Prodesp, dados estatísticos relativos ao ajuizamento de ações de despejo (ordinárias e por falta de pagamento), que informam: no ano de 1991, foram ajuizadas 54.719 ações; no ano de 1992, houve 37.469 distribuições e no ano de 1993, houve 29.755 distribuições. A “lei boa”, em dois anos, reduziu o número de demandantes em 24.964, o que corresponde a uma diminuição de 46%. 263 Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. 262 147 maximizadores racionais de satisfação – ou seja, para suas escolhas, sempre irão se basear na adequação racional e eficiente dos fins aos meios. Esta premissa leva à inevitável conclusão de que indivíduos só se engajarão conscientemente em unidades adicionais de atividade (seja de consumo, de produção de oferta de trabalho ou qualquer outra natureza) se o benefício auferido por aquele mesmo indivíduo for maior que o custo despendido para obtê-lo”264. Esta premissa pode ser aproveitada também para aquele que, no mercado, contrata com a empresa e que, pelo menos em princípio, supõe-se, pretende cumprir o contrato. Este contratante se submeterá aos termos do contrato e não buscará a jurisdição, na medida em que o benefício que possa lhe advir do ajuizamento de um feito seja igual ou menor do que aquele que lhe advirá de qualquer composição que faça com o empresário com o qual contratou. E, paradoxalmente, no caso das leis ora sob exame, todos os elementos levam o devedor inadimplente a socorrer-se do Judiciário, pois caso contrário perderá tudo, ou seja, perderá o imóvel e perderá o que pagou. Portanto, estas leis funcionam como estímulo para que ocorra ajuizamento, pois o benefício auferido jurisdicionalmente será igual ou superior ao benefício da lei, vez que a lei dá “nada” ao inadimplente. 8.3.2 – Ou seja, ninguém irá ao Judiciário no momento em que estiver seguro de que o benefício que lhe advirá da sentença (mesmo que ganhe a ação integralmente) não será maior do que aquele que desde logo lhe é oferecido pelo outro contratante. Evidentemente, para que se possa aceitar tal raciocínio e trabalhar com tais conceitos, seria necessário considerar a crítica de que a chamada “teoria da eficiência” como princípio geral de maximização da riqueza apenas transfere riqueza a quem já possui riqueza, sem qualquer preocupação com o conceito do socialmente justo, como já acima anotado com base no pensamento de Sztajn e de Salomão Filho. Enfim, a segurança pretendida pelo empresário apenas será encontrada quando se encontrar o ponto de equilíbrio entre o princípio econômico exposto na “teoria da eficiência” e o princípio jurídico da “eficiência do sistema social”. As Leis 9514/97 e 10.931/04, se sofrerem pequenas alterações em sua redação, poderão talvez propiciar este ponto de equilíbrio que poderá atuar como forte e determinante desestímulo de busca da proteção jurisdicional pelo devedor inadimplente, pela simples razão de que o benefício a ser auferido 264 Jairo Saddi, artigo no jornal “Valor Econômico”, edição de 12.12.02. 148 como resultado da sentença, não será maior do que aquele que desde logo advirá se houver concordância e aplicação plena dos termos contratuais. 8.3.3 – Coerente com a ideia já exposta no item “1.5.1” retro, no sentido de que o estudo das ciências humanas – especialmente o estudo da ciência jurídica – deve, na medida do possível, tentar apontar soluções concretas para os problemas detectados, transcreve-se, como nota de rodapé, a sugestão apresentada em artigo publicado na Revista dos Tribunais265, para alteração parcial dos artigos 27 e 30 da Lei 9.514/97, como tentativa de encontrar o equilíbrio necessário, conforme apontado no item 8.3.2 imediatamente acima. 265 Revista dos Tribunais, volume 819, p. 75-76, extraído de artigo elaborado pelo autor da tese: “A melhor solução para que não se perca o excelente espírito que norteou a lei e que se destinava a tentar resolver o problema de aporte financeiro para o capital destinado à construção de moradia, seria alterar a Lei 9514, de 20.11.97, para: a) dar ao parágrafo 2º do artigo 27, a seguinte redação: ‘No segundo leilão, será aceito o maior lance oferecido, desde que igual ou superior a 75% do valor do imóvel, estipulado na forma do parágrafo anterior, mais as despesas, prêmios de seguros, encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais’. b) dar ao parágrafo 4º do artigo 27, a seguinte redação: ‘Nos cinco dias que se seguirem à venda do imóvel no leilão, o credor entregará ao devedor, contra a imissão na posse do novo proprietário, a importância que sobejar...’, mantendo no mais a redação já existente. c) acrescentar ao parágrafo 5º do artigo 27, a seguinte expressão: ‘devendo ser pago ao devedor a diferença que existiria se o bem tivesse sido arrematado na forma do parágrafo 2º acima’. d) dar ao artigo 30, a seguinte redação: ‘Em caso de recusa do devedor ao recebimento e imissão na posse na forma prevista no parágrafo 4º do artigo 27, o juiz concederá liminarmente ao fiduciário, seu cessionário ou sucessores, inclusive o adquirente do imóvel por força do público leilão de que tratam os parágrafos 1º e 2º do art. 27, a reintegração na posse do imóvel, para desocupação em sessenta dias, desde que comprovada, na forma do disposto no art. 26, a consolidação da propriedade em seu nome. Com a inicial, o autor depositará o valor que sobejou ou a diferença prevista no parágrafo 5o, que será levantado em favor do devedor, 24 horas depois da imissão na posse’”. 149 IX – BIBLIOGRAFIA ACCARIAS, Calixte. Précis de Droit Romain. 4ª ed. Paris: Librairie Cotillon – F. Pichon, 1886. ALPA, Guido. Contrato e Common Law. Padova: CEDAM, 1987. ALVES, José Carlos Moreira. Alienação Fiduciária em Garantia. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987. ARMINJON, Pierre; NOLDE, Baron Boris; WOLF, Martin. Traité de Droit Comparé. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1950. ASCARELLI, Tullio. Ensaios e Pareceres. São Paulo: Saraiva, 1952. . Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado. Campinas: Bookseller, 2001. . Teoria Geral dos Títulos de Crédito. Campinas: Red Livros, 1999. AUBERT, Vilhelm. Sociologia Del Derecho. Caracas: Editorial Tiempo Nuevo, 1971. BARRETO FILHO, Oscar. Teoria do Estabelecimento Comercial. São Paulo: Max Limonad, 1969. BEVILÁQUA, Clóvis. 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Bibliografia. 1 – Delimitação da matéria 1. 1 – Começam a ser julgadas agora, no Foro Central de São Paulo, as primeiras ações que dizem respeito aos financiamentos concedidos na forma da Lei 9.514, de 20.11.97, a chamada lei de “Alienação Fiduciária de Coisa Imóvel”, que criou o sistema de financiamento imobiliário, “SFI”. Em rápida pesquisa, foi possível verificar a existência de quatro ações julgadas, duas das sentenças firmando entendimento favorável à posição do financiador3, outras duas em sentido contrário4, acatando o pedido feito pelo financiado. A matéria é nova e a lei começa a passar agora pelo teste final e fundamental pelo qual passa toda lei, ou seja, sua aplicação pelos Tribunais; a discussão desloca-se agora da dogmática distante e do impessoal direito positivo para a fase angustiosa da hermenêutica do dia a dia dos tribunais. Evidentemente, como primeiros julgados sobre a matéria, são insuficientes para formar 1 2 3 4 Artigo publicado na Revista dos Tribunais nº 819, de janeiro de 2004. Especialista em Filosofia e Teoria Geral do Estado, Mestre e Doutor em Direito Comercial pela USP. Professor na Graduação e Pós-graduação na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor e Coordenador da Área de Direito Empresarial da Escola Paulista da Magistratura. Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Processos nº 000.02.134051-0 e nº 000.02.127479-7, acesso pelo site www.tjsp.jus.br. Processos nº 000.02.224107-8 e nº 000.01.301700-4, idem. 158 qualquer tendência que se poderia chamar de corrente jurisprudencial, a qual certamente demandará ainda longos anos, até porque estão envolvidas questões constitucionais de amplo espectro, de tal forma que além da manifestação do Superior Tribunal de Justiça, veremos ainda a manifestação do Supremo Tribunal Federal, até que se possa falar em formação de jurisprudência ou de tendência jurisprudencial. Mas, sendo o sistema jurídico um aglomerado sistemático de leis positivas, doutrina, jurisprudência, princípios gerais, etc., estes julgados monocráticos iniciais serão os primeiros tijolos da lenta e segura construção jurisprudencial que se deve aguardar. São importantes como indicadores iniciais de tendências, lembrando-se, com Lenio Luiz Streck,5 da visão nova dos institutos jurídicos que a jurisprudência possibilita aos legisladores, forçando desta forma o processo de criação das leis na direção da orientação propiciada pelos Tribunais. Desde a primeira aplicação da lei, o juiz deve ter em vista que, na construção jurisprudencial, a sentença monocrática é o tijolo inicial da construção jurisprudencial, atento ainda à lembrança que Carlos Maximiliano6 traz de Jean Cruet, sobre a necessidade de constante espírito crítico por parte do juiz. 1. 2 – A alienação fiduciária de coisa imóvel foi introduzida em nosso sistema de direito pela recente Lei 9.514, de 20.11.97, que contém 42 artigos, espalhados por três capítulos, o primeiro (artigos 1o a 21) tratando “Do Sistema de Financiamento Imobiliário”, o segundo (artigos 22 a 33) tratando “Da Alienação Fiduciária de Coisa Imóvel” e o terceiro (artigos 34 a 42) tratando das “Disposições Gerais e Finais”. De forma esquemática ampla, podemos dizer que o primeiro capítulo fixa as linhas mestras gerais da alienação fiduciária de bem imóvel, estabelecendo qual é a finalidade da lei, voltada para “promover o financiamento imobiliário em geral, segundo condições compatíveis com as da formação dos fundos respectivos” (art. 1o). 1.3 – Até o artigo 21, a lei trata da parte que poderíamos denominar, até com certa impropriedade, porém de forma aconselhável para fins 5 6 Lenio Luiz Streck, pg. 86. “O juiz, esse ente inanimado, de que falava Montesquieu, tem sido na realidade a alma do progresso jurídico, o artífice laborioso do Direito novo contra as fórmulas caducas do Direito tradicional. Esta participação do juiz na renovação do Direito é, em certo grau, um fenômeno constante, podia-se dizer uma lei natural da evolução jurídica; nascido da jurisprudência, o Direito vive pela jurisprudência, e é pela jurisprudência que vemos muitas vezes o Direito evoluir sob uma legislação imóvel. É fácil dar a demonstração experimental desse asserto, por exemplos tirados das épocas mais diversas e dos países mais variados”. Jean Cruet apud Carlos Maximiliano, pg. 39. 159 esquemáticos, de “parte de direito material” da alienação fiduciária de imóvel, enquanto os artigos 21 a 33 tratam da “parte de direito processual”. Na parte material, a previsão é que a entidade financeira – bancos e assemelhados – (art. 2o) opera no sistema; as companhias Securitizadoras (art. 3º), instituições não financeiras, poderão adquirir os créditos e securitizá-los, emitindo e colocando no mercado os denominados “Certificados de Recebíveis Imobiliários” ou simplesmente CRI. Caindo no plano da operacionalização, verifica-se que o Banco “X” concede o financiamento à pessoa interessada na aquisição de um imóvel, “Comprador”, entregando o dinheiro diretamente à Construtora “Y”; nestes negócios ocorre também de forma bastante comum que a Construtora, com recursos próprios, concede financiamento direto ao Comprador. Aquele que concedeu o financiamento (seja o Banco, seja a Construtora), dirige-se a seguir à Securitizadora e faz a cessão7 dos créditos que tem contra o Comprador. A partir deste momento, saem de cena (pelo menos teoricamente) o Banco ou a Construtora (enfim, quem concedeu o financiamento), transformando-se o Comprador em devedor da Securitizadora. Por seu turno, a Securitizadora, com um crédito digamos de R$ 100.000,00 contra o Comprador, divide este crédito em 100 certificados de recebíveis imobiliários, “CRI” (art. 3o) de R$ 1.000,00 cada um, lançando-os no mercado financeiro, para aquisição pelos interessados em investimentos. 1.4 – O artigo 4o fala sobre o financiamento, estabelecendo que nele serão empregados recursos provenientes da captação nos mercados financeiros, o que, como visto acima, é viabilizado pela emissão de “CRIs.”, que são colocados no mercado financeiro. As operações de financiamento (art.5o) deverão prever a reposição do valor emprestado e do reajuste (inc. I), permitidos juros capitalizados (inc. II e III), permissão que se estende também para a comercialização de imóveis para pagamento parcelado, para o arrendamento mercantil de imóveis e para o financiamento imobiliário em geral (par. 2o). Este parágrafo 2o estendeu a possibilidade de cobrança de juros capitalizados para todo e qualquer financiamento imobiliário feito sob a égide desta Lei. 7 Para a cessão ser eficaz ou ter validade em relação ao devedor, deve ser a ele notificada, na forma do que estabelece o artigo 290 do Código Civil em vigor e do que estabelecia o artigo 1.069 do Código Civil de 1916. 160 1. 5 – A seguir, a lei define o “CRI” como “título de crédito nominativo, de livre negociação, lastreado em créditos imobiliários, constituindo promessa de pagamento em dinheiro” (art. 6o), de emissão exclusiva das Securitizadoras (par. único), a ser emitido de acordo com a rígida especificação do artigo 7o, de forma nominativa (inc. V), pelo valor nominal (inc. VI), admitida aqui também a capitalização (inc. VIII), podendo conter garantia de privilégio geral sobre o ativo da securitizadora (par. 2o). O artigo 8o estabelece que o crédito imobiliário permite a emissão de títulos de crédito, que são exatamente os “CRIs”, dizendo ser esta a operação de securitização. O artigo 10 prevê regime fiduciário instituído mediante declaração unilateral da Securitizadora, com a nomeação de um “agente fiduciário”, com a definição de seus deveres e remuneração (inc. IV). Este agente fiduciário, nomeado e remunerado pela Securitizadora, é que seguramente deverá ter entre seus deveres a realização do público leilão, previsto no artigo 27, que examinaremos mais adiante. 1.6 – O inciso IV do artigo 17 estabelece que as operações de financiamento imobiliário poderão ser garantidas por alienação fiduciária de coisa imóvel. Encerramos aqui a rápida análise da “parte de direito material” da lei, exame como se vê bastante conciso, tendente apenas a permitir que se conheça, sempre em linhas gerais, o funcionamento do sistema de securitização e a forma pela qual se chega à alienação fiduciária de bem imóvel. Examinamos assim o capítulo I da lei e, em seguida, começaremos o exame do ponto que é objeto específico do presente trabalho, ou seja, a alienação fiduciária do imóvel e a execução da dívida em caso de inadimplência do Comprador do imóvel. 1.7 – Observe-se apenas – o que será útil para que se demonstre a tendência da lei –, que o artigo 14 afasta a possibilidade de quebra em caso de insuficiência de bens, prevendo a convocação de assembleia geral dos beneficiários para deliberar sobre as normas de administração ou liquidação do patrimônio. A lei pretende afastar o mais possível o Judiciário de qualquer questão, deixando a decisão de assuntos internos à discrição da assembleia geral dos beneficiários e, como veremos abaixo, possibilitando a execução extrajudicial em caso de não pagamento do débito por parte do Comprador financiado. 161 2 – A execução do bem alienado 2.1 – Acabamos de examinar, no título acima, o que chamamos de “parte de direito material” da lei, que se encontra nos artigos 1o a 21 e vamos iniciar agora o exame do que também denominamos de “parte de direito processual”. Voltamos a alertar que tal divisão é feita apenas para o fim de facilitar o exame e ordenar melhor a explanação. 2.2 – A Lei 9.514/97 estendeu para os imóveis a sistemática criada pelo Decreto-lei 911/69 para os bens móveis em geral. Se o pagamento é feito nos termos do contrato (arts. 22, 23 e 24), o contrato resolve-se pelo cumprimento integral, o credor fiduciário fornece o termo de quitação e o devedor fiduciante vai ao Cartório do Registro de Imóveis e efetua o cancelamento da garantia lá registrada (art. 25), ficando o imóvel liberado em favor do comprador. Esta é a sequência normal, em caso de pagamento regular da dívida; se o contrato não é cumprido, normalmente por cessação dos pagamentos por parte do devedor fiduciante, a lei prevê a execução extrajudicial do contrato (arts. 26 a 29), assegurando ao credor fiduciário ou ao adquirente no leilão extrajudicial, a reintegração na posse do imóvel. 2. 3 – A reintegração, nos termos do artigo 30 “será concedida liminarmente, para desocupação em 60 dias”. Evidentemente, este comando do artigo 30 é dirigido ao Judiciário, pois embora a execução seja feita extrajudicialmente, o ato físico da reintegração na posse, a ser executado com o uso da violência (se necessária), da qual o Estado tem o monopólio, só poderá ser efetuada mediante prévia determinação de juiz competente. Assim, sem embargo do que anotamos no item “1.7” acima, a “desjudicialização” tentada em algumas leis recentes, acaba levando o conflito final para o Judiciário, como se pode ver, como exemplo mais esclarecedor, na liquidação extrajudicial das instituições financeiras da Lei 6.024/74, cuja falência final, se for o caso, vem a ser decretada pelo Judiciário, muitas vezes anos após a intervenção e tentativa de liquidação extrajudicial pelo Banco Central. 3 – Exame técnico dos artigos 26 e 27 3.1 – Os artigos 26 e 27 desta lei criaram um sistema de execução extrajudicial, a ser efetuada ante o Cartório do Registro de Imóveis, prevendo uma forma expedita de “consolidação da propriedade” (par. 7o do art. 26) em favor do credor fiduciário ante a mora do devedor fiduciante; neste 162 momento, a propriedade do credor fiduciário, que era resolúvel, torna-se plena. A partir deste momento, embora com propriedade plena, o credor ainda não tem a posse que exercia apenas de forma indireta, pois a posse direta ainda está com o devedor fiduciante. Ocorre aqui, no dizer de Orlando Gomes8, a transmissão condicional da propriedade, contrato no qual o pagamento importa implemento da condição resolutiva. Com o pagamento, ocorre a extinção da chamada propriedade resolúvel do credor, tornando-se plena a propriedade do devedor, que já mantinha a posse direta do bem e que havia adquirido a propriedade sob condição resolutiva, implementada com o pagamento da dívida. Em caso de inadimplência, a propriedade plena estabelece-se em favor do credor fiduciário. 3. 2 – Se se tornar inadimplente, o devedor fiduciante será intimado pelo Oficial do Registro de Imóveis da respectiva circunscrição (par. 1o do art. 26) para pagar, em 15 dias, as prestações vencidas e as que se vencerem até o momento do pagamento, mais juros, encargos, tributos, condomínio e despesas de cobrança e de intimação, esta podendo ser feita pessoalmente, por correio ou por edital (par. 3o e 4o do art. 26). Se o pagamento não for feito no prazo de 15 dias, o oficial do Registro de Imóveis receberá do credor fiduciário o imposto de transmissão e promoverá a “consolidação da propriedade em nome do fiduciário” (par. 7o do art. 26). Este artigo 26 cuida das providências a serem tomadas desde o momento em que se verifica a inadimplência do devedor fiduciante até o momento final do procedimento, no qual o imóvel volta à propriedade plena do credor fiduciário. A lei, ordenada tecnicamente de forma primorosa, logo após estabelecer a atribuição da propriedade plena do imóvel na pessoa do credor fiduciário, indica a seguir as providências a serem tomadas para solucionar os outros dois aspectos pendentes, quais sejam, a venda do bem em leilão extrajudicial e a transferência da posse para o próprio credor fiduciário ou para quem vier a adquirir o imóvel no leilão. 3. 3 – O artigo 27 determina que no prazo de 30 dias a contar do registro que devolve a propriedade plena ao credor fiduciário, este promoverá o leilão público do bem, estipulando ainda o parágrafo 2o do artigo 27 que, se não houver venda do imóvel no primeiro leilão por valor igual ou superior ao do imóvel, será feito o segundo leilão, no qual o bem pode ser vendido 8 Orlando Gomes, pg. 459. 163 pelo maior lance oferecido, desde que igual ou superior ao valor da dívida e demais encargos. O parágrafo 5o deste artigo prevê, finalmente, que se no segundo leilão não houver licitantes que ofereçam valor suficiente para o pagamento da dívida, esta será considerada extinta e nenhum valor será devolvido ao devedor fiduciante. Desde logo é necessário que se apreenda o alcance prático deste dispositivo em toda sua extensão, ou seja: o parágrafo 5o determina que se não houver licitantes, o imóvel passa à propriedade plena do credor fiduciário e o Comprador perde o imóvel e o total do valor já pago. 4 – Exame crítico dos artigos 26 e 27 4. 1 – Evidentemente, o legislador não se preocupou com a conhecida resistência que o Poder Judiciário tem demonstrado, ao longo dos tempos, a qualquer tipo de execução extrajudicial por ver nela o coroamento do exercício de um direito por parte do credor (normalmente parte sensivelmente mais forte do que o devedor), sem qualquer consideração com os direitos do devedor. Esta forte resistência do Judiciário já se fazia presente tanto na execução extrajudicial do artigo 14 do Decreto-lei 58, de 10.12.1937, como também na execução extrajudicial prevista no artigo 32 do Decreto-lei 70, de 21.11.96. Sintomaticamente, os dois diplomas são decretos-lei, ambos expedidos em época de ditadura, com os poderes Judiciário e Legislativo manietados, o primeiro sob o Estado Novo de Getúlio Vargas, o segundo sob a Ditadura Militar de 1964. 4. 2 – Esta justa aversão do Poder Judiciário a qualquer tipo de execução extrajudicial, que não permitiu a pacificação da matéria até hoje, passados já 37 anos da expedição do Decreto-lei 70/66, não será aqui discutida, remetendo-se o interessado à leitura de “Theotonio”9. Apenas para que se tenha noção da resistência do Judiciário, relembre-se que o 1o Tribunal de Alçada Civil de São Paulo editou súmula de nº 39, segundo a qual “são inconstitucionais os artigos 30, parte final, e 31 a 38 do Dec.lei nº 70, de 21.11.66”.10 Este posicionamento do Judiciário tem profundo enraizamento 9 10 Theotonio Negrão, pg. 1.326. Para atualizar a informação de Theotonio relativamente ao RE.25.545-SP, anote-se que o STF, por julgamento de 20.8.2002, em curiosa decisão, deixou de conhecer o recurso, com a seguinte ementa, na parte que interessa: “Revela-se inadmissível o recurso extraordinário interposto com base na letra “b” do inciso III do artigo 102 da Constituição Federal, no caso em que a decisão recorrida não traz declaração formal de inconstitucionalidade de tratado ou lei federal. Hipótese inconfundível com o reconhecimento de que norma legal anterior à Carta de 1988 não foi recebida, por incompatível”. Com esta decisão do STF, prevaleceu o 164 na letra “a” do inciso XXXIV do artigo 5o da Constituição Federal, que garante a todos o direito de petição aos poderes públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder. Isto significa que se alguma lei atenta contra o direito de petição “aos poderes públicos” deve ser tida como inconstitucional. Ora, o direito de petição existe para garantia dos “direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”, devendo o dispositivo ser entendido em toda sua extensão, ou seja, o direito de petição deve ser eficaz para evitar, se possível, que se consume o atentado ao direito ou para coartar o efeito de qualquer ato praticado com ilegalidade ou abuso de poder. Logo em seguida, quase que pretendendo repetir o direito já anteriormente fixado, quase que se confundindo com aquele direito fixado no inciso acima examinado – o que se justifica tendo em vista que se trata da garantia dos direitos rígidos por cláusula pétrea, consagrados ao longo de séculos de direito constitucional –, estabelece o inciso XXXV o princípio da indeclinabilidade da jurisdição, dizendo que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. 4. 3 – Estes dois incisos não podem sequer ser alterados por leis de natureza ordinária, ante o óbvio de que o direito garantido constitucionalmente não pode ser afastado por legislação ordinária. No entanto, não só por isto: estes direitos, por se configurarem como cláusulas pétreas da Carta Magna, não poderiam ser suprimidos, mesmo que houvesse reforma da Constituição, a menos que a reforma partisse do Poder Constituinte originário, o que não era o caso do Congresso Nacional de 1997, ano da promulgação desta Lei 9514/97. Com esta legislação ocorreu o que, infelizmente, nestes nossos tempos ominosos, cada vez mais se torna comum, ou seja, a desconsideração de normas pétreas da Constituição, avançando o legislador sobre direitos ante os quais deveria deter-se, e isto sob as mais diversas justificativas. 4. 4 – No caso, como se sabe, o direito que se quis preservar foi a garantia de recebimento do valor devido, em favor de construtoras, de bancos e agora, entendimento do julgado recorrido, do Tribunal Regional Federal da 3a Região, sob o seguinte fundamento: “A execução extrajudicial prevista no Decreto-lei 70/66 não se amolda às garantias oriundas do devido processo legal, do juiz natural, do contraditório e da ampla defesa, constantes do Texto Constitucional em vigor, pois é o próprio credor quem realiza a excussão do bem, subtraindo o monopólio da jurisdição do Estado, quando deveria ser realizada somente perante um magistrado constitucionalmente investido na função jurisdicional, competente para o litígio e imparcial na decisão da causa”. 165 das neológicas “companhias de securitização”, quintessência do capital meramente especulativo, que tantos males tem feito a este nosso sofrido País. Concorda-se com o argumento de que é necessário dirigir volumes significativos de poupança para o crédito imobiliário e com isto tentar, se não resolver, pelo menos tornar menos grave o problema da habitação no País; no entanto, e isto é também examinado abaixo, há que se manter respeito ao princípio da proporcionalidade, sob pena de se começar a duvidar até da pureza das intenções daqueles que patrocinaram a promulgação da lei. E, também sintomaticamente, as fronteiras legais são todas arrostadas sem qualquer cerimônia quando se trata do argumento de que se está defendendo o sacrossanto “mercado”, esquecidos todos, sempre é bom lembrar, que contra a mão invisível do mercado sobrepõe-se a mão visível e correcional do direito. Ou, em outras palavras, maior que o mercado e sobre ele, está o direito, que visa à proteção do bem comum, bem infinitamente maior do que aqueles propiciados – se é que o são –, pelas idas e vindas dos capitais por este mundo globalizado. E, lembrando Aristóteles, no primeiro livro da Retórica, ocorre aqui o que sempre ocorrerá com leis que não sejam “leis bem dispostas”, que “devem deixar aos que julgam o menos possível”, pois ao Judiciário é que competirá adaptar a lei “não bem disposta” à realidade que se impõe. 4. 5 – Saulo Ramos11, falando sobre reforma da constituição, faz uma apaixonada análise – como sempre ocorre, e deve ocorrer, com o bom advogado quando defende uma causa – que também se adapta a leis como a presente, dizendo que o desmazelo das leis hoje editadas tem como: “A principal razão: dinheiro para a contabilidade. Este é o ponto, o direito maior é editado sempre em razão das crises de tesouraria, e jamais inspirado pela ciência jurídica e na evolução social. O poder constituinte não é mais a formulação das garantias fundamentais no Estado democrático, transformou-se em regra de contadores”. Sem falar em Aristóteles e fazendo uma análise que nada tem a ver com a presente lei, Saulo Ramos parece que profetiza o que acontece com a “lei mal disposta”, cuja adaptação à realidade exige a intervenção do Judiciário, dizendo: “Nenhum jurista foi convocado para ponderar a coerência das normas sob um mínimo de técnica legislativa que evitasse agressões aos princípios fundamentais do direito constitucional ou alguma prudência que 11 José Saulo Pereira Ramos, in “Folha de São Paulo”, edição de 3.8.03, pg. A3. 166 amenizasse os choques previsíveis quando se mudam regras do contrato social”. E o choque começa a se fazer presente nos julgamentos dos primeiros casos levados aos Tribunais. 4. 6 – Com efeito, o parágrafo 2o do artigo 27 da Lei 9.514/97, ao prever a possibilidade de ser aceito o maior lanço, desde que igual ou superior ao valor da dívida – ou de ser simplesmente considerada quitada a dívida e tomado o imóvel –, isto tudo, repita-se, em leilão extrajudicial, sem a garantia do contraditório, está abrindo caminho para que ocorra com imóveis que servem de residência para o adquirente e sua família, o que já ocorre há dezenas de anos com veículos em geral, ou seja: a venda por qualquer preço em leilão extrajudicial, do qual só tomam conhecimento aqueles que se encontram próximos do círculo dominante de poder destes capitais envolvidos. A simples redução do problema à sua proposição mais primária já demonstra a iniquidade da situação: imagine-se que alguém tenha adquirido um imóvel de R$ 150.000,00, tenha honrado 90% do preço e, por qualquer azar da vida, comum aliás nesta época em que o desemprego anula qualquer programação da economia familiar por mais cuidadosa, vejase impossibilitado de pagar o saldo restante, ou seja, dez por cento do valor do imóvel; perderá o imóvel e perderá tudo que pagou. 4. 7 – Ora, é situação cuja iniquidade salta aos olhos, sem contar ainda que o parágrafo 2o do artigo 27 consagra a possibilidade explícita da venda por preço vil, o que não se aceita sequer em leilão judicial, estabelecido com todas as garantias do contraditório e com a fiscalização do Judiciário e de qualquer interessado, ante a publicidade do processo judicial, publicidade que, como se sabe, não ocorre jamais em processos administrativos internos, conduzidos pelo próprio credor. 4. 8 – Já houve discussão anterior, de forma bem mais aprofundada – ainda não totalmente pacificada –, no sentido de se perguntar se poderia o credor adjudicar o bem pelo valor de seu crédito, em segundo leilão, sem licitantes. E a resposta foi no sentido de que, em tais casos, a adjudicação só é possível se houver o depósito da diferença entre o valor em execução e o valor da avaliação. Este correto entendimento anulava o espírito ganancioso daquele que pretendia “levar vantagem” na execução, à custa da miserabilização do devedor; prevalecia, portanto, o entendimento de que o lance por conta do crédito, que implica na adjudicação do bem em favor do credor exequente, exige o depósito da 167 diferença entre o valor do crédito e o valor da avaliação do bem. É certo que os julgados mais recentes tendem a admitir a adjudicação – ou arrematação pelo credor – pelo valor do crédito, remanescendo sempre, porém, o entendimento de impossibilidade de arrematação por preço vil. 4. 9 – Assim, sob um exame meramente sistemático, seria de se afastar a aplicação da Lei 9.514/97, nesta parte em que afronta as garantias constitucionais estabelecidas por cláusulas pétreas. Sob um exame de natureza axiológica (qual é o valor sócio-econômico visado?) não se chegaria a resultado diferente, uma vez que o valor social que se pretendeu defender com a expedição do Decreto-lei 911/69 não se encontra aqui presente. As vozes autorizadas da Ditadura Militar, à época da expedição do referido decreto-lei, diziam que a alienação fiduciária, criada por Gama e Silva e prontamente adotada pelo sistema financeiro então sob o comando de Delfim Neto, seria a salvação da indústria nacional de bens de consumo duráveis, especialmente da indústria de veículos. Dizia-se então, talvez até com certa razão de natureza econômica, que para que se ativasse a venda de veículos, era necessário que se propiciasse financiamento abundante, o que só seria possível com garantia de pronta execução e, para tanto, criou-se a alienação fiduciária, que efetivamente trouxe um desafogo temporário – mesmo que à custa da execução sobre o corpo do devedor, com sua prisão, retornando-se a épocas anteriores à Lex Poetelia Papiria, que já em 428 AC. proibia a execução sobre o corpo do devedor –, sem evidentemente resolver o problema do escoamento da produção dos bens duráveis de consumo, como se pode ver atualmente com os pátios lotados das montadoras e com as demissões em massa em tais indústrias. No entanto – e apesar de tudo isto –, ainda se poderia, axiologicamente, justificar o Decreto-lei 911/69, pois a garantia (veículo) poderia desaparecer de um momento para outro. 4. 10 – Ocorre que agora se trata de alienação fiduciária sobre imóveis e, sobre este, não incide o argumento de desaparecimento do bem. Tanto é assim que já se entendeu – e isto dezenas ou centenas de anos antes da criação da alienação fiduciária –, no sistema brasileiro, que a melhor garantia de dívida sempre foi a hipotecária. O imóvel permanece, não pode desaparecer e, portanto, não há qualquer razão que justifique a açodada execução extrajudicial que se pretendeu implementar sobre imóveis vendidos para tentativa de solução do grave problema habitacional do País. 168 5 – A Lei 9.514/97 e o Código de Defesa do Consumidor 5.1 – Há razões de natureza constitucional para que não se possa dar respaldo a qualquer tipo de execução extrajudicial; há igualmente razões de ordem filosófico-axiológica, para que também se afaste a incidência de uma lei que não atende a qualquer reclamo válido do bem comum. Mas não são só estas as razões, pois há outra, de natureza puramente hierárquica entre leis ordinárias e leis de natureza complementar, a afastar a possibilidade de execução extrajudicial, como estabelecido na lei. Referimo-nos aqui e passamos a examinar a seguir, o Código de Defesa do Consumidor, que se aplica a este tipo de transação, especialmente por força de seu artigo 5312. 5.2 – O inciso XXXII do artigo 5o da Constituição Federal estabelece que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. O título VII da Constituição, fixando os princípios constitucionais da ordem econômica e financeira, estabelece no inciso V do artigo 170, que esta ordem tem, por um de seus princípios, a “defesa do consumidor”. Finalmente, o artigo 48 das Disposições Constitucionais Transitórias estabeleceu que “o Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor”. Na esteira destes expressos dispositivos da Carta Magna é que veio a ser promulgada a Lei 8.078, de 11.9.90, o conhecido “Código de Defesa do Consumidor” que, no dizer do Desembargador José Osório, do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, é o diploma legal mais revolucionário de todos quantos foram expedidos, cuja extensão apenas será percebida em toda sua integridade depois de transcorridos ainda muitos mais anos. 5.3 – Pois bem, com esta origem, o Código de Defesa do Consumidor, embora formalmente lei ordinária, na realidade possui a natureza de lei complementar, na medida em que preenche o expresso campo a ele deixado pelos diversos artigos da Constituição acima lembrados. Esta natureza de lei complementar, reconhecida aos diplomas legais que vêm preencher o expresso campo reservado pela Carta Magna, é elemento que não pode passar despercebido ao aplicador da lei a casos práticos, é elemento que 12 Ao caso, aplica-se o Código de Defesa do Consumidor, por seus princípios gerais estabelecidos em seu Capítulo I do Título I e, especialmente, pelo que dispõe o artigo 53, que menciona expressamente os “contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações”, falando ainda em “alienações fiduciárias em garantia”. 169 deve ser cuidadosamente considerado pelo Poder Judiciário. E, quando alguma lei ordinária confronte qualquer disposição destas leis de natureza complementar, o prevalecimento deve ser desta última. Isto é o que ocorre no presente caso, devendo o exame da questão posta ser feito também ante as disposições do Código de Defesa do Consumidor. 5. 4 – Cláudia Lima Marques13 frisa que o CDC tem origem constitucional e que esta origem garante-lhe uma “nova superioridade hierárquica”, conceito que segundo repisa, pode ser de grande utilidade na solução de conflitos entre outras normas e o Código; prossegue dizendo que o CDC é norma de ordem pública econômica e que no campo do direito privado, estas prevalecem sobre as demais normas de direito privado. É certo que mais adiante de sua obra, a eminente Mestra afirma a prevalência da lei especial posterior pelo critério da cronologia, mas outro pouco mais adiante, quase chega a afirmar que não entende possível submeter o Judiciário de tal forma a obrigá-lo a dar aplicação a uma lei que traga uma estipulação abusiva, perguntando, de forma candente, se o potencial abusivo explícito em determinada situação desaparece só porque a lei passou a prever como correta aquela situação14, texto que, embora se refira diretamente a planos de saúde, aplica-se também ao presente caso. 5.5 – O CDC, no inciso IV do artigo 51, diz serem nulas de pleno direito, as cláusulas contratuais que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada ou sejam incompatíveis com a boa-fé e a equidade. O artigo 53 estabelece que consideram-se nulas as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em contratos de compra de imóveis a prazo ou em contrato de alienação fiduciária em geral. Ora, o simples exame da situação na qual fica aqui colocado o consumidor, mostra que ficará em posição de absoluto 13 14 Cláudia Lima Marques, pg. 521. Cláudia Lima Marques, a pg. 551, pergunta: “É possível revogar um princípio legal, intrínseco a um sistema jurídico, como o da boa-fé nas relações privadas, através de simples norma ordinária? Podem normas legais, elaboradas sob o interesse de determinados grupos econômicos e agentes no mercado, realmente autorizar a atuação conforme a má-fé objetiva, na esperança de prejudicar o co-contratante que, por exemplo, esquecerá de inscrever seu filho exatamente um mês antes do nascimento ou simplesmente não poderá fazê-lo por acaso da natureza? Basta estipular por lei um caso de abuso do direito e este potencial abusivo desaparece, tornando-se jurídica a atuação objetivamente abusiva? Será possível submeter o Judiciário e os aplicadores da lei a dar aplicação efetiva e eficácia a estas novas normas legais, mesmo se contrárias aos princípios de nosso sistema, aos próprios princípios constitucionais da atividade econômica (art. 170 CF/88) e aos direitos básicos do cidadão (art. 5o, XXXII, CF/88)?”. 170 desequilíbrio ante o construtor ou a empresa de securitização. O que se tem visto nas primeiras ações que aportam no Foro Central de São Paulo é ter o comprador efetuado o pagamento de valor às vezes superior àquele atribuído ao imóvel, não ter condições de continuar pagando o valor das prestações que aumentam exageradamente, pretender devolver o imóvel e receber de volta parte do que pagou, tendo, no entanto, que se conformar com a execução extrajudicial estabelecida pela Lei 9.514/97, na qual perderá o imóvel e tudo que pagou. Esta é, claramente, situação de iniquidade que o CDC veda; aliás, mais que o CDC, o simples bom senso veda. 5.6 – Outro aspecto ainda deve ser examinado. A partir da observação do dia a dia da alienação fiduciária de coisa móvel, o que se verifica é que o consumidor, metodicamente, não recebe qualquer saldo pelo bem que foi objeto de busca e apreensão; este é fato notório, de conhecimento de toda e qualquer pessoa que esteja habituada a militar em tais campos. No caso sob exame, a execução extrajudicial prevista no artigo 27 da Lei 9514/97, ao permitir que o bem seja vendido por preço igual ao do saldo devedor existente – ou que seja recebida contra a pura e simples quitação da dívida remanescente –, na realidade subtrairá do devedor a possibilidade de receber qualquer valor em devolução, não importa quanto tempo tenha cumprido o contrato, não importa qual valor já tenha pago, o que também é proibido pelo CDC, no inciso II do mesmo artigo 51, que torna obrigatória a opção de reembolso da quantia já paga. Este privilégio criado em favor do securitizador deve ser considerado como propiciador da vantagem exagerada de que fala o inciso I do parágrafo 1o do mesmo artigo 51. 6 – O princípio da proporcionalidade 6.1 – Evidentemente, aquele que não cumpre sua obrigação deve ser “penalizado”; a “pena” de quem não paga o débito, é ser judicialmente expropriado de seu bem para satisfação do credor. No entanto, o sofrimento em que é colocado o devedor deve ter equilíbrio compatível com o benefício que se visa obter. Em um interessante artigo sobre a proporcionalidade, Alexandre Santos de Aragão15, embora falando sobre direito econômico, diz que a intervenção (no caso, diríamos, a execução) deve ser “equilibradamente 15 Alexandre Santos de Aragão, pg. 74. 171 compatível com o benefício social visado, isto é, mesmo que aquela seja o meio menos gravoso, deve, tendo em vista a finalidade pública almejada, ‘valer a pena’ – proporcionalidade em sentido estrito”. A finalidade almejada pela Lei 9514/97, que é “criar condições para mobilizar volume crescente de recursos para o setor imobiliário e habitacional, com novas garantias e instrumentos para o funcionamento de um mercado secundário de créditos imobiliários e captação de novos recursos para esse setor”16, permite o uso de instrumentos legais – entre eles, a edição de lei –, todos porém subsumidos ao princípio da proporcionalidade, de tal forma que a pena mais grave só deve ser aplicada se a pena imediatamente inferior não for suficiente para que se atinja o objeto perseguido. Não nos estendemos sobre este ponto, por não ser o presente um trabalho teórico e sim, um trabalho eminentemente prático; no entanto, pode-se afirmar que a perda por parte do comprador de tudo que pagou juntamente com o imóvel é desproporcional ante o fim perseguido. 6.2 – A par de arrostar princípios doutrinários e jurisprudenciais já solidificados, de investir contra a consciência de proteção do mais fraco que já permeia o direito ocidental desde fins do Século XIX, de afrontar diretamente diversos artigos do Código de Defesa do Consumidor, de desconsiderar sumariamente postulados constitucionais de natureza positiva, é ainda lei que traz uma “pena” desproporcional ao “delito”, que estabelece uma sanção que pode fazer com que se chegue ao objetivo pretendido – ou seja, fluxo de capitais suficiente para o financiamento imobiliário ante a facilitação da cobrança do débito pelo investidor –, mas que, certamente, ao invés de usar do meio menos gravoso, lança mão de meio que mais que gravoso, adentra as fronteiras da iniquidade. 6.3 – Este antigo princípio da proporcionalidade permeia todo nosso pensamento jurídico, encontrando específica previsão em disposições da lei positiva, bastando aqui lembrar-se, entre outros, o artigo 620 do CPC, dispondo que “quando por vários meios o credor puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o devedor”, repetido no artigo 716 que determina que “o juiz da execução pode conceder ao credor o usufruto de imóvel ou de empresa, quando o reputar menos gravoso ao devedor e eficiente para o recebimento da dívida”. E a indagação lógica que se impõe é: 16 José de Mello Junqueira, pg. 11. 172 se ao próprio juiz não é dado desrespeitar o princípio da proporcionalidade na execução judicial de dívida, como pode a consciência jurídica admitir tal desrespeito pelo Oficial do Registro de Imóveis, em execução extrajudicial? 7 – Conclusão 7.1 – A tentativa de se estabelecer um sistema de financiamento público do crédito imobiliário, por meio de certificados de recebíveis imobiliários, “CRI”, merece louvor, pois é esta uma forma inteligente de tentar dar solução ao gravíssimo problema da falta de habitação no País. Dirigir para este setor de investimento a poupança interna da população é, sob todos os aspectos, um caminho necessário ao desenvolvimento do País. Por isto, em princípio, a idéia que norteou a feitura da lei merece aplausos. 7.2 – No entanto, ante tudo o que acima se tentou demonstrar, vê-se que a lei desconsiderou uma série de dispositivos constitucionais e afrontou outra série de artigos do Código de Defesa do Consumidor, investiu contra princípios gerais do direito, contra a doutrina e a jurisprudência solidificadas, transpôs as fronteiras da proporcionalidade e, por isto mesmo, não conseguirá a celeridade pretendida na solução, pois terá grande – ou talvez intransponível – dificuldade de passar pelo crivo do Judiciário. Ao pedido de reintegração não será concedida liminar e se houver contestação, a reintegração será apenas deferida no final, mediante composição de valores, com o depósito nos autos da parte que vier a ser apurada como devida ao comprador do imóvel. 7.3 – A mesma situação tende a ocorrer se o comprador, antes de ser demitido da posse, ajuizar ação para rescindir o contrato, pedindo devolução do valor que já tenha pago, ação à qual seria dada procedência, fixando-se o valor a ser devolvido. 7.4 – O legislador deveria ter ponderado que a propriedade imobiliária de natureza residencial, é o bem material que mais de perto afeta a vida e a sensibilidade das pessoas, bem civil ao qual não se pode pretender aplicar conceitos comerciais de extrema celeridade, mas que não se coadunam com os conceitos de direito puramente civil, no caso, a propriedade imobiliária da pessoa física, especialmente se destinada à residência familiar. 7.5 – A melhor solução para que não se perca o excelente espírito 173 que norteou a lei e que se destinava a tentar resolver o problema de aporte financeiro para o capital destinado à construção de moradia, seria alterar a Lei 9.514, de 20.11.97, para: a) dar ao parágrafo 2o do artigo 27, a seguinte redação: “No segundo leilão, será aceito o maior lance oferecido, desde que igual ou superior a 75% do valor do imóvel, estipulado na forma do parágrafo anterior, mais as despesas, prêmios de seguros, encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais. b) dar ao parágrafo 4o do artigo 27, a seguinte redação: “Nos cinco dias que se seguirem à venda do imóvel no leilão, o credor entregará ao devedor, contra a imissão na posse do novo proprietário, a importância que sobejar ...”, mantendo no mais a redação já existente. c) acrescentar ao parágrafo 5o do artigo 27, a seguinte expressão: “devendo ser pago ao devedor a diferença que existiria se o bem tivesse sido arrematado na forma do parágrafo 2o acima”. d) dar ao artigo 30, a seguinte redação: “Em caso de recusa do devedor ao recebimento e imissão na posse na forma prevista no parágrafo 4o do artigo 27, o juiz concederá liminarmente ao fiduciário, seu cessionário ou sucessores, inclusive o adquirente do imóvel por força do público leilão de que tratam os parágrafos 1o e 2o do art. 27, a reintegração na posse do imóvel, para desocupação em sessenta dias, desde que comprovada, na forma do disposto no art. 26, a consolidação da propriedade em seu nome. Com a inicial, o autor depositará o valor que sobejou ou a diferença prevista no parágrafo 5o , que será levantado em favor do devedor, 24 horas depois da imissão na posse”. Bibliografia ARAGÃO, Alexandre Santos de. O Princípio da Proporcionalidade no Direito Econômico. Revista dos Tribunais, v. 800. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. GOMES, Orlando. Contratos. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. JUNQUEIRA, José de Mello. Alienação fiduciária de coisa imóvel. São Paulo: Arisp - Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo, 1998. MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito Brasileiro – Eficácia, Poder e Função. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. Coordenação Geral Des. Wanderley José Federighi Coordenação Editorial Marcelo Alexandre Barbosa Editoração, CTP, Impressão e Acabamento Art Printer Gráficos Ltda. Capa Mateus Schinor Bianchi Revisão Ana Lúcia Moraes Formato Fechado 150 x 210 mm Tipologia A. Garamond, Frutiger Papel Capa: Cartão Revestido 250 g/m2 Miolo: Offset Branco 75 g/m2 Acabamento Cadernos de 16 pp. costurados e colados-brochura Tiragem 3.500 exemplares Julho de 2014