Da fidúcia à securitização: as garantias dos negócios

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REVISTA DA
Escola Paulista
da Magistratura
Ano 14 - Número 2
Julho - 2014
Da fidúcia à securitização:
as garantias dos negócios empresariais
e o afastamento da jurisdição
Visão crítica da alienação fiduciária
de imóveis da Lei 9.514/97
ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURA
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MINISTRO SIDNEI AGOSTINHO BENETI
Manoel Justino Bezerra Filho
Especialista em Filosofia e Teoria Geral do Estado, Mestre e
Doutor em Direito Comercial pela USP. Professor na Graduação e
Pós-graduação na Faculdade de Direito da Universidade
Presbiteriana Mackenzie. Professor e Coordenador da Área de
Direito Empresarial da Escola Paulista da Magistratura.
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Da fidúcia à securitização:
as garantias dos negócios empresariais
e o afastamento da jurisdição
Visão crítica da alienação fiduciária
de imóveis da Lei 9.514/97
Escola Paulista da Magistratura
São Paulo, 2014
Revista da Escola Paulista da Magistratura / Escola Paulista da Magistratura.
Ano I, (1993). São Paulo, SP: Escola Paulista da Magistratura.
2001, v. 2 (1-2)
2002, v. 3 (1-2)
2003, v. 4 (1-2)
2004, v. 5 (1-2)
2005, v. 6 (1)
2006, v. 7 (1-2)
2007, v. 8 (1-2)
2009, v. 9 (1)
2011, v. 10 (1)
2012, v. 11 (1)
2014, v. 12 (1-2)
1. Direito. I. Escola Paulista da Magistratura.
ISSN 1980-2374
Escola Paulista da Magistratura
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Sumário
I – Introdução ........................................................................................... 17
1.1 – Justificativa para a escolha do tema .................................................. 17
1.2 – Fidúcia, alienação fiduciária e securitização como sistemas de
garantia dos negócios ................................................................................. 21
1.3 – Lei 9.514/97 e Lei 10.931/04 .......................................................... 23
1.4 – A tentativa de neutralização da “incerteza da jurisdição” ................. 25
1.5 – O Direito como sistema de controle e a indeclinabilidade da
jurisdição .................................................................................................... 27
II – Evolução histórica da fidúcia romana; a fidúcia em outros sistemas
de direito ................................................................................................... 33
2.1 – Direito romano ................................................................................. 33
2.1.1 – Origem histórica da fidúcia ........................................................... 33
2.1.2 – Tipos diversos de fidúcia ................................................................ 40
2.1.3 – Fidúcia cum amico ......................................................................... 42
2.1.4 – Fidúcia cum creditore, pignus e hipotheca ........................................ 44
2.2 – Direito germânico ............................................................................. 47
2.3 – Direito anglo-saxão ........................................................................... 54
2.4 – Direito brasileiro ............................................................................... 58
III – Patrimônio e negócio fiduciário ..................................................... 65
3.1 – Patrimônio ........................................................................................ 65
3.1.1 – Teorias do patrimônio: clássica e moderna .................................... 65
3.1.2 – Patrimônio geral e especial (patrimônio separado ou de afetação) ... 69
3. 2 – Negócio indireto e negócio fiduciário ............................................. 74
3.2.1 – Negócio indireto e direto ............................................................... 74
3.2.2 – Negócio fiduciário e simulação ...................................................... 78
IV – Surgimento e evolução da securitização no direito brasileiro;
aproximação a outros institutos .............................................................. 83
4.1 – Securitização, alienação fiduciária de imóveis e patrimônio de
afetação ....................................................................................................... 83
4.2 – Lei 9.514/97 – alienação fiduciária de imóveis ................................ 93
4.3 – Lei 10.931/04 – patrimônio de afetação .......................................... 95
4.4 – Lei 11.101/05 – nova Lei de Recuperação de Empresas e Falência ... 96
V – Da fidúcia à securitização: evolução histórica ................................ 97
5.1 – Do direito romano ao direito brasileiro ............................................ 97
5.2 – Confiança (inicial) X garantia (atual) ............................................. 102
5.3 – Fidúcia no Código Civil ................................................................. 104
5.4 – Fidúcia em leis especiais ................................................................. 105
5.5 – Da fidúcia para a securitização ....................................................... 107
5.6 – Patrimônio de afetação ................................................................... 108
VI – A “blindagem” das garantias no direito positivo brasileiro ........ 111
6.1 – A natural busca de garantias para os negócios empresariais ........... 111
6.2 – Direito real (tradicional) de garantia .............................................. 115
6.3 – Alienação fiduciária de bem móvel ................................................. 117
6.4 – Alienação fiduciária de bem imóvel ................................................ 122
6.5 – Securitização de crédito imobiliário e patrimônio de afetação ....... 124
6.6 – Garantia contra o devedor, contra terceiros e contra a “jurisdição” ... 128
VII – A busca da eficiência do sistema de garantias pelo afastamento
da jurisdição, no Brasil atual ................................................................ 133
7.1 – Racionalidade weberiana ................................................................ 133
7.2 – Previsibilidade da decisão como elemento de segurança da
jurisdição .................................................................................................. 134
7.3 – Insegurança da lei positiva e afastamento da jurisdição ................. 136
VIII – Conclusão .................................................................................... 141
8.1 – O sistema de garantias do negócio empresarial de construção/
incorporação de imóveis ........................................................................... 141
8.2 – Afastamento da insegurança da lei e das decisões jurisdicionais .... 142
8.3 – Composição do conflito ................................................................. 146
IX – Bibliografia ..................................................................................... 149
Adendo – A execução extrajudicial do contrato de alienação fiduciária
de bem imóvel – exame crítico da Lei 9.514, de 20.11.97 ...................... 157
8
NOTA DO AUTOR
Dentro do sistema implantado oficialmente pela Diretoria do
Desembargador Fernando Antonio Maia da Cunha, a Escola Paulista da
Magistratura, por comissão de Desembargadores oficialmente formada
para tanto, selecionou para sua segunda publicação, a tese de doutorado
apresentada em janeiro de 2006, com a qual o autor obteve o título de
“Doutor”, na Universidade de São Paulo, sob a orientação do Professor
Doutor Paulo Fernando Campos Salles de Toledo. Esta louvável oportunidade
aberta a todos os Magistrados do Estado de São Paulo certamente trará bons
resultados para o aperfeiçoamento intelectual de todos e para que a Escola
atinja seus objetivos neste campo.
A tese ora publicada pretendeu, em parte, examinar a aplicação da Lei
9.514/97, que introduziu em nosso sistema a alienação fiduciária de imóveis,
para tentativa de solução do grave problema da falta de moradias para a
população. Sem embargo das declaradas boas intenções do legislador, o
que se vê é que o sistema de garantia instituído em favor do financiador
impôs uma draconiana execução extrajudicial que coloca o devedor em
situação de iniquidade, no momento em que, seja por qual razão for, deixa
de pagar as parcelas do financiamento. Com efeito, os artigo 26 e seguintes
da referida Lei 9.514/97, estabelecem um sumaríssimo sistema de execução
extrajudicial, na qual o resultado será a perda do imóvel pelo devedor, que
nada receberá em devolução do valor já pago, conforme permite o § 6º do
artigo 27. Em tese – e isto acontece na prática –, o devedor pode ter pago
uma porcentagem bastante elevada de sua dívida, tornar-se inadimplente
por um valor relativamente pequeno e, ainda assim, perder o imóvel e nada
receber em devolução.
Aliás, este sistema de garantia absolutamente exagerado e a execução
extrajudicial acentuadamente expedita, foram fatores que colaboraram
decisivamente para a chamada “crise do sub prime” nos Estados Unidos,
sistema legal no qual se inspirou o legislador brasileiro. Os financiadores
americanos não se preocuparam com a capacidade de endividamento daqueles
a quem forneciam empréstimos para aquisição de imóvel, pois o sistema de
garantia exacerbada acabava fazendo com que, quanto mais inadimplentes
9
houvesse, mais lucro houvesse para o financiador; bastava a este retomar
o imóvel e manter consigo o valor já recebido, do qual nada devolvia. Ou
seja, afastou-se o risco do negócio para o financiador e este não tinha mais
qualquer razão para pesquisar a situação do pretendente ao dinheiro, pois,
repita-se, quanto mais inadimplentes houvesse, maior seria o lucro.
O risco é que desague o sistema implantado aqui no Brasil, na mesma
crise na qual desaguou o sistema americano. Após a crise do sub prime de
2008, os financiadores, construtores, securitizadores, enfim, os que atuam
neste campo, passaram a tomar cuidado com esta análise da qualidade dos
pretendentes ao financiamento; no entanto, o distanciamento da crise faz
com que os cuidados passem a ser menores. Por outro lado, a situação na
qual é colocado o inadimplente executado extrajudicialmente, faz com que
este procure imediatamente o Judiciário, opondo-se à reintegração de posse
que é ajuizada após a sumaríssima execução extrajudicial, aumentando a
litigiosidade e colocando em risco o sistema. Aliás, já começam a surgir,
como era esperado, decisões judiciais nas quais o financiador é condenado
a devolver valores por conta do que já foi pago, frustrando por outro
lado a rápida reintegração que o sistema da Lei 9.514/07 implantou. A
propósito, confiram-se os julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo que
ou mandam devolver parte do valor pago pelo inadimplente ou mantém
o devedor no imóvel mesmo após o leilão extrajudicial: Ap. 018259313.2008.8.26.0100, j. em 25.6.14; AI. 2011662-73.2013.8.26.0000, j. em
10.12.13; AI. 2010186-97.2013.8.26.0000, j. em 19.11.13; Ap. 015870515.2008.8.26.0100, j. em 29.8.13; AI. 2002662-49.2013.8.26.000, j. em
8.10.13; Ap. 0169661-56.2009.8.26.0100, j. em 18.2.2013; EI. 038065098.2008.8.26.0577, de 27.9.12; Ap. 9300853-02.2008.8.26.0000, j. em
18.4.12; Ap. 0382643-79.2008.8.26.0577, j. em 21.7.2011.
Com o intuito de colaborar para que a lei seja melhorada e possa permitir
que se caminhe no sentido de solução do grave problema habitacional
brasileiro, a tese ora apresentada, em sua parte final, apresenta sugestões que
poderiam encaminhar melhor solução para o funcionamento da lei, fazendo
remissão ao artigo publicado na Revista dos Tribunais, volume 819, de
janeiro de 2004, artigo que vai publicado como adendo no presente trabalho.
São Paulo (SP), julho de 2014.
10
RESUMO
O novo instituto da alienação fiduciária sobre imóveis despertou
especial atenção a partir do estudo da Lei 9.514, de 20.11.97, com vistas ao
julgamento – por sentenças de 29.7.03 –, de dois processos em andamento
na 29ª Vara Cível Central de São Paulo, da qual este doutorando era então
Juiz Titular. Tratava-se de duas ações ajuizadas por adquirentes de unidades
imobiliárias diversas, dirigidas contra requeridos diversos. Os autores haviam
deixado de pagar as prestações contratadas pelos motivos que aduziam na
inicial, pretendendo então o desfazimento do negócio, com a devolução
de parte do que já haviam pago; contra tais pretensões, rebelavam-se as
requeridas – uma sociedade empresária de securitização em um dos feitos e,
uma sociedade de empreendimentos imobiliários, em outro.
Os aspectos processuais e mesmo o teor do julgamento não guardam
maior interesse no momento. O que interessa é que o estudo da referida Lei
9.514/97 mostrou que, em favor das requeridas, havia sido criado um sistema
de garantia tão sólido, que permitiria a pronta retomada extrajudicial do
imóvel, eventualmente sem a devolução de qualquer valor, não importando
quanto já tivesse sido pago. Esta retomada se apresentava possível por meio de
uma execução extrajudicial extremamente expedita, incidindo sobre o imóvel
alienado fiduciariamente. A solidez da garantia em favor da securitizadora
(ou incorporadora/construtora) e a rapidez possível para a retomada do
imóvel sem a devolução de qualquer parcela, demonstraram que havia sido
criado um novo sistema extremamente eficiente, se comparado com os
anteriormente existentes. Esta solidez da garantia veio a se tornar ainda mais
efetiva, com a posterior promulgação da Lei 10.931, de 2.8.04.
A partir de tais constatações é que se iniciou o presente estudo, para tentar
determinar qual o novo tipo de garantia que havia surgido, constatando-se
estar ela formada pelo acoplamento da fidúcia – alienação fiduciária – ao
patrimônio de afetação e ao instituto da securitização. Tal tipo de garantia
era resultado da busca constante que o meio empresarial sempre exerce para,
como diz Ascarelli, criar novo instituto para atender novas necessidades por
meio da junção de velhos institutos.
11
No caso, a necessidade a ser satisfeita era a eficácia ou eficiência da
garantia. Não só eficiência no sentido de não sofrer concorrência de outros
credores, mas também no sentido de tornar rápida e expedita a execução.
E então, foi possível notar que parece ter sido tentada uma mudança
qualitativa da garantia, pois o tipo de execução extrajudicial estabelecido
parece levar à busca de garantia também contra a incerteza jurisdicional,
com o afastamento da jurisdição.
Até que ponto é verdade que se busca o afastamento da jurisdição como
novo elemento de garantia e até que ponto isto é possível e seria solução
nova para velhos problemas, este é o tema que se tentou enfrentar na
conclusão. Este estudo passa por uma visão histórica e de direito comparado
das garantias disponíveis ao campo empresarial, até se chegar a este novo
sistema do direito brasileiro, ou seja: a junção da antiga fidúcia, na forma
de alienação fiduciária, ao conhecido patrimônio especial de afetação, mais
o recente instituto da securitização, tudo isto aparentemente secundado por
uma tentativa de afastamento da intervenção do poder jurisdicional.
São Paulo, janeiro de 2006.
12
ABSTRACT
The new legal doctrine concerning chattel mortgage of real property
has aroused special attention in a study of Law No. 9514, of November 20,
1997, in view of the judgment – by decisions of July 29, 2003 –, and of two
proceedings in progress at the 29th Central Lower Civil Court of São Paulo,
of which this doctorate candidate was then the Head Judge. It concerned
two actions filed by acquirers of miscellaneous real property units against
various respondents. The plaintiffs had failed to pay the installments for
reasons that they presented in the complaint, thereby requesting annulment
of the transaction, with return of the portion that they had already paid;
the respondents – a securitization company in one of the cases and a real
property development company in the other – challenged these pretensions.
The procedural aspects and even the tenor of the judgment are not of
any particular interest at this time. What really interests is that the study
of the mentioned Law No. 9514/97 showed that a system of guarantee
had been created in favor of the respondent that was so solid that it would
enable prompt extrajudicial repossession of the property, potentially
without return of any amount, regardless of how much had been paid.
This repossession appeared possible by means of an extremely expeditious
extrajudicial enforcement applied to a property that had been subject to
chattel mortgage. The solidness of the guarantee in favor of the securitizing
company (or developer/constructor) and the possible agility for repossession
of the property without return of any installment, showed that a new and
extremely efficient system had been created, if compared to those existing
previously. This solidness of the guarantee became even more effective with
the subsequent enactment of Law No. 10931, of August 2, 2004.
This study commenced with these disclosures, in order to determine
what type of new guarantee had arisen, and it was ascertained that it was
formed by the joining coupling of the mortgage – chattel mortgage – with
the affected property and with the legal doctrine of securitization. This type
of guarantee resulted from the constant search that the business community
always exercises to, as Ascarelli says, create a new legal doctrine to fulfill the
needs by means of joining with old doctrines.
13
In this case, the need to be satisfied was the efficacy or efficiency of the
guarantee. Not only efficiency in the sense of not incurring competition
from other creditors, but also in the sense of enabling the enforcement to be
more rapid and expeditious. Then it was noted that there seemed to be an
attempt to change the quality of the guarantee, as the type of extrajudicial
enforcement established appears to lead the search for guarantee also against
jurisdictional uncertainty, with the removal of the jurisdiction.
To what extent is it true that one seeks removal of the jurisdiction as
a new element of guarantee, and to what extent is it possible and would
be a new solution for old problems, this is the theme that one attempts
to face in the conclusion. This study is subject to a vision of the history
and of comparative law of the guarantees that are available for the field of
business, until arriving at this new system of Brazilian law, i.e.: the joining
of the old mortgage, in the form of chattel mortgage, with the well-known
special affected property, plus the recent legal doctrine of securitization,
all of which supported by an attempt of removal of the intervention of
jurisdictional power.
São Paulo, January 2006.
14
RIASSUNTO
La nuova regolamentazione dell’alienazione fiduciaria sugli immobili ha
suscitato particolare attenzione a partire dallo studio della Legge 9.514 del
20/11/97 ed in vista delle decisioni – a mezzo di sentenze del 29/07/03 –, di
due processi celebrati presso la 29ª sezione civile del tribunale centrale di San
Paolo, della quale il dottorando sottoscritto era giudice titolare. Si trattava di
due azioni legali presentate da acquirenti di due diverse unita’ immobiliari,
dirette contro due distinti destinatari. Gli autori avevano cessato di pagare
le rate previste dal contratto per i motivi addotti nella petizione iniziale,
pretendendo percio’ la rescissione dal contratto con la restituzione di una
parte di quanto era gia’ stato versato; contro l’accoglimento di tali richieste
si opponevano i destinatari – una societa’ finanziaria di credito mobiliare in
uno dei due processi ed una societa’ immobiliare nell’altro.
Gli aspetti processuali e lo stesso contenuto del processo non sono
di grande interesse al momento. Ciocche interessa, e’ che lo studio della
succitata Legge 9.514/97 ha dimostrato, che in favore dei destinatari, era stato
creato un sistema di garanzia cosi’ solido, che rende possibile l’immediato
rientro in possesso dell’immobile in via extralegale, eventualmente senza la
restituzione di alcun importo, non contando quanto era gia’ stato versato.
La reintegrazione del possesso era stata resa possibile mediante un’esecuzione
extralegale veramente spedita, incidente sull’immobile alienato in via
fiduciaria. La solidita’ della garanzia in favore della societa’ finanziaria di
credito mobiliare (o di intermediazione finanziaria/edile) e la rapidita’ resa
possibile per il rientro in possesso dell’immobile senza la restituzione di
nessuna delle rate versate, hanno dimostrato che era stato creato un nuovo
sistema estremamente efficiente se confrontato con quelli gia’ esistenti. La
solidita’ della garanzia e’ divenuta ancor piu’ effettiva, con la susseguente
promulgazione della Legge 10.931, del 02/08/04.
E’ a partire da tali constatazioni che ha preso le mosse il presente studio,
che cerca di determinare quale nuovo tipo di garanzia era sorto, per poi
constatare che questa e’ formata dall’associazione della fiducia – alienazione
fiduciaria –, sul patrimonio di riferimento e al finanziamento mobiliare
15
d’emissione. Tale tipo di garanzia era risultato dalla costante ricerca che
l’ambito imprenditoriale sempre esercita per, come dice Ascarelli, creare nuova
regolamentazione per soddisfare nuove necessita’ mediante l’unificazione di
precedenti regole. Nella fattispecie, la necessita’ che doveva essere soddisfatta,
era l’efficacia o efficienza della garanzia. Non solo efficienza nel senso di non
dover soffrire la concorrenza di altri creditori, ma anche nel senso di rendere
rapida e certa l’esecuzione. Percio’ e’ stato possibile notare che sembra sia
stato tentato un cambiamento qualitativo della garanzia, giacché il tipo di
esecuzione extralegale stabilito sembra portare alla ricerca della garanzia
anche contro l’incertezza giuridica, con l’allontanamento della giurisdizione.
Fino a che punto, e’ vero, che si ricerca l’allontanamento della
giurisdizione come nuovo elemento di garanzia, e fino a che punto questo e’
reso possibile e costituirebbe nuova soluzione a vecchi problemi, e’ il tema
che si e’ tentato di affrontare nella conclusione. Questo studio passa per una
visione storica e di diritto comparato delle garanzie disponibili in campo
imprenditoriale, per giungere a questo nuovo sistema del diritto brasiliano,
ossia: l’associazione dell’antica fiducia, nella forma d’alienazione fiduciaria, al
conosciuto patrimonio speciale di riferimento, piu’ la recente istituzione del
credito finanziario, tutto cio’ apparentemente assecondato da un tentativo di
allontanamento dell’intervento del potere giuridico.
São Paulo, Gennaio 2006.
17
I – INTRODUÇÃO
1.1 – Justificativa para a escolha do tema
1.1.1 – Os postulados de direito que regem as relações comerciais, hoje
melhor nominadas como relações empresariais, situam-se em um campo
extremamente dinâmico; a rapidez com que as novas oportunidades de
negócios se apresentam, exige do direito uma constante prontidão para que
relações antes desconhecidas passem a ser reguladas pelo sistema jurídico.
Além desta constante busca de regulamentação para situações novas, o
sistema jurídico apresta-se também para solucionar jurisdicionalmente as
demandas que surgem a partir das relações estabelecidas, sempre atento
ao princípio constitucional e universal, da indeclinabilidade da jurisdição,
segundo o qual toda lesão ou ameaça a direito estará necessariamente sob
o campo de decisão da atividade jurisdicional, conforme estabelecido entre
nós pelo inciso XXXV1 do artigo 5º da Constituição Federal de 1988.
Se o dinamismo do direito empresarial pode causar certa dificuldade ao
jurista, obrigando-o a constantes criações capazes de definir e regular
novos institutos, por outro lado o cosmopolitismo também característico
deste ramo, faz com que o exame seja facilitado a partir da observação do
surgimento do mesmo instituto em outros países. Esta vocação cosmopolita
deflui do próprio campo de atuação da atividade empresarial, que tem por
território o mundo todo, tendo por fronteira apenas o interesse negocial da
relação a ser estabelecida, superando na maioria das vezes as demais barreiras
decorrentes da distância, da diferença de línguas e costumes, das resistências
de fundo político, enfim, fazendo da terra como um todo o seu campo de
atuação. É certo que o estudo do direito comparado traz também este tipo
de auxílio em qualquer ramo do direito, pois ocorre sempre o que poderia
ser entendido como certo mimetismo à distância entre os diversos sistemas
de direito de países diferentes, às vezes sem que um tenha conhecimento
do que ocorre no outro. Guido Fernando Silva Soares2, a propósito deste
1
2
XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça ao direito.
Soares, p. 12.
18
aspecto, anota que o comparativismo jurídico mostra haver “uma série de
diferenças de tratamento a um determinado fenômeno da vida do homem em
sociedade, que outros sistemas nacionais propiciam, os quais, por coexistirem,
no tempo e no espaço, com o brasileiro (onde se situa o analista), dão causa
à criação de institutos jurídicos assemelhados. Seja por emulação (atividade
recorrente em toda história dos sistemas jurídicos nacionais), seja por criação
autônoma, as semelhanças e diferenças entre um mesmo instituto, em sistemas
jurídicos nacionais diversos, despertam a curiosidade do cientista do Direito”. No
entanto, no direito comercial, mais do que isto, o que ocorre é exatamente a
aplicação no território de um país, de sistema que já vigora em outro, com o
qual o primeiro mantém relações de comércio.
1.1.2 – Estas características de dinamismo e cosmopolitismo, ínsitas ao direito
empresarial, impõem-se desde o início da sistematização de seus postulados,
tornando-se dominantes quando do surgimento das primeiras cidades comerciais,
originárias das feiras medievais. Vera Helena de Mello Franco, apontando o
surgimento do sistema das “jurisdições especiais” aos agentes comerciais, anota que,
originando-se nas cidades medievais italianas “generalizou-se pela Europa, atingindo
a França, a Espanha, os Estados Alemães e a Inglaterra” desta maneira “afirmando-se o
caráter internacional e cosmopolita do Direito Comercial”3. Da mesma forma, Antônio
Martin ressalta o dinamismo incoercível do direito empresarial, observando que a
“atividade empresarial... não é enquadrável em nenhum modelo estático, posto que o
empresário tem em mira a constante ampliação dos mercados para seus produtos” do que
decorre que “ao lado da instrumentalidade, o direito comercial apresenta-se como um
ramo do direito essencialmente dinâmico”4. Esta capacidade de derrubar fronteiras,
mesmo políticas, para espalhar-se por novos territórios é ressaltada com ênfase por
Waldemar Ferreira, ao anotar que “o comércio é cosmopolita. Desconhece fronteiras. Se
barreiras lhe opõe, aqui ou alhures, o nacionalismo contemporâneo, transpô-las é, para
ele, questão de tempo”5.
1.1.3 – Fixando-se desde seu surgimento na época medieval, como
sistema de direito não estático, dinâmico por excelência e, ademais, com
plasticidade cosmopolita que o habilita a arrostar fronteiras e espalhar-se por
3
4
5
Franco, pp. 19/20.
Martin, Tese de Doutoramento na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, dezembro de 1986, sob
o título “Caracterização do Contrato de Fornecimento”, Biblioteca da Faculdade de Direito, p. 2.
Ferreira, 1º volume, p. 438.
19
todas as nações do mundo então conhecido, o direito comercial mantém
e aperfeiçoa tais especificidades nas Idades Moderna e Contemporânea,
encontrando atualmente, nesta que já está sendo chamada de “Pós-Moderna”,
as condições ideais de disseminação, com o advento da informática e da
“internet”, com o mundo colocado “on line”, possibilitando negócios
instantâneos, em tempo real, sem qualquer óbice decorrente da distância e
sem os entraves das fronteiras materiais, inexistentes no mundo cibernético.
1.1.4 – No entanto, esta expansão dos negócios, que torna o mundo
o palco dos negócios empresariais, cria outro tipo de necessidade, que diz
respeito à segurança que se espera seja propiciada aos negócios empresariais,
buscando-se elementos que mais e mais tragam garantias de que os contratos
firmados serão cumpridos. Percebe-se aqui certa racionalidade, na medida
em que a rapidez dos negócios e a distância física dos contratantes começam
a exigir mais e mais garantias, para que o empresário sinta-se seguro para
investir no negócio, com a confiança de que a obrigação contraída será
satisfeita pelo outro contratante. Esta busca constante de maiores garantias
para os negócios, exacerbada ainda com a relativização da garantia decorrente
da hipoteca e do penhor, faz com que as buscas se voltem para a fidúcia, que
se apresenta como a mais eficiente das formas garantidoras conhecidas, até
por se tratar de sistema aberto, que admite a criação constante de novas
figuras adaptáveis a novos negócios, como tem sido visto. Otto de Sousa
Lima, comparando a segurança que deflui do penhor com aquela que vem
da fidúcia, anota: “Estes mesmos inconvenientes que levaram à coexistência das
duas figuras no Direito Romano, levam, ainda hoje, à procura de garantias mais
fortes e mais seguras, ditando, também, o renascimento da própria instituição
romana, revestida de novas vestes e adaptadas à sistemática jurídica moderna”6.
1.1.5 – Evidentemente, o Brasil, aberto como a grande maioria dos
demais países à irresistível globalização dos negócios empresariais, segue
também esta tendência e procura encontrar os meios jurídicos, entre outros,
para que esta garantia acima lembrada se dê da forma mais eficaz possível.
Para tanto, o sistema brasileiro tem se valido da fidúcia e de adaptações
desta garantia às necessidades do dia a dia dos negócios; com salto histórico,
poder-se-ia afirmar que o direito brasileiro tirou da “fiducia cum amigo”
6
Lima, p. 76.
20
de raízes romanas, o sistema de garantia que acoplou ao que se passou a
denominar de “securitização”. O caminho que o pensamento e a técnica
jurídica palmilharam para chegar da fidúcia à conjugação com a securitização,
é o que se pretende examinar, avançando-se ainda no estudo específico de
leis recentemente promulgadas que se dirigem para um ponto ainda mais
avançado da segurança do negócio, objetivando afastar a própria atividade
jurisdicional que passa a ser encarada como elemento de insegurança aos
negócios empresariais, ante a incerteza da decisão.
1.1.6 – Sem qualquer preocupação em tentar definir aqui o que se
entenderia pela expressão “mercado”, o que se pode constatar é que os interesses
empresariais apresentam um extraordinário poder de pressão sobre o meio social
e político, nos locais em que atuam em bloco. Tais interesses, à semelhança
do poder que preenche o vazio, ocupam todos os espaços que acaso podem
tomar, como fenômeno econômico que evidentemente não guarda qualquer
preocupação de caráter social. Rachel Sztajn7 ressalta tal aspecto, lembrando
que deve ser abandonada a ideia de que mercados livres venham a se preocupar
com que a distribuição da riqueza seja justa ou socialmente adequada; diz que
“esta visão, talvez, resulte da confusão inadmissível, entre a disciplina jurídica dos
mercados e políticas sociais, a circulação de bens em mercados com a distribuição
de riqueza. Políticas sociais podem apoiar-se em mercados, mas não se realizam por
intermédio daqueles mercados organizados com fundamento na livre iniciativa;
resultam de outra forma de organização”. Tanto é assim que, nas relações entre
nações, não é incomum que o desentendimento comercial acabe desaguando
na guerra pura e simples, outra forma de também fazer prevalecer os interesses
que a pressão comercial não foi suficiente para fazer implantar. Carl von
Clausewitz8, o teórico da guerra, constata que é “preciso sublinhar expressamente
e exatamente a opinião também tão necessária na prática segundo a qual a guerra
não é outra coisa senão a continuação da política por outros meios”. Ou seja, as
garantias a serem propiciadas aos negócios empresariais devem ser preservadas
por qualquer forma possível, sob pena de a própria atividade empresarial
perecer. Antes, depois ou ao lado das garantias jurídicas objeto do estudo, a
própria história demonstra que o braço armado foi auxiliar usado sempre que
7
8
Sztajn, “Teoria Jurídica da Empresa”, p. 35.
Clausewitz, p. 65.
21
necessário à preservação do cumprimento dos negócios. Polanyi9 examinando
alternativas ao processo de desvalorização interna da moeda para defesa de
um mercado nacional, no período de meio século compreendido entre
1879 e 1929, observa, a propósito do caso específico que está examinando:
“O aumento nas vendas de café ou de nitratos, por exemplo, poderia destruir o
mercado, e repudiar uma dívida externa exorbitante poderia parecer preferível
a depreciar a moeda nacional. O mecanismo do mercado mundial não podia se
permitir correr tais riscos. Assim, enviavam-se navios de guerra para o local e o
governo negligente, fraudulento ou não, se defrontava com a alternativa de um
bombardeio ou um ajuste”.
1.1.7 – As técnicas de controle, em sociedades ditas desenvolvidas,
devem ser sofisticadas, não se podendo imaginar a deflagração da guerra
a cada interesse empresarial contrariado. Neste momento atual de
globalização desenfreada pelo qual o mundo passa, há necessidade de se
buscar instrumentos eficazes para preservar os interesses empresariais, para
neutralizar as externalidades que possam influir negativamente no perfeito
cumprimento dos contratos. O direito – especificamente a lei positiva –,
como instrumento de controle social, mais e mais vai se tornando complexo
à medida que os interesses a serem defendidos se espraiam pelo mundo todo,
por nações com as mais diversas histórias e tradições10.
1.2 – Fidúcia, alienação fiduciária e securitização como sistemas de
garantia dos negócios
1.2.1 – Como já anotado acima, o direito é sistema de controle social e,
no que tange especificamente às atividades empresariais, deve ser o garantidor
do cumprimento dos contratos firmados, afastando as incertezas que possam
se apresentar como externalidades com carga de desmotivação suficiente para
afastar o investimento do empresário. A garantia à atividade empresária é
buscada por várias formas, não só com o aperfeiçoamento das leis como
também com a análise de como devem ser aplicadas, de tal forma que o
trabalho hermenêutico e jurisdicional não venha a colocar entraves ao bom
9
10
Polanyi, p. 244.
Quanto maior o grupo social, mais sofisticado e complexo deve ser o arcabouço jurídico. Diz Vilhelm Aubert
(p. 134): “Las comunidades con el nivel mayor de control social son comunidades pequeñas, homogéneas
y estables – como las pequeñas sociedades tribales en regiones apartadas, o las aldeas más remotas en las
naciones industriales”.
22
andamento da vida econômica da nação. Ou seja, é necessário que se tenham
boas leis e que haja zelo na aplicação delas, de tal forma que a atividade
econômica, que guarda interesse para a sociedade como um todo, não venha
a sofrer freios na busca da maior produtividade e eficiência; este é, em linhas
bastante gerais, um dos postulados dos defensores do bom andamento do
mercado, agrupados na escola de pensamento do “direito & economia” ou
da “análise econômica do direito”.
1.2.2 – A fidúcia presta-se, mais do que qualquer outro instituto,
a fornecer garantias mais sólidas do que aquelas oferecidas pela hipoteca,
penhor ou anticrese, tanto que na atualidade tem servido de base para a
criação de diversos elementos de solidificação do laço garantidor que se
estabelece entre a obrigação e a coisa. Isto porque, ao invés de se constituir
direito real de garantia como ocorre nos outros institutos, o negócio fiduciário
transfere a própria propriedade. Pontes de Miranda11 anota: “O fim fiducial
pode ser o de garantia. Em vez de lançarem mão dos negócios jurídicos típicos de
garantia (hipoteca, anticrese, penhor, caução de títulos, fiança), os declarantes ou
manifestantes do negócio jurídico fiduciário para garantia utilizam atribuição
patrimonial: em lugar de só se hipotecar, anticretizar, empenhar ou caucionar,
o que apenas criaria direito real de garantia, o fiduciante transfere ao credor a
propriedade, para que, vencido o crédito, sem ser solvido, fique com a coisa, ou,
solvido, a devolva”. Otto de Sousa Lima, o grande estudioso deste instituto
em nosso direito, ressalta que a fidúcia, por sua maleabilidade, presta-se a
atender a todas as novas exigências que surgem no dia a dia do relacionamento
humano, sem necessidade da criação de novos institutos, desde que feita a
devida adaptação, dizendo12: “Mas, as necessidades da vida e o desenvolvimento
das atividades humanas exigiam, sempre, novas formas e novos tipos jurídicos.
De outro lado, é evidente que qualquer sistema jurídico não poderá ser renovado
diariamente para a satisfação daquelas novas necessidades, e, aí, torna-se
imprescindível a sua adaptação, visando a normalizar aquelas novas exigências
sociais. Eis, pois, o campo de aplicação da fidúcia: tornar dúctil um sistema
jurídico fechado”. Ascarelli, em lição de impressionante atualidade, em 1945
falava sobre a adaptação de velhos institutos a novas necessidades, fazendo
especial referência à maleabilidade dos negócios indiretos, entre os quais se
11
12
Pontes de Miranda, “Tratado”, tomo III, p. 73.
Lima, p. 127.
23
inclui a fidúcia. Dizia então13: “As novas necessidades são, então, satisfeitas, mas
o são com velhos institutos. Nessa adaptação, a nova exigência é satisfeita através
de um velho instituto que traz consigo as suas formas e a sua disciplina, e oferece
à nova matéria, ainda em ebulição, um velho arcabouço já conhecido e seguro.
As velhas formas e a velha disciplina não são abandonadas de chofre, mas só lenta
e gradualmente, de maneira que, muitas vezes, por longo tempo, a nova função
vive dentro da velha estrutura, e assim se plasma, enquadrando-se no sistema. ...
... Manifestação típica deste processo apresenta o fato de a ele (negócio indireto)
recorrerem os particulares na atividade negocial, sendo este o lado da questão
para o qual me permito chamar a atenção”. A atualidade da lição de Ascarelli
mais ainda impressiona, quando se verifica a quantidade de adaptações a
que se está prestando a fidúcia, para a solução dos problemas de segurança
jurídica que se apresentam para os negócios empresariais os mais variados,
nos dias atuais.
1.2.3 – Destas adaptações de antigos institutos, das quais fala Ascarelli,
notável exemplo encontra-se na promulgação da Lei 4728/65 e do Decreto
Lei 911/69, que adaptaram o instituto da fidúcia à necessidade de ativar a
indústria de bens de consumo durável, criando a alienação fiduciária de bens
móveis e despertando o interesse das instituições financeiras no fornecimento
de financiamento para a aquisição, ante a segurança que a possibilidade da
busca e apreensão do veículo – e de outros bens – passou a propiciar ao
credor. A ductibilidade, para usar a expressão de Sousa Lima, do instituto da
fidúcia, fica demonstrada de forma acentuada, ao se verificar a possibilidade
de encaminhamento de solução a problemas relativos à ativação da indústria
de bens duráveis, jungidos a problemas de criação de estímulos para
financiamento bancário, todos calcados naquele secular sistema de garantia.
1.3 – Lei 9514/97 e Lei 10931/04
1.3.1 – Tão efetivo mostrou-se o sistema instituído pela Lei 4728/65
e pelo Decreto-lei 911/69, que se passou a examinar a possibilidade de
extensão da garantia fiduciária também aos bens imóveis, logo que se
constatou a inviabilidade da manutenção do antigo “Banco Nacional da
Habitação” e do correspondente “SFH – Sistema Financeiro da Habitação”.
13
Ascarelli, “Problemas das...”, pp. 155/6.
24
Em consequência, veio a ser promulgada a Lei 9514/97 que, à semelhança
do anterior decreto de 1969, volta-se para a tentativa de solução do problema
habitacional de um lado, ao mesmo tempo em que tenta propiciar fontes de
capital suficientes para a ativação do mercado de financiamento imobiliário.
Este objetivo de atração de capitais está ligado diretamente ao problema da
garantia para o financiador e, especialmente, da liquidez da garantia e, por este
caminho, volta-se ao instituto da fidúcia, acoplada agora ao novo instituto da
securitização e ao conhecido patrimônio de afetação, para criar uma forma
mista de garantia e de financiamento, com emissão de títulos mobiliários.
1.3.2 – Esta lei estendeu a possibilidade de alienação fiduciária também
para os bens imóveis14, fórmula antes restrita apenas aos bens móveis de
consumo durável. Acoplou ainda à garantia fiduciária uma forma de
securitização15, dos créditos representados pelas obrigações assumidas
pelos adquirentes das unidades imobiliárias vendidas. A securitizadora,
sociedade anônima de propósito específico, emite títulos mobiliários e os
lança no mercado, tendo como lastro os créditos que recebeu em cessão da
incorporadora/construtora. Faz os necessários acertos com a construtora e
administra o resgate dos títulos mobiliários com os valores que vai recebendo
dos adquirentes das unidades imobiliárias. É forma de captação da poupança
popular, para a solução do problema nacional de habitação, ao mesmo
tempo em que, constituídos os créditos de determinado empreendimento
como patrimônio separado dos demais e afetados como lastro de emissão dos
títulos mobiliários16, mesmo que ocorra falência, quer do construtor, quer da
companhia securitizadora, sempre será preservado o direito dos adquirentes
das unidades17.
1.3.3 – Em complemento a esta lei, veio a ser promulgada a Lei 10.931,
de 2.8.04, trazendo incentivos para que o imóvel construído com captação
14
15
16
17
Art. 17. As operações de financiamento imobiliário em geral poderão ser garantidas por: ... ... IV–alienação
fiduciária de coisa imóvel.
Art. 8º. A securitização de créditos imobiliários é a operação pela qual tais créditos são expressamente
vinculados à emissão de uma série de títulos, mediante Termo de Securitização de Créditos, lavrado por uma
companhia securitizadora, do qual constarão os seguintes elementos: ... ... ...
Art. 10. O regime fiduciário... ... submeter-se-á às seguintes condições: ... III – a constituição de patrimônio
separado, integrado pela totalidade dos créditos submetidos ao regime fiduciário que lastreiem a emissão;
III – a afetação dos créditos como lastro de emissão da respectiva série de títulos; ...
Art. 15. ... Parágrafo único. A insolvência da companhia securitizadora não afetará os patrimônios separados
que tenha constituído.
25
de financiamento por meio de títulos mobilários viesse a ser instituído
como “patrimônio de afetação”, criando estímulos de ordem fiscal para
os construtores que promovessem a afetação18. Aplica-se aqui ao imóvel o
neologismo criado bastante recentemente, para dizer que a garantia está
“blindada”19, com relação a eventual quebra ou insegurança financeira
da incorporadora/construtora. Também para completar a “blindagem”,
existe artigo na lei de recuperação de empresas e falências, recentemente
promulgada, no sentido de que a cessão em favor da securitizadora não
poderá sequer ser objeto de ação revocatória, a não ser que todos os títulos
mobiliários lançados no mercado já estejam quitados20. Como a quitação
destes títulos depende do integral pagamento por parte dos adquirentes e
como, em tal caso, não haverá crédito algum da massa falida, constata-se que
tendo havido emissão de títulos mobiliários, a cessão não será revogada em
qualquer hipótese.
1.3.4 – Este é o objeto do trabalho, ou seja, o caminho que as garantias
aos negócios empresariais encontram a partir da fidúcia do direito romano.
O exame histórico dos institutos da “fiducia remancipacionis causa” e
com fins especiais, “fiducia cum amico”, “fiducia cum creditore”, “pignus”
e “hipotheca” do Direito Romano, “treuhander” do Direito Germânico
e “use”, “trust” e “mortgage” do Direito Anglo-Saxão indicará o caminho
que este instituto percorreu até ser recepcionado pelo nosso direito, como
garantia dos negócios empresarias. Já o exame da situação de nosso atual
sistema jurídico permitirá seguir o caminho que possibilitou o acoplamento
da fidúcia à securitização.
1.4 – A tentativa de neutralização da “incerteza da jurisdição”
18
19
20
Art. 2º. A opção pelo regime especial de tributação de que trata o art. 1º será efetivada quando atendidos os
seguintes requisitos: ... II – afetação do terreno e das acessões objeto da incorporação imobiliária, conforme
disposto nos arts. 31-A a 31-E da Lei 4.591, de 16.12.64. – (Estes artigos 31-A e ss. foram introduzidos na Lei
4591/64 pelo art. 53 da Lei 10931/04).
“Blindado” é usado aqui no sentido que lhe tem sido dado pelo jargão econômico, ou seja, significando
patrimônio defendido de interferências externas ao próprio negócio que está sendo celebrado, no caso,
ao próprio imóvel que está sendo construído. Houaiss (p. 469), sob o verbete “blindado”, anota o sentido
metafórico da expressão como “que não é abalado por certos agentes ou ações; resguardado, protegido,
defendido (alma blindada contra as paixões)”.
Art. 136, § 1º, da Lei 11.101, de 9.2.05: “Na hipótese de securitização de créditos do devedor, não será
declarada a ineficácia ou revogado o ato de cessão em prejuízo dos direitos dos portadores de valores
mobiliários emitidos pelo securitizador”.
26
1.4.1– Um aspecto final ainda exigirá especial atenção. É que tanto a
securitização quanto a segregação do patrimônio afetado, acoplados ainda
à alienação fiduciária, são elementos fixados na lei para garantia do negócio
feito como, aliás, vem sendo afirmado desde o início. No entanto, a Lei
9514/97 deu um passo adiante, ao tentar estabelecer garantia também contra
a incerteza jurisdicional, prevendo uma forma de execução extrajudicial
extremamente expedita. Na legislação brasileira, parece haver uma tendência
que a cada dia mais se firma, no sentido de afastar da proteção jurisdicional,
direitos que mais rapidamente serão satisfeitos por meios administrativos.
Este afastamento da jurisdição é apresentado como colaboração para
desafogar o Judiciário de questões que podem ser resolvidas sem a sua
intervenção, preservando-o para os grandes problemas que exigem a efetiva
decisão jurisdicional; presta assim a lei positiva, sua colaboração para que o
crônico problema do excesso de trabalho exigido do Judiciário seja minorado.
1.4.2 – No entanto – e sem embargo da boa intenção anunciada –, há
também outro aspecto subjacente a ser considerado de forma mais abrangente.
Guiado pelos princípios que norteiam o pensamento da escola da análise
econômica do direito, entende-se que a incerteza das decisões judiciais
tem sido elemento de perturbação das relações de mercado e do próprio
desenvolvimento da economia21. É certo que muitas vezes a decisão judicial
coloca-se como entrave ao andamento de um negócio que teria grande interesse
para o desenvolvimento da economia, da nação como um todo. Porém ao
Judiciário compete exatamente encontrar o ponto de equilíbrio entre o direito
das partes, sem que se possa pretender guiar sua decisão para que esta não
venha a afetar interesses econômicos em andamento, se naquele caso especial o
direito a ser preservado exigir o sacrifício de tal interesse econômico.
1.4.3 – Esta análise final que se pretende fazer parece oportuna porque,
sem embargo da tentativa de “unificação” do direito comercial e do direito
civil, ainda assim os empresários sentem especial necessidade de fixar limites
para o risco do descumprimento dos contratos, risco que a cada dia mais
se acentua com o direito do consumidor impondo-se como outro ramo a
21
Algumas críticas originam-se do próprio Judiciário, às vezes de sua cúpula dirigente. No jornal “Valor
Econômico”, de 13.12.04, p. A-12, o Ministro Nelson Jobim prestou declaração dizendo que “a Justiça favorece
a alta dos juros”, afirmando ainda que os juros apenas baixarão se “houver segurança do cumprimento de
contratos”, pois “o sistema legal protege os devedores e, com isso, favorece os juros elevados”.
27
escapar da “unificação”, exigindo-se cada vez mais uma reacomodação dos
conceitos anteriormente pacificados com os princípios do agora já esmaecido
liberalismo do Século XIX. Entre as diversas consequências desta necessidade
de nova acomodação, uma surge de forma acentuada, e diz respeito à
necessidade que o empresário sente de que sejam criados mecanismos
de defesa que propiciem o cumprimento do “feixe de contratos”, que é a
própria razão de sua existência como empresário. Para o cumprimento destes
contratos, o próprio empresário toma as medidas que estão ao seu alcance,
todas de ordem econômica, pois sem tal cautela, o eventual descumprimento
dos contratos pode levar a empresa à falência. Desta forma, prepara-se para
a atividade empresarial com a projeção de todas as variáveis possíveis e
com a pretensão de defender-se delas. No entanto, há variáveis que seriam
“externalidades”, contra as quais muitas vezes, a atividade empresária não
tem como se prevenir.
1.5 – O Direito como sistema de controle e a indeclinabilidade da jurisdição
1.5.1 – O tempo retirado ao trabalho normal do dia a dia e dedicado
ao estudo – especialmente quando se trata de tese de pós-graduação em
universidade púbica –, parece encontrar justificativa maior na exata medida em
que pode propiciar a busca do aperfeiçoamento do meio social no qual se vive,
preocupação recomendável na escolha do tema a examinar e no andamento
das pesquisas a efetuar. O Direito, como sistema de ordenamento e controle
das relações sociais, presta-se perfeitamente à satisfação deste postulado, sem
embargo de se prestar também – e perigosamente –, ao trabalho puramente
intelectual, distanciado da realidade e da solução de questões de maior interesse
social. Evidentemente, não se cogita de criticar os trabalhos que examinam
os grandes espectros intelectuais e filosóficos que norteiam o pensamento
jurídico, imprescindíveis para o aperfeiçoamento do conhecimento humano; o
que se pretende evitar é o esforço investido no trabalho que se descompromissa
com a pessoa humana, distanciamento para o qual o estudioso sempre deve
estar atento. Atento à máxima kantiana de que o homem é o centro do
universo, recorde-se, com Oñate, que a ciência do direito serve ao indivíduo
no seu relacionamento do dia a dia com as pessoas e as coisas, não devendo
ser erigido a meio de gáudio intelectual, para mero objeto de especulação e
sistematização, distanciada ou mesmo divorciada da realidade prática da vida
humana. O questionamento ainda mais se justifica quando se recorda que, ao
invés de objeto de especulação e sistematização, o direito deve servir à vida e
28
aos indivíduos em seu relacionamento cotidiano, possibilitando “la certeza de
la vida social, garantizando la calificación de los comportamientos possibles”22.
1.5.2 – Este necessário apego à concretude mais se justifica quando se
constata que, na realidade, o direito é um sistema de controle social. Como
anota Tércio Sampaio Ferraz Jr., a partir de determinado ponto do pensamento
não interessa discutir se o direito é sistema de controle; assume-se que é
instrumento de controle social e, a partir de tal admissão, passa-se em seguida
ao exame de como se exerce este controle. Diz o autor23: “Mantemos, por isso, a
ideia diretriz que comanda nossa exposição, qual seja, de que o pensamento jurídico
é um pensamento tecnológico específico, voltado para o problema da decidibilidade
normativa de conflitos. Nestes termos, o modelo empírico deve ser entendido não como
descrição do direito como realidade social, mas como investigação dos instrumentos
jurídicos de e para controle do comportamento. Não se trata de saber se o direito é
um sistema de controle, mas, assumindo-se que ele o seja, como devemos fazer para
exercer este controle”. Esta questão assume aqui fundamental importância, para
que se possa tentar fixar que tipo de controle é necessário para o ordenamento
dos negócios empresariais; ou seja, até que ponto o controle (incluindo-se aí
o mais direto controle, ou seja, o jurisdicional) pode ser exercido como forma
de incremento da vida empresarial e de que forma estes controles podem
opor barreiras profundamente prejudiciais ao bom andamento dos negócios.
Sem que se entre em maiores perquirições, evidentemente, quando se fala em
controle dos negócios empresariais, fala-se, por extensão natural, em controle
sobre o mercado como um todo. Rachel Sztajn observa que a organização
e o controle da atividade empresarial diz respeito diretamente ao mercado e
aos contratos, envolvendo24 “... diferentes e importantes interesses que devem ser
objeto de tutela. ... Não se estranha que mercados sejam considerados fundamentais
para o desenvolvimento da economia, nem devem ser ignorados os conflitos que
aparecem nas relações em mercados que têm ligação com a diversidade de interesses
que neles se manifestam: políticos, econômicos, sociais”.
1.5.3 – Supera-se aqui a questão relativa à escolha do tema a ser
examinado, questão de fundamental importância em qualquer trabalho de
22
23
24
Oñate, p. 75.
Ferraz Jr., “A Ciência do Direito”, p. 23.
Sztajn, “Teoria Jurídica da Empresa”, p. 174.
29
análise da realidade externa. Carnelutti25 fala sobre a extensão da realidade,
sobre a infinitude do conhecimento, observando que quanto mais se
avança no conhecimento, mais a realidade se apresenta com novos objetos
de estudo, constatando então que a realidade ultrapassa a possibilidade
humana de percepção, de tal forma que quanto mais se avança no processo
do conhecimento, mais o objeto do conhecimento se expande, adiante,
atrás, ao nosso lado. Ainda segundo Carnelutti, se não podemos pensar
o infinito, pelo menos fiquemos alertas para o fato de que a realidade
ultrapassa o nosso pensamento, de tal sorte que “se nos falta, em verdade, a
compreensão do infinito, compreendemos, no entanto a insuficiência do finito
para compreender a realidade”. Se de um lado a infinitude do conhecimento
exige o cuidado de delimitar o ponto a ser objeto de exame, de outro surge
o cuidado lembrado por Marchi26 de que, ao mesmo tempo em que se
evitam temas por demais amplos, ao mesmo tempo não se pode perder de
vista a busca de “certa” originalidade.
1.5.4 – Delimitado o campo ao exame das garantias dos negócios
empresariais com fundamento na fidúcia, vai se caminhar até o estudo
da securitização para, como ponto final, tentar verificar quais elementos
existentes no sistema jurídico brasileiro atual, indicam a busca de garantia
também contra a incerteza da jurisdição, vendo nesta um fator externo
de insegurança. Esta externalidade, que interessa diretamente ao campo
do direito, decorre do próprio texto da lei, em um primeiro momento
que poderíamos chamar “momento legislativo”; a outra, na sequência, é a
que decorre da atividade jurisdicional, ou seja, da aplicação da lei a cada
caso concreto, com formação de jurisprudência em determinado sentido,
jurisprudência cuja pacificação demanda tempo. Este especial aspecto, para
fins de exame da segurança que o empresário espera para sua atuação no
mercado, será aqui levado em consideração; tomar-se-á como exemplo tópico
– e apenas para exame de caso que hoje bem retrata a situação de forma
que deverá se apresentar paradigmática –, as Leis 9514/97 e 10931/04, que
criaram a alienação fiduciária sobre imóveis e cujos primeiros casos estão
chegando agora aos Tribunais.
25
26
Carnelutti, “Teoria Geral do Direito”, p. 28.
Marchi, “Guia de Metodologia Jurídica”, p. 61.
30
1.5.5 – Esta tentativa de afastamento da instabilidade da jurisdição não
é nova e apenas tomam-se as leis acima indicadas como paradigma de exame,
porque guardam relação direta com o exame central do estudo, ou seja, a
garantia fiduciária. Este sentimento de que a decisão judicial é um estorvo
para a atividade econômica vem sendo cultivado pelo meio financeiro, que
vê no desenvolvimento econômico a qualquer custo, o próprio bem comum
que o direito persegue. É possível enumerar iniciativas do Legislativo que
pretendem afastar a decisão econômica da atividade jurisdicional. Entre
tais exemplos, pode-se lembrar, já perdido no tempo, o Decreto-lei 70/66,
com sua até hoje não resolvida execução extrajudicial; o Decreto-lei 911/69,
com a venda extrajudicial do bem buscado e apreendido judicialmente;
ou ainda com a resistência judicial à previsão de direito positivo de prisão
do fiduciante que não apresenta o bem a ser apreendido; a Lei 10820, de
17.12.03, que permite verdadeira execução extrajudicial direta e definitiva
sobre verbas recebidas a título de salário, retiradas da conta corrente na qual
são feitos os créditos salariais do devedor; o Decreto 4961, de 20.1.04, que
regulamenta o artigo 45 da Lei 8112, de 11.12.90, para permitir o desconto
na conta corrente salarial do servidor público civil da União; a Lei 8437/92,
que tenta limitar ou impedir medida liminar contra atos do Poder Público;
a Emenda Constitucional nº 45, promulgada em 8.12.04 e publicada no
DOU de 31.12.04, estabelecendo súmula de caráter vinculante para os juízes
das instâncias inferiores; a recuperação extrajudicial, portanto fora do poder
jurisdicional, prevista nos artigos 161 a 167 da nova Lei de Recuperação de
Empresas e Falência; e, objeto parcial do presente trabalho, a Lei 9514/97
e a recentíssima Lei 10931/04, que versam sobre execução extrajudicial de
imóvel alienado fiduciariamente em garantia do pagamento das prestações
estabelecidas contratualmente.
1.5.6 – Evidentemente, o teste final do funcionamento da lei ocorre
no momento de sua aplicação, quando então se verá efetivamente qual
é a interferência de sua letra no mundo exterior. Por isto, na busca do
afastamento da incerteza jurisdicional, não bastam leis que levem a isto, é
necessário que se acompanhe a aplicação da lei. O que intuitivamente se
pergunta é até que ponto a súmula de natureza vinculante, introduzida pela
Emenda Constitucional nº 45 poderá interferir na decisão monocrática de
31
cada juiz. Relembre-se com Maximiliano27 que a tentativa de tornar o juiz
um mero homologador do que se pretendeu fixar na lei não tem surtido
o êxito desejado: “A tendência racional para reduzir o juiz a uma função
puramente automática, apesar da infinita diversidade dos casos submetidos ao
seu diagnóstico, tem sempre e por toda a parte soçobrada ante a fecundidade da
prática judicial. O juiz, esse ente inanimado, de que falava Montesquieu, tem
sido na realidade a alma do progresso jurídico, o artífice laborioso do Direito
novo contra as fórmulas caducas do Direito tradicional”. Com este exame, com
a busca das respostas às questões levantadas, e com o exame do caminho que
levou a garantia fiduciária a desembocar no sistema de alienação fiduciária
acoplada à securitização e ao patrimônio de afetação, vai se tentar avaliar a
eficiência do sistema de garantias. No entanto, a mais eficaz e justa forma
de afastamento da jurisdição será atingida no momento em que as próprias
partes perceberem que o pedido de socorro jurisdicional pode ser dispensado,
porque o resultado final do processo não concederá nem mais nem menos
do que aquilo que está sendo oferecido desde logo, independentemente de
qualquer decisão jurisdicional.
27
Maximiliano, p. 39.
33
II – EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA FIDÚCIA ROMANA; A
FIDÚCIA EM OUTROS SISTEMAS DE DIREITO
2.1 – Direito Romano
2.1.1 – Origem histórica da fidúcia
2.1.1.1 – Fidúcia (do latim fiducia-ae, substantivo feminino da 1ª
declinação e do verbo fido-is-ere, fisus sum, respectivamente “confiança”
e “confiar, ter confiança”), tem por significado a própria confiança. Na
terminologia original do Direito Romano, significava a venda (fictícia)
que se fazia ao credor, com a condição de que esta viesse a ser desfeita,
devolvendo-se o bem ao devedor quando este viesse a pagar a dívida. Na “Lei
das XII Tábuas”, ou “Legis XII Tabularum” ou ainda “Lex Decenviralis”, de
451 a.C., no período da Alta República, considerada pelo historiador Tito
Lívio como a “fons omnis publici privatique juris”, a primeira estipulação
da Tábua VI - I (Do Direito de Propriedade e da Posse) seria a fonte do
negócio fiduciário ao dizer: “Quum nexum faciet mancipiumque, uti lingua
nuncupassit, ita jus esto”28. Não há, porém sequer segurança sobre realmente
quais seriam os termos da Tábua VI – I, como se pode comparar da tradução
apresentada por Vicenzo Raguza e por Sílvio A . B. Meira, por exemplo29. De
qualquer forma, e sem embargo da imprecisão histórica que o tempo muitas
vezes impõe, a fidúcia era um negócio jurídico que tinha por fundamento a
confiança, aspecto sobre o qual os autores não divergem.
2.1.1.2 – Para a imprecisão histórica sobre o surgimento do negócio
fiduciário no mundo romano, colaboraram vários fatores. Em primeiro
lugar, o agrupamento humano primitivo guia-se por regras que, embora
tragam certa dose de coação de natureza religiosa ou moral, ainda assim
28
29
Esta versão é trazida por Otto de Souza Lima (p. 11), que anota que, na tradução de Vicenzo Ragusa (Le
XII Tavole), significaria: “será lei entre as partes, quando sejam cumpridas as solenes formalidades verbais
prescritas para assumir uma obrigação (nexum) ou para transferir a propriedade de uma coisa”.
O texto traduzido, apresentado por Meira, p. 92, é: “Se alguém empenha a sua coisa ou vende em presença
de testemunhas, o que prometeu tem força de lei”.
34
não se configuram como regras jurídicas. Não se pode sequer falar em uma
estrutura de poder, havendo mais uma colaboração de natureza familiar ou
tribal, sem embargo de mesmo a sociedade mais rudimentar fazer com que
brotem regras para a convivência humana, fato reconhecido no brocardo “ubi
societas, ibi jus”. A sociedade primitiva não necessitava também de regras
jurídicas coercitivas, pois as regras de convivência – e o direito nada mais é
do que a ciência da convivência, como afirma Gofredo – são respeitadas a
partir de uma obrigatoriedade de fundo moral e religioso, do qual nasce a
disposição espontânea para o cumprimento daquilo que é tido como forma
correta de conduta ante os demais componentes da tribo. Não há necessidade
de se distinguir o direito da moral ou da religião, o que se apresenta apenas
em um estágio mais desenvolvido do agrupamento social. No princípio, o
próprio pensamento romano considera o direito como “ars boni et aequi”,
entendimento que só vem a ser aperfeiçoado após longa evolução, quando se
definem os campos e se constata que “non omne quod licet honestum est”.
Nascendo o instituto do simples uso da tribo primitiva, impossível fica fixar o
momento de seu surgimento. Sousa Lima ressalta bem este aspecto, dizendo
que “a fidúcia, fundada sobretudo na lealdade e na confiança foi, de início, uma
convenção, ligada a um ato solene, constituindo uma cláusula secreta que, por isso
mesmo, em sua origem, foi desprovida de qualquer sanção legal. Não há dúvida,
portanto, que, nestas condições, difícil, ou mesmo impossível, será determinar-lhe,
no tempo, a origem”. Longo30 anota que “Le informazioni que possediamo circa
la fiducia non sono nel loro complesso abbondanti e sopra tutto hanna carattere
framentario. Una trattazione, sia pure elementare come quelle che Gaio dà di
tanti instituti, non ci è pervenuta da nessuna parte per la fiducia”.
2.1.1.3 – No entanto, no caso da fidúcia, não só esta falta de registro
do uso da sociedade primitiva é causa de dificuldade para a perfeita fixação
de suas origens. Outro fato histórico de absoluta relevância interferiu para
que mais dificuldades se apresentassem. Por determinação do Imperador
Justiniano, em 529 foi terminado o trabalho de coleção das leis promulgadas
pelos imperadores, publicada sob o título de “Codex”. No ano seguinte,
Justiniano encarregou Triboniano de selecionar as obras dos jurisconsultos
clássicos que, dirigindo comissão nomeada para tanto, confeccionou o
“Digesto” ou “Pandectas”, com cinquenta livros, reunindo partes de dois
30
Longo, p. 8.
35
mil livros clássicos. Os que se dedicaram a tal empreitada sob a direção de
Triboniano foram autorizados por Justiniano31 a efetuar as alterações que
fossem necessárias, para adaptar os textos recolhidos aos novos costumes
então existentes em seu império, alterações que então foram chamadas de
“Emblemata Triboniani”, hoje conhecidas como interpolações. A fidúcia,
por se tratar de instituto que na época de Justiniano estava em desuso, foi
especialmente objeto de interpolações, de tal forma que a reconstituição
de suas origens sofre também severas restrições a partir de tal fato. Anota
Alexandre Correia32 que “no direito justinianeu, desaparece a fidúcia, sendo
as consequências jurídicas do penhor e da hipoteca as mesmas; mas ao passo
que no penhor a posse passa ao credor, na hipoteca tal não se dá”. Anote-se
apenas que as consequências não são exatamente as mesmas, pois a fidúcia
transfere a própria propriedade do bem, enquanto a hipoteca e o penhor
dizem respeito à posse. Conforme anota Sousa Lima, a fidúcia entrou em
desuso, até desaparecer de vez pela obra de Justiniano. Diz Longo33 que “la
fiducia si è perpetuata viva e vitale durante tutta l’epoca classica del diritto
romano. ... Quanto all’etá postclassica, non v’é motivo di dubitare che il negozio
fiduciario abbia continuato da principio ad essere praticato: ... ... Ma la fiducia,
in prosieguo di tempo, col decadere dei due modi formali di trasferimento
del domínio ai quali era legata (la mancipatio e la in iure cessio) ha dovuto
necessariamente andare grado a grado in desutudine”. Pietro Bonfante também
anota que a fidúcia34 “... costituiva un negozio di vasta aplicazione e di grande
interesse nel diritto classico ... ma nel diritto giustinianeo essa è abolita”.
2.1.1.4 – É do clássico de Sousa Lima35 a observação que aponta
o acréscimo desta dificuldade no estudo das origens da fidúcia: “Por fim,
cumpre salientar que os compiladores do ‘Corpus Juris’ procuraram, de todos
os meios e por todos os modos, excluir, por completo, da codificação, todos os
31
32
33
34
35
Meira (p.198) transcreve a autorização de Justiniano expedida na Constituição “Deo Auctore” (De conceptione
digestorum) para as interpolações, do ano 530: “Desejamos que se encontrardes nos antigos livros alguma
coisa que deve ser eliminado, supérfluo ou imperfeito, tenhais o cuidado, depois de haverdes suprimido as
inutilidades e suprido as lacunas, de apresentar a obra com um conjunto harmonioso e perfeito. Observai
também que nas velhas leis e nas velhas constituições que os antigos compilaram em seus livros, encontrareis
algo inconveniente, o que deveis reformar e colocar em boa ordem, de forma que o que tiverdes colecionado
e redigido é que será considerado perfeito e melhor, como se se tratasse da própria redação original; e que
ninguém ouse, ao fazer comparação com a obra de que foi extraído, considerar imperfeito o novo texto”.
Correia, p. 154.
Longo, p. 163.
Bonfante, “Istituzioni...”, p. 325.
Lima, p. 11.
36
vestígios ou traços da fidúcia. Fizeram-no por interpolações, que só poderão
ser apontadas através de indícios muitas vezes pouco seguros, de modo que se
torna impossível uma conclusão absolutamente segura e certa”. No entanto, e
este pensamento também é compartilhado por Sousa Lima, a profusão de
indícios é suficiente para que a maioria dos estudiosos fixe o nascimento da
fidúcia em período anterior à Lei das XII Tábuas, sem embargo da discussão
que sobre este ponto se estabeleceu entre Accarias e Jacquelin, o segundo
autor afirmando que a fidúcia teria se originado exatamente com a Lei das
XII Tábuas, o primeiro defendendo o mesmo ponto de vista adotado por
Sousa Lima. C. Accarias examina as formas usadas para a fidúcia, ou seja, a
mancipatio e a in iure cessio para, admitindo que o tempo torna imprecisas
afirmações peremptórias sobre datas, ainda assim dizer36: “Il est impossible
de dire à quelle époque ces deux formes d’aliénation s’introduisirent. Mas sans
aucun doute l’une et l’autre étaient déjà reconnues par la loi des Douze Tables
(Fr. Vat., § 50); et certainement aussi elles se maintinerent jusqu’à Justinien,
mais il n’em est plus question dan la législation de ce prince”. Jacquelin contesta
Accarias, entendendo que este teria feito confusão entre o aparecimento da
actio fiduciae e a própria fiducia cum amico, chegando, porém a conclusão
que em termos de tempo, não chega a se distanciar, pelo menos de forma
acentuada, daquele encontrado por Accarias, dizendo37: “Dès lors on peut dire
que la fiducie elle-même est certainement antérieure au Vº siècle de Rome, et
qu’elle date au moins du IVº; peut-être mème est-il parmi de hasarder l’opinion
qu’elle était dejà em usage des l’époque de la loi des Douze Tables”.
2.1.1.5 – Em sua origem, o negócio fiduciário apresentou-se sob as duas
formas clássicas que persistiram até Justiniamo. Uma delas foi a “fiducia cum
amico”, aperfeiçoando-se com a transferência de uma propriedade a um
amigo, para que este a mantivesse em sua propriedade, até quando fosse pedida
em restituição. A segunda modalidade, que interessa diretamente ao estudo
do contrato fiduciário futuro, era a “fiducia cum creditore”; nesta, o devedor
transferia a propriedade do bem ao credor, especificamente para a garantia de
uma dívida, assumindo o credor o compromisso de devolver a propriedade
ao devedor, tão logo fosse feito o pagamento da dívida. Observe-se que o
transmitente do bem perdia sua propriedade e aguardava, pela confiança
36
37
Accarias, p. 570.
Jacquelin, p. 25.
37
que depositava no outro contratante, o cumprimento do prometido por este
outro, que se tornava o efetivo titular do direito em questão, acordo com
natureza aparente de gratuidade e com fundamento na boa fé. Na fidúcia do
Direito Romano o poder do fiduciário era ilimitado relativamente ao bem,
vez que se tornava proprietário dele, sem qualquer limitação. Ao fiduciante
apenas restava confiar no fiduciário, pois se este se negasse à devolução do
bem, aquele poderia valer-se apenas de medidas de ordem pessoal contra o
credor que descumprisse a obrigação, sem qualquer possibilidade de atingir
o bem, que estaria nas mãos do terceiro para o qual foi transmitido pelo
fiduciário, que detinha de forma plena, todos os poderes da propriedade.
Houve várias outras modalidades, como a “fiducia remancipationis causa”,
venda fictícia de um filho feita por um “pater” a outro “pater familiae” para
que este, em cumprimento à obrigação assumida, o libertasse, propiciando
assim, de forma indireta, a emancipação, tendo permanecido, porém em
evidência a fidúcia “cum creditore”. Na “Enciclopédia”, organizada por
Mancini38 consta a observação do uso que se faz do direito do “pater familiae”
de vender o filho, com o fito de emancipá-lo, sem os prejuízos decorrentes da
emancipação, “... per cui il potere che al padre appartiene, di vendere il proprio
figli, viene a convertir-se in un espediente per libertalo dalla pátria potestà”.
2.1.1.6 – Portanto, característica comum a qualquer das modalidades de
fidúcia existentes no período romano, sempre foi a efetiva transferência da
propriedade pelo fiduciante, assumindo o fiduciário a obrigação de devolver o
bem após preenchida determinada condição ou satisfeita obrigação assumida,
ou de dar ao bem a destinação acordada. O negócio fiduciário é assim
composto por dois elementos essenciais, sem os quais não estará caracterizado:
de um lado, o elemento real consistente na efetiva transferência da propriedade
do bem, em decorrência do qual o fiduciário passa a exercer de forma plena
todos os atributos inerentes à condição de proprietário, podendo até alienar
o bem a terceiro e, em tal caso, restando ao fiduciante apenas a ação pessoal
contra aquele. De outro lado, e sem prejuízo da plenitude da transferência
da propriedade, compõe-se também o negócio fiduciário do elemento
obrigacional, mediante o qual o fiduciário obrigava-se a devolver a coisa ao
outro contratante na ocorrência do evento resolutivo previsto ou obrigavase a dar ao bem transferido a destinação adrede combinada entre as partes.
38
Mancini, p. 769.
38
Portanto, a fidúcia surge com uma dupla característica, a real e a obrigacional.
2.1.1.7 – A fidúcia se realizava pela mancipatio e pela in iure cessio, duas
formas solenes de transmissão da propriedade no direito romano, institutos
que operavam a transferência de direito real, com plena, absoluta e irrestrita
outorga ao adquirente de todos os direitos decorrentes da propriedade real
do bem. Como anota Sousa Lima39, a transferência em tal condição não
era temporária nem subordinada a qualquer condição, embora o fiduciário
assumisse obrigação de restituição futura, desde que ocorrido determinado
fato; no entanto, se houvesse descumprimento desta obrigação por parte do
fiduciário, a pendência seria resolvida apenas no campo do descumprimento
das obrigações, sem que fosse afetada, de qualquer forma, a transmissão de
direito real que havia se operado de forma plena.
2.1.1.8 – A mancipatio, também conhecida como imaginaria venditio,
era forma solene de transmissão da propriedade, que se aperfeiçoava
independentemente da causa da alienação. Embora se apresentasse como uma
compra e venda, o preço era apenas simbólico, não correspondendo ao valor
da coisa. A propósito deste ponto, Longo, descrevendo a solenidade, diz que
o pagamento simbólico era feito pela entrega de uma barra de bronze, com a
qual o adquirente havia tocado a balança empunhada por uma testemunha.
Descreve assim a solenidade 40: “doveva percuotere col metallo la bilancia e dar
il pezzo di rami all’alienante ‘quase pretii loco’. A questo pagamento meramente
simbolico corrispondeva nel contesto dell’atto l’indicazione di um prezzo di vendita
meramente figurativi, il ‘sestercius nummus unus’”. Realizava-se na presença de
seis testemunhas, todos cidadãos romanos púberes, uma das testemunhas
encarregada de empunhar a balança que seria tocada com a barra de bronze
que simbolizava o preço da venda fictícia que então se aperfeiçoava.
2.1.1.9 – Da mesma forma que a mancipatio, também a in iure cessio
era forma solene de transmissão da propriedade que porém, ao invés de
na presença de testemunhas, ocorria in iure, na presença do magistrado.
Também como na mancipatio, esta cessio era apta para operar a transferência
da propriedade de um bem, processando-se por meio de uma reivindicação
fictícia, portanto com o mesmo caráter de abstração daquela. As partes,
39
40
Lima, p. 46.
Longo, p. 6.
39
adrede acordadas, compareciam à presença do magistrado e aquele a quem a
propriedade deveria ser transferida, reivindicava-a, pronunciando a fórmula
hunc hominem meum esse aio. O proprietário também presente mantinha-se
calado e, na sequência, o magistrado atribuía à propriedade do bem àquele
que a estava reivindicando. É também de Longo a observação41: “Quanto alla
in iure cessio, essa aveva la forma esteriore di una legis actio, cioè di uma azione
di rivendicazione, la quale però si concludeva in iure, dinanzi al magistrato”.
Também o autor anota que na “mancipatio la causa apparente era fittizia” e
que igualmente na in iure cessio também ocorria “una rivendicazione fittizia”.
Portanto, aquele que pretendesse efetuar a transferência do bem para fins de
fidúcia, poderia valer-se tanto da mancipatio quanto da in iure cessio.
2.1.1.10 – Além das diferenças de forma, Alexandre Correia rememora
que a mancipatio apenas se prestava à transferência de propriedade de res
mancipi, enquanto a in iure cessio prestava-se “para a transferência, quer duma
‘res mancipi’, quer duma res ‘nec mancipi’”, anotando ainda que “é a única
forma de transferência para coisas incorpóreas (iura) para as quais não é possível a
‘mancipatio’”42. Este mesmo autor esclarece quais são os bens mancipi, quais os
nec mancipi43, anotando como res mancipi os imóveis no solo itálico, escravos
e animais de tiro e carga e as servidões rústicas mais antigas, (iter, actus, via,
aquaeductus), sendo nec mancipi todas as demais, incluindo-se também
as obrigações. Da própria essência do negócio fiduciário é a obrigação de
devolução do bem transmitido, quando preenchido o fim ao qual o negócio
se destinava, devolução que era feita da mesma forma solene pela qual havia
se constituído, sendo obrigatória nova mancipatio ou in iure cessio.
2.1.1.11 – Relembrados assim os aspectos históricos que cercam o
surgimento do instituto da fidúcia no direito romano, impõe-se examinar
agora cada um dos dois tipos de negócios fiduciários mais comuns então
existentes, quais sejam: a fidúcia cum creditore e a fidúcia cum amico. Antes,
porém – e apenas à guisa de encerramento desta parte da exposição –, tornase oportuna a transcrição de uma das mais acatadas definições para a fidúcia,
de Carlo Longo, que diz44: “Esso può definirse così: un negozio giuridico, per
41
42
43
44
Longo, p. 6.
Correia, p. 138.
Correia, p. 50.
Longo, p. 5.
40
cui una delle parti, ricevendo dall’altra una cosa mediante la ‘mancipatio’ o la
‘in iure cessio’, si obbliga com apposita convenzione a restituirla al trasferente,
ovvero a spogliarsea per darle una determinata destinazione”.
2.1.2 – Tipos diversos de fidúcia
2.1.2.1 – Nos dias atuais, o negócio fiduciário ganha cada vez maior
destaque, como sistema que propicia formas eficazes de garantia aos
contratos empresariais, sendo determinantes o seu aspecto econômico e a
sua importância como substituto de garantias reais (v.g., penhor, hipoteca)
que, aos poucos, foram perdendo credibilidade, ante a extrema dificuldade
para execução da garantia, isto se superadas as preferências, especialmente
de origem trabalhista e tributária, que aos poucos foram se sobrepondo às
garantias reais tradicionais.
2.1.2.2 – No entanto, em suas primeiras manifestações no direito
romano do qual é originária, a fidúcia destinava-se a solucionar aspecto
atinente a relações de família, apresentando-se como um pacto mediante
o qual um pater familiae vendia seu filho a outro pater familiae, este último
assumindo a obrigação de libertá-lo, com o que se chegava ao resultado
desejado, ou seja, a emancipação do filius familiae. Embora sem a conotação
exclusivamente econômica que hoje dirige os negócios fiduciários, já se
verifica que logo em seu início, a fidúcia surge para suprir falhas do sistema
jurídico, valendo-se as partes de um ato (venda do filho) para atingir fim
diverso (emancipação). Messina45 anota estes usos diversos para os quais vai
se prestando a fidúcia, dizendo: “Lo stesso dicasi dell’emancipatio e, per quanto
com essa coincide, dell’adoptio. Qui delle ‘mancipacionis’ del figlio del famiglia
Paolo ci dice che consistono in un ‘deduci in imaginariam servilem conditionem’”.
Tal característica mantida através dos séculos e até hoje componente
marcante do negócio fiduciário, possibilita a transferência da propriedade
do bem não com a intenção de aliená-lo efetivamente e sim, com o intuito
de constituir uma das mais eficazes formas de garantia conhecidas no direito
contemporâneo nos dias atuais, destinado a uso exclusivamente de natureza
econômica e negocial, porém com sua origem também ligada à solução de
relações familiares.
45
Messina, p. 132.
41
2.1.2.3 – Aliás, é curioso observar que este deslocamento de finalidade, ou
seja, alterar-se a finalidade inicialmente perseguida, de natureza familiar para
passar a perseguir uma finalidade econômica, ocorre em diversos institutos do
direito romano. Alexandre Correia46, falando sobre a sucessão testamentária
no primitivo direito romano, lembra que na mancipatio familiae o testador
nomeia o herdeiro em solenidade com a presença do emptor familiae, ou seja,
aquele que está comprando o patrimônio familiar, aduzindo que “isto revela
talvez a primeira e original invasão do espírito patrimonial na instituição do
testamento, invasão que, como veremos, assumirá grande importância no ulterior
desenvolvimento da sucessão hereditária”. Mutatis mutandis, é a mesma invasão
que o espírito patrimonial efetua também sobre a fidúcia remancipationis
causa, de tal forma que desaparecida esta, permanece a fidúcia com fins
exclusivamente de natureza econômica.
2.1.2.4 – Longo fala sobre as outras aplicações às quais se prestou o
instituto da fidúcia, além de se destinar a formalizar uma garantia real a
ser dada ao credor. Anota este autor que a tese defendida durante muito
tempo com fundamento em Heck, segundo a qual a fidúcia cum creditore
era a única aplicação de tal instituto, foi afastada pelos estudos críticos
posteriores, que identificaram perfeitamente a fidúcia cum amico. Longo
lembra a situação na qual o escravo entregue em penhor vem a praticar
furto contra o credor pignoratício, situação em que o proprietário
original poderia liberar-se da responsabilidade, entregando o escravo ao
credor. Examinando texto recuperado47, Longo48 diz que “la prima parte
del texto, allo stato attuale parla del furto commesso da uno schiavo dato
a pegno a danno del creditore pegnoratizio, e decide que il debitore può
liberarsi da responsabilità abbandonando al creditore il servo ‘pro noxae
deditione’. Ora, questo sostitutivo della ‘noxae deditio’ non è spiegabile in
un rapporto di pegno, perchè il debitore resta proprietario e il creditore
non ha che il possesso, e quindi sarebbe possibilissimo che il primo operasse
la normale ‘noxae deditio’ al secondo mancipandogli all’uopo lo schiavo”.
Completa Longo o pensamento, dizendo que em tal caso o texto está se
46
47
48
Correia, p. 232.
“Dig. 13, 7, 31 (Africano) Si servus fiduciae (pignori, Dig.) datus creditori furtum faciat, liberum est debitori
servum pro noxae deditione relinquere... ... Eadem servando esse Julianus ait cum servus fiduciae causa amico
mancipatus (depositus vel comodatus servus, Dig.) furtum faciat”.
Longo, p. 149.
42
referindo a um escravo que foi entregue em fidúcia cum creditore, o que
se conclui do exame da primeira parte. Já na segunda parte, anota Longo,
“questa non può essere que la fidúcia cum amico di cui Gaio parla accanto
aquella cum creditore”.
2.1.3 – Fidúcia cum amico
2.1.3.1 – Na fidúcia cum amico, como indica o próprio nome dado ao
instituto, não havia, em princípio, obrigação econômica subjacente, tratandose apenas de medida que transferia o bem a um amigo, para que este o
mantivesse íntegro e em lugar seguro, até que as condições que aconselharam
tal cuidado viessem a desaparecer, quanto então o bem seria devolvido ao
proprietário original. Desta forma, a fidúcia cum amico tinha finalidade
diversa da fidúcia cum creditore, esta destinada à garantia do pagamento de
dívida contraída. Há corrente que sustenta que ambos os tipos tinham a
mesma finalidade de garantia, afirmando que a fidúcia cum amico apenas
tinha como diferencial o fato de ser celebrada entre o devedor fiduciante e o
“amigo” fiduciário que assumia então a obrigação de pagar a um terceiro o
débito que o fiduciante havia assumido. Sousa Lima49, citando Emílio Costa,
anota que Heck era um dos defensores de tal ponto de vista que, no entanto,
não logrou aceitação entre os estudiosos, prevalecendo o entendimento no
sentido de que os dois tipos de fidúcia eram conhecidos dos romanos que os
destinavam a finalidades diversas e perfeitamente delimitadas.
2.1.3.2 – Em um primeiro momento, ou melhor dito, entre as primeiras
razões que levaram ao uso da transferência fiduciária, está a tentativa de
suprir a insuficiência da lei que, em sua origem, não conhecia a transferência
temporária da propriedade, a transferência ad tempus. Por tal razão, aquele
que quisesse fazer o empréstimo de um bem a um amigo, valia-se da fidúcia
cum amico que substituía assim a figura ainda desconhecida do comodato. No
entanto, mesmo depois de introduzido no direito romano o comodato, ainda
assim coexistiram durante determinado tempo ambos os institutos, com a
mesma finalidade de empréstimo gratuito ao amigo. Disto dá notícia Franco
Pastori50 que anota “che la fiducia cum amico e il commodato abbiano per
um certo período consentito ai privati di perseguire scopi paralleli. In un primo
49
50
Lima, p. 70.
Franco Pastori, apud Lima, p. 73.
43
tempo, accanto al negozio fiduciario, che veniva usato per il trasferimento di cose
socialmente rilevanti, in particolare imobili, per scopi svariati, non escluso quello
di consentire il prestito d’uso gratuito, vi era, al di fuori di ogni considerazione
giuridica, la prassi di concedere cose di limitata relevanza sociale, abitualmente
mobili, in prestito di uso gratuito. In um secondo tempo, in seguito all’intervento
del diritto nella regolamentazione di quela prassi, se ebbe la coesistenza di due
rapporti parelleli, i quali, pur com struttura diversa e indipendente, potevano
praticamente adempire ad analoghe finalità; accanto alla fiducia cum amico si
pose il commodato”. Durante esta fase de coexistência, sem embargo das funções
assemelhadas, a fidúcia destinava-se ao empréstimo de imóveis, enquanto o
comodato era instituto destinado ao empréstimo de coisas móveis.
2.1.3.3 – Embora incidentalmente a fidúcia cum amico tenha se
prestado a servir à finalidade do comodato, atuou mais propriamente como
forma para assegurar a defesa de um bem de propriedade de uma pessoa em
condições de debilidade social, política ou com qualquer outra origem, por
outra pessoa em situação de maior força. Esta segunda pessoa, o fiduciário,
seria o amigo que, adquirindo a propriedade do bem pela fidúcia, poderia
melhor manter sua defesa em casos como de guerra, perseguições políticas,
lutas internas, enfim, qualquer situação que pudesse trazer dificuldade ao
fiduciante de manter a integridade do bem de sua propriedade. Superadas
estas condições adversas, voltando as coisas à normalidade do dia a dia,
o bem seria devolvido ao fiduciante da forma como havia sido entregue.
Como diz Fransceschelli51 tratava-se de “... trasferimenti fatti, in condizioni
politicamente malsicure o incerte (guerre, razzie, lotte intestine, ecc.), da persona
deboli, o incapaci di difendere le proprie sostanze, o compromesse, ad individui
aventi uma posizione sociale e política tale da poter assicurare e garantire la
difesa e l’integrità dei beni trasferiti”. Esta seria uma função da fidúcia cum
amico que se poderia dizer de origem social ou política.
2.1.3.4 – Prestava-se também a fidúcia cum amico a um fim de natureza
precipuamente jurídica, ou seja, a transferência do bem para um amigo, em
caso de ameaça jurídica ao bem, por meio de uma ação ou algum tipo de
expropriação. Novamente Franscescelli é que anota que, neste caso “viene
invece in primo piano un elemento piu schiettamente giuridico, e sta ad indicare
51
Franceschelli, p. 521.
44
i trasferimenti fatti in occasione per es. di una lite o di una espropriazione, per
salvare il proprie sostanze dalle conseguenze di tali avvenimenti, fornecendo al
fiduciario il mezzo piú forte, energico e sicuro (la proprietá) per difenderle”.
2.1.3.5 – Como visto acima, durante algum tempo a fidúcia cum amico
prestou-se a fazer às vezes do contrato de comodato. Não só deste; também
por deficiência do direito romano, a fidúcia cum amico prestava-se também
a substituir o contrato de depósito. Não era incomum, nos tempos políticos
agitados que se sucediam, ver-se alguém de posses, obrigado a abandonar
a cidade ou mesmo a região na qual exercia suas atividades, muitas vezes
às pressas, sem tempo para maiores disposições sobre seus bens. Em tais
casos, valia-se a pessoa da fidúcia cum amico, transferindo seus bens para um
terceiro, até que as mudanças no meio social permitissem sua volta, quando
então receberia de volta os bens que havia transferido fiduciariamente.
2.1.3.6 – Enfim, do exame do que se tem conseguido coletar sobre a
fidúcia romana, resulta claro que a fidúcia cum amico manteve características
de favor prestado por um amigo a outro em situação que constituía perigo
para a defesa ou conservação do bem. Não havia neste tipo de fidúcia qualquer
dívida contraída entre as partes, ao contrário do que ocorre na fidúcia cum
creditore, cuja formalização tinha por objetivo exatamente garantir com a
transferência, o pagamento de uma dívida, sempre fxando-se a estipulação de
que o bem deveria voltar ao patrimônio do fiduciante, quando e se houvesse
o pagamento do débito contraído.
2.1.4 – Fidúcia cum creditore, pignus e hipotheca
2.1.4.1 – Alexandre Correia cataloga a “fiducia cum creditore” entre
as três formas sucessivas de garantias reais existentes no Direito Romano,
seguindo-se-lhe os institutos do “pignus” e da “hypotheca”. Anota que52 “No
desenvolvimento do direito romano há três formas sucessivas de garantias reais:
‘fiducia cum creditore, pignus, hypotheca’. A ‘fiducia cum creditore’ consistia numa
‘mancipatio’ pela qual o devedor transferia ao credor a propriedade duma coisa,
com o pacto (pactum fiduciae) que obrigava o credor a retransferir a propriedade
da mesma ao devedor soluto”. No entanto, como visto, o negócio fiduciário
no Direito Romano importava em transferência do bem de forma absoluta,
52
Correia e outro, p. 154.
45
apenas assumindo o fiduciário a obrigação de restituir o bem; se faltasse com
esta obrigação assumida, ao fiduciante não haveria possibilidade de pedir
a restituição em espécie, cabendo-lhe apenas discutir o descumprimento
da obrigação. Giuseppe Messina53, ao examinar o “uso non consentito dal
transmitente” afirma: “Á questo peró non restava che il ricorso ai mezzi generici
dell’adempimento delle obligazioni – salvo talune sanzioni di carattere penale
per la lesione della fides’. Dall’osservanza di questa il trasmittente poteva soltanto
attendere l’adempimento specifico del’obbligo assuntosi dal fiduciario”. Tanto se
tratava de transferência absoluta da propriedade que o negócio fiduciário era
feito pela mancipatio ou pela in iure cessio, duas formas solenes de transmissão
do direito pleno de propriedade, cuja devolução exigia outra destas formas
solenes, como já acima analisado.
2.1.4.2 – De todas as modalidades existentes no direito romano, a mais
conhecida é a fidúcia cum creditore, referida sempre nas diversas fontes de
consulta. Sem embargo da posição de Alexandre Correia, à época em que
a fidúcia cum creditore surge em Roma, ainda eram desconhecidos o pignus
e a hipotheca, não havendo também qualquer possibilidade de transferência
da propriedade com condição resolutória. Na falta destes institutos, e
ante a necessidade de garantia para as obrigações, é que passa a ser usada a
fidúcia cum creditore. Aliás, o penhor e a hipoteca surgem exatamente em
decorrência do fato de a fidúcia desapossar o fiduciante do bem, com todos
os inconvenientes decorrentes do fato de privar alguém do uso de bem que
apenas se destina a garantir o pagamento da dívida contraída. Sobre este
ponto, Sousa Lima54 ressalta que “a fidúcia cum creditore, tirando o bem ao
‘fiduciae dans’, tirava-lhe, consequentemente, o crédito e este inconveniente fez
nascer não só o penhor, como também a hipoteca, formas de garantia que, não
privando o devedor de seus bens, permitia-lhe a obtenção de novos créditos”.
2.1.4.3 – No entanto, ocorreu no direito romano um fato que, depois
será visto, repetiu-se de forma profundamente acentuada nos tempos atuais
no direito brasileiro. No direito romano, mesmo depois do surgimento do
penhor e da hipoteca, ainda assim persistiu em uso a fidúcia cum creditore,
pela superioridade que tal instituto apresentava, a partir da visão do credor.
53
54
Messina, p. 106.
Lima, p. 77.
46
Este se tornava proprietário do bem, recebendo a mais ampla garantia
real que poderia ser formalizada, pois não se limitava apenas a garantir a
dívida, pois, mais que isto, passava o domínio do bem ao credor. Como
diz Longo, “è la piú ampla e energica che possa concepirse, perchè si attua,
non com l’attribuzione al creditore di un ius in re limitato, ma addirittura
con l’attribuzione al creditore della proprietà della cosa”. Adiantando aspecto
que será examinado mais adiante, no direito brasileiro atual ocorreu – e está
ocorrendo –, fenômeno semelhante, com uma busca pertinaz e constante de
aplicação da garantia fiduciária aos negócios empresariais, ante a fragilização
que mais e mais começou a atingir os institutos do penhor e da hipoteca, que
coloca o credor comercial em posição sensivelmente subalterna em relação a
outros tipos de credores, especialmente o credor trabalhista e o credor fiscal.
O veio aberto na atualidade pela “redescoberta” da garantia fiduciária parece
agora fonte inesgotável de novos tipos de garantia, sempre mais sofisticados e
oferecendo cada vez mais garantias que efetivamente satisfazem o empresário
na busca de segurança.
2.1.4.4 – O tipo de garantia oferecido pela fidúcia cum creditore bem
se adaptou ao espírito romano, que tratava com extremado rigor o devedor,
o qual até a Lex Poetelia Papiria, de 428 a.C., respondia com seu corpo
pelas dívidas assumidas, prevendo a Tábua Terceira a divisão do corpo do
devedor em tantos pedaços quantos fossem os credores. É de Sousa Lima55,
comentando texto de Carlo Longo, a observação: “Esta longa página do
grande romanista põe em nítido relevo não só a dureza com que eram tratados
os devedores em Roma, mas também o egoísmo dos credores, e, ainda, que a
garantia real só poderia objetivar-se através da fidúcia. A fidúcia cum creditore
era, então, não só uma imposição do próprio sistema jurídico dos romanos, senão
também, uma imposição do sistema creditório daquele povo. Mas, apesar de
ser ela a resultante de um sistema fechado de Direito, assumia, porém, uma
alta valia como forma garantidora de créditos, assegurando, de maneira ampla e
enérgica, o direito dos credores”.
2.1.4.5 – Durante toda a época clássica do direito romano, a fidúcia cum
creditore é o meio do qual as partes lançam mão para a garantia das obrigações
assumidas. Mesmo no período pós-clássico, teria sido ainda usado este tipo
55
Lima, p. 78.
47
de garantia que começa, porém a cair em desuso, com o desaparecimento da
mancipatio e da in iure cessio, formas pelas quais se formalizava a fidúcia. Tanto
que a legislação pós-clássica do Império não demonstra qualquer interesse
maior em regular o negócio fiduciário, que acaba por desaparecer de vez na
legislação de Justiniano, com interpolações que o afastam do direito então
posto. Curiosamente, a falta de um tipo de garantia para os negócios fez com
que surgisse no direito romano a fidúcia, que acaba por desaparecer, com o
prestígio que o penhor e a hipoteca assumem como possibilidade de garantia.
Na sequência, o desprestígio destas garantias pignoratícias e hipotecárias
faz ressurgir novamente a fidúcia, outra vez chamada a preencher lacunas
negociais que não se satisfazem mais com as fórmulas existentes. Ainda é
de Sousa Lima56, em 1962, portanto antes da criação da alienação fiduciária
em garantia pela Lei 4728/65 e pelo Decreto-Lei 911/69, as proféticas
palavras que hoje mais ainda se justificam: “Mas, a realidade é que este instituto
ressurgiu no direito moderno, como uma imposição da própria vida jurídica e para
preencher, como no direito romano, lacunas e deficiências da legislação atual”. Este
ressurgimento é anotado também por Restiffe Neto57, na recente edição do
ano 2000 de sua obra: “O ressurgimento da fidúcia na atualidade, incorporada
ao direito positivo como espécie nova de garantia, decorre da crise constatada na
prática de utilização de outros tipos de direitos reais de garantia clássicos. Sobretudo
a hipoteca, precisamente pela sua estrutura de direito real de garantia constituído
sobre bem alheio, expõe, por isso (bem alheio), a sua maior fragilidade, exacerbada
pela crise de entupimento da Justiça”.
2.2 – Direito Germânico
2.2.1 – Já na época de Justiniano, como visto, a fidúcia havia caído em
desuso, tanto que as interpolações fizeram desaparecer seus últimos vestígios
como lei positiva. Exatamente deste sistema de direito fundado em lei escrita,
os povos germânicos mantinham absoluto distanciamento, ligados apenas ao
direito consuetudinário, acatando como regras apenas aqueles costumes que
o uso havia consagrado. Sem embargo de tudo isto, com a disseminação de
negócios entre os povos e a penetração do direito romano, superior ao sistema
germânico, acaba por ocorrer a recepção daquele como, aliás, normalmente
56
57
Lima, p. 87
Restiffe Neto, p. 21
48
sucede quando há contato de duas culturas e uma delas acha-se em estágio
superior de desenvolvimento. Desta maneira, inúmeros institutos do direito
romano vão se espalhando na civilização germânica, sofrendo alterações e
criando novas formas, embora assemelhadas àquelas da origem.
2.2.2 – Sousa Lima credita tal recepção do direito romano pelos germanos,
principalmente ao fato de se considerarem estes como os verdadeiros sucessores
do grande Império Romano, cultivando a propósito uma ideia de retorno ao
esplendor antigo. Pierre Arminjon58, Professor das Universidades de Genebra e
Lausanne, no grande tratado de direito comparado que escreveu em conjunto
com Baron Boris Nolde, da Universidade de Petrogrado e com Martin Wolff,
da Universidade de Berlim, falando sobre as influências decorrentes das
relações entre os dois sistemas, diz: “Mais les relations commerciales s’étendant de
plus en plus, d’endroit en droit, de pays en pays, le besoin d’un droit unifié devint
imperieux. Il parait avoir grande depuis la fin du XV° siècle et fut satisfait em
partie par la réception du droit romain. Toutefois cette réception ne peu s’expliquer
ni par le besoin d’unification ni par l’a admiration qu’inspirait la technique du
droit romain ni par les idées des humanistes. Ces raison, em particulier l’aspiration
vers un ‘retour à l’antiquité’, existaient également hors d’Allemagne. L’explication
de la réception em Allemagne du Droit Romain ‘in complexu’ doit être cherchée
dans lê fait que seul le Reich Allemand se considérait comme successeur de l’Empire
Romain e que seul l’Empereu Allemand passait pour occuper le trône de Justinien.
La réception du droit romain ne se fit donc pas en vertu de lois spéciales entrées
em vigueur à des dates précises”. No entanto, o mesmo Arminjon reconhece
também a existência de uma evolução integrada de todos os direitos, que
acabam encontrando soluções semelhantes pelo fato de que os problemas são
semelhantes, especialmente em direito comercial. Em outra parte de sua obra,
propõe uma questão e passa em seguida a respondê-la: “On peut se demander
si toutes ces institutions, étrangères aux Romains, ont une origine commune?
L’uniformité ou, plus exactement, la similitude des institutions de droit privé em
vigueur dans lês différents pays s’explique, em somme, par la similitude des besoins
et des intérêts économiques, sociaus et politique de ces pays. Cela saut aux yeus
quand on pense au développement du droit commercial et industriel moderne”59.
58
59
Arminjon, vol. 2, p. 190/191.
Arminjon, vol. 1, p. 87/8.
49
2.2.3 – Especialmente no âmbito da matéria que estamos examinando,
é possível localizar no direito germânico traços que indicam institutos com
grande semelhança à fidúcia de origem romana, encontrando-se diversas
vezes o uso do próprio termo “fidúcia”. Messina60 diz: “Ma, piú che per queste
leggi, l’uso del termine fiducia há dato modo di pensare ad una perpetuazione
dell’istituto romano pel suo frequente ricorso in formule, diplomi e carte que
rimontano dal VI al XII secolo”. Muitos documentos de compra e venda da
época, por exemplo, traziam cláusula declarando que a coisa não havia sido
objeto de alienação, doação ou fidúcia e, embora o termo se referisse mais
à obrigação do que propriamente à fidúcia, ainda assim o uso de palavras
originárias do direito romano demonstra a profundidade de sua influência
sobre a cultura jurídica germânica, mais ainda quando se constata que o
negócio fiduciário já havia sido banido do próprio Império Romano do
Ocidente após Justiniano. No entanto – e é o próprio Messina que adverte61
–, a simples semelhança de nomenclatura não pode ser alçada a prova
definitiva de que a fidúcia germânica proveio diretamente da romana: “I
rilievii fatti accennano già al difetto di base storica delle tesi, che sulla sola base
terminológica, vogliono sostenere o la persistenza della fiducia romana oltre la
cerchia del mondo romano, o la figliazione da essa di istituti germanici. Ma
con ciò non è ancora detto che tra questi, pur senza legami di filiazione, non si
possano riscontrare rapporti riavvicinabili al tipo fiduciario romano”.
2.2.4 – O “affiduciatum” do direito germânico, sem embargo da
semelhança das palavras, na realidade diz respeito a “un istituto di diritto
germanico, in cui non si riscontrano i caratteri sostanziali della fidúcia
romana”62. Este tipo especial de fidúcia que Messina chama l’affiduciatum
era na realidade uma forma aproximada do penhor, diferindo da conhecida
fidúcia romana, porque não transmitia a propriedade do bem para o
terceiro, credor que apenas recebia o direito de usar a coisa até que o débito
existente fosse extinto. Assemelha-se ao instituto do direito romano, na
medida em que permanece a obrigação de providenciar a devolução do bem
após o pagamento da dívida, não havendo porém qualquer transmissão de
propriedade. Sousa Lima cita Schupfer63, que se refere ao affiduciatum como
60
61
62
63
Messina, p. 138.
Messina, p. 139.
Messina, p. 139.
Lima, p. 91.
50
pignus ad frugiandum, transferência do bem sem a perda da propriedade por
parte do transferente, que permanecia proprietário e que receberia a coisa tão
logo pago o débito ou cumprida a obrigação garantida pelo bem.
2.2.5 – O affiduciatum ou pignus ad frugiandum, embora com
semelhanças com o direito romano, não podia, no entanto ser visto como
um negócio fiduciário propriamente. Surgiu, porém no direito germânico
uma forma de penhor de propriedade que poder-se-ia dizer idêntico em
seus detalhes à fiducia cum creditore, pela qual o credor recebia do devedor
o bem, em formal e plena transferência de propriedade, firmando ainda o
compromisso de devolução tão logo satisfeita a dívida. Como se pode verificar,
este sistema de penhor de propriedade repetia, em todos os seus detalhes,
a fidúcia de origem romana, sendo a propriedade transferida pela chamada
carta venditionis firmada pelo devedor, o qual recebia do credor uma contracarta, com a promessa de devolução tão logo efetuado o pagamento. O que
torna este instituto praticamente idêntico à antiga fidúcia é exatamente o fato
de o bem ser transferido de forma integral, passando à propriedade do credor.
2.2.6 – Outra forma ainda na qual havia traços da fidúcia consistia
no negócio celebrado com a intervenção do manus fidelis, intermediário
que recebia em doação um patrimônio para que dele dispusesse de acordo
com seus próprios critérios, praticando porém atos com a finalidade de
propiciar a salvação da alma do doador, com direito de vender o patrimônio
doado e aplicar o resultado em atividade pia. O manus fidelis era assim o
intermediário na chamada donatio pro anima, com direito de alienação
que podia ser exercido mesmo durante a vida do doador, em tal caso com
cláusula de usufruto que garantisse a entrega do bem apenas após a morte. O
negócio com o manus fidelis era formalizado por regras solenes que exigiam
a entrega a ele da traditio cartae; havia porém outra forma de doação para
cumprimento de obrigação após a morte do doador, que se referia à libertação
de escravos e, em tal caso, também cercado de formalidades, era outorgada
a carta libertatis, normalmente atuando como intermediário um sacerdote,
para a manumissão do escravo após a morte do senhor.
2.2.7 – No direito germânico havia ainda a figura do salmann, que
inicialmente era aquele que recebia poderes do alienante, ficando assim
habilitado a transmitir os bens constantes do negócio à terceira pessoa
indicada, na realidade o destinatário final do bem. O instituto evoluiu, de
51
tal forma que passou o salmann a atuar como fiduciário do adquirente e não
do alienante, como ocorria no negócio fiduciário romano; passou o salmann
a receber outorga de poderes por parte do interessado na aquisição do bem
para que efetivasse a pretendida compra. Quando houvesse qualquer tipo
de impedimento ao interessado na aquisição do bem, este fazia a aquisição
por meio da interposta figura do salmman que recebia o bem e tornava-se
titular de um direito real, porém limitado tal direito ao fim determinado
desde logo. No entanto, ainda assim não se podia ver no salmann um simples
mandatário, tanto que se eventualmente dispusesse do bem de forma diversa
daquela que havia sido estipulada, cabia ao que havia transmitido a ele a
possibilidade de aquisição, o direito real de reversão. A este propósito, é
Sousa Lima quem afirma que “embora como intermediário, recebia o ‘salmann’
a propriedade, passando a exercer sobre ela um direito real, enquanto não a
transmitisse ao destinatário determinado. Este direito, entretanto, era limitado
pelo fim que determinava a intervenção do ‘salmann’. Vinham estas limitações
da própria ‘lex traditionis’ ou da ‘lex donationis’”64. Cariota-Ferrara fala
também do poder limitado que o salmann recebia e as consequências da
não observância dos limites impostos: “Nel diritto germânico, invece, la
determinazione dello scopo esercitava la sua influenza limitatrice non per la
via obbligatoria, ma direttamente nella sfera de potere giuridico del fiduciario
(salmann), potere que si piegava in um certo modo al fine avuto di mira: il
diritto si acquistava condizionato risolutivamente. Veniva così reso realmente
inefficace ogni uso contrario allo scopo, il quale provocava un ritorno del bene al
fiduciante o agli eredi, anche a danno del terzo acquirente”65.
2.2.8 – No direito germânico da atualidade, o treuhand é tido como
recuperação ou ressurreição de antiga figura já existente e que teria caído
em esquecimento por força da entrada do direito romano na região dos
germanos, abafando assim os institutos próprios. No entanto, esta figura
tem pouca coisa a ver com o direito fiduciário anterior, pelo menos em suas
manifestações atuais. Assim é que, por exemplo, o § 29 da lei de 13.7.1899,
prevê a nomeação de treuhander a ser feita por fiscais estatais de crédito,
para que este defenda os interesses dos possuidores de obrigações fundiárias,
zelando para que a cobertura esteja sempre de acordo com as exigências legais,
64
65
Lima, p. 96.
Cariota-Ferrara, p. 10.
52
com amplos poderes de fiscalização e consulta aos documentos internos. Uma
corrente vê no treuhander um representante dos portadores das obrigações
fundiárias; outra corrente entende que ele é titular de um direito próprio
que exerce, porém no interesse do terceiro. Não importa a qual corrente se
filie o observador, o que se verifica é que não há semelhança maior entre o
treuhander atual e as figuras do direito antigo ligadas ao negócio fiduciário.
2.2.9 – Assim, embora com origem no direito romano, porém com
fundamental diferença, surge a fidúcia do direito germânico, que estabelece
forma que não admite a transferência incondicionada da propriedade, de tal
maneira que passa a se garantir ao fiduciante a retomada do bem, em caso
de descumprimento da obrigação de devolução por parte do fiduciário. Esta
transformação também se presta a ilustrar o que mais adiante será ressaltado,
ou seja, o caminho do negócio fiduciário em direção a um efetivo negócio de
garantia de obrigações, com o desaparecimento de qualquer tipo de confiança,
confiança que foi a base histórica determinante da fidúcia, aliás, razão de
seu próprio nome. Cariota-Ferrara, realçando o pensamento de Schultze,
afirma que tanto a fidúcia romana quanto a germânica são insufladas pelo
mesmo espírito e tendem ao mesmo fim e, indica precisamente a diferença
de ambas, dizendo: “Questi nella fiducia romana riceveva um potere giuridico
dal punto de vista reale illimitato: lo scopo per cui il diritto gli era transferito
operava solo indirettamente per la via del rapporto obrigatório, in base al quale
il fiduciario era tenuto a fare del diritto l’uso stabilito, a trasferirlo alla persona
indicata dal fiduciante o a restituirlo al fiduciante stesso a mezza di un suo
attodi trasferimento”. Completa o pensamento, dizendo que se o fiduciário
descumprisse sua obrigação, ao fiduciante restava apenas a ação para
ressarcimento do dano. Já “nel diritto germanico, invece, la determinazione
dello scopo esercitava la sua influenza limitatrice non per la via obbligatoria,
ma direttamente nella sfera del potere giuridico del fiduciario (Salmann), potere
che si piegava in un certo modo al fine avuto di mira: il diritto si acquistava
condizionato risolutivamente. Veniva così reso realmente inefficace ogni uso
contrario allo scopo, il quale provocava um ritorno del bene al fiduciante o agli
eredi, anche a danno del terzo acquirente”66. Efetivamente, esta é a diferença
fundamental entre o sistema romano e o sistema germânico.
66
Cariota-Ferrara, p. 10.
53
2.2.10 – Seguindo o fio da história da fidúcia, caminha-se para o antigo
instituto germânico, que tem como origem os princípios do direito romano,
porém com diferenças que já mostram o caminho que o instituto vai
seguindo. Como se acabou de ver, o credor fiduciário romano goza de direito
indiscutido e ilimitado sobre a coisa, a ponto de afastar de qualquer sequela
o bem, se este, em desacordo ao combinado, vier a ser transmitido a terceiro.
O terceiro adquirente estará a salvo de qualquer persecução patrimonial e a
questão terá que ser resolvida, em caráter pessoal, exclusivamente entre credor
fiduciário e devedor fiduciante. Partindo desta base, o direito germânico deu
um passo extremamente avantajado no sentido de caminhar para o negócio
fiduciário como hoje é conhecido. Desaparece, no direito germânico, o poder
absoluto do credor fiduciário, estabelecendo-se ao fiduciário titularidade
sobre o bem do devedor fiduciante, não porém com o poder absoluto da
fidúcia romana e sim, com uma limitação de natureza resolutória. Esta
natureza resolutória passa a ter eficácia “erga omnes” gravando o bem não
como direito de propriedade e sim, como limitação a tal poder, que atinge
tanto o direito do credor fiduciário quanto o do devedor fiduciante. Surge,
portanto o ônus que impede a ambos os contratantes o gozo ilimitado do
poder de propriedade, de tal forma que terceiro adquirente do bem sofrerá
as consequências desta limitação, com a perda do bem se a transação se fizer
em prejuízo de qualquer dos dois contratantes originais.
2.2.11 – Percebe-se a diferença de natureza fundamental entre a fidúcia
de origem romana e aquela de origem germânica, com passo de extremo
significado – como já acima anotado –, no caminho que sai dos primórdios
do negócio fiduciário e chega à situação jurídica dos dias de hoje. Messina67
observa que “l’affiduciatum del diritto longobardo era uma forma de pegno
mediante la quale il debitore trasmeteva il possesso dela cosa affinchè questi ne
godesse ed usasse fino all’estinzione de debito. La proprietà restava al pignorante,
il quale non la perdeva se com clausola special non era prevista nell’atto costitutivo
del pegno la devoluzione di essa al creditore in caso di non pagamento del debito
assicurato”, o que demonstra que, ao contrário do que ocorria no Direito
Romano, a propriedade permanecia com o devedor, e apenas seria transferida
ao credor se houvesse cláusula expressa em tal sentido e desde que o débito
não fosse honrado nos termos estipulados. Enfim, a diferença qualitativa
67
Messina, pp. 147/148.
54
entre a fidúcia romana e a germânica, para o aspecto que interessa para este
estudo, situa-se exatamente nesta mudança da natureza da transferência
do bem. Como ressalta Lima68: “Nota-se, assim, acentuada diferença entre o
fiduciário romano e o germânico. Aquele torna-se titular pleno da propriedade e
este, embora com direito real sobre ela, tinha, apenas, uma propriedade limitada”.
2.2.12 – Neste caminho vai se percebendo o distanciamento da
“confiança” (fidúcia) e o estabelecimento de garantias formais, registradas e
conhecidas de terceiros, limitativas do direito de propriedade de ambos os
contratantes, a ponto de desaparecimento da própria noção de confiança e do
estabelecimento de regras rígidas exatamente para que não fiquem as partes
dependentes da boa fé do outro contratante, com garantias estabelecidas
tanto para o fiduciário ante o fiduciante, quanto em sentido contrário, para
o fiduciante ante o fiduciário.
2.3 – Direito anglo-saxão
2.3.1 – No direito inglês antigo, surge o “mortgage” e, conforme
anota Franceschelli já anteriomente citado, o instituto guarda semelhanças
marcantes em suas estruturas, caracteres, finalidades e desenvolvimento com a
fiducia cum creditore do direito romano, embora tivessem ambos os institutos
desenvolvimento autônomo, distanciados tanto no tempo quanto no espaço,
possivelmente sem comunicação. Aliás, este é um aspecto que sempre chama
a atenção do estudioso do direito comparado, ao ver surgir, às vezes em países
distantes e sem comunicação, institutos que apresentam grande semelhança,
o que às vezes ocorre por criação autônoma dos diferentes sistemas jurídicos.
Também levantando tal tipo de questionamento, Messina69 pergunta-se:
“Il quesito anzi può estendersi, e tenendo conto della grande influenza che il
diritto germanico ha avuta sull’inglese, ci si può chiedere se quest’ultimo per
avventura non conosca figure modellate anche sulla fiducia germanica” para em
seguida anotar a dificuldade que se apresenta para a resposta: “Nella dottrina
c’è tanto rispondere affermativamente nell’un verso e nell’altro, ed il rapporto
pignoratizio racchiuso nel ‘mortgage’ immobiliare e l’esecuzione testamentaria
servono rispettivamente di base all’affermativa”.
68
69
Lima, p. 96.
Messina, p. 166.
55
2.3.2 – Sem embargo de toda esta discussão estabelecida sobre a base
histórica que teria dado origem ao “mortgage”, o que se constata é a grande
semelhança que guarda da fidúcia cum creditore do direito romano, sem
traços porém da fidúcia cum amico. E a semelhança se constata ao verificarse que tanto o instituto romano quanto o anglo-saxão configuram-se
como negócio jurídico no qual o fiduciante assume a posição de devedor,
enquanto o fiduciário a de credor, relativamente a uma obrigação que passa
a ser garantida pelo bem objeto do negócio fiduciário. Aproximando-se da
fidúcia atualmente conhecida, o devedor fiduciante transfere determinado
bem ao credor fiduciário, firmando-se desde logo a obrigação no sentido de
que, cumprida a obrigação do fiduciante, o bem ser-lhe-á devolvido pelo
fiduciário. Sousa Lima70 fala na “... identidade estrutural dos dois institutos. Em
ambos – romano e inglês – há a transferência da coisa, através de um elemento
real e a obrigação de restituir, assumida por um elemento obrigatório, quando
solvida a dívida”.
2.3.3 – É possível, nesta linha de pesquisa, identificar os termos
romanos e anglo-saxões correspondentes, respectivamente na fidúcia cum
creditore e no mortgage. O fiduciante romano era o feoffor inglês, enquanto
ao fiduciário correspondia o feoffe, ou seja, respectivamente, aquele que faz e
aquele que é destinatário do feoffment. Em época posterior, as denominações
passam a mortgagor para o fiduciante e mortgagee para o fiduciário. Não só
a terminologia encontra analogia quando se comparam os dois sistemas;
também a forma de transferência e devolução do bem objeto da fidúcia era
semelhante, aproximando-se a mancipatio do feoffment with livery of seisin,
bem com a in iure cessio do common recovery, respectivamente para as res
mancipi e as nec mancipi. A common recovery consistia em ação ajuizada
pelo feoffe à qual o feoffor não resistia, em decorrência da qual o bem era
transferido ao fiduciário, sem que constasse a razão da transferência ou
qualquer menção a preço do negócio, tal como ocorria na in iure cessio do
correspondente romano. O exame comparativo da mancipatio romana e do
feoffment with livery of seisin do direito anglo-saxão também leva ao mesmo
resultado, pois ambos eram institutos destinados à transferência do bem,
por intermédio de solenidade celebrada não em presença do magistrado
e sim, em presença de testemunhas e com a apresentação do bem ou, ao
70
Lima, p. 101.
56
menos, de algo que simbolizasse o bem que estava sendo objeto do negócio.
Ante tal situação histórica, Sousa Lima71 conclui que “... a forma inglesa
de transferência da propriedade apresentava notável semelhança com a forma
romana. Como consequência, em um, como em outro sistema, o fiduciário
adquiria, por força do ato de transferência, o direito de propriedade sobre os
bens transferidos. Assim, o direito de propriedade adquirido pelo fiduciário era,
no direito inglês, como no romano, absolutamente ilimitado e pleno, de modo
que, tanto pelo jus civile como pela common law, adquiria ele a qualidade de
dominus, podendo, consequentemente, exercer uma ‘signoria piú assoluta sulla
res’”, segundo Franceschelli.
2.3.4 – Sobre este ponto, manifesta-se Messina afirmando72 que “...
al ‘mortgage’ immobiliare classico dell’antico diritto inglese posteriore alla
conquista romana, se ne trova ripetutamente affermata la similitudine, per non
dire eguaglianza, alla fiducia romana ‘pignoris jure’. Non s’asserisce con ciò la
derivazione storica dell’istituto inglese dal romano, perchè vi s’oppone non soltanto
la soluzione di continuitá intercedente tral il nascere del primo e l’estinzione del
secondo, ma soprattutto il traspasso dell’instituto inglese attraverso quelle stesse fasi
che il romano há percorse”. Logo adiante Messina prossegue: “Noi dubitiamo
che l’accennata somiglianza esista. A parte, difatti, la erronea valutizione di taluni
caratteri della fiducia, posta a base del riavicinamento tra i due istituti, basta
notare che il diritto immobiliare (estate) attribuito dal ‘mortgage’ al creditore è
concepito come un diritto condizionato, per intendere che siamo fuori dei termini
della fiducia romana”. Com efeito, como já visto anteriormente, na fidúcia
romana a transferência do bem era feita de forma integral, de tal maneira que
o fiduciário, se quisesse, poderia descumprir o trato feito e alienar o bem a
terceiro, situação em que ao fiduciante apenas cabia a ação contra aquele com
quem contratara, vez que não lhe restava qualquer possibilidade de sequela do
bem, que havia sido transferido de forma plena e completa em decorrência da
entrega fiduciária anteriormente feita.
2.3.5 – De qualquer forma, esta discussão se estabelece a partir da fase
originária do mortgage, pois em uma fase posterior, já nos fins do Século
XIV, passa a intervir no negócio o Estado, representado pelo Chanceler que,
71
72
Lima, p. 103.
Messina, pp. 166/167.
57
como representante do poder real, e in equity, ou seja, pela imperatividade
da consciência, passa a conceder ao mortgagor a equity of redemption, para
impedir que este perca a coisa em favor do mortgagee por não cumprimento
da obrigação no dia fixado. Concedia-se assim um prazo para cumprimento
e com isto evitava-se a perda do bem de valor acentuadamente superior ao
débito existente. Com a reiteração desta concessão, a equity of redemption
passa a fazer parte integrante do próprio instituto do mortgage, mesmo
que não estivesse declarado em seu ato constitutivo. Desta forma, a
propriedade original no mortgage perde a característica de plena, tornandose condicionada, aproximando-se mais da fidúcia moderna – ou mesmo
da fidúcia germânica –, com a propriedade resolutiva, do que do instituto
romano da fiducia cum creditore. A propósito deste ponto, anota Sousa
Lima73: “Assim, sendo a transferência da propriedade feita resolutivamente no
direito inglês e completa, plena e ilimitada no direito romano, não há dúvida
de que os dois institutos, apesar das semelhanças apontadas, são inegavelmente
distintos e diferentes”. Anote-se finalmente que, no direito moderno, tanto
inglês, quanto americano, o mortgage está alinhado ao instituto da hipoteca,
configurando agora mero direito de garantia. Sousa Lima conclui seu
pensamento afirmando que 74 “em remate, cumpre salientar que o ‘mortgage’
do direito inglês afasta-se consideravelmente da fidúcia romana, apesar de
acentuadas semelhanças, e mais se aproxima da fidúcia germânica, sobretudo
pelo caráter resolutivo da propriedade transferida”.
2.3.6 – O trust do direito inglês, embora alguns estudiosos queiram ver
nele uma derivação do fideicomisso romano, na realidade, segundo a maioria
dos autores, é originário do use, relação jurídica a partir da qual o feoffee to use
era investido do direito de uso de um patrimônio que lhe era entregue pelo
feoffor cujos frutos deveriam ser entregues em benefício de uma outra pessoa,
o cestui que use. Pelo trust, o fiduciante, antes feoffor, agora settlor, transmite
os bens ao fiduciário, antes feoffee to use, agora trustee, para que este tenha
tais bens e os administre em benefício do cestui que use, posteriormente
cestui que trust, agora beneficiário.
2.3.7 – De qualquer forma, mesmo abstraindo-se a discussão da origem
73
74
Lima, pp. 106/7.
Lima, p. 108
58
exata do trust, seja ele derivação do fideicomisso romano, seja originário do use,
o que se verifica é que se trata de negócio que tem por fundamento a confiança,
a fidúcia, configurando instituto de tão vasta aplicação, que até se torna difícil
precisar-lhe o conceito, como anota Lima, citando Messina75. Falando sobre a
extensão da aplicação do instituto do trust na atualidade, diz Messina76: “Oggidì
esso pervade tutta la vite giuridica inglese, e chi volesse provarsi a tracciarne ancha
sommariamente le concrete applicazioni, dovebre tosto dichiarare che il trust ha
la stessa universalità e elasticità del contratto e che però – data la grande liberta
riconosciuta alle parti nel modellarlo – l´impresa é altrettanto vana quanto il voler
classificare i contratti riguardo al loro contenuto concreto”.
2.4 – Direito brasileiro
2.4.1 – Fixados os momentos históricos do aparecimento (e posterior
desaparecimento) da fidúcia no direito romano, bem como do seu surgimento
e manutenção tanto no direito germânico quanto no direito anglo-saxão,
necessário agora é o exame da recepção do instituto da fidúcia no nosso
sistema de direito. Sem embargo de o exame neste momento ter apenas o
intento de fixação histórica, já era possível notar fato que posteriormente
será objeto de exame especial, qual seja: a tendência de procura de formas
cada vez mais seguras para a garantia dos contratos. A fidúcia que, em um
primeiro distante momento, era ditada apenas pela mais absoluta confiança
do fiduciante no fiduciário, com a entrega do próprio filho à autoridade de
outro pater familiae na remancipancionis causa, com intuito de emancipação,
vai aos poucos se voltando para outro objetivo absolutamente diverso, até
desgarrar-se do próprio significado de seu nome: fidúcia, confiança. Ao
contrário, os institutos jurídicos ligados à fidúcia, cada vez mais se aperfeiçoam
no sentido de, guiados pela desconfiança de que a outra parte poderá não
cumprir o contratado, propiciar sistemas de garantia mais e mais eficientes
e satisfativos. As garantias tradicionais, especialmente as da hipoteca e do
penhor, não mais oferecem segurança de cumprimento, especialmente pelo
patamar de preferência que se outorgou a diversos outros tipos de crédito,
entre eles despontando em lugar privilegiado, o de natureza trabalhista e o
de natureza tributária. O espírito do estudo é, portanto, desde já tangido
75
76
Lima, p. 110
Messina, p. 183
59
por este aspecto que se poderia resumir como a tentativa de se examinar o
caminho que levou da confiança absoluta à desconfiança, que exige, cada
vez mais e mais, garantia de satisfação contra toda e qualquer eventualidade
de descumprimento. Diz Restiffe Neto77 que “o ressurgimento da fidúcia na
atualidade, incorporada ao direito positivo como espécie nova de garantia,
decorre da crise constatada na prática de utilização de outros tipos de direitos
reais de garantia clássicos. Sobretudo a hipoteca pela sua estrutura de direito
real de garantia constituído sobre bem alheio, expõe por isso (bem alheio),
a sua maior fragilidade, exacerbada pela crise de entupimento da Justiça”.
2.4.2 – Sousa Lima aponta exatamente para este aspecto, anotando a
redução da eficácia das garantias reais tradicionais, especificamente o penhor
e a hipoteca, dizendo78: “Estes mesmos inconvenientes que levaram à coexistência
das figuras no Direito romano, levam, ainda hoje, à procura de garantias mais
fortes e mais seguras, ditando, também, o renascimento da própria instituição
romana, revestida de novas vestes e adaptadas à sistemática jurídica moderna”.
Cariota-Ferrara79, referindo-se ao negócio fiduciário, fala em “un’eccedenze
del mezzo sullo scopo”, o que é decorrência da “contínua adaptação de velhos
institutos a novas funções” de que fala Ascarelli80. Em seu extraordinário
texto sobre o negócio indireto, Ascarelli traz uma passagem que demonstra
exatamente como um instituto como a fidúcia atravessa os séculos e vem a
ser resgatada para tentar resolver o problema atual da necessidade de eficácia
da garantia: “As novas necessidades são, então, satisfeitas, mas o são com velhos
institutos. Nessa adaptação, a nova exigência é satisfeita através de um velho
instituto que traz consigo as suas formas e a sua disciplina, e oferece à nova
matéria, ainda em ebulição, um velho arcabouço já conhecido e seguro. As
velhas formas e a velha disciplina não são abandonadas de chofre, mas só lenta
e gradualmente, de maneira que, muitas vezes, por longo tempo, a nova função
vive dentro da velha estrutura, e assim se plasma, enquadrando-se no sistema”.
A propósito, Messina inicia seu “Scritti Giuridici” sobre “Negozi Fiduciari”81
dizendo: “La dottrina dei negozi fiduciari non si propone di riesumare figure
svanite nella storia del passato giuridico, ma vorrebbe precisare la disciplina
77
78
79
80
81
Restiffe Neto, pp. 21/22.
Lima, p. 133.
Cariota-Ferrara, p. 40.
Ascarelli (Problemas), p. 154/155.
Messina, p. 1.
60
generale propria di una serie di complessi negozi della vita moderna, nei quali si
dice particolarmente operativa la fiducia”.
2.4.3 – Quando em 1500 o Brasil foi descoberto por Portugal, lá
vigoravam as Ordenações Afonsinas, de 1446; em 1521, são substituídas pelas
Manuelinas e, em 1603, pelas Filipinas. Estas últimas, no Título IV do Livro
IV, traziam regras sobre a chamada “venda a retro”, também conhecida com a
denominação de “venda fiduciária”, dizendo: “Licita cousa he, que o comprador
e vendedor ponham na compra e venda, que fizerem, qualquer cautela, pacto e
condição, em que ambos acordarem, com tanto que seja honesta, e conforme o
direito: e por tanto, se o comprador e vendedor na compra e venda se acordassem,
que houvesse pola cousa vendida, até tempo certo, ou quando quizesse, a venda
fosse desfeita, e a cousa vendida tornada ao vendedor, tal avença e condição, assi
acordada pelas partes, val; e o comprador, havendo a cousa comprada a seu poder,
ganhará e fará cumpridamente seus todos os frutos e novos, e rendas, que houver
da coisa comprada, até que lhe o dito preço seja restituído”. Examinando-se a
determinação transcrita, constata-se a previsão no sentido de que possam
as partes (comprador e vendedor) reservar ao vendedor a possibilidade de
devolver o preço pago e com isto possibilitar o desfazimento da compra,
voltando então à situação jurídica anterior ao momento da celebração do
negócio. Estabelece ainda o texto legal que enquanto o comprador mantiver
o bem consigo, terá direito a todos os frutos e rendas.
2.4.4 – No entanto, apesar de também ser conhecida sob a denominação
de “venda fiduciária”, a “venda a retro” não configurava um negócio fiduciário,
até porque as próprias “Ordenações” fixavam que tal tipo de estipulação
não poderia se prestar a garantia de dívida. A retrovenda, posteriormente,
permaneceu em nosso sistema, nos artigos 1140 do Código Civil de 191682,
embora já em desuso, como anota Washington de Barros Monteiro83. “A
estipulação acha-se presentemente quase em desuso, porque o vendedor, utilizandose dela para recobrar o imóvel, terá de reembolsar o comprador não só do preço
como de todos os gastos (despesas da escritura, sisa, emolumentos do registro), além
de perder, ele próprio, os dispêndios que realizou”. Não obstante, foi mantida
82
83
Art. 1140. O vendedor pode reservar-se o direito de recobrar, em certo prazo, o imóvel que vendeu, restituindo
o preço, mais as despesas feitas pelo comprador.
Monteiro, 5º volume, p. 100.
61
no artigo 505 do Código Civil de 200284. Como anota Cândido Rangel
Dinamarco85, antes do surgimento da alienação fiduciária sobre móveis, pela
Lei 4728/65, havia o uso de pacto de retrovenda para instituição de garantia
que tivesse por objeto um imóvel, preferindo o credor este tipo de negócio,
ante os riscos que decorriam da garantia hipotecária. De qualquer forma, tal
instituto não se prestaria atualmente a bem servir como garantia em negócios
empresariais em substituição à fidúcia, pelas formalidades, despesas e demora
que normalmente cercam os negócios de compra e venda imobiliária que,
neste caso, dependeriam de escritura pública tanto para a formalização da
venda quanto para a retrovenda.
2.4.5 – A figura do fiduciário, com esta denominação, vem prevista nos
artigos 1733 e seguintes do Código Civil de 1916, disposições de direito positivo
que trazem regras sobre a instituição do fideicomisso, por meio do qual fica
instituída em favor do fiduciário a propriedade da herança ou do legado, não
em sua plenitude e sim, como propriedade restrita e resolúvel86. Quando da
instituição do fideicomisso, assume o fiduciário a obrigação de, preenchida
determinada condição, transmitir ao fideicomissário a herança ou legado
recebidos87. Enquanto não ocorrer tal transmissão, com o que se completará
aquilo que foi pretendido pelo fideicomitente, ou, nas palavras de Monteiro88,
“até que se opere a substituição (quando dies fideicomissi venit), o fiduciário vem a
ser proprietário sob condição resolutiva, enquanto o fideicomissário o é sob condição
suspensiva”. Como se vê, há aqui uma transmissão de propriedade sob condição,
impondo-se ao fiduciário que proceda de determinada forma quando preenchida
aquela, o que em linhas gerais acaba configurando um tipo de propriedade
fiduciária, mais próxima da fidúcia cum amico, distanciada porém da fidúcia
cum creditore, vez que não há qualquer garantia de dívida. No entanto, ocorre
aqui a expressão já acima lembrada de Cariota-Ferrara que diz existir na fidúcia
“un’eccedenze del mezzo sullo scopo”. No caso, o que se pretende é simplesmente
uma forma de substituição para fins de transmissão de herança e, no entanto,
84
85
86
87
88
Art. 505. O vendedor de coisa imóvel pode reservar-se o direito de recobrá-la no prazo máximo de decadência
de três anos, restituindo o preço recebido e reembolsando as despesas do comprador, inclusive as que, durante o
período de resgate, se efetuaram com a sua autorização escrita, ou para a realização de benfeitorias necessárias.
Dinamarco. “Alienação Fiduciária de Bens Imóveis”, RDI. 51/237.
Art. 1734. O fiduciário tem a propriedade da herança ou legado, mas restrita e resolúvel.
Art. 1733. Pode também o testador instituir herdeiros ou legatários por meio de fideicomisso, impondo a um
deles, o gravado ou fiduciário, a obrigação de, por sua morte, ou sob certa condição, transmitir ao outro, que
se qualifica de fideicomissário, a herança, ou legado.
Monteiro, p. 231.
62
opera-se uma efetiva transferência de propriedade. No entanto, a lembrança tem
apenas valor histórico, pois o que se objetiva neste trabalho é o exame da fidúcia
no que diz respeito à garantia que propicia aos contratos. Observe-se finalmente
para complementação, que este instituto permanece com formas semelhantes
no Código Civil de 2002, sob o título de “substituição fideicomissária”, regrada
pelos artigos 1951 a 1960. O Código atual cuidou também especificamente
da propriedade resolúvel e da propriedade fiduciária, o que examinaremos mais
adiante, por uma questão de ordem de exposição.
2.4.6 – A fidúcia, como garantia dos negócios empresariais, foi resgatada
pelo direito positivo brasileiro a partir da promulgação da Lei 4728, de
14.7.65, que “disciplina o mercado de capitais e estabelece medidas para o seu
desenvolvimento” e que, em seu artigo 66, criou a alienação fiduciária de
coisa móvel, estabelecendo em favor da instituição financeira financiadora
(credor fiduciário) a possibilidade de buscar e apreender o bem objeto do
negócio, se houver descumprimento do pagamento por parte do adquirente
do bem (devedor fiduciante). Pouco mais de quatro anos depois, este artigo
66 foi alterado pelo Decreto-lei 911, de 1.10.69, estabelecendo a forma de
alienação fiduciária que funcionou mais ou menos nos mesmos moldes até
os dias atuais, com alteração agora estabelecida pelas Leis 9514, de 20.11.97
e 10931, de 2.8.04.
2.4.7 – A Lei 9514/97, que “dispõe sobre o sistema de financiamento
imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências”,
trouxe, como alteração fundamental, a possibilidade de ser o bem imóvel
instituído como garantia fiduciária e a criação de um sistema de “securitização”
do débito do adquirente de unidade imobiliária. A Lei 10.931, de 2.8.04, em
seus artigos 55 a 57, alterou a alienação fiduciária sobre bens móveis e imóveis.
Instituiu ainda (inciso II do artigo 2º) a afetação do terreno e das acessões
incorporadas, em seu artigo 53. Todos estes institutos são trazidos como
sistema de garantia aos contratos empresariais, atuando no mercado como
estímulo para o desenvolvimento e expansão dos negócios de financiamento
de bens móveis e como tentativa de incremento do mercado imobiliário.
2.4.8 – Neste ponto do trabalho, ficam fixados tais momentos
legislativos, que serão detalhados no capítulo “IV” adiante. Ressalte-se
apenas que os artigos 26 e 27 da Lei 9514/97, instituem uma forma de
execução extrajudicial em caso de inadimplemento por parte do adquirente
63
da unidade (devedor fiduciante), de acentuada rapidez. Conforme se tentará
demonstrar adiante, este sistema de execução extrajudicial cria sólida garantia
em favor do empresário da construção, tornando porém o devedor fiduciante
“refém”89 do credor fiduciário ou da empresa securitizadora.
2.4.9 – Quanto ao direito positivo, além das leis acima, outras também,
de forma direta ou indireta, passaram a tratar de aspectos relativos à garantia
fiduciária. A Lei 4864, de 29.11.65, introduziu a cessão fiduciária em
garantia; o Decreto-lei 167, de 14.2.1967, em conjunto com a Circular 75,
de 10.2.67, do Banco Central do Brasil, possibilitou alienação fiduciária em
garantia na cédula de crédito rural; o Decreto-lei 406, de 31.12.1968, bem
como a Lei Complementar 87, de 13.9.1966, trouxe regras sobre aplicação
de impostos em negócios de alienação fiduciária em garantia; o Decretolei 413, de 9.1.1969 possibilitou alienação fiduciária para financiamentos
ao consumidor e às indústrias; a Lei 5768, de 20.12.1971 estendeu esta
possibilidade de garantia para consórcios destinados à aquisição de bens.
2.4.10 – Finalmente, a Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, o “novo”
Código Civil, além de manter a “substituição fiduciária” na parte do direito
das sucessões como visto acima, passou a tratar da alienação fiduciária em
garantia, nos artigos 1361 a 1368, definindo (art. 1361) como fiduciária
“a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo
de garantia, transfere ao credor”. No capítulo imediatamente antecedente
(artigos 1359 e 1360), o Código trata da propriedade resolúvel, em termos
bastante assemelhados à forma como a matéria era tratada na codificação
anterior, nos artigos 647 e 648.
2.4.11 – Estes sistemas de garantia, valem-se fundamentalmente, além
da fidúcia, do patrimônio de afetação e da securitização; estes dois últimos
institutos serão rapidamente analisados mais adiante, em suas grandes
linhas teóricas.
89
A expressão é usada no sentido que lhe dá Rachel Sztajn (p. 13 de seu “Teoria Jurídica da Empresa”), de
absoluta subordinação de um contratante ao outro.
65
III – PATRIMÔNIO E NEGÓCIO FIDUCIÁRIO
3.1 – Patrimônio
3.1.1 – Teorias do patrimônio: clássica e moderna
3.1.1.1 – Relativamente ao patrimônio, o ponto de especial interesse
ante o tema ora objeto de estudo, é o que diz respeito ao tipo de garantia que
a partir dele se pode constituir para os negócios e contratos a serem realizados.
Em princípio, em afirmação que se pode ter como truísmo, o patrimônio
é a garantia comum de todos os credores, afirmativa que poderia, porém
ser contestada pela corrente que afirma que também as dívidas fazem parte
do patrimônio. A partir de uma visão econômica, certamente o patrimônio
garantidor dos credores não se compõe também das dívidas, que por ele,
patrimônio, são garantidas. É de Barreto Fº90 a observação: “Em muitos casos,
o direito acolhe a concepção econômica aplicando o princípio segundo o qual;
‘bona non intelleguntur nisi deducto aere alieno’. Esse princípio é fundamental,
pois, constituindo o patrimônio do devedor a garantia comum dos credores, o
titular do patrimônio não pode admitir como ativo de que possa livremente
dispor, senão aquela parte que exceda ao passivo”. Assim, sob esta visão, as
dívidas não poderiam ser consideradas como parte do patrimônio de uma
pessoa. No entanto, o próprio autor esclarece que no patrimônio incluemse os elementos ativos e passivos e que, a diferença que restar do ativo
depois de solvido o passivo constitui o patrimônio líquido. Bem próximo
de tal conceito, Pontes de Miranda91, com sua forma às vezes econômica de
expressão, assevera que “no Código Civil e no Código Comercial, patrimônio é o
ativo, que, se há passivo, é atingível por esse”, fixando na realidade a concepção
de patrimônio líquido.
3.1.1.2 – De qualquer forma, e independentemente das questões acima
postas, efetivamente o patrimônio de uma pessoa responde por suas dívidas.
90
91
Barreto Filho, p. 48.
Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, Tomo V, p. 372.
66
Relembra Von Tuhr92 o pensamento de Bekker para quem “el índice juridico
del carácter patrimonial resulta de la calidad para responder por las deudas del
titular; en efecto, por lo general, el problema nace cuando el derecho tiene que
considerarse como objeto de ejecución o como integrante de la masa concursal”.
Serpa Lopes lembra que, sem embargo do conteúdo originário de acentuada
carga ética da obrigação, ainda assim quando há o descumprimento, a questão
se objetiva e a busca de satisfação dirige-se para a apreensão do patrimônio
do devedor, vez que a violência sobre a esfera física do inadimplente deixou
de existir, ao menos conceitualmente, a partir da Lex Poetelia Papiria. Diz
então93: “Se o devedor não realizar a prestação pela forma e tempo devidos,
estando o credor aparelhado com título executório, pode, desde logo, promover
a execução da obrigação, pedindo a penhora dos bens pertencentes ao devedor,
tantos quantos bastem ao pagamento do débito. Disto resulta a necessidade de se
estudar a situação do patrimônio do devedor, a partir do momento em que nasce
a obrigação do devedor”.
3.1.1.3 – O Código Civil de 1916, em seu artigo 5794, referia-se ao
patrimônio – e à herança – como universalidades, sendo entendimento de
Clóvis Beviláqua o de que também as dívidas faziam parte de sua composição:
“Patrimônio é o complexo das relações jurídicas de uma pessoa que tiverem
valor econômico. Nele se compreendem os direitos privados economicamente
apreciáveis (elementos ativos) e as dívidas (elementos passivos). Para o Código
Civil, o patrimônio é uma universalidade de direito”95. Para Lafayette Pereira96
“patrimônio é o acervo de todos os nossos haveres: constitui uma universalidade
de direito, um todo composto de bens diversos reunidos sob a unidade da pessoa
a que pertence”. O Código Civil de 200297, em seu artigo 91, traz disposição
bastante semelhante, reconhecendo no patrimônio uma universalidade de
direito. Von Tuhr, criticado em diversos aspectos por Pontes de Miranda,
afirma inicialmente98 que “se denomina activo el conjunto de los derechos que
integran el patrimonio; se le opone el pasivo, vale decir, las obligaciones que
92
93
94
95
96
97
98
Von Tuhr, p. 388.
Lopes, vol. II, p. 497.
Art. 57. – O patrimônio e a herança constituem coisas universais, ou universalidades, e como tais subsistem,
embora não constem de objetos materiais.
Beviláqua, p. 290.
Pereira, p. 77.
Art. 91. Constitui universalidade de direito o complexo de relações jurídicas, de uma pessoa, dotadas de valor
econômico.
Von Tuhr, p. 395.
67
deben ser cumplidas con él, o que, al menos, en caso de incumplimiento, pueden
originar una obligación de carácter patrimonial”. Embora este autor afirme que
o passivo não integra o patrimônio de uma pessoa, logo adiante completa seu
pensamento para, falando sobre patrimônio líquido, dizer que “el importe
neto del patrimonio resulta de la diferencia entre el activo y pasivo, computado
en dinero; constituye una magnitud continuamente cambiante, denominándose
balance su comprobación en un momento dado”. Os doutrinadores modernos
não discrepam de tal entendimento, afirmando Erasmo Valladão que99 “o
patrimônio, que é uma universalidade de direito, abrange todas as relações
jurídicas ativas e passivas”. Tal forma de exame encontra respaldo ainda na
precisa diferenciação feita por Barreto Fº100, segundo a qual universitas juris
abrange um conjunto de direitos compostos tanto por relações ativas quanto
por relações passivas, enquanto a universitas facti é conceito que se refere ao
conjunto de objetos de direito.
3.1.1.4 – Inúmeras teorias foram formuladas para a tentativa de
conceituação do patrimônio. Barreto Fº lembra que para a conceituação do
patrimônio, a ideia que predomina é a que se prende à responsabilidade,
anotando que embora não haja determinação específica na lei positiva, ainda
assim esta ideia está pacificada na doutrina101.
3.1.1.5 – Não há efetivamente pacificação acerca do conceito de
patrimônio, diversas teorias tendo sido formadas a respeito. Sem embargo
das especificidades de cada uma, podem ser classificadas em dois grandes
grupos: de um lado, a teoria clássica, subjetiva e personalista, cujos
principais representantes são Aubry e Rau; de outro, a teoria moderna,
objetiva, de Duguit, Brinz e Bekker. Para a teoria clássica, o patrimônio é
o conjunto de bens da pessoa configurando uma universalidade de direito,
ligada à ideia de personalidade, bens todos sujeitos à disposição de uma
só vontade, expressando assim o poder no qual a pessoa se acha investida
em relação ao conjunto dos bens. Desta forma, o conceito de patrimônio
está indissoluvelmente ligado à existência de um titular, pessoa jurídica ou
física que, como pessoa só pode ter um patrimônio, uno e indivisível como
a própria personalidade, susceptível, porém de divisão em quotas ou partes
França, p. 20.
Barreto Filho, p. 45.
101
Barreto Filho, p. 51.
99
100
68
ideais. Esta teoria, também conhecida como “teoria da personificação”, levaria
a se afirmar a existência de “capacidade de direito, autônoma, do patrimônio”,
ideia que é calorosamente afastada por Pontes de Miranda, que faz outro
magnífico raciocínio para fundamentar sua crítica à teoria clássica. Diz que,
se se aceitasse a ideia de personificação do patrimônio, precisariam ser aceitas
também102 “a transmissão do patrimônio especial para outro, a do comum
para o especial, a do geral para o especial e vice-versa”. No entanto, como se
observa das coisas do dia a dia, mesmo com a alteração, por exemplo, de
patrimônio comum para especial, nem por isto há alteração na titularidade
de eventual ação judicial, o que afasta a possibilidade de se aceitar a ideia de
personalização do patrimônio.
3.1.1.6 – De forma precisa, Marcelo von Adameck anota, em trabalho
de conclusão do 1º semestre de 2004, Mestrado na Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo103: “Adota-se a nomenclatura ‘teoria moderna’
exclusivamente por ser corrente em doutrina. Trata-se, porém, de uma concepção
centenária. A. Brinz, um dos representantes desta corrente de pensamento e
responsável pela formulação da ‘Theorie des subjektlosen Zweckvermögens’ nasceu
em 1820 e faleceu em 1887, e a sua obra é de 1860 (Lehrbuch der Pandekten,
II, Erlangem, 1860). E. I. Bekker, outro expoente desta teoria, escreveu dois
famosos ensaios sobre o tema em 1861 e em 1872. Trata-se, pois de uma decana
teoria moderna”. Esta chamada teoria moderna, afastando o subjetivismo
clássico, entende que o vínculo que dá ao patrimônio sua característica de
universalidade, diz respeito não à pessoa e sim, à finalidade, de tal forma
que patrimônio é o conjunto de relações jurídicas afetas a um fim específico.
Barreto Filho fala na coesão dos elementos integrantes do patrimônio, a partir
da destinação comum a ele emprestada, dizendo104: “A teoria moderna adota
uma concepção objetiva do patrimônio, procurando justificar a coesão dos elementos
que o integram pela sua destinação comum. Patrimônio é, portanto, o conjunto
de bens coesos porque afetados a um fim econômico determinado. Rompem-se,
destarte, os princípios da unicidade e da indivisibilidade do patrimônio. Admitese, em consequência, a possibilidade de coexistência de um patrimônio geral e
patrimônios especiais”. À teoria moderna filia-se o direito brasileiro, que afasta
Pontes de Miranda, p. 392.
Von Adamek, trabalho inédito.
104
Barreto Filho, p. 50.
102
103
69
o conceito criado a partir do titular para voltar-se para a finalidade à qual o
patrimônio é destinado, como anota Pontes de Miranda, falando sobre as
esferas jurídicas diferentes, debaixo das quais analisa-se a administração do
patrimônio105: “O direito contemporâneo, principalmente o brasileiro, permite
que cada pessoa tenha duas ou mais esferas jurídicas diferentes, de jeito que,
a despeito da unicidade de titular, ressalta a pluralidade de patrimônios. Se a
administração de todos pertence ao titular, ou a outrem, a pessoa tem de atuar
como se fossem duas ou mais pessoas o administrador”.
3.1.2 – Patrimônio geral e especial (patrimônio separado ou de afetação)
3.1.2.1 – O patrimônio responde pelas obrigações de seu titular,
configurando o que a doutrina chama de “massa de responsabilidade”, ante
o princípio aceito universalmente no direito de que o devedor responde
com todos os seus bens, presentes e futuros, pelo cumprimento de suas
obrigações. No entanto, sem embargo de se tratar de uma universalidade de
direito, não se pode afirmar que se trata de noção ligada à pessoa do titular,
sendo admissível a ideia de caracterização patrimonial pela identidade de
fim, podendo uma mesma pessoa ter mais de um patrimônio, existindo,
em consequência, patrimônios especiais ou separados, porque ligados a
determinados fins, podendo tomar-se, como exemplo, no direito comercial,
o patrimônio da massa falida, embora não seja este o patrimônio objeto
da análise ora feita. Messineo distingue patrimônio separado e patrimônio
autônomo, lembrando como exemplo deste último o patrimônio para a
formação de pessoa jurídica; já o patrimônio separado, embora reconhecido
pela lei depende do impulso do interessado para sua constituição. Ao precisar
a distinção entre um e outro tipo. Messineo106 diz que a expressão patrimônio
autônomo significa coisa diferente do patrimônio separado. O autônomo
ocorre “quando si voglia indicare, non giá il distacco di un determinato núcleo
di beni, che continua ad appartenere al medesimo titolare, ma il fatto che, com
elementi tratti da un altro, o – più spesso – da più altri patrimoni, si formi un
patrimonio a sè stante e nuovo, con un proprio soggeto colletivo o, quanto meno,
con proprie finalità”, como se dá, por exemplo, “... nela formazione della
persona giuridica” , situação na qual “... incidòno autonomi diritti e obblighi”.
105
106
Pontes de Miranda, op. cit., p. 392.
Messineo, p. 386.
70
Pontes de Miranda observa que o patrimônio sempre terá como característica
distintiva a titularidade única, seja por um titular ou por vários titulares em
comum, porém sempre em unicidade. Adverte, porém que “isso não quer
dizer que a cada pessoa só corresponda um patrimônio; há o patrimônio geral
e os patrimônios separados ou especiais”107. Biondi diz, de forma taxativa108:
“un soggeto, un patrimonio”. Bevillaqua109 anota que a doutrina brasileira
corrente adota a solução segundo a qual a um patrimônio, corresponde um
único titular, excepcionando-se apenas os casos de “benefício de inventário,
da separação dos bens concedidos aos credores do falecido e da sucessão dos bens do
ausente”, situações, porém provisórias, sem qualquer definitividade possível.
Carvalho Santos110 afirma que não se pode conceber um patrimônio sem
um sujeito para o qual convergem as relações jurídicas patrimoniais; sem
embargo, como o sujeito não é elemento do patrimônio e sim centro de
convergência, torna-se possível cindir o patrimônio, cisão não possível do
sujeito. Von Tuhr111, na mesma linha de abordagem afirma que “el patrimonio
resulta de un conjunto de derechos que reciben unidad por corresponder a un
mismo sujeto; de esta unidad se deriva que los hechos juridicos y las relaciones
que atañem al titular producen sus efectos sobre todos los derechos que en cada
momento integran el patrimonio”.
3.1.2.2 – Von Tuhr está se referindo ao conceito de patrimônio geral,
no sentido já acima lembrado de que o patrimônio do devedor, em princípio
como um todo, é a garantia do cumprimento de suas obrigações. Esta
seria a esfera mais ampla dentro da qual estaria situado o patrimônio de
um determinado titular, na qual se pode vislumbrar o patrimônio como
uma unidade, composta por bens que estão sob o poder de disponibilidade
do titular. Embora o patrimônio seja a garantia do cumprimento das
obrigações, não deixa de constituir patrimônio do titular aqueles bens que
são despidos desta característica de garantia, como ocorre por exemplo,
em nossa legislação, com os bens impenhoráveis listados no artigo 649 do
Código de Processo Civil, ou o bem de família, previsto na Lei 8009, de
29.3.90; nem por isto também perde o patrimônio sua característica de
Pontes de Miranda, op. cit., p. 368.
Biondi, p. 106
109
Bevilaqua, “Teoria Geral...”, p. 175.
110
Santos, p. 61.
111
Von Tuhr, p. 406.
107
108
71
unidade ligada ao titular, visto que “todo patrimônio é unido pelo titular
único, ou por titulares em comum, mas únicos”112. Na expressão de Von Tuhr,
“la unidad no se anula por el hecho de que ciertos objetos se encuentren en
situaciones jurídicas especiales (p.ej.: si son inenajenables ou inembargables)”.
Este conceito guarda relação com a fixação do patrimônio geral, examinado
o patrimônio como a universalidade de direito com “calidad para responder
por las deudas del titular”, extraído da expressão de Bekker acima anotada.
Diz Biondi que113 “in linea di massima il patrimonio legalmente è uno solo ed
in confronto dei creditori, ... per cui il debitore risponde com tutti i beni presenti
e futuri”, acrescendo porém que remonta ao direito romano o conceito de
patrimônio separado, contemplando a lei “la possibilita di complessi separati”.
3.1.2.3 – Este sistema de representação do patrimônio a partir de
“esferas jurídicas”, umas inserindo-se no interior de outras, sempre lembrado
por Pontes de Miranda, Von Tuhr e outros autores, presta-se efetivamente
a perfeito simbolismo que facilita a análise. No interior da esfera maior
que representa o patrimônio geral, outra menor se insere e que diz respeito
ao patrimônio especial, composto por bens que não configurariam mais a
garantia das obrigações do devedor de forma geral e que estariam ligados
ao cumprimento de determinadas obrigações, consubstanciando o que
a doutrina denomina de patrimônio especial. A unidade do patrimônio
lembrada mais acima, perde-se, segundo Von Tuhr114 , em tais situações: “En
cambio, la unidad se pierde cuando un conjunto de derechos, cuyos elementos
posiblemente son mutables, está regido por normas especiales. En el ambito del
patrimonio existe, entonces, una esfera jurídica más restringida, delimitada por
criterios determinados y susceptible de desarrollo económico propio de la misma
manera que aquél. Háblase en este caso de patrimonio especial o de bien especial”.
3.1.2.4 – O patrimônio compreendido pela esfera maior, abrangendo
o conceito de patrimônio geral, serve aos fins aos quais pretenda destinálo o titular; sobre os bens que o compõem, tem o titular plena e irrestrita
disposição, de tal forma que dá a eles o fim por ele pessoalmente pretendido,
sendo exemplo típico de tal disponibilidade a constituição de garantias reais,
tal como a hipoteca sobre determinado imóvel para garantia de determinada
Pontes de Miranda, p. 368.
Biondi, p. 106.
114
Von Tuhr, p. 406.
112
113
72
dívida. Neste sentido é que Von Tuhr115 assevera que “El patrimonio normal
sirve a fines generales que, en principio, su titular fija libremente, o a los que su
representante legal debe perseguir de acuerdo con los deberes que le incumben”.
Em contraposição, o titular não tem a disponibilidade acima anotada, para os
bens que constituem patrimônio especial e que se destinam a uma finalidade
especial, por força de lei, fazendo Von Tuhr a diferenciação, ao dizer logo em
seguida: “En cambio, es específico el fin al cual se destina el patrimonio especial.
... El fin que acabamos de mencionar explica cómo integram el patrimonio
especial derechos que no podían corresponder al titular del patrimonio general,
del que fué separado”; nesta última parte está se referindo ao instituto do
Código Civil alemão que diz respeito à reserva da mulher ou ao patrimônio
livre do filho menor sob administração do marido, cujos bens componentes
devem servir às necessidades daqueles e não do marido administrador e
também titular do patrimônio. Barreto Filho filia-se ao pensamento de Von
Tuhr e para a conceituação do patrimônio especial ressalta três características
marcantes116: “1º, a situação peculiar do patrimônio especial decorre dos fins
próprios e específicos que lhe são prefixados, ao contrário do que sucede com o
patrimônio normal, o qual serve a fins gerais que, em princípio, são fixados
livremente pelo titular ou seu representante legal; 2º, às vezes, a administração do
patrimônio separado é conferida a pessoa diversa do seu titular, ou daquela que
detém a administração do patrimônio geral, embora em outros casos seja atribuída
ao mesmo titular a administração de ambos patrimônios, cabendo-lhe manter a
separação entre as duas massas patrimoniais; 3º, os limites entre o patrimônio
especial e o principal são marcados pela lei, de sorte que, naquele, ingressam
todos os direitos que a lei consigna, integrando-se neste todos os demais”. Pontes
de Miranda117 afirma que o patrimônio especial é destinado a uma finalidade
própria diferente daquela do patrimônio geral e que “esse fim é que lhe traça
a esfera própria, lhe cria a pele conceptual, capaz de armá-lo ainda quando
nenhum elemento haja nele”. Como anota Mauro Rodrigues Penteado, ao
lado do patrimônio geral coexistem os patrimônios separados ou especiais,
que por isto mesmo estão “voltados a um determinado fim, concentrando as
relações jurídicas ativas e passivas necessárias à sua consecução”.
Von Tuhr, p. 408.
Barreto Filho, p. 54.
117
Pontes de Miranda, p. 379.
115
116
73
3.1.2.5 – Barreto Filho118 cita como exemplos de patrimônio especial
o dote (hoje não mais existente na codificação civil)119, a comunhão
matrimonial de bens, o patrimônio do ausente e a herança jacente, todas
configurando massas de bens submetidas a um regramento jurídico particular
e tratados pela lei como massas distintas do patrimônio geral, pelo fim a que
se destinam. Indica como exemplo mais marcante de patrimônio especial no
campo mercantil ou empresarial, a massa falida, destacada do patrimônio
do devedor e destinada ao fim de liquidação para satisfação dos credores.
Pontes de Miranda120 lembra o dote também como exemplo, listando ainda
a quota na herança, os bens particulares dos cônjuges, o fideicomisso, a
massa concursal, o patrimônio das sociedades não-personificadas, a herança
indivisa, os bens da comunhão conjugal, entre outros.
3.1.2.6 – Os termos “patrimônio especial”, “patrimônio separado” ou
“patrimônio de afetação” têm sido usados indiferentemente pelos autores,
para significar o mesmo fenômeno jurídico consistente na especialização de
determinada quantidade de bens que se caracterizam pelo fato de estarem
destinados a uma finalidade própria, diferente da finalidade do patrimônio
geral que é a de servir de garantia ao cumprimento das obrigações assumidas
pelo titular do patrimônio. Orlando Gomes, mostrando o uso comum destas
expressões diferentes, salienta que o patrimônio pode ser “geral ou especial”
e que121 “a ideia de afetação explica a possibilidade de patrimônios especiais”.
Sem adentrar aqui a discussão sobre a oportunidade de valer-se de nomes
diversos para identificar o mesmo fenômeno e sem tentar precisar eventuais
diferenças teóricas, ainda assim faz-se necessário tentar extrair a diferenciação
que se pretende estabelecer para o termo “afetação”, o que será necessário
para o exame futuro da “afetação” como forma de garantia de obrigações.
A rigor, todo patrimônio especial é patrimônio separado, no sentido de
que está separado do patrimônio geral; este patrimônio separado sempre se
configurará também como patrimônio de afetação, na exata medida em que
estará sempre afetado a um determinado fim. Desta forma, a massa falida é
um bem afetado ao pagamento dos credores habilitados, da mesma forma
Barreto Filho, p. 53.
O fato de Barreto Filho referir-se a institutos do Código Civil de 1916 não invalida o exemplo, que é trazido
apenas para demonstrar o tipo de incidência de regras jurídicas diversas daquelas que incidem sobre o
patrimônio geral.
120
Pontes de Miranda, p. 377.
121
Gomes, “Introdução...”, p. 203.
118
119
74
que o bem de família da Lei 8009/90 está afetado à satisfação do direito de
moradia que a lei quer garantir a qualquer pessoa.
3.1.2.7 – Pontes de Miranda122 diz que nada impede que, no interior
do círculo correspondente a um patrimônio especial passe a existir outro
patrimônio especial. Da mesma forma, no interior do patrimônio geral pode
haver vários patrimônios especiais, podendo o patrimônio especial abranger
bens em quantidade maior do que aquilo que resta para a composição do
patrimônio geral não especializado. Logo adiante ressalta que “os patrimônios
especiais têm os seus fins, ou fixados pela manifestação de vontade, ou pela lei
(fins do usufruto pelo marido, ou pelo titular do pátrio poder; fim da liquidação
concursal)”. Para o estudo no qual se prosseguirá adiante, importante é desde
logo deixar fixado que o patrimônio especial ou separado, sempre estará
necessariamente afetado a um determinado fim e que – este é o ponto a ser
ressaltado –, a afetação pode se dar tanto por força da lei, quanto por escolha
do próprio titular do patrimônio desde que permitida por lei. A fixação
está sendo feita, para que se possa adiante examinar o patrimônio especial
aproveitado como garantia dos negócios empresariais, com a afetação de
determinada parte do patrimônio ao cumprimento daquele determinado
negócio. Diz Pontes de Miranda123 que o fim é que “liga” o patrimônio, ou
seja, fim ao qual está afeto aquele patrimônio, fim a cuja satisfação destina-se
o patrimônio afetado. Sylvio Marcondes Machado, após fazer um erudito
e detalhado levantamento sobre as conceituações de patrimônio, arremata
que a evolução do pensamento, da doutrina clássica para a moderna, afirma
a possibilidade de patrimônios distintos sob a mesma titularidade, dizendo
que124 “cada porção, assim afetada, formará uma universalidade, um patrimônio
separado, tendo ativo e passivo distintos”.
3.2 – Negócio indireto e negócio fiduciário
3.2.1 – Negócio Indireto e Direto
3.2.1.1 – Tullio Ascarelli125, sobre este ponto, produziu escrito que
permanece cravado como marco do pensamento jurídico, no que diz respeito
Pontes de Miranda, p. 378.
Pontes de Miranda, p. 369.
124
Machado, p. 238.
125
Ascarelli, “Problemas...”, p. 152/253.
122
123
75
a negócio indireto. Com sua proverbial clareza, Ascarelli fala sobre a inércia
jurídica, resultado do misoneismo peculiar ao campo jurídico, um certo tipo
de reação adversa a mudanças, de um lado; de outro, a busca de segurança
e certeza nas soluções que urge encontrar a cada momento para novos
problemas da vida prática. Conjugados estes fatores, resulta que “as novas
necessidades são, então, satisfeitas, mas o são com velhos institutos”. Observa
Ascarelli, em linguagem quase poética, a presença de velhos institutos
nas novas soluções, senectude cujos traços apenas muito lentamente vão
desaparecendo, até que o novo instituto se afirme e possa caminhar por
sua própria conta. Embora parte já esteja citada (1.2.2.), ainda assim é
aconselhável a transcrição mais completa do texto de Ascarelli, por sua beleza
126
: “As velhas formas e a velha disciplina não são abandonadas de chofre, mas
só lenta e gradualmente, de maneira que, muitas vezes, por longo tempo, a nova
função vive dentro da velha estrutura, e assim se plasma, enquadrando-se no
sistema. Pode isto contrariar a simetria e a estética do sistema, mas oferece, às
vezes, a vantagem da conciliação, de progresso e conservação, da satisfação de
novas exigências, respeitadas a continuidade do desenvolvimento jurídico e a
certeza de disciplina decorrente da utilização de institutos já conhecidos, que já
foram objeto de elaboração por parte da doutrina e da jurisprudência, sujeitos
à prova da experiência e, por esta, moldados”. Em tal situação, especialmente
na atividade negocial rica em situações novas que constantemente exigem
também soluções originais, é comum que os interessados lancem mão do
negócio indireto, que se corporifica “sempre que as partes recorrem, no caso
concreto, a um negócio determinado visando a alcançar através dele, consciente
e consensualmente, finalidades diversas das que, em princípio, lhe são típicas”127.
Ocorrem situações nas quais as partes se veem impedidas de criar tipos
especiais de negócios, pelas mais variadas espécies de óbice de natureza
jurídica e, em tal situação, tentam se valer dos negócios jurídicos existentes
para atingir o fim desejado. Postos os contratantes frente a tal contingência,
especialmente no criativo meio dos negócios empresariais, “o processo a que
deitam mão é o de usar conjuntamente várias formas jurídicas, muitas vezes
contraditórias, combinadas e entrelaçadas de maneira tal que por intermédio
delas se possa chegar a resultados novos”, como diz Ferrara128. Galgano129 diz
Ascarelli, “Problemas...”, p. 155/6.
Ascarelli, “Problemas...”, p. 156.
128
Ferrara, p. 77.
129
Galgano, “Il Negozio Giuridico”, p. 429.
126
127
76
que “si parla di contratto indiretto quando un determinato contratto viene
utilizzato dalle parti per realizzare non la funzione che corrisponde alla sua
causa, ma: a) la funzione corrispondente alla causa di um diverso contratto,
oppure b) uno scopo non realizzabile mediante alcun contratto”.
3.2.1.2 – Ascarelli extrai do direito romano antigo, exemplos de tal
tipo de procedimento, mencionando a mancipatio, que juntamente com a
coemptio, prestava-se à instituição da tutela fiduciária da mulher. Este mesmo
instituto da mancipatio, bem como o instituto da in iure cessio, prestavam-se
também para o negócio indireto que deu origem à criação da fidúcia cum
creditore como instituto garantidor de dívida, constituindo diretamente um
negócio de transferência da propriedade e, indiretamente, uma forma de
garantia; a mancipatio para “res mancipi” e a “in iure cessio” para a “mancipi”
e as “nec mancipi”, como já anteriormente examinado130. Cariota-Ferrara131
anota que “... è voluto un negozio solo, il trasferimento (mentre non è voluta la
costituzione del diritto di pegno), con la sola particolarità che esso è voluto a scopo
di garanzia, il quale si riflette nel rapporto obligatorio, che è ugualmente voluto”,
citando a seguir Ascarelli, ao anotar que neste mesmo sentido “acutamente
nota al riguardo l’Ascarelli pei negozi indiretti in genere...”. A pesquisa histórica
aponta também situação semelhante que exigiu a celebração de negócio
indireto, no use e no trust, originalmente no direito anglo-saxão, passando
posteriormente ao uso corrente do direito norte-americano. Ascarelli aponta
também diversos exemplos extraídos do antigo direito germânico e do direito
medieval italiano.
3.2.1.3 – Para conceituar o negócio indireto, Ascarelli propõe a questão
sobre tratar-se de um único, ou da combinação de diversos, respondendo logo
a seguir que quando se trata da conhecida transmissão de propriedade com
fins de garantia – ou seja, garantia fiduciária –, poder-se-ia pensar na existência
de dois negócios. A importância da resposta a tal indagação exsurge evidente
“à vista da diversa disciplina dos dois negócios assim distinguidos”. Afirma a
seguir ser necessário pesquisar-se a existência de “unicidade da fonte”, não
sendo, porém a resposta positiva suficiente para que se afirme a existência de
negócio único, pois embora com manifestação única de vontade, as partes
130
131
Item 2.1.1.10, retro, p. 31 deste.
Cariota-Ferrara, p. 50.
77
podem celebrar mais de um negócio; é porém necessário prosseguir para
perquirir o elemento volitivo das partes, pois “quando as intenções econômicas
das partes estão ligadas entre si, há um negócio único”. Finalmente, se se
concluir que houve negócio único, ainda é necessário indagar se o contrato
é “nominado”, correspondendo a um tipo especificamente disciplinado
na legislação ou se é “inominado ou misto”, para que se aplique a teoria
do contrato respectivo. Ascarelli conclui seu pensamento dizendo que no
negócio indireto, é possível encontrar tanto negócio único quanto pluralidade
deles; no sentido rigoroso da expressão, apenas no negócio único se poderia
falar de negócio indireto. No entanto, em qualquer situação, “a causa do
negócio indireto é sempre individuada ‘per relacionem’ à do negócio direto; a
concorrência de outras intenções empíricas não é bastante para romper o nexo
do negócio indireto com o negócio direto e aproximá-lo de um contrato misto”.
Esta perquirição é fundamental, pois em princípio, a sujeição do negócio
indireto ao direto e à disciplina jurídica deste último, decorre exatamente
de “desejarem conscientemente as partes afastar-se o menos possível do terreno
conhecido dos negócios nominados, aproveitando, portanto, a disciplina jurídica
desses negócios”. Isto é exatamente o que ocorre no negócio fiduciário, talvez
o que mais se vale do negócio indireto, tanto que Ascarelli, ao estudar a
aplicação do negócio indireto no direito moderno diz que132 “é para alguns
desses fenômenos do moderno direito mercantil que, prescindindo da hipótese
agora assaz conhecida e discutida dos negócios fiduciários, eu me permito chamar
a atenção”. O pensamento de Ascarelli é citado por Cariota-Ferrara133: “Il
Goltz, il Ferrara e lo Schony, per quanto non si propongano espressamente la
quistione, la risolvono nel secondo senso, afermando que nel negozio fiduciario
sono contenuti due contratti, l’uno reale positivo, l’altro obbligatorio negativo.
... L’Ascarelli esamina questo problema, in genere, pei negozi indiretti, non
mancando, però, di soffermarsi anche espressamente sui negozi fiduciari, per
i quali ultimi lo risolve nel senso dell’unicitá del negozio”. Especificamente
com relação ao negócio fiduciário, cujo exame direto será retomado logo a
seguir, Galgano134 observa que não se pode afirmar a existência de contrato
único, anotando que “si è più volte tentato, in passato, di costruire il contratto
fiduciario come un unitario contratto, avente una propria causa, la ‘causa
Ascarelli, “Problemas...”, p. 155.
Cariota-Ferrara, p. 28.
134
Galgano, p. 427.
132
133
78
fiduciae’; ma è tentativo de tempo abbandonato. La costruzione oggi accreditata
è quela secondo la quale il contratto traslativo ed il patto fiduciario constituicono
contratti separati, anche se tra loro collegati; e la nozione di ‘causa fiduciae’ altro
non esprime se non il collegamento fra i due contratti”.
3.2.1.4 – Evidentemente, para uma tentativa de delimitação teórica mais
rigorosa do contrato fiduciário, é necessário o exame do negócio indireto, que
lança luzes sobre as demais questões a serem apreciadas. Sem embargo, Sousa
Lima135 não entende relevante tal tipo de preocupação, dizendo que “esta
questão, entretanto, é de pequena importância, porque ela não exerce influência
alguma na conceituação do negócio fiduciário. Incluindo-se ou não na categoria
dos negócios indiretos a verdade é que o negócio continua com a sua característica
própria”, não havendo qualquer alteração em seus elementos estruturais.
3.2.2 – Negócio Fiduciário e Simulação
3.2.2.1 – Examinando o negócio indireto, de forma geral, ante o
negócio simulado, Ascarelli136 afirma “reconhecer que o negócio indireto, não
é negócio simulado e não está, por conseguinte, sujeito ao regime da simulação”
embora ressalte que “é para a simulação que instintivamente se dirige o
pensamento em todas as hipóteses supracitadas, e que parece, haja, em substância,
negócios com causa simulada. A causa do negócio seria simulada e a verdadeira
causa constituída pela finalidade ulterior que as partes se propõem realizar.
O negócio, portanto, seria simulado e sujeito ao regime da simulação”. Na
simulação, as partes manifestam uma vontade que está em desacordo com
o efetivamente desejado. Segundo Monteiro137, a simulação “caracteriza-se
pelo intencional desacordo entre a vontade interna e a declarada, no sentido de
criar, aparentemente, um ato jurídico que, de fato, não existe, ou então oculta,
sob determinada aparência, o ato realmente querido”. Clóvis Beviláqua138
diz que “simulação é uma declaração enganosa da vontade, visando produzir
efeito diverso do ostensivamente indicado”. A doutrina em geral ensina que
normalmente o ato simulado decorre de declaração bilateral de vontade,
podendo, no entanto, decorrer também de ato unilateral segundo alguns
outros doutrinadores. Na bilateralidade, concertam-se as partes sobre os atos
Lima, p. 208.
Ascarelli, “Problemas...”, p. 178/9.
137
Monteiro, 1º volume, p. 207.
138
Beviláqua, 1º volume, p. 353.
135
136
79
a serem praticados ou as declarações a serem feitas, de tal forma que o ato
ou a declaração não corresponde ao que efetivamente pretendem as pessoas
neles envolvidas; geralmente a simulação destina-se a iludir terceiros.
3.2.2.2 – Ante o objeto do estudo, cumpre agora examinar especificamente
o negócio fiduciário, para que se tente delimitar as semelhanças e diferenças
entre o negócio fiduciário e o negócio simulado, considerando-se a existência
de autores que, embora defendendo corrente já agora afastada, afirmam ser o
negócio fiduciário um negócio simulado. Sousa Lima139 anota que “a confusão
do negócio fiduciário com o negócio simulado tem constituído um dos maiores
entraves ao perfeito conhecimento de nosso instituto, causando incertezas várias
sobre ele”. Esta confusão, embora já tenha sido sanada, encontra justificativa
racional, pois o negócio efetivamente realizado na operação fiduciária
transfere a propriedade do bem, quando na realidade as partes não têm
qualquer intuito de efetuar qualquer compra e venda, pretendendo apenas
instituir um tipo de garantia ao outro negócio que está sendo celebrado.
Levando-se em conta que a simulação pode ser definida como declaração
enganosa, por meio da qual se pretende produzir um efeito diverso daquele
que está sendo declarado, considerando-se ainda que no negócio fiduciário
as partes declaram que estão transferindo a propriedade de determinado
bem, transferência porém não querida pelas partes, que apenas pretendem
instituir uma garantia para o negócio que está sendo celebrado, justificase a confusão que Sousa Lima aponta como um dos maiores entraves ao
perfeito conhecimento do instituto da fidúcia, citando, como exemplo, o
posicionamento adotado por Antonio Butera e Filippo Pestalozza, entre os
mais representativos dos defensores de tal corrente de pensamento. Como
relembra o autor, para tal confusão terá eventualmente contribuído a própria
origem do negócio fiduciário que, como já examinado anteriormente, em
seus primórdios romanos era formalizado por intermédio da mancipatio que
Gaio chamava de imaginaria venditio ou alternativamente pela in iure cessio,
reivindicação ficta.
3.2.2.3 – A doutrina é sólida no sentido de afastar do negócio fiduciário
a simulação, tendo praticamente apenas valor histórico a lembrança da
139
Lima, p. 192.
80
corrente que entendia de forma diversa. Cariota-Ferrara140 afirma de maneira
taxativa que “i negozi fiduciari si distinguono nettamente dai simulati: è questo
un punto fermo nella dottrina”, relacionando extensa lista de doutrinadores
que assim entendem: Oertmann, Cosack, Ennecerus, Ferrara, N. Coviello,
Regelsberger, Lang, Schony, Brutt, Goltz, Leist, Wulff, Bovensiepen, Schless,
Fadda e o nosso Ascarelli. E é correto o entendimento de tal corrente, pois
no negócio fiduciário não há efetivamente qualquer simulação, não havendo
qualquer intuito de se formalizar uma declaração distante da verdade. O
que as partes pretendem é efetivamente, celebrar um contrato por meio do
qual se constitui uma garantia que fica aperfeiçoada com a transferência da
propriedade do bem. Esta intenção de constituir garantia é conhecida de
todos os participantes do contrato e também de terceiros que venham a tomar
conhecimento dele, especialmente nos dias atuais com a sempre frequente
exigência de registro de tais tipos de negócios, exatamente para que terceiros
eventualmente interessados no bem tomem conhecimento de que sobre ele
incide ônus de garantia fiduciária. O exame da fidúcia, tanto na atualidade,
quanto sob o aspecto histórico, não pode deixar qualquer dúvida sobre o que
pretendem as partes no momento em que celebram o negócio fiduciário,
não só para as próprias partes como também para terceiros que dele tomem
conhecimento, demonstrando que o instituto presta-se a preencher uma
necessidade atual, preenchimento para o qual não se encontrou solução entre
os institutos existentes, sendo necessário assim valer-se do tronco dos velhos
institutos para que se renovem, criando novos contratos e preenchendo
novas funções, na expressão de Ascarelli.
3.2.2.4 – Sousa Lima, após detalhado exame do direito comparado
e de percuciente análise dos aspectos teóricos incidentes, afirma141: “Estas
noções põem bem claro que não se poderá ver, no negócio fiduciário, qualquer
identificação com o negócio simulado. As partes, embora usando de meios diversos,
querem, realmente, não só o meio, mas também o fim. É a própria vontade das
partes que se concretiza no negócio fiduciário, o que afasta, sem dúvida, qualquer
ideia de simulação”. Os autores insistem na incontestável afirmação de que as
partes queriam efetivamente o resultado a que chegaram com a celebração do
contrato e que, desta forma, fica afastada característica fundamental para que se
140
141
Cariota-Ferrara, “I negozi fiduciari”, p. 43.
Lima, p. 200.
81
pudesse reconhecer a existência de simulação. Outro autor nacional, Antão de
Moraes142, no mesmo sentido, diz: “Trata-se, portanto, de um negócio sério, em
que não há simulação, porque o fiduciário é, para todos os efeitos, o legítimo dono
provisório dos bens adquiridos, com a só obrigação pessoal e não real, de respeitar
a fidúcia ou confiança nele depositada ... ... Não há falar em simulação, porque
a transmissão realizada corresponde, exatamente, à vontade das partes”. Túlio
Ascarelli também afirma o afastamento da simulação, como já acima anotado.
Anna Canepa e Umberto Morello lembram que143 “La Cassazione ripete da
tempo la regola che il negozio fiduciario è realmente voluto per raggiungere gli scopi
che le parti si propongono, mentre il negozio simulato è solo apparente”.
3.2.2.5 – No direito comparado, o entendimento é igualmente no
sentido de inexistência de simulação, no contrato que envolve garantia
fiduciária. Galgano anota que o contrato fiduciário é nulo, sempre que é
celebrado para evitar a aplicação de norma imperativa, configurando-se em
tal caso uma fraude à lei; lembra exemplos de fidúcia para evitar a aplicação
da lei de locação, situação na qual o negócio é nulo, ressalvando, porém que,
salvo casos de fraude, o contrato fiduciário não pode ser tido como resultado
de simulação. Diz que144 “il contrato fiduciario si distingue dal contratto
simulato per il fatto che, a differenza di questo, mira a realizzare effetti che sono
voluti della parti; queste vogliono, nei casi ora esaminati, sai il trasferimento
della proprietà da un contraente all’altro sai, in forza del patto fiduciario, il suo
ritrasferimento (dal secondo al primo o dal secondo al terzo). Esso è, in linea di
principio, valido ed efficace (salvo che non rivesta gli estremi del contrato in frode
alla egge, como si dirà nel prossimo paragrafo)...”. Ferrara examina todos os
elementos que compõem o negócio fiduciário e em seguida compara-o com
o negócio simulado, para concluir pela inexistência de simulação. Admite
que no negócio fiduciário existe uma divergência entre o fim econômico
e o meio jurídico empregado, sendo necessário no entanto verificar-se que
ambas as partes pretendem efetivamente o fim econômico ao qual se chega.
Por isto mesmo, a divergência apontada não é suficiente para submeter o
contrato ao regime aplicado para os casos de simulação. Diz145: “O negócio
simulado é um contrato fingido, não real; o negócio fiduciário é um negócio
Moraes, p. 386.
Canepa, p. 709.
144
Galgano, p. 426.
145
Ferrara, p. 90.
142
143
82
querido e existente. O negócio simulado efetiva-se para produzir uma aparência,
um engano: o negócio fiduciário pretende suprir uma ordem jurídica deficiente ou
evitar certas consequências dum negócio. O negócio simulado é um negócio único,
vazio de consentimento: o negócio fiduciário é uma combinação de dois negócios
sérios, um real e outro obrigatório, neutralizando-se em parte e tendo influência
contrária”. Cariota-Ferrara, já acima lembrado, compara o negócio fiduciário
e o negócio simulado, entendendo que o elemento volitivo é determinante
para demonstrar a inexistência de simulação na fidúcia, dizendo146: “Um
raffronto fra le diverse situazioni che si determinano negli uni e negli altri non
è, però, privo d’interesse e d’utilità, specialmente al fine di lumeggiare meglio la
natura dei primi. L’elemento distintivo fra l’una e l’altra specie di negozi è uno
solo: la volontà. Essa manca nel negozio simulato, esiste nel fiduciario”. CariotaFerrara lembra Schoni, que também se voltando para o exame do aspecto
volitivo, ressalta que as partes estão de acordo em que não se transfira a
propriedade, mas que todas estão de acordo em que se verifiquem todos os
efeitos jurídicos que defluem da referida transferência.
3.2.2.6 – Examinada inicialmente neste capítulo a teoria do
patrimônio, para que se fixasse juridicamente a instituição do patrimônio
de afetação, a seguir foi visto o negócio fiduciário, elementos que serão
posteriormente analisados em conjunto com a securitização, para que
se possa identificar o novo tipo de garantia que está se formando para os
negócios empresariais. Este novo tipo de garantia surge da junção destes
três elementos aparentemente independentes entre si – patrimônio afetado,
fidúcia e securitização –, fiel à tendência apontada por Ascarelli de adaptação
de velhos institutos – ou pelo menos de institutos já conhecidos –, para que
novas funções sejam preenchidas em atendimento a situações emergentes
para as quais os instrumentos conhecidos não oferecem satisfação plena.
Para o prosseguimento, neste momento é suficiente encerrar este exame do
negócio fiduciário, com a definição proposta por Sousa Lima147, segundo
a qual “negócio fiduciário é aquele em que se transmite uma coisa ou direito a
outrem, para determinado fim, assumindo o adquirente a obrigação de usar deles
segundo aquele fim e, satisfeito este, de devolvê-los ao transmitente”.
146
147
Cariota-Ferrara, p. 44.
Lima, p. 170.
83
IV – SURGIMENTO E EVOLUÇÃO DA SECURITIZAÇÃO
NO DIREITO BRASILEIRO; APROXIMAÇÃO A OUTROS
INSTITUTOS
4.1 – Securitização, alienação fiduciária de imóveis e patrimônio de afetação
4.1.1 – A securitização surgiu recentemente em nosso sistema de direito,
de tal forma que mesmo sua nomenclatura ainda é causa de confusão, não
havendo segurança sequer com relação a este ponto. Recomendável assim
é localizar a origem da palavra, para que a partir daí se tente delimitar seu
real significado. O termo não consta do “Vocabulário Jurídico”, de De
Plácido e Silva, na edição de 1988; não consta igualmente da “Enciclopédia
Saraiva”, edição de 1977 e da “Enciclopédia Brasileira de Administração e
Negócios”, da Editora Fundo de Cultura, edição de 1968. No “Dicionário
Houaiss”, de 2001, consta como termo ligado à “economia”, significando o
“ato de tornar uma dívida qualquer com determinado credor em dívida com
compradores de título no mesmo valor” e ainda como “conversão de empréstimo
(bancário, p. ex.) e outros ativos em ‘securities’, a serem vendidas a investidores”.
O “Novo Aurélio”, na edição de 1999, também cataloga o termo como do
campo da “economia”, com o significado de “operação de crédito caracterizada
pelo lançamento de título com determinada garantia de pagamento” como
“consolidação de uma dívida mediante a emissão, pelo devedor, de novos títulos,
que incluem garantias adicionais” ou ainda com o significado de “operação
de empréstimo externo caracterizada pelo lançamento de títulos garantidos por
receitas futuras de exportação”. Anota finalmente, sob o aspecto etimológico,
que a palavra formou-se a partir “do radical inglês ‘securit’, como em
‘securitário+izar’”. Curiosamente, portanto, as enciclopédias brasileiras de
direito não registram o termo, enquanto os dicionários registram-no ligado
à área não do direito e sim, da economia.
4.1.2 – Casio Martins Penteado Jr. observa que o nome “securitização”
chega a encobrir a essência da operação à qual se está referindo, levando
inicialmente a se imaginar um negócio relacionado a seguros, do qual se
origina o termo adjetivando o negócio de “securitário”. Observa o referido
84
autor:148: “Provém a designação do aportuguesamento, infeliz como todos que
são comuns nos dias de hoje (v.g., deletar, formatar) da expressão ‘securities’,
que em inglês se refere a valores mobiliários, de tal forma que securitizar tem o
significado de converter os créditos bancários ou de outra natureza em lastro para
a emissão posterior de títulos ou valores mobiliários”. Esta palavra, originária
do termo “securitisation” do inglês, é na realidade um jargão do mercado
financeiro, que agora está incorporado ao jargão jurídico, fenômeno que
ocorreu tanto na língua inglesa quanto no português. Oriunda da expressão
inglesa “security”, que pode ser traduzida para “valor mobiliário”, o termo foi
introduzido em nosso sistema jurídico sem maiores cautelas, o que já começa
a oferecer dificuldades, passando a ser usada para diversas situações que não
guardam qualquer semelhança entre si. Uinie Caminha relata a origem
acidental do termo, dizendo que em 1977, uma jornalista entrevistou Lewis
Ranieri149 “... indagando-lhe o nome que ele dava àquele processo; por falta
de um termo melhor, ele o chamou de securitização. Antes de ser publicada a
coluna, a jornalista teve que confirmar o nome da operação com o autor, pois o
editor do jornal não o aceitou de pronto, alegando ter a jornalista usado de inglês
impróprio. O termo securitização foi então publicado, pela primeira vez, com
uma nota esclarecendo que se tratava de um termo pinçado por ‘Wall Street’, não
sendo, assim, uma palavra ‘de verdade’”. Melhim Namem Chalhub, advogado
e professor, que prestou constante assessoria na elaboração da Lei 9514/97,
criadora da securitização de recebíveis imobiliários, também indica a década
de 1970 como início das operações de securitização nos Estados Unidos, a
partir de iniciativa tomada pela Government National Mortgage Association,
que emitiu os denominados “GNMA pass-though”, que eram títulos
vinculados a créditos hipotecários relativos a financiamentos para aquisição
de casas da Federal Housing Administration e da Veterans Administration150.
No entanto, e sem embargo da etimologia da palavra, anote-se que as
operações de securitização, como estão sendo implantadas nos negócios
empresariais do Brasil atualmente, não guardam qualquer relação com o
conceito de “security” do direito americano, sendo na realidade decorrentes
das operações que nos Estados Unidos são chamadas de “asset securitization”,
lá surgidas na década de 1970151. Este mesmo sistema de negócio surgiu na
Penteado Jr., “RDM”, p. 120.
Caminha, p. 36.
150
Chalhub, p. 332.
151
Gaggini, p. 26.
148
149
85
França em 1983, com o nome de titrisation ou securitisacion a la française.
Chalhub lista os nomes adotados nos diversos países que têm adotado este
sistema de negócio152 que na Espanha é chamado de titulización; no México,
bursatilización; na Colômbia, titularización; No Chile e na Argentina, com o
mesmo nome adotado no Brasil, é chamado de securitización.
4.1.3 – Para evitar as armadilhas às quais o falso cognato sempre conduz,
é recomendável, mesmo antes de buscar um conceito para o termo brasileiro
securitização, afastá-lo de vez do termo security do direito americano, vez que
este instituto do direito brasileiro eventualmente pode se aproximar do trust,
não tendo porém qualquer relação com security. Nos Estados Unidos, o termo
security é objeto das leis federais Securities Act, de 1933; Securities Exchange Act,
de 1934; Public Utility Holding Company Act, de 1935; Investment Company
Act, de 1940 e Investment Advisers Act, também de 1940. Relembre-se, a
propósito, que a securitização no direito americano surgiu apenas em 1977153.
Conforme anota Leães154, as definições trazidas pela lei para o termo security
são praticamente idênticas, com mínimas diferenças que são irrelevantes para a
perfeita interpretação, ademais diferenças todas afastadas ante a interpretação
judicial que vem sendo dada sobre os tópicos destas diversas leis. A definição
então aceita é, literalmente: “The term ‘security’ means any note, stock, treasure stock,
bond, debenture, evidence of indebtedness, certificate of interest or participation
in any profit-sharing agreement, collateral-trust certificate, preorganization
certificate or subscription, transferable share, investment contract, voting-trust
certificate, certificate of deposit for a security, fractional undivided interest in oil,
gas, or others mineral rights, or, in general, any interest or instrument commonly
know as a security, or any certificate of interest or participation in, temporary or
interim certificate for, receipt for, guarantee of, or warrant or right to subscribe to
or purchase, any of the foregoing”. Tal definição é corretamente criticada por
Leães155, porque não delimita corretamente o objeto do exame e não traz de
forma exauriente suas características essenciais, de tal forma que pode haver
confusão com outros institutos. Ademais, traz relação de determinados tipos
de security e, fundamentalmente, deixa a definição em aberto quando inclui
“any interest or instrument commonly know as a security”.
Chalhub, “Negócio Fiduciário”, p. 332.
Caminha, p. 36.
154
Leães, Revista de Direito Mercantil nº 14, pp. 41/60.
155
Leães, idem, p. 43.
152
153
86
4.1.4 – Evidentemente, a abrangência de tal expressão choca-se com
a precisão que se espera de qualquer definição, pois se está definindo pelo
definido, vez que apenas será conhecido como security aquilo que efetivamente
é security. Em outras palavras, todo instrumento ou direito comumente
conhecido como security será conhecido de tal forma porque seus contornos
se adaptam à definição e não porque é comumente conhecido assim. De
qualquer maneira, o que se pretende aqui é afastar o termo securitização do
termo security, pois este corresponde mais exatamente a “valor mobiliário”.
Novamente é Leães156 que, ressaltando a dificuldade que naturalmente existe
quando se pretende traduzir uma palavra que carrega atrás de si todo um
complexo de instituições de um outro sistema legal, conclui: “Assim, não
existe em português um vocábulo que corresponda ao termo ‘security’, havendo
o legislador brasileiro, como se vê das passagens acima transcritas, traduzido
por ‘títulos e valores mobiliários’. Se bem que as conotações dessa expressão não
tenham ainda sido exploradas, existem alguns conceitos arraigados que, em
princípio, tornam a tradução feita uma traição (traduttore, tradittore)”. Sem
embargo, a constatação suficiente é que efetivamente a securitização do
direito brasileiro não se originou do security do direito americano, havendo
apenas uma semelhança no termo, sem qualquer semelhança dos institutos,
embora como se verá adiante, a securitização opere com títulos mobiliários.
4.1.5 – Ainda antes de tentar a sempre difícil conceituação do que
compreende o termo securitização, é curioso examinar texto de Armindo
Saraiva Matias, Professor da Universidade Autônoma de Lisboa157, no qual
é feito um apanhado geral da introdução do instituto da securitização nos
países da Europa. Este autor observa que o primeiro país no qual surgiu o
negócio da securitização foi nos Estados Unidos, na década de 1970; como
vimos já anteriormente, o termo surgiu pela primeira vez, no ano de 1977.
Na Alemanha começaram a ser praticadas operações de “titularização”, hoje
comumente celebradas por bancos privados e públicos, que emitem títulos
mobiliários a partir de créditos hipotecários originários de construções
destinadas tanto à habitação quanto ao comércio. Na França, a titrisation
passou a ser celebrada a partir de 1983, seis anos depois de surgir nos Estados
Unidos; guarda características diversas dos sistemas usados nos demais
156
157
Idem, ibidem, p. 59.
Matias, “Revista de Direito Mercantil”, vol. 112, pp. 48/54.
87
países e tem tido um incremento bastante lento, especialmente pelos custos
que a operação costuma envolver. O sistema legal italiano, que traz regras
limitativas à emissão de títulos mobiliários atípicos pelos agentes atuantes
em tal mercado, acaba criando óbice ao desenvolvimento de negócios de
securitização, de tal forma que não houve boa recepção para este tipo de
operação. A Inglaterra, com sistema legal originariamente semelhante ao
norte-americano, tornou-se a nação na qual a titularização mais se introduziu,
superada apenas pelos Estados Unidos; da mesma forma que na Alemanha,
incide quase exclusivamente sobre empréstimos hipotecários relacionados
a sociedades de créditos imobiliários. Na Espanha, a partir de 1980, os
negócios efetuados por meio de titularização de créditos, passaram a ganhar
maior incremento, também com incidência sobre negócios hipotecários. Na
Bélgica, é conhecida sob o mesmo nome de titrisation adotado na França,
no qual, aliás, o sistema inspirou-se; apesar disto e apesar do sistema francês
guardar grandes diferenças do sistema anglo-saxão, este sistema belga criou
um tipo de fundo, fond commum de créances, que se assemelha ao trust
do modelo inglês. Finalmente, o autor relata a experiência em sua terra,
Portugal, anotando que embora não haja regras específicas, ainda assim há
contratos celebrados tanto na forma do modelo francês de titrisation quanto
do modelo anglo-saxão de securitisation. A seguir, este autor faz um exame do
funcionamento de cada um dos tipos de contrato nos negócios portugueses,
aqui não examinados por não se tratar de objeto do estudo em curso.
4.1.6 – Em todos os sistemas examinados, é possível notar que a
securitização ocorre preferencialmente com relação a créditos hipotecários,
porque a extensão dos pagamentos no tempo e a maior segurança decorrente
da garantia sobre bens imóveis oferecem melhores condições de manejo
do instituto. No entanto, Matias158 anota o fato de que “a imaginação dos
operadores tenha feito (a securitização) enveredar por muitas outras espécies
de activos. Serão certamente, porém, menos duráveis e, porventura, menos
seguros que os activos hipotecários”. No exame do direito brasileiro, embora
a securitização também ocorra relativamente a outros tipos de créditos, o
exame será centralizado nos créditos garantidos por alienação fiduciária de
imóveis, sobre os quais passou a incidir o instituto, após a promulgação da
Lei 9514/97 e da recente Lei 10931/04. Por outro lado, na presente altura da
158
Matias, idem, p. 49.
88
exposição, já examinada a origem da nomenclatura “securitização”, afastada
em seguida a possível confusão que poderia advir a partir do “security” do
direito americano com o qual o objeto do presente estudo não guarda relação
de origem e, lembrada a forma de recepção em diversos países europeus deste
novo instituto, passa-se agora à tentativa de definição da “securitização”,
atento ao princípio inserto no brocardo “definitio fit per genus proximum
et differentiam specificam”. Não se perde de vista a recomendação de Paulo
Toledo, no sentido de que a tentativa de definir não deve ser feita no início
do estudo, pois tal método159 “... parece não ser o melhor, na medida em que
se tem em mente que definir é estabelecer limites. Ora, para tanto, ou seja, para
que se possa traçar os contornos, isto é, o continente, é preciso que o conteúdo, que
o conforme e o configura, seja conhecido”.
4.1.7 – A imprecisão do termo “securitização” já está se refletindo
na jurisprudência dos tribunais do País, que têm usado este nome para se
referir a fenômenos jurídicos que, embora semelhantes, não podem ser
confundidos. Assim é que a Lei nº 9.138, de 29.11.95, que “dispõe sobre o
crédito rural, e dá outras providências” prevê em seu artigo 5º, a possibilidade
de “alongar” as dívidas dos produtores rurais, concedendo-lhes prazo maior
para o pagamento160 de dívidas contraídas ante as instituições e agentes
financeiros que atuam neste segmento de operações de crédito. Esta lei prevê
um complexo sistema de garantias para a dívida cujo prazo de pagamento
foi alongado, por meio do § 1º de seu artigo 6º161 e inciso I do § 6º-C do
artigo 5º162, com emissão e financiamento de títulos do Tesouro Nacional,
que garantirão o pagamento dos saldos devedores encontrados. Trata-se,
portanto de um tipo de renegociação de dívida com possibilidade de garantia
Toledo, RDM 80, p. 133
Art. 5º São as instituições e os agentes financeiros do Sistema Nacional de Crédito Rural, instituído pela Lei
nº 4.829, de 5 de novembro de 1965, autorizados a proceder ao alongamento de dívidas originárias de
crédito rural, contraídas por produtores rurais, suas associações, cooperativas e condomínios, inclusive as já
renegociadas, relativas às seguintes operações, realizadas até 20 de junho de 1995.
161
Art. 6º É o Tesouro Nacional autorizado a emitir títulos até o momento de R$ 7.000.000.000,00 (sete bilhões
de reais) para garantir as operações de alongamento dos saldos consolidados de dívidas de que trata o art.
5º. § 1º A critério do Poder Executivo, os títulos referidos no caput poderão ser emitidos para garantir o valor
total das operações nele referidas ou, alternativamente, para garantir o valor da equalização decorrente do
alongamento.
162
Art. 5º, §6º-C. As instituições integrantes do Sistema Nacional de Crédito Rural – SNCR, na renegociação da
parcela a que se referem os § 6º, 6º-A e 6º -B, a seu exclusivo critério, sem ônus para o Tesouro Nacional, não
podendo os valores correspondentes integrar a declaração de responsabilidade a que alude o § 6-A, ficam
autorizadas: I – a financiar a aquisição dos Títulos de Tesouro Nacional, com valor de face equivalente ao da
dívida a ser financiada, os quais devem ser entregues ao credor em garantia do principal.
159
160
89
de pagamento com a aquisição de títulos do Tesouro Nacional, operação que
não guarda qualquer característica de securitização, pelo menos da forma
como vem sendo entendida em nosso meio jurídico. No entanto, esta operação
de alongamento ficou conhecida no meio jurídico e na jurisprudência como
de “securitização”, notando-se o uso indiscriminado do termo, mesmo nos
julgados do Superior Tribunal de Justiça163. Apenas como exemplo, no Agravo
Regimental 320.989-RS, o Relator Ministro Ari Parglender faz menção
à “obrigatoriedade de alongamento da dívida do recorrido, securitizando a
dívida”; no Recurso Especial 227.587-SP, o Ministro Barros Monteiro, em
seu voto expressa-se assim; “Firmou-se a jurisprudência desta Corte no sentido
de que o alongamento (securitização) da dívida rural previsto na Lei 9138...”.
No julgamento do Recurso Especial 470.806-RS-, o Relator Ministro Carlos
Alberto Menezes Direito parece indicar que entende impreciso o termo, tanto
que fala: “... novo termo da renegociação, mesmo que esta significasse, a partir de
então, benefício para o devedor, como ocorre na denominada securitização” (sem
grifo no original). Aliás, é natural que assim ocorra, pois como já advertia
Ascarelli quando falava sobre negócio indireto, este evolver do direito na busca
de novas soluções para problemas antigos, muito embora contínua, ainda
assim é lenta, e nada mais natural que se aguarde um certo tempo até que o
próprio sentido da expressão possa ser pacificado.
4.1.8 – Impõe-se, portanto, a busca da definição de securitização. Sob
um aspecto puramente econômico – e é na economia que esta palavra tem
origem -, pela securitização o que o credor procura é conseguir formas novas
de financiamento, cedendo para uma sociedade de propósito específico
os créditos que tem a receber a longo prazo, de tal forma que esta outra
sociedade lance no mercado, para compra pelo público em geral, valores
mobiliários garantidos pelos créditos que o credor possui para recebimento a
médio e longo prazos. Estes créditos são o lastro dos valores mobiliários que
serão lançados pela sociedade de propósito específico, a sociedade empresária
“securitizadora”. Toda esta sequência de operações, que acaba por desaguar na
captação de dinheiro do público investidor é que tem sido aqui chamada de
“securitização”. É forma bastante criativa para desintermediar a transformação
de crédito em dinheiro, tomando-se o termo desintermediação como a
163
Acessando-se o site do STJ (www.stj.gov.br), no ícone “jurisprudência”, há 75 julgados que tratam esta
operação como de “securitização” (pesquisa efetuada em 27.12.05).
90
possibilidade de captação imediata de dinheiro por conta de crédito futuro,
diretamente do público investidor, sem a intermediação do sistema bancário
em geral. A operação assim estruturada envolveria diversos participantes, cujos
nomes é necessário fixar e, para tanto, imagine-se a operação de securitização
que diz respeito à construção de prédio de apartamentos para venda a prazo. A
primeira figura da cadeia negocial é o “devedor”, ou seja, aquele que adquiriu
o apartamento para pagamento a prazo normalmente longo e que, no ato da
aquisição, assume uma dívida, sendo credor o incorporador ou construtor do
imóvel. Este incorporador ou construtor é chamado “originador”, pois dará
origem à operação de securitização, ao fazer a cessão de seus créditos a uma
SPE, sociedade de propósito específico, também chamada VPE, veículo de
propósito específico ou ainda SPC, special purpose company. Esta sociedade
de propósito específico é a sociedade anônima chamada de “securitizadora”;
ao receber os créditos em cessão, fará de imediato ou a determinado prazo,
os acertos financeiros com o “originador” e emitirá títulos, chamados de
“certificados de recebíveis imobiliários” ou simplesmente “recebíveis”. Estes
“recebíveis” são os títulos mobiliários (security do direito americano) que serão
vendidos no mercado aos investidores. Em linhas gerais, é desta forma que se
configura uma operação de securitização de dívidas imobiliárias (o exemplo
imobiliário foi tomado apenas para facilitar a exposição), com o que se capta
dinheiro da poupança popular ou de poupadores institucionais, chamados
de investidores, possibilitando o rápido giro do dinheiro do construtor
ou incorporador, que terá assim reposto seu capital sem necessidade de
qualquer intermediação do sistema bancário. Portanto, quase que em ordem
cronológica de aparecimento, temos: devedor, originador, securitizador e
investidor, com cessão de crédito do originador para o securitizador e com
emissão de recebíveis do securitizador para o investidor.
4.1.9 – Com estes elementos, é possível ter a visão do funcionamento
de um processo de securitização; a propósito, em linhas bastante gerais e
didáticas, Borges164 apresenta os passos sequenciais de uma operação de
securitização, expondo-os de forma ordenada: “Tudo começa com uma relação
comercial entre a originadora das receitas e seus clientes. O passo seguinte é a
constituição de uma SPE, que segregue o risco da originadora; essa SPE compra
os créditos de que a originadora é titular perante seus devedores. Os pagamentos
164
Borges, “Revista de Direito Bancário...”, p. 264.
91
periódicos desses devedores passam a ser feitos à SPE ou, mais provavelmente, a um
agente de cobrança autônomo (servicer), e auditados por empresa independente,
que emitirá relatórios, verificando a regularidade da cobrança dos créditos. A
SPE contrata uma agência de classificação de risco para emitir um ‘rating’ sobre a
própria SPE e sobre os títulos de sua emissão, garantindo o seu acompanhamento.
A SPE emite os títulos (commercial papers ou debêntures, normalmente) e escolhe
um agente fiduciário que irá representar os detentores desses valores mobiliários,
convocando assembleias, emitindo relatórios e, eventualmente, executando a
SPE. Os títulos são então emitidos, normalmente através de corretoras em caráter
público (com registro na CVM) ou privado, e adquiridos pelo mercado. Os
recursos apurados são pagos à SPE diretamente ou a um ‘trustee’ contratado, que
cuidará de repassá-los à sociedade originadora. Com os pagamentos feitos pelos
devedores originais, a SPE resgatará os títulos emitidos, fechando a operação. Se
for o caso, repetir-se-á o ciclo novamente”. De forma bastante concisa, porém de
maneira igualmente esclarecedora, Uinie Caminha165 diz que a securitização
inicia-se com a segregação que o originador faz de determinado ativo de seu
patrimônio geral, cedendo-o a uma VPE; esta, tendo como lastro o ativo
cedido, emite títulos e os oferece aos investidores, conseguindo assim uma
receita que demandaria ainda tempo para ser realizada pelo originador.
4.1.10 – Retomando a linha de pensamento a partir do item 4.1.6 acima,
pode-se agora tentar uma definição para o termo securitização, na forma como
atualmente se encontram em curso tais tipos de negócio. Embora a melhor
técnica legislativa recomende que não compete à lei e sim à doutrina, auxiliada
pela jurisprudência, a definição de institutos, ainda assim a Lei 9.514, de
20.11.97, em seu artigo 8º, traz elementos definidores para determinado tipo
de securitização, ao estabelecer que “a securitização de créditos imobiliários é a
operação pela qual tais créditos são expressamente vinculados à emissão de uma
série de títulos de crédito, mediante Termo de Securitização de Créditos, lavrado
por uma companhia securitizadora, do qual constarão os seguintes elementos”;
a seguir, em três incisos, a lei lista os elementos que devem constar do
termo de securitização. Os autores nacionais que têm estudado a matéria
estão se preocupando com a necessária definição do termo. Chalhub166 diz
que “securitização é um processo de distribuição de riscos mediante agregação
165
166
Caminha, p. 41.
Chalhub, p. 332.
92
de instrumentos de dívida num conjunto e consequente emissão de um novo
título lastreado por esse conjunto”. Sem embargo da autoridade da fonte, a
definição passa a ideia de que um novo título será emitido a partir do lastro
representado pelo crédito transferido pelo originador, quando na realidade
centenas ou milhares de títulos mobiliários é que deverão ser emitidos,
exatamente para que se possa atender à necessidade que ditou a criação da
securitização, ou seja, o adiantamento de valores a receber em decorrência da
captação da poupança de investidores pessoais ou institucionais. Por outro
lado, é possível securitizar não só créditos existentes como também previsão
de fluxo futuro de caixa ou expectativa de recebimento futuro de valores em
geral, tal como previsão de lucro líquido.
4.1.11 – Borges, em sua proposta de definição, faz a distinção entre
securitização, com interveniência de sociedade de propósito específico
e sem tal interveniência. Para os casos nos quais a operação é feita sem a
interveniência de sociedade de propósito específico, o autor propõe a
seguinte definição167: “Securitização é o termo utilizado para identificar aquelas
operações em que o valor mobiliário emitido, de alguma forma, está lastreado ou
vinculado a um direito de crédito, também denominado de direito creditório ou
simplesmente recebível. Uma receita que é uma expectativa de resultado, torna-se
um recebível quando surge uma relação jurídica que lhe dê respaldo, originada
de um contrato ou de um título de crédito”. Para os demais casos, nos quais o
credor original efetua a operação de securitização valendo-se de sociedade
de propósito específico, o autor propõe outra definição, dizendo ser “... o
processo pelo qual o fluxo de caixa gerado por recebíveis ou bens é transferido para
uma outra empresa (neste caso mais voltada para as operações de giro), criada
para esse fim, suportando uma emissão pública ou privada de títulos (ou valores
mobiliários), que representam uma fração ideal do total dos ativos”. Pela leitura,
verifica-se que a definição padece de certa falta de concisão, sem prejuízo de
sua qualidade.
4.1.12 – Antônio Martin168 diz: “Ensina a doutrina que a securitização
de recebíveis é o processo por meio do qual se agrupam determinadas formas
de crédito, a partir dos quais são emitidos valores mobiliários no mercado de
167
168
Borges, “Revista de Direito Bancário...”, p. 258.
Martin, “Comentários à Lei de Recuperação...”, p. 473.
93
capitais, repassando (e pulverizando) o risco para terceiros, que são investidores
adquirentes dos valores mobiliários”. Uinie Caminha propõe uma definição
com grande abrangência e que mantém a necessária concisão, dizendo169:
“Assim, pode-se definir securitização como um conjunto de contratos que visa
à emissão de títulos garantidos por um ativo específico, segregado geralmente
em veículo de propósito exclusivo do patrimônio geral da sociedade beneficiária
final dos recursos captados”. Trazidas todas estas definições, passa-se a propor
a abaixo, que pretende abranger a securitização feita diretamente pelo
credor sem a intervenção de sociedade de propósito específico bem como
aquela feita com tal intervenção, com a consideração também de que a
securitização apenas se configura com a sequência de contratos e operações,
que se estendem no tempo. Assim, por securitização, entende-se a sequência
de contratos e operações mediante os quais o credor original, segregando em
patrimônio especial, créditos de médio ou longo prazo ou fluxos financeiros
futuros, promove de forma direta ou por meio de cessão de direitos a uma
sociedade de propósito específico, a emissão de títulos representativos de
parcelas do total, títulos lastreados nos direitos referidos, a serem oferecidos
a investidores, para a captação de recursos.
4.2 – Lei 9514/97 – Alienação fiduciária de imóveis
4.2.1 – Como visto, a securitização pode ter por objeto os mais
diversos tipos de créditos; no entanto, mostrou-se especialmente eficaz para
o atendimento da necessidade de capitalização no mercado imobiliário,
tendo, aliás, seu nascimento, na década de 70, nos Estados Unidos,
ligado exatamente a este tipo de negócio. Anota Uinie Caminha170 que
naquela década “a demanda por recursos para financiamento à habitação e
a pouca oferta de capitais fizeram com que o mercado encontrasse mecanismos
alternativos ao financiamento imobiliário tradicional”. Conforme já acima
anotado, também na Europa, nos países nos quais a securitização tem sido
bem aceita, é dirigida quase que preferencialmente, se não exclusivamente,
para o mercado de créditos hipotecários. Igualmente, aqui no Brasil, embora
tenha sido usada anteriormente para outros tipos de créditos, especialmente
em operações de exportação, acabou decididamente sendo dirigida também
169
170
Caminha, p. 39.
Caminha, p. 39.
94
para os negócios imobiliários, especialmente impulsionada pela crise que
se afigura insolúvel dos créditos destinados ao mercado imobiliário pelo
antigo Banco Nacional da Habilitação, dentro do sistema conhecido como
“SFH”, Sistema Financeiro da Habitação, que não conseguiu atingir a meta
almejada de encaminhar solução para o grave problema da falta de habitação.
Chalhub, falando sobre a necessidade que se apresentou de criação de novos
mecanismos de solução para a crise imobiliária, anota171: “Dada essa realidade,
considerando que esse sistema de garantias inibe o carreamento de recursos para
o setor imobiliário, a nova lei tem em vista criar as condições necessárias para a
revitalização e expansão do crédito imobiliário e, partindo do pressuposto de que
o bom funcionamento do mercado, com permanente oferta de crédito, depende de
mecanismos capazes de imprimir eficácia e rapidez nos processos de recuperação
dos créditos, permitiu a utilização da alienação fiduciária como garantia nos
negócios imobiliários”.
4.2.2 – Este direcionamento para o campo específico do setor
imobiliário foi coroado pela promulgação da Lei 9514, de 20 de novembro
de 1997, que “dispõe sobre o sistema de financiamentos imobiliários, institui a
alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências” e que já em seu
artigo 3º172 delimita o campo de atuação das companhias securitizadoras de
créditos imobiliários, instituições não financeiras com a finalidade específica
de adquirir e securitizar os créditos, oferecendo no mercado financeiro o
que se conhece como “CRI”, certificados de recebíveis imobiliários, com
o intuito de, sem intervenção do sistema bancário, abrir uma fonte de
capitalização rápida para o setor imobiliário. As grandes construtoras e
incorporadoras têm constituído sociedades securitizadoras das quais são as
próprias controladoras, permanecendo o financiado, adquirente da unidade
imobiliária, como devedor fiduciante e ela mesma, securitizadora, como
credora fiduciária, de tal forma que se houver descumprimento por parte do
devedor original, a execução é feita pela própria securitizadora.
4.2.3 – Observe-se que o legislador traz uma inovação marcante, que
consiste no fato de estender ao bem imóvel a possibilidade de incidência da
171
172
Chalhub, p. 197.
Art. 3º “As companhias securitizadoras de créditos imobiliários, instituições não financeiras constituídas sob a
forma de sociedade por ações, terão por finalidade a aquisição e securitização desses créditos e a emissão e
colocação, no mercado financeiro, de Certificados de Recebíveis Imobiliários, podendo emitir outros títulos e
prestar serviços compatíveis com as suas atividades”.
95
alienação fiduciária que anteriormente era possível apenas sobre bens móveis.
Nesta lei, destinada a fornecer melhores condições para a criação de fontes de
financiamento para a indústria imobiliária, há uma primeira conjugação da
garantia fiduciária, pela alienação fiduciária do bem imóvel e há ainda uma
outra conjugação da garantia fiduciária, no momento em que esta garantia
é transferida para a titularidade da companhia securitizadora, o que será
examinado adiante. Importa agora ressaltar que esta conjugação ocorre com
vistas a aumentar a garantia ao negócio celebrado, ante o desprestígio no qual
caiu a garantia hipotecária e ante a solidez da garantia que a prática havia
demonstrado para os financiamentos de bens móveis, por meio do Decretolei 911/69. O exame da Lei 9514/97 será retomado no capítulo seguinte;
no momento, é suficiente fixar o início da criação de um novo instrumento
de garantia ao financiamento imobiliário, pela junção de dois institutos já
conhecidos, a securitização e a alienação fiduciária para formação de um
novo instituto, perseguindo a satisfação de novas necessidades na forma
lembrada por Ascarelli.
4.3 – Lei 10.931/04 – Patrimônio de afetação
4.3.1 – A Lei 10.931, de 2.8.04, veio juntar à securitização e à alienação
fiduciária, a segregação pelo patrimônio de afetação. Na realidade, a Lei
9514/97, ao instituir a garantia fiduciária, já falava em patrimônio de
afetação173, incidindo sobre o patrimônio separado constituído pelos direitos
de crédito transferidos por cessão à companhia securitizadora. A nova lei
avança um pouco mais na busca de solidez das garantias e possibilita a
afetação da própria incorporação, ou melhor, dos terrenos e bens objeto da
incorporação, bem como bens e direitos a ela relativos.
4.3.2 – Junta-se portanto aqui o terceiro elemento antigo e já conhecido, ou
seja, o patrimônio de afetação, aos outros dois também já conhecidos – fidúcia
e securitização –, criando um novo instituto que traz o aumento da garantia
perseguida pelos que atuam no mercado de construção imobiliária. O exame
dos mecanismos estabelecidos para a garantia pretendida possibilitará também
o exame do que foi obtido em termos de efetiva extensão e eficácia da garantia.
173
Art. 10. O regime fiduciário será instituído mediante declaração da companhia securitizadora ... que...
submeter-se-á às seguintes condições: I ... II – a constituição de patrimônio separado, integrado pela totalidade
dos créditos submetidos ao regime fiduciário que lastreiem a emissão; III – a afetação dos créditos como lastro
da emissão da respectiva série de títulos ... .
96
4.4 – Lei 11.101/05 – Nova Lei de Recuperação de Empresas e Falência
4.4.1 – A análise até agora efetuada está dirigida ao exame dos elementos
componentes do moderno negócio de securitização, sempre porém com
a vista também voltada para o que significam os institutos da fidúcia, da
securitização e do patrimônio de afetação, em termos de segurança para os
negócios empresariais relacionados à construção de imóveis. Se de um lado
há necessidade de garantias em favor do empresário, de outro há também
necessidade de garantias “contra” o empresário. Esta proteção das garantias
torna-se especialmente necessária para o caso de eventual falência da
sociedade empresária que cuida da incorporação ou construção do imóvel.
4.4.2 – Com vistas a tal proteção, a Lei 11.101, de 9.2.05, a Lei de
Recuperação de Empresas e Falências, estabelece, no parágrafo 1º de seu
artigo 136174, a impossibilidade de o negócio de cessão da construtora para
a securitizadora ser declarado ineficaz ou revogado. Desta forma, em caso de
falência desta última, a possibilidade de ação revocatória ou declaração de
ineficácia fica afastada.
174
Art. 136 ... § 1º Na hipótese de securitização de créditos do devedor, não será declarada a ineficácia ou
revogado o ato de cessão em prejuízo dos direitos dos portadores de valores mobiliários emitidos pelo
securitizador.
97
V – DA FIDÚCIA À SECURITIZAÇÃO: EVOLUÇÃO
HISTÓRICA
5.1 – Do direito romano ao direito brasileiro
5.1.1 – Como já anteriormente examinado, Carlo Longo, em seu Corso
di Diritto Romano, rememora que a fidúcia nos moldes do direito romano, já
como fidúcia cum creditore, manteve-se presente durante toda a época clássica,
o que se comprova pela presença de regulamento do negócio fiduciário nos
editos dos pretores, bem como por ser tratada como um instituto prático
pelos jurisconsultos romanos, entre os quais alinha Gaio, Pompônio, Africano,
Marcelo, Giuliano, Ulpiano, Paolo e Modestino, este o último representante
da jurisprudência da época clássica. Na fase pós-clássica, Longo afirma que175
“non v’è motivo di dubitare che il negozio fiduciario abbia continuato da principio
ad essere praticato; nè sarebbe naturale che fosse avvenuta cosa diversa”. No
entanto, com o decurso do tempo, o negócio fiduciário acaba caindo em desuso
no sistema do direito romano, entre outras razões até como consequência da
decadência dos institutos da mancipatio e da in iure cessio, modos formais de
transferência da titularidade do direito de propriedade em toda sua plenitude,
respectivamente para as res mancipi e para as res nec mancipi. Ainda no fim do
quarto século, foi possível localizar as últimas anotações históricas que indicam
o uso, mesmo que de forma extremamente rara da fidúcia. O fragmento
“Vaticani” traz ainda forma de regulamento jurídico do negócio fiduciário;
também uma constituição de Arcádio e Onório, do ano de 395, traz anotação
que embora não possa ser considerada regulamento da fidúcia “ricorda
almeno la fidúcia obligatio accanto alla pignoris obligatio”176. Bonfante177 anota
que a fidúcia constituía “... um negozio um negozio di vasta applicazione e di
grande interesse nel diritto clássico...; ma nel diritto giustinianeo essa è abolita
completamente”. No entanto, Bonfante acrescenta ainda que já na fase clássica
do direito romano, o penhor, o depósito e o comodato recebiam uma vasta e
Longo, p. 163.
Longo, p. 164.
177
Bonfante, pp. 325/6.
175
176
98
generalizada aplicação, o que vai resultar nas interpolações de Justiniano sobre
os textos que tratam da fidúcia, então em desuso. Sousa Lima faz afirmação
exatamente neste sentido, anotando que após a fase clássica do direito romano,
deixa a fidúcia de ser usada de forma frequente e variada, entrando em declínio
juntamente com o abandono da mancipatio e da in iure cessio, até seu completo
desaparecimento na “legislação de Justiniano, onde só encontramos vestígios de
sua existência pelo exame de textos, alguns visivelmente interpolados, e, outros, de
interpolação duvidosa”178.
5.1.2 – Em prosseguimento ao texto acima transcrito, é também de
Sousa Lima a afirmação no sentido de que “... este instituto ressurgiu no direito
moderno, como uma imposição da própria vida jurídica e para preencher, como
no direito romano, lacunas e deficiências da legislação atual”. Gomes, referindose, entre outros, à alienação fiduciária, fala que “são, realmente, figuras
originais que foram criadas para atender a novas exigências econômicas...”179.
A necessidade especial que determinou o ressurgimento da fidúcia repousa
na busca por garantias cada vez mais efetivas para os negócios em geral,
especialmente para financiamentos e, dentre estes, mais especificamente
aqueles fornecidos pelo capital financeiro em geral, por meio das instituições
bancárias. E a transferência da propriedade pela fidúcia prestou-se com tal
perfeição a tal tipo de garantia, pois como ressalta Galgano, neutraliza-se
a possibilidade de concorrência de outros credores vez que180 “... il bene é
sotrrato all’azione executiva dei creditori personali del proprietario fiduciário e
cosí via”. A relevância com que tal questão se apresenta nos dias atuais prendese à necessidade do fornecimento de capital para as atividades produtivas,
sem o que inviabiliza-se a própria atividade empresarial geradora de bens,
empregos e riquezas que formam a base do desenvolvimento econômico e
social de uma nação. O crédito possibilita o uso imediato por um empresário,
do numerário que apenas seria entregue a ele depois que, terminado todo
o processo produtivo, viesse o bem produzido a ser vendido no mercado, o
que em consequência exigiria de referido empresário uma reserva de capital
que a rapidez dos negócios atuais não mais torna possível. Como diz Fran
Martins181, pelo fornecimento de crédito, apresenta-se a “possibilidade de
Lima, p. 87.
Gomes, p. 458.
180
Galgano, “Il Negozio...” p. 421.
181
Martins, “Títulos de Crédito”, p. 5.
178
179
99
uma pessoa gozar, hoje, de dinheiro cujo pagamento será feito posteriormente
(dinheiro presente por dinheiro futuro)” pelo que “pode alguém, hoje, ser suprido
de determinada importância, empregá-la no seu interesse, fazê-la produzir em
proveito próprio”, isto porque assumiu o compromisso de devolver, dentro de
determinado tempo, o dinheiro que lhe foi entregue pelo financiador, mais os
frutos do capital. É a mesma expressão de Ascarelli182 para quem, graças aos
títulos de crédito e, evidentemente, ao próprio crédito “... o direito consegue
vencer tempo e espaço, transportando, com a maior facilidade, representados nestes
títulos, bens distantes e materializando, no presente, as possíveis riquezas futuras”.
5.1.3 – Esta frenética busca por capital financeiro para o incremento e
manutenção da produção na sociedade capitalista, determina o surgimento de
outro problema, para o qual há necessidade de busca de solução. Com efeito,
não basta ao mundo empresarial que o capital seja farto e abundante, pois
é necessário que também seja barato ou, pelo menos, não seja caro a ponto
de obrigá-lo a despender valor maior do que aquele que virá a lucrar com a
venda do bem produzido ou do serviço prestado. O preço do capital, ou seja,
os juros, serão tanto menores quanto maiores forem as garantias de retorno
do valor emprestado e, na outra ponta, serão tanto maiores quando menores
forem as garantias. Relembre-se ainda que a necessidade de fornecimento de
crédito se faz sentir não só por parte do produtor de bens ou serviços, como
também por parte daquele que vai consumir tais bens ou valer-se dos serviços
oferecidos, dentro da cadeia que o sistema capitalista de produção exige
para seu contínuo funcionamento. Desta forma, a oferta de garantias mais
sólidas apresenta-se cada vez com emergência maior, necessidade que não
encontraria satisfação pronta e a tempo, ante a característica inércia jurídica
a que se refere Ascarelli e que impede a mudança constante do sistema, o que
viria a causar insegurança e incerteza nas relações das quais se espera cada vez
maior solidez e eficácia. Daí, o surgimento da necessidade de se lançar mão
de velhos institutos para o atendimento desta nova necessidade, também
como lembra Ascarelli; e daí também, o ressurgimento da fidúcia no direito
moderno brasileiro.
5.1.4 – Em fins do século XIX e início do século XX, na Europa, esta busca
por maiores garantias para o incremento do crédito começou a se fazer sentir, na
182
Ascarelli, “Teoria Geral dos Títulos de Crédito”, p. 25.
100
medida em que as garantias tradicionais da hipoteca e do penhor começaram a
se mostrar insuficientes para a segurança pretendida por parte dos fornecedores
de crédito, com risco de travar tal fornecimento ou, alternativamente, de
fazer com que o risco de não pagamento decorrente da ausência de garantia
sólida fizesse com que os juros tornassem desinteressante e antieconômico ao
devedor, valer-se de qualquer tipo de busca de financiamento. Surge aí um
aspecto dialético curioso que vale a pena ressaltar, se não por outro motivo,
pela simples curiosidade da constatação. Na época de Justiniano, exatamente a
hipoteca e o penhor vieram substituir a fidúcia, que tirava das mãos do devedor
o uso do bem dado em garantia, impedindo-lhe o exercício de sua atividade
produtiva e dificultando a produção que se pretendia incrementar com o
crédito fornecido; estes mesmos institutos que baniram do sistema romano a
fidúcia, são agora banidos pela mesma fidúcia, com nova roupagem que torna
a garantia mais sólida, sem tirar das mãos do devedor o bem, que continua
a ser por ele usado normalmente, até a quitação da dívida assumida com o
financiamento. Voltando, no entanto, à trilha do pensamento que está sendo
exposto, a hipoteca e o penhor, nos tempos modernos, deixaram de apresentar
a mobilidade e a solidez que a sociedade industrial e de serviços exige, por
duas razões fundamentais. A primeira diz respeito aos custos e ao tempo
exigidos para a constituição de tais garantias, especialmente a hipotecária, a
exigir formalidades que não se compadecem com a agilidade dos negócios
do mundo comercial ou empresarial. Basta lembrar as inúmeras solenidades
exigidas para formalizar a garantia hipotecária, com celebração de escritura
pública ou documento equivalente, a qual valerá erga omnes após o registro na
circunscrição imobiliária correspondente.
5.1.5 – Não só esta morosidade constituiu-se o óbice que se apresentou
e que acabou por resgatar novamente para os dias atuais a garantia fiduciária.
É que a constituição destas garantias tradicionais, na medida em que
deixa ao devedor a propriedade do bem em sua plenitude, passou a sofrer
interferências dos sistemas jurídicos que estabeleciam privilégio em favor
de outros credores sem garantia constituída, porém de natureza social
preponderante, especialmente os créditos tributários dos três planos do
poder público – União, Estados e Municípios –, como também a partir dos
créditos trabalhistas, por sua característica de dívida de natureza alimentar. É
101
exatamente o que ressalta Moreira Alves183, quando diz: “É de notar-se, ainda,
que, se a transmissão da propriedade, com escopo de garantia, serve, hoje, para
atender à proteção do credor sem o desapossamento, do devedor, de coisas que lhe
são indispensáveis até para obter os recursos necessários ao pagamento do débito
– e essa necessidade já se fazia sentir, com intensidade, nos fins do século passado
e no início deste, em países como a Alemanha – ... na Idade Média servia para
fraudar a proibição canônica da percepção de juros, como acentua H. Jung...”. E
completa seu pensamento dizendo que “o que é certo, portanto, é que, a partir,
precipuamente, do século passado, se tem sentido, cada vez mais, a necessidade
da criação de novas garantias reais para a proteção do direito de crédito”. A
urgência de se encontrar novos instrumentos de garantia para a satisfação da
complexidade dos negócios da atualidade – que a cada dia vão mais e mais
se sofisticando-, é constatação unânime dos autores dedicados ao estudo
fidúcia, anotando Chalhub184 serem “inúmeros os casos em que se reclama a
construção de novas figuras para suprir necessidades de natureza negocial e de
proteção da economia popular”.
5.1.6 – Praticamente afastado de qualquer prática nos países de tradição
romana, o negócio fiduciário exigia uma formulação teórica moderna,
para que pudesse se prestar ao atendimento do novo tipo de garantia que a
sociedade passou a exigir após a revolução industrial. Esta nova formulação
veio inicialmente de Regelsberger, em 1880, após a análise que dois anos
antes havia sido feita por Kohler, este estabelecendo a precisa diferença teórica
entre “negócio encoberto” ou negócio simulado de um lado e, de outro, do
negócio indireto, ao quais Ihering considerava idênticos, configurando um
simples desdobramento do outro. Também na Alemanha, em 1910, Lothar
Kaul publica estudo sobre o negócio fiduciário, anotando Moreira Alves que
toda esta agitação intelectual em torno do assunto não produziu maiores
reflexos no Brasil, quer entre os juristas quer nos Tribunais. Escrevendo a
primeira edição de seu livro antes do ano de 1973, anota este autor que podia
na ocasião perceber-se já uma busca por tipos alternativos de garantia mais
eficientes, “haja vista, na ex-Guanabara, a larga utilização da retrovenda com
escopo de garantia, que pode configurar negócio jurídico indireto”185. Neste mesmo
Alves, p. 3.
Chalhub, p. 72.
185
Alves, p. 6.
183
184
102
sentido, é a observação de Martins no sentido de que, no Brasil, mesmo antes
de qualquer introdução oficial de qualquer tipo de negócio fiduciário, tal tipo
de negócio era bastante usado, por meio de negócios simulados186.
5.1.7 – Estas foram as condições que determinaram a introdução, em
nosso sistema jurídico, da garantia fiduciária que até então era, pelo menos
oficialmente, desconhecida em nossa prática empresarial, não sendo em
consequência objeto de decisão de nossos tribunais. Fixadas aqui as razões
históricas determinantes, em tópico posterior serão examinadas, na medida
do necessário, as leis que dizem respeito a tal tipo de negócio.
5.2 – Confiança (inicial) x garantia (atual)
5.2.1 – Como já observado quando do exame da evolução histórica da
fidúcia a partir de seu nascimento no direito romano, a confiança sempre
foi a razão básica e fundamental que norteava as partes que se dispunham
a celebrar um negócio fiduciário. Tome-se, como exemplo, o dono de um
escravo que o entregava em fidúcia a um terceiro, para que este promovesse
sua libertação, em caso de morte do fiduciante. Evidentemente, apenas a
mais estrita confiança do fiduciante no fiduciário é que funcionava como
permissivo para que o negócio se aperfeiçoasse. Aliás, tanto é assim que a
própria palavra – fidúcia –, da qual se originou a nomenclatura do negócio,
é sinônimo da palavra confiança. Nos dias atuais, apesar de conservada a
mesma denominação, não se pode mais falar na existência de qualquer tipo
de confiança, passando o negócio a ser feito como simples forma de garantia,
garantia, aliás, que apenas se torna imprescindível exatamente porque existe,
da parte do credor, a desconfiança de que o débito que está sendo contraído
pode vir a deixar de ser honrado após o vencimento. Portanto, a força motriz
que passou a exigir a garantia fiduciária centrou-se na desconfiança, a qual,
à medida que vai aumentando, vai novamente exigindo o acoplamento
de novos institutos do direito já conhecido, para ir criando garantias mais
sólidas, como será examinado também adiante.
5.2.2 – Os autores em geral, sem embargo de certas nuances, afirmam o
desaparecimento da confiança que foi o fundamento do negócio fiduciário
em suas origens. Restife Neto, no entanto, entende que ainda existente tal
186
Martins, “Contratos e Obrigações Comerciais”, p. 183.
103
confiança, anotando que não se confunde ela com a boa fé comum a todos
os negócios, completando, porém, que a confiança continua presente, pois
“o transferente confia na lealdade e honestidade da outra parte, em se servir
da propriedade ou direito solenemente transferido, apenas para a destinação
internamente convencionado”187. Chalhub anota que “a despeito de, nos negócios
dessa modalidade, a transmissão da propriedade não mais repousar unicamente
na confiança que o fiduciante depositava no fiduciário, como no direito romano,
a verdade é que esse elemento – confiança – continua presente”, confiança que
se caracterizaria pelo fato de o fiduciante transferir seu bem ao fiduciário. No
entanto, a prática demonstra a inexistência de confiança neste sentido, pois
mesmo que o fiduciário quisesse trair a confiança que o autor entende existir,
estaria impedido pelos registros dando conta da existência de propriedade
resolúvel e também porque o bem sempre estaria na posse do fiduciante,
enquanto estivesse sendo cumprido o contrato. Pontes de Miranda, com sua
proverbial precisão, afirmando o desparecimento da confiança, diz: “Se a lei
transforma esse material de confiança, criado no terreno deixado à autonomia
das vontades, e o faz conteúdo de regras jurídicas cogentes, a fidúcia passa a ser
elemento puramente histórico do instituto, salvo no ato mesmo de se escolher a
categoria”. Sousa Lima comunga deste entendimento, afirmando igualmente
a ausência de qualquer confiança, que apenas teria existido nos primórdios
do instituto, no direito romano antigo. Examinando a situação atual de nosso
direito, diz: “Assim, pode-se dizer que a fidúcia se afasta, para se tornar simples
elemento histórico, à medida que o sistema jurídico evolui, prevendo hipóteses antes
regidas por ela”188. A propósito, como anota de passagem Moreira Alves189,
o direito transferido ao credor no negócio atual de alienação fiduciária no
sistema brasileiro, é cercado de tantas limitações, que se afigura impossível
ao fiduciário abusar por qualquer forma da propriedade que lhe está sendo
transferida. Com efeito, nos negócios atualmente em voga, o bem fica na
posse direta do devedor, o que já estabelece uma severa dificuldade para
qualquer tipo de venda. Por outro lado, os tipos de controles estabelecidos
por meio de registros públicos da existência de ônus sobre o bem estão de
tal forma aperfeiçoados, que efetivamente afigura-se extremamente difícil
a possibilidade de abuso por parte do credor, o que torna dispensável a
Restiffe Neto, p. 32.
Lima, p. 174.
189
Alves, p. 33.
187
188
104
existência de qualquer tipo de confiança, seja do fiduciante no fiduciário,
seja confiança em sentido inverso. Luiz Augusto Beck da Silva190 diz que a
introdução da alienação fiduciária em garantia em nosso sistema “elidiu o
fator confiança próprio dos negócios fiduciários. A parcela de fidúcia que contém,
em realidade, é mínima, diante da cláusula resolutiva existente”.
5.3 – Fidúcia no Código Civil
5.3.1 – O negócio fiduciário, no sentido em que está sendo examinado
neste trabalho, é aquele que se formaliza como meio de garantia a um
negócio, normalmente de financiamento, celebrado entre devedor e credor,
transferindo aquele a este a propriedade de um bem, de tal forma que, se
não paga a dívida, fica o credor autorizado a fazer com que a execução recaia
sobre o bem entregue em fidúcia. Neste sentido, o Código Civil de 1916
não conheceu o negócio fiduciário; aliás, como já visto acima, exatamente
nesta época, ou seja, entre fins do século XIX e início do século XX é que
iniciaram-se estudos que propiciaram o restabelecimento posterior da
fidúcia, porém por iniciativa de autores alemães, praticamente sem qualquer
reflexo no campo jurídico brasileiro, que não tinha previsão de qualquer tipo
de negócio fiduciário em garantia.
5.3.2 – O Código Civil de 1916, no Livro IV, ao tratar “Do Direito das
Sucessões”, prevê a possibilidade de instituição de herdeiros ou legatários,
por meio do instituto do fideicomisso, consistente na imposição a um
deles da obrigação de, por sua morte, transmitir a herança ao outro. Este
outro o Código denomina de “fideicomissário”, enquanto aquele a quem a
imposição é dirigida é chamado de “gravado” ou “fiduciário”, tudo conforme
previsto no artigo 1733. O artigo imediatamente seguinte, artigo 1734, fixa
a propriedade da herança na pessoa do fiduciário, estabelecendo que tal
propriedade é “restrita e resolúvel”. No fideicomisso está presente o elemento
confiança, que é parte integrante dos negócios ou disposições que giram em
torno da fidúcia; o testador confia no fiduciário191, a quem entrega os bens
carreando-lhe a obrigação de dar a eles certo destino, dentro de determinadas
condições. Com algumas alterações, o Código Civil de 2002, manteve a
instituição do fideicomisso, cuidando dele nos artigos 1951 a 1960.
190
191
Silva, in RT 688/50.
Monteiro, 6º vol., p. 232.
105
5.3.3 – Como anotado, a substituição fideicomissária apenas foi
lembrada, por se tratar de instituto que também, como parte de seu
fundamento, a confiança, estabelecendo também encargos ao fiduciário,
que mantém propriedade restrita e resolúvel, termos repetidos no artigo
1953 do atual Código. No entanto, o novo Código, em seu Livro III, que
trata do “Direito das Coisas”, dedica os artigos 1361 a 1368 à propriedade
fiduciária, estabelecendo (art. 1361), tratar-se da “propriedade resolúvel
de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao
credor”. Os demais artigos, até o 1368, trazem diversas estipulações relativas
à propriedade fiduciária. Finalmente, no que se refere aos artigos do Código
Civil que dizem respeito à fidúcia, observe-se que a Lei 10.931, de 2.8.04,
criou o artigo 1368-A, que passa a integrar o Código, trazendo estipulações
relativas à aplicação de legislação especial a casos de propriedade ou de
titularidade fiduciária.
5.4 – Fidúcia em leis especiais
5.4.1 – A discussão que se estabeleceu na Europa, especialmente na
Alemanha, no início do Século XX, não teve maiores reflexos no Brasil, cujo
sistema, tanto social quanto econômico, naquela ocasião, ainda não havia
feito aflorar a necessidade de se criar instrumentos novos a partir do instituto
romano da fidúcia. A tentativa de se estabelecer um tipo de garantia mais
efetiva para que o fornecimento do crédito tivesse um fluxo maior passou
a ser buscada após a instalação no País dos governos militares instaurados
a partir de 1964. Buscava-se, de um lado, a efetividade da garantia que
estimulasse o sistema bancário a fornecer crédito em quantidades maiores
e por formas mais simples, para tornar possível o incremento do parque
industrial brasileiro, com a instalação de indústria de bens de consumo,
especialmente veículos, ao mesmo tempo em que se propiciava ao público
consumidor a possibilidade de aquisição de tais bens, para o escoamento
da produção. Instalados os governos militares a partir de abril de 1964, a
primeira lei que veio restabelecer o negócio fiduciário em nosso meio foi a
Lei 4.728, de 14 de julho de 1965, a chamada “Lei do Mercado de Capitais”,
que em seu artigo 66 criava a figura da “alienação fiduciária de bem móvel”,
sistema de garantia no qual o credor ficava com o domínio da coisa alienada
até a liquidação da dívida garantida. A posse direta do bem ficava com o
devedor, enquanto a posse indireta e a propriedade resolúvel eram do
credor, possibilitando um tipo de garantia que se antepunha a qualquer
106
outra obrigação que pudesse ser assumida pelo devedor, ficando o bem livre
destas execuções de terceiros, até que houvesse o pagamento integral do
financiamento concedido. Como anota Moreira Alves192 – e como ainda está
na lembrança de todos que viveram aquela época –, a alienação fiduciária
teve “ampla utilização na tutela do crédito direto ao consumidor, concedido pelas
instituições financeiras, abrindo-se, assim, perspectiva de aquisição a uma larga
faixa de pessoas que, até então, não a tinha, e, possibilitando, em contrapartida,
o escoamento da produção industrial, especialmente no campo dos automóveis e
dos eletrodomésticos”. Este artigo 66 da Lei 4728/65 teve sua redação alterada
pelo Decreto-lei 911, de 9.1.1969, especialmente para a modificação de
normas de natureza processual, de tal forma a possibilitar, em caso de não
pagamento por parte do devedor, a execução da garantia por meio de busca
e apreensão liminar do bem financiado.
5.4.2 – Em 29.11.1965, portanto quatro meses após a promulgação da
Lei do Mercado de Capitais, a cessão fiduciária em garantia foi introduzida
em nosso sistema pela Lei 4.864, que permitia às Caixas Econômicas e às
sociedades de crédito imobiliário a cessão fiduciária dos direitos decorrentes
dos contratos de compra e venda das unidades habitacionais, estabelecendo
o artigo 23 ser o credor titular fiduciário dos direitos cedidos até o
pagamento integral da dívida, respondendo ainda o adquirente da unidade
por eventual saldo devedor, se o valor da venda do bem não fosse suficiente
para o pagamento integral da dívida assumida. Inúmeros outros decretos,
decretos-lei e leis passaram a cuidar da fidúcia em suas mais diversas formas
de apresentação, diplomas cuja relação aqui se torna dispensável; relação
completa e detalhada pode ser encontrada na recente obra de Restiffe Neto193
sobre a garantia fiduciária.
5.4.3 – Integrado a nosso sistema a fidúcia, tornou-se a alienação
fiduciária um instrumento de uso constante para os mais diversos tipos de
financiamento, mantendo-se, porém a possibilidade de tal tipo de ônus
incidir apenas sobre bens móveis, proibida sua aplicação a bens imóveis. Esta
barreira, porém veio a ser superada pela Lei 9.514, de 20.11.97, que “dispõe
sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui alienação fiduciária de
192
193
Alves, p. 13.
Restiffe Neto, p. 36 e seguintes.
107
coisa imóvel e dá outras providências”. O inciso IV do artigo 17 desta lei
passou a admitir que as operações de financiamento imobiliário em geral
pudessem ser garantidas, entre outras modalidades, pela alienação fiduciária
do imóvel. Este tipo de garantia guarda estreita relação com aquela instituída
pelo Decreto-lei 911/69, estabelecendo o artigo 22 que é o negócio no qual
“... o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência
ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel”. Esta lei
sofreu algumas alterações pela Lei 10.931, de 2.8.2004, aperfeiçoando-se o
sistema de “securitização” da dívida e criando incentivos para a formação de
patrimônio de afetação, aspectos que serão adiante examinados.
5.5 – Da fidúcia para a securitização
5.5.1 – A Lei 10.931/04 instituiu a alienação fiduciária de bem imóvel,
dentro do espírito sempre lembrado de que existe uma busca constante
nos negócios empresariais por garantias mais e mais sólidas, eficientes e
prontamente executáveis. Por isto mesmo é que, bem sucedido o sistema de
alienação fiduciária sobre bem móvel, esta lei estendeu o sistema também para
os bens imóveis, ao que o sistema de construção imobiliária do País foi levado
tangido especialmente pelo fracasso do antigo SFI – Sistema Financeiro de
Habitação e anteriormente do BNH – Banco Nacional da Habitação. Não
só por isto; foi tangido também pela falência da empresa Encol, que teve sua
falência decretada e que deixou desprotegidos milhares de mutuários que
haviam já adiantado valores para os imóveis que estavam em construção,
a qual foi interrompida após o decreto de quebra, prosseguindo-se apenas
algumas construções, por intermédio de comitê de mutuários, que tomaram
a si o término delas.
5.5.2 – Norteado por tal finalidade, o legislador estabeleceu sistema
de garantia que parece apresentar-se mais sólido ainda do que a alienação
fiduciária do Decreto-lei 911/69, pois à garantia fiduciária que pesa sobre
o imóvel, acoplou-se o sistema de securitização das dívidas assumidas pelos
interessados na aquisição das unidades construídas, prevendo-se um novo
negócio fiduciário, desta vez com a garantia incidindo sobre os créditos da
incorporadora/construtora, a garantir o pagamento dos títulos mobiliários a
serem emitidos no processo de securitização e a serem vendidos ao público
investidor, como forma de captação da poupança popular, a ser direcionada
à solução do problema de moradia atualmente existente. Estabelece o artigo
108
9º desta lei que a companhia que vier a atuar como securitizadora, após
receber a cessão da incorporadora/construtora, poderá “instituir regime
fiduciário sobre créditos imobiliários, a fim de lastrear a emissão dos Certificados
de Recebíveis Imobiliários, sendo agente fiduciário uma instituição financeira ou
companhia autorizada para esse fim pelo BACEN e beneficiários os adquirentes
dos títulos lastreados nos recebíveis objeto desse regime”. No inciso I do artigo
10, estabelece-se a forma de criação do regime fiduciário sobre os créditos
que servirão de lastro; o inciso II prevê que estes créditos passarão a constituir
patrimônio separado e o inciso III prevê a afetação dos créditos à emissão dos
títulos mobiliários.
5.5.3 – A busca de garantias as mais eficazes foi muito bem conduzida
pelos redatores das leis que adiante serão examinadas e que se destinaram
a criar uma nova estrutura de segurança para os negócios imobiliários. Tal
constatação pode ser demonstrada, entre outros pontos, pela escolha de
busca e financiamento público por intermédio de títulos mobiliários, para
os quais o sistema legal brasileiro da atualidade tem dirigido elementos
de proteção bastante sólidos, exatamente com o intuito de criar entre os
investidores a sensação de segurança necessária a tais tipos de negócios, pois
tal tipo de cultura é que pode tornar sólido o funcionamento do mercado
de títulos mobiliários. Como cita Paulo Toledo, comentando o sistema de
tutela judicial instaurado para o mercado de valores mobiliários, o legislador
reconhece 194 “... implicitamente, a existência, na hipótese, de interesses
metaindividuais. Em outras palavras, pode-se afirmar que o legislador admitiu
que as relações estabelecidas no mercado de valores mobiliários transcendem os
interesses imediatos e diretos dos investidores, das empresas e agentes de mercado”.
5.6 – Patrimônio de afetação
5.6.1 – Na busca de garantia a mais eficaz possível, estabeleceram-se
duas linhas de garantia fiduciária, uma sobre o imóvel a ser incorporado e
construído; outra sobre os créditos imobiliários que passam a existir a partir
do momento no qual a unidade imobiliária é prometida à venda para terceiro
interessado. Desde logo estabeleceu-se também separação de patrimônio para
os créditos imobiliários, afetados à liquidação dos títulos mobiliários emitidos.
194
Toledo, RT. 667, p. 71.
109
5.6.2 – Pela Lei 10.931, de 2.8.04, subiu-se mais um degrau na escala
de garantias do negócio, para que se configurasse como patrimônio separado
o próprio imóvel em construção, também afetado ao pagamento dos títulos
mobiliários. Esta Lei 10931/04 incluiu o artigo 31-A na Lei 4591, de
16.12.1964 (Lei de Incorporações Imobiliárias), prevendo a possibilidade
de, a critério do incorporador, criar-se patrimônio especial de afetação, de tal
forma que o terreno e as acessões incorporadas, bem como demais direitos
vinculados, ficam apartados do patrimônio do incorporador e “constituirão
patrimônio de afetação, destinado à consecução da incorporação correspondente
e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes”. Foram
incluídos diversos outros artigos, até 31-F, cuidando deste patrimônio de
afetação, estabelecendo-se ainda, como estímulo para que o incorporador
opte por tal sistema, regime especial de tributação para quem optar por tal
sistema (artigos 1º e 2º da Lei 10931/04).
5.6.3 – Estas são as premissas que acumulam os dados necessários para
que se possa agora dar início ao exame da natureza das garantias instituídas
para tais tipos de contratos empresariais, que pretendem construir uma
forma de garantia de tal maneira aperfeiçoada, tentando neutralizar até
efeitos decorrentes da incerteza da jurisdição, como se verá adiante.
111
VI – A “BLINDAGEM” DAS GARANTIAS NO DIREITO
POSITIVO BRASILEIRO
6.1 – A natural busca de garantias para os negócios empresariais
6.1.1 – A “Revolução Industrial”, termo que se consagrou a partir do uso
atribuído a Stuart Mill em 1848, Karl Marx em 1867 e Blanqui em 1878195,
referindo-se às acentuadas transformações econômicas na sociedade europeia
dos séculos XVIII e XIX, consolidou o predomínio político da burguesia,
propiciou profunda expansão da produção de bens e, para a distribuição
destes, valeu-se dos mercados que já haviam sido consideravelmente
expandidos pela anterior Revolução Comercial, a partir do Século XII. As
cidades, que haviam decaído de importância com as invasões bárbaras da
Alta Idade Média logo após a queda do Império Romano do Ocidente,
começam a se reestruturar e, embora a princípio, integrassem domínios
feudais, aos poucos vão adquirindo sua liberdade, até com o auxílio dos reis
aos burgueses, interessados respectivamente no predomínio político aqueles
e, na liberdade comercial, estes196. As feiras dão solidez ao comércio medieval
e passam a possibilitar o estabelecimento de relações de negócios que até
se poderiam ver como de comércio internacional, ocorrendo nas principais
cidades: Londres e Sockbridge, na Inglaterra; Paris, Lyon e Reims, na França;
Lille, Ypres, Douai e Bruges, na região de Flandres; Colônia, Frankfurt e
Lubdck, na Alemanha, entre diversas outras.
6.1.2 – Rachel Sztajn relembra a propósito que aí se situa, historicamente,
o nascimento do que se poderia chamar “mercado”, muito embora sua
natureza jurídica seja preocupação mais recente do direito197: “Para o direito,
a discussão quanto à natureza de mercados é recente, dando a impressão de
Souto Maior, p. 410.
Aspecto dialético extremamente curioso ocorre também aqui. Os mercadores são auxiliados pelo rei, que
vê na expansão das cidades e das feiras, uma forma de solapamento do poder dos senhores feudais com
o consequente aumento de seu (do rei) poder. Esta classe de mercadores, alguns séculos depois, é que vai
constituir a base da burguesia nascente, que então se volta, em 1789, contra o poder do rei, afastando o
absolutismo que havia prestado auxílio inicial para a formação desta mesma burguesia.
197
Sztajn, “Teoria...”, p. 33.
195
196
112
que é uma criação dos modernos economistas. Nada mais enganoso, porque a
origem dos mercados pode ser retrotraída à Idade Média, às feiras. Indisputado
que mercados ganham maior visibilidade após a Revolução Industrial porque a
produção em massa leva à distribuição massiva dos bens produzidos seriadamente.
Essa é uma explicação para que a análise dos mercados passasse a atrair a atenção
dos estudiosos; mercados tornam-se importantes à medida que permitem divisar
soluções inovadoras para problemas complexos de produção e distribuição de
bens”. A palavra vem do latim “mercatus-us”, significando primeiramente o
local físico no qual são feitos negócios, passando a significar posteriormente
o próprio comércio, tomado como um todo abstrato e genérico. Termo mais
de natureza econômica 198, passa a ter interesse para a ciência do direito
especialmente no momento em que se discutem as interferências das leis e
das decisões de natureza jurisdicional como elementos a serem sopesados
para o próprio ordenamento do dito “mercado”.
6.1.3 – Novamente é de se lembrar Rachel Sztajn199 que propõe
entender-se o mercado como “instituição”, com a característica de
“criar incentivos, reduzir incertezas, facilitar operações entre pessoas” bem
como sua observação de que o mercado não serve como instrumento
para que se estabeleça a distribuição de riqueza justa ou socialmente
adequada. Com efeito, ao mercado interessa o máximo de criação de
riquezas e, neste ponto, lembrando-se a propósito a afirmação da escola
de pensamento do “direito & economia”, segundo a qual as ações devem
ser norteadas pelo chamado “conceito de eficiência”, ante a necessidade
de maximização da riqueza tendo em vista os escassos bens existentes.
Poder-se-ia, portanto, afirmar que o “mercado” é, sobretudo, uma
técnica de incentivos, de redução de incertezas, de maximização de
resultados, de facilitação de operações entre pessoas e que, como técnica,
procura a eficiência. No entanto, Galgano 200 adverte para o perigo de
se pretender ver no direito um “simple accesorio de la economía, mera
técnica de regulación de las relaciones económicas” dizendo que tal visão
choca-se com a exigência de proteção aos empresários economicamente
De Plácido e Silva, p. 530: “Mercado. Na técnica de economia, designa a relação estabelecida entre a oferta e a
procura de bens e/ou serviços e/ou capitais. Designa ainda o conjunto de pessoas e/ou empresas que oferecem
ou procuram bens e/ou serviços e/ou capitais, caracterizando a relação mercadológica”.
199
Sztajn, opus cit., p. 34.
200
. Galgano, “Historia del derecho...”, p. 219.
198
113
mais fracos, bem como “... a la masa de los consumidores y, em general, a
los restantes grupos sociales”.
6.1.4 – Para o âmbito da análise aqui pretendida, verificado que o
mercado procura a eficiência, constata-se que, como instrumento de busca
da eficiência, em seu interior atuam as sociedades empresárias ou “firmas”.
Embora falando especificamente sobre direito societário, Salomão Filho201
anota que a chamada “análise econômica do direito”, originária do direito
antitruste, que consagra o imbricamento dos raciocínios de natureza
econômica e jurídica, ganha solidez teórica com o pioneirismo dos estudos
de Calabresi e Coase, pensamento que se expande nas décadas de 70 e 80 para
os diferentes campos do direito. No entanto, embora a princípio a escola da
“análise econômica do direito”, tenha indicado corretamente a necessidade do
estudo aprofundado das ferramentas de busca da eficiência, passou a ostentar
o que Salomão Filho chama de “distinta conotação ideológica”, influenciada
pela Escola de Chicago, de ideário acentuadamente liberal, anotando que202:
“Em especial a partir do final dos anos 70 e durante os anos 80 a análise econômica
do Direito ganha uma distinta conotação ideológica. Isso por uma razão muito
simples. Grande parte, se não a quase totalidade, de seus seguidores faz parte da
chamada Escola de Chicago, cujo ideário liberal é fartamente conhecido. Por essa
razão, a partir sobretudo desse período, a análise econômica do Direito passa a
ser identificada ou talvez confundida com a chamada ‘teoria da eficiência’. Essa
indevida identificação responde por muitas de suas críticas e até por seu declínio
teórico nos anos 90”. Passa a pretender orientar a própria atividade legislativa
para que, sob o “princípio da eficiência”, sejam afastados todos os eventuais
elementos de incerteza que podem “atrapalhar” o perfeito funcionamento
do sistema, que deve estar pronto para propiciar o máximo de formação de
riqueza para as empresas que atuam no mercado. Salomão Filho203 aduz em
complemento que a “teoria da eficiência”, sob o ideário liberal da Escola
de Chicago “não pretende ser apenas analítica, como é a análise econômica
do Direito. Pretende – isso, sim – erigir o parâmetro de orientação das normas
jurídicas, o chamado ‘princípio da eficiência’. Segundo esse princípio, as normas
jurídicas são eficientes ‘quando permitem a maximização de riqueza global,
Salomão Filho, p. 28.
Salomão Filho, p. 29
203
Salomão Filho, p. 29.
201
202
114
mesmo que isso seja feito à custa de prejuízo a um agente econômico específico’.
Em termos econômicos essa definição liberal de eficiência consiste na negação da
definição de eficiência de Pareto, segundo a qual uma solução é eficiente quanto
traz vantagens a um dos participantes sem prejudicar os outros. O fundamento
é a afirmação da insustentabilidade da definição de Pareto em um sistema de
direito privado cuja ideia básica é a autonomia da vontade, e não a igualdade”.
6.1.5 – Esta visão pretende transferir poder ao interesse da atividade
empresarial, ao interesse do mercado, ao defender exclusivamente a maximização
da produção, da riqueza e do lucro, o que redundará na transferência da riqueza
acrescida para aqueles com maior poder de pressão, ou seja, para aqueles que
já possuem a riqueza. O poder não se detém, não tem autorregularão e sobe
os degraus que se lhe antepõem se não for coartado; aqui, aparece desde logo
um aspecto curioso, um degrau galgado e que examinaremos adiante. Ou
seja, para a defesa do interesse do mercado ante o “princípio da eficiência”,
o domínio da atividade legislativa não é mais suficiente, sendo necessário
caminhar no sentido do afastamento da incerteza jurisdicional, o que já está
sendo procurado, como tentaremos demonstrar adiante.
6.1.6 – O princípio constitucional estabelecido no País é o da livre
iniciativa, para as pessoas e para as empresas que quiserem atuar no mercado,
como se constata da leitura do artigo 170 da Constituição Federal e de
seu parágrafo único204, liberdade, porém desde que observados os demais
princípios também estabelecidos nos incisos do artigo, de especial interesse
agora o inciso V (defesa do consumidor), na medida em que se pode albergar
no conceito de livre mercado, a eficiência perseguida pela escola do “direito
& economia” e, no conceito de defesa do consumidor, a busca do princípio
da equidade. A defesa do mercado é a defesa do interesse empresarial, a defesa
do consumidor é a tentativa de consecução do objetivo social do direito.
6.1.7 – O que interessa sobretudo nesta análise, é constatar que a busca
da eficiência, a busca de resultados positivos, passa a ser um dos elementos
de definição do mercado. E, nesta busca de eficiência, um dos campos de
atuação dirige-se naturalmente para a tentativa de fixação de garantias cada
204
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim
assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios.
Parágrafo único. “É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente
de autorização de órgãos públicos, salvos nos casos previstos em lei”.
115
vez mais sólidas e, como já anotado anteriormente, de execução mais rápida,
para os negócios empresariais. O neologismo que acaba se consagrando na
atualidade, para o ponto ideal de fixação das garantias, emerge na expressão
“blindagem”, no sentido de – como tentaremos demonstrar –, efetuar
uma defesa das garantias de tal forma sólida que não permita a nenhum
elemento exterior de perturbação influir deleteriamente em tais negócios.
A “blindagem” pretende ser tão eficiente que chega a ensaiar os primeiros
passos, no sentido de impedir até que a atividade jurisdicional venha a se
caracterizar como elemento “exterior” de perturbação.
6.2 – Direito real (tradicional) de garantia
6.2.1 – Sempre é curioso constatar, no exame histórico dos institutos de
direito, o verdadeiro movimento pendular que pode ser observado através
das modificações que se apresentam, às vezes separadas por distância de
dezenas de séculos. No presente caso, em um primeiro momento do direito
romano, a fidúcia cum creditore demonstrou ser um instrumento eficaz para o
estabelecimento de garantias em favor do credor, instituto que porém trazia
o sério inconveniente de tirar do devedor a propriedade e a posse direta do
bem que eventualmente poderia ser necessário a ele, exatamente para manter
uma atividade econômica que lhe possibilitasse o pagamento da dívida
contraída. Como diz Longo referindo-se à fidúcia cum creditore, esta destinavase à constituição de garantia mais eficaz, pois “presuppone, come ogni, altra
forma di garanzia reale, una obligazione del fiduciante verso il fiduciario, cioè un
credito di quest’ultimo alla cui migliore assicurazione essa è destinata a servire”205.
Completa ainda seu pensamento, aduzindo que “la garanzia inerente alla
fiducia cum creditore è la più ampia ed energica che possa concepirsi, perchè si
attua, non con l’attribuzione al creditore di un ius in re limitato, ma addirittura
con l’attribuzione al creditore della proprietà della cosa”. Antão de Moraes206 diz:
“A escassez dos esquemas jurídicos, previstos pelo legislador, é que obriga as partes a
recorrer a esse meio indireto para obter a solução de certas dificuldades criadas pelas
circunstâncias especiais de seus negócios. É o que bem explica Ferrara”, lembrando
a seguir que o autor italiano diz que o recurso a tal tipo de negócio deve-se à
inexistência de “... una forma corrispondente ad un certo intento economico...”.
205
206
Longo, p. 69.
Moraes, p. 386.
116
6.2.2 – Sem embargo de tudo isto, e exatamente pelo inconveniente de
tirar do devedor a propriedade e a posse do bem garantidor do débito, o negócio
fiduciário vai caindo em desuso, até tornar-se desnecessário ao funcionamento
do sistema então existente, desaparecendo até o registro de sua existência, pelas
interpolações determinadas por Justiniano, como já anteriormente examinada.
C. Accarias207, falando sobre a fidúcia no direito romano, diz que ela “présentait
de grave inconvénients pour le débiteur: en effet, outre qu’elle lut ôtait l’usage de
sa chose, elle l’exposait à ne la recouvrer que détériorée par le fait ou la négligence
du créancier”. Este tipo de inconveniente desaparecia com a instituição da
hipoteca, pela qual o bem imóvel permanecia na integral propriedade do
devedor, de tal forma que o sistema existente após Justiniano afastou de vez o
negócio fiduciário e instituiu as garantias da hipoteca e do penhor.
6.2.3 – No entanto, muitos séculos depois, com a necessidade de
aperfeiçoamento das garantias para a distribuição dos bens produzidos em
série como consequência da revolução industrial, a hipoteca, o penhor e a
anticrese perderam a efetividade esperada, suplantadas que eram as preferências
do credor garantido por uma série de outros credores, vistos como mais
privilegiados do que o garantido. Arnoldo Wald, escrevendo em 1969, antes
da edição do Decreto-lei 911/69, porém já criado o instituto de alienação
fiduciária sobre móveis pelo artigo 66 da Lei 4728/65 anotava que208 “para
o atendimento do crédito ao consumidor, as formas tradicionais de garantia,
como o penhor mercantil e a venda com reserva de domínio, se apresentam como
ineficientes”. Posteriormente, em 1971, desta vez examinando a possibilidade
de fixação legislativa de alienação fiduciária sobre imóvel, Wald dizia que209:
“No tocante à garantia na venda de imóveis a prestação, reconheceu-se, desde logo,
que os aspectos tradicionais da hipoteca e da promessa de compra e venda não
atendiam às novas necessidades”. Escrevendo em 1900, Bonfante já anotava
esta perda de valor da garantia real, dizendo que210 “... le garantie reali non
rappresentano se non cause di prelazione a favore de creditore, che in questa
generale direzione si vuol assicurare um posto migliore”, comparando a perda
de solidez relativamente ao direito primitivo, ao acrescentar que “diversa è la
struttura e diversa la funzione della garantie reale nell’ordinamento primitivo”.
Accarias, p. 731.
Wald, “Da Alienação Fiduciária”, RT-400/25.
209
Wald, “Novos instrumentos para o direito imobiliário: Fundos, Alienação Fiduciária e Leasing”, RT. 432/251.
210
Bonfante, “Diritto Romano”, p. 428.
207
208
117
6.2.4 – Entre os créditos que passaram a suplantar a preferência
decorrente das garantias tradicionais da penhora e da hipoteca, alinharamse especialmente os créditos tributários com o fortalecimento do Estado, e o
crédito trabalhista, a partir do entendimento de que a propriedade e os bens
devem ser examinados a partir de sua função social. Não só este tipo de objeção
passou a existir, pois também a ele se somava a dificuldade que sobrevinha
quando da execução judicial de tais bens, com a demora que o andamento
processual acarreta para a satisfação da dívida em aberto. Todos estes elementos
é que levaram, de um lado, ao ressurgimento do negócio fiduciário e, de
outro lado, à tentativa de solucionar a demora do provimento jurisdicional
satisfativo. O negócio fiduciário, juntamente com o patrimônio de afetação
e a securitização trazem eficácia à garantia instituída; a execução extrajudicial
neutraliza, por afastamento da jurisdição, a demora da prestação jurisdicional,
possibilitando a rapidez que os negócios empresariais hoje exigem.
6.3 – Alienação fiduciária de bem móvel
6.3.1 – O último capítulo do Título III (Da Propriedade) do Livro III
(Do Direito das Coisas), que engloba os artigos 1361 a 1368 do Código
Civil de 2002, trata da propriedade fiduciária, matéria que não era tratada
no Código de 1916. Não haveria mesmo qualquer razão para que esta
matéria fosse tratada no anterior Código, pois naquele momento o sistema
jurídico brasileiro prescindia do uso deste instituto, sendo então suficientes
os sistemas tradicionais que visavam garantir os negócios. A necessidade de
instituição de garantia com maior eficácia e que possibilitasse uma execução
mais expedita apenas passou a se impor quando se tentou, a partir da década
de 60, o desenvolvimento da indústria nacional, então com especial ênfase
na produção de veículos automotores. O Título III do novo Código cuida
“Da Propriedade”, enquanto o Título X cuida das garantias tradicionais:
penhor, hipoteca e anticrese. Não obstante, ambos os títulos, nos respectivos
primeiros artigos, fazem menção ao direito de garantia instituído sobre a
propriedade. Por questão de método, talvez teria sido mais correto incluir a
fidúcia como garantia no Título X e não no Título III; de qualquer forma,
como há propriedade fiduciária não só para garantia, como também para
fins de administração (v.g., titularidade fiduciária sobre créditos para fins de
lastro em securitização, conforme artigo 9º da Lei 9514/97), justifica-se a
distribuição da matéria como constante do Código. Outra situação tomada
apenas como exemplo de fidúcia sem que se configure necessariamente
118
garantia, é a prevista no artigo 41211 da Lei das S/A. Tal artigo menciona
que “... a instituição depositária (adquire) a propriedade fiduciária das ações”,
dizendo respeito à custódia dos valores. Guerreiro212 anota que “não se trata,
portanto, de propriedade fiduciária em sentido amplo, mas de modalidade
adstrita unicamente à prestação de tais serviços, que incumbem às instituições
autorizadas pela CVM”.
6.3.2 – Curioso também é verificar que o Código Civil, em seu
artigo 1361213, cuida apenas da propriedade fiduciária sobre bens móveis,
silenciando sobre bens imóveis. Quando o Código foi promulgado, em
10.1.02, já estavam em vigor diversos diplomas legais que estabeleciam
a propriedade fiduciária sobre bens imóveis, como a Lei 8668/93 que se
refere aos imóveis integrantes das carteiras dos fundos de investimento
imobiliário, como também a Lei 9514/97, que possibilitou a alienação
fiduciária sobre imóveis, tipo de negócio anteriormente apenas restrito a
bens móveis. A explicação pode ser buscada no fato de o Código Civil
ter se originado de projeto do ano de 1973, época na qual a alienação
fiduciária apenas era possível de ser instituída sobre bens móveis.
Não obstante a restrição que o Código Civil fez ao mencionar apenas
o bem móvel, não houve qualquer manifestação, quer doutrinária ou
jurisprudencial, no sentido de que teria havido revogação de outros tipos
de propriedade fiduciária, o que, aliás, está correto, visto que a revogação
apenas ocorreria se tivesse havido declaração expressa, se houvesse
incompatibilidade com a lei anterior ou se o novo Código regulasse
inteiramente a matéria tratada pelas leis anteriores, o que não ocorreu.
Ademais, tratando-se o Código Civil de lei nova de caráter geral sobre
matéria já tratada em outras leis, não há revogação nem modificação
destas leis às quais não houve referência expressa de revogação, na forma
dos parágrafos 1º e 2º do artigo 2º214 do Decreto-lei 4657/42, Lei de
Introdução ao Código Civil.
Art.41. “A instituição autorizada pela Comissão de Valores Mobiliários a prestar serviços de custódia de ações
fungíveis pode contratar custódia em que as ações de cada espécie e classe da companhia sejam recebidas em
depósito como valores fungíveis, adquirindo à instituição depositária a propriedade das ações”.
212
Guerreiro, p. 51.
213
Art. 1361. Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com
escopo de garantia, transfere ao credor.
214
Art. 2º ... § 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela
incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. § 2º A lei nova, que
estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.
211
119
6.3.3 – Além da alienação fiduciária e da cessão de direitos creditórios
sobre bens imóveis, previstas nas Leis 4.864/65, Decreto-lei nº 70/66, Lei
9.514/87 e Lei 10.931/04, que serão objeto de análise logo abaixo, o sistema
jurídico brasileiro prevê a cessão fiduciária de ações, na Lei 6.404/76 e a
garantia cedular para financiamentos com cédula de produtor rural (CPR),
na Lei 8.929/94. Neste tópico, está sendo examinada especificamente a
alienação fiduciária de bem móvel que foi introduzida em nosso sistema pela
Lei 4.728/65, posteriormente alterada pelo Decreto-lei 911/69. Chalhub215
anota que é característica de todos estes casos, a formação de um patrimônio
autônomo diretamente vinculado à garantia do negócio que está sendo
feito, garantidor assim do débito assumido, transferindo-se a titularidade
do bem ao credor, na confiança de que a propriedade de referido bem se
tornará plena na pessoa do devedor tão logo seja efetuado o pagamento da
dívida. Sousa Lima, escrevendo em 1962, portanto antes da introdução
da garantia fiduciária pela Lei 4728/65, quase que de forma premonitória
anota a necessidade de que todas as legislações modernas passem a lançar
mão da garantia fiduciária, iniciando seu argumento com a pergunta sobre
a necessidade ou não do renascimento da velha instituição romana para, em
seguida responder216: “As condições atuais da vida e as necessidades práticas da
civilização moderna, sem dúvida alguma, impõem uma resposta afirmativa. O
crescer contínuo das atividades sociais, hoje como ontem, impõe novas formas
jurídicas, denunciando a insuficiência das atualmente existentes”.
6.3.4 – A alienação fiduciária instituída com a Lei 4728/65 e com o
Decreto-lei 911/69, aproxima-se do negócio fiduciário do direito germânico,
no qual a propriedade era transferida ao credor de forma limitada, resultando
daí que, se acaso o credor vendesse o bem entregue pelo fiduciante a um
terceiro, este receberia uma propriedade “resolúvel”, na medida em que
deveria devolver o bem caso houvesse o pagamento do débito. Como já
examinado anteriormente, se na fidúcia cum creditore do direito romano,
o credor faltasse à confiança nele depositada e vendesse o bem, o devedor
fiduciante não teria contra o terceiro qualquer ação, vez que o terceiro
estaria na situação de proprietário pleno, tendo o credor exercido apenas
um dos poderes decorrentes da propriedade, ou seja, a venda do bem. Em
215
216
Chalhub, p. 140.
Lima, p. 157.
120
tal caso, ao devedor fiduciante que houvesse pago o débito, restaria apenas
a possibilidade de ação direta contra o credor fiduciário, com quem havia
celebrado o contrato, nada podendo pleitear contra o terceiro adquirente.
L. Kaul, citado por Moreira Alves217 a partir de seu “Das Fiduziarische
Rechtsgeschaft” anota que “... tinha o transmitente – o fiduciante – no direito
germânico uma posição muito mais segura do que no direito romano. A distinção
fundamental se baseava no próprio poder jurídico outorgado: o fiduciário romano
obtinha um direito pleno, ao passo que o fiduciário germânico tinha um poder
jurídico real limitado pela destinação”.
6.3.5 – No entanto, a própria conceituação da natureza da propriedade
que está sendo alienada vem inçada da controvérsia desde a criação deste novo
instituto, iniciando-se pela adequação do termo “propriedade resolúvel” ante
o que dispunha o Código Civil, em seu artigo 647, praticamente repetido
em todos os seus termos pelo artigo 1359 do Código de 2002, com alteração
de apenas dois termos. Orlando Gomes218 diz que não há resposta conclusiva
sobre a questão de ser ou não possível a formação de propriedade fiduciária
com a substituição do ato físico da tradição pela celebração do contrato.
Wald desde logo manifestou o entendimento de que219 “caracteriza-se a
alienação fiduciária pelo fato de constituir, em favor da instituição financeira,
uma propriedade resolúvel e onerada com encargo. É propriedade resolúvel
na forma do artigo 647 do Código Civil, porque extingue-se em virtude do
pagamento total do débito pelo alienante”. Moreira Alves220, diz que se trata de
propriedade resolúvel, resolução que se dá com a extinção da obrigação, ou
com a venda pelo credor, ou com a renúncia da modalidade da propriedade
instituída. Sem embargo da importância de tal discussão, ainda assim no
presente trabalho é necessário ressaltar aspectos que digam respeito mais
diretamente à eficácia da garantia instituída, bem como o princípio do que
poderia ser visto como tentativa de distanciamento da atividade jurisdicional,
o que vai se acentuando nas leis posteriores.
6.3.6 – Não há mais qualquer discussão jurisprudencial sobre o fato de
efetivamente ter o credor fiduciário a propriedade resolúvel do bem alienado
Alves, “Da alienação fiduciária em garantia”, p. 155.
Gomes, “Contratos”, p. 460.
219
Wald, “Da Alienação Fiduciária”, RT. 400/25.
220
Alves, “Da Alienação Fiduciária em Garantia”, p. 161.
217
218
121
fiduciariamente, sendo possuidor indireto, vez que a posse direta é atribuída
ao devedor fiduciante, que se transforma em depositário do bem. Não se
desconhece a farta discussão que pode se estabelecer sobre a natureza jurídica
da propriedade, posse e depósito fixados na legislação, interessando, porém
à presente discussão o resultado final em termos de se propiciar ao credor a
mais eficaz forma de execução do contrato em caso de descumprimento por
parte do devedor, sendo possível identificar os passos que foram sendo dados
em tal sentido, a partir do exame das modificações que foram sendo feitas
na legislação. Inicialmente, o parágrafo 8º221 do artigo 66 da Lei 4728/65
estabelecia que, em caso de inadimplemento das prestações por parte do
devedor fiduciante, era dado ao credor fiduciário o direito de reivindicar a
coisa. No entanto, a reivindicação se faria por intermédio de ação de rito
ordinário, o que não propiciaria a rapidez necessária à execução da garantia
e à retomada do bem. Moreira Alves222 faz detalhada análise das discussões
que então se estabeleceram, sobre o meio processual cabível em caso de
inadimplemento. Esta “incerteza legislativa e jurisdicional” foi “consertada”
pela promulgação do Decreto-lei 911, de 1.10.69 que deu nova redação ao
artigo 66 e, em seu artigo 2º223, tentou dar solução final ao problema da
incerteza, colocando à disposição do credor a ação de busca e apreensão.
6.3.7 – A observação do que ocorreu a partir de 1969 denota que,
efetivamente, o decreto-lei foi elaborado com a primordial preocupação
de tentar resolver a demora que então estava ocorrendo para a execução da
garantia. Em sua obra sobre a matéria, Moreira Alves224 anota que ante a
controvérsia que se estabeleceu jurisdicionalmente “começou a haver o risco
de o instituto da alienação fiduciária ser marginalizado, porquanto, na prática,
a garantia dele decorrente não tinha a eficácia que seria mister para efetivamente
dar maior proteção ao crédito”. Em outras palavras, a necessária interpretação
jurisdicional que deve ser dada a todo texto de lei estava se constituindo em
empecilho para a eficácia perseguida pelo sistema econômico, que necessitava
§ 8º Nos casos do § 5º, o proprietário fiduciário ou aquele que comprar a coisa, poderá reivindicá-la em mãos
do devedor ou de terceiros.
222
Alves, pp. 11-21 faz exaustiva análise sobre o caminho percorrido entre o texto inicial do artigo 66 na Lei
4728/65 e sua alteração por meio do Decreto-lei 911/69.
223
Art. 3º O proprietário fiduciário ou credor poderá requerer contra o devedor ou terceiro a busca e apreensão
do bem alienado fiduciariamente, a qual será concedida liminarmente, desde que comprovada a mora ou o
inadimplemento do devedor.
224
Alves, p. 19.
221
122
fornecer ao empresário fabricante de bens, uma forma eficaz de execução.
6.3.8 – Também na tentativa de afastar qualquer discussão jurisdicional
sobre a forma de venda do bem apreendido, o artigo 2º do Decreto-lei
911/69 estabeleceu que esta seria feita extrajudicialmente, com devolução de
eventual saldo credor ao devedor fiduciante, que sempre ficaria responsável
pelo saldo devedor, se o valor apurado na venda extrajudicial não fosse
suficiente para o pagamento do saldo devedor (§ 5º do artigo 66, na redação
dada pelo Decreto-lei 911/69). Anote-se também – o que será necessário
para o exame das modificações posteriormente introduzidas no sistema da
alienação fiduciária -, que o artigo 4º do referido decreto estabeleceu que se
o bem não fosse localizado, o credor poderia requerer a conversão do pedido
de busca e apreensão em ação de depósito, prevista nos artigos 901 a 906 do
Código de Processo Civil, anotando-se que o parágrafo único do artigo 904
prevê que, frustrada a entrega do bem ou de seu equivalente em dinheiro,
será decretada a prisão do depositário infiel. É necessário ressaltar este ponto,
pois se o Decreto-lei 911/69 foi eficaz no sentido de afastar a discussão
processual que exigiria a ação reivindicatória de rito ordinário, colocando
em seu lugar a ação de busca e apreensão, não teve a mesma eficácia quando
pretendeu estabelecer a prisão do devedor em caso de ausência de devolução
do bem ou pagamento do saldo devedor existente.
6.4 – Alienação fiduciária de bem imóvel
6.4.1 – Mário Júlio de Almeida Costa, Catedrático da Faculdade de
Coimbra, em artigo publicado em 1978225, anota a perda de credibilidade
que sofrem as garantias clássicas da fiança, penhora, hipoteca e anticrese,
anotando que tais garantias “... não satisfazem importantes áreas creditícias
em que apresentam consideráveis desvantagens, tais como o custo, a morosidade
em executá-las e até a sobreposição de privilégios a favor de certos créditos,
especialmente do Estado e de outros entes públicos”. Sugere então este autor,
examinando o instituto da alienação fiduciária introduzido pelo Decreto-lei
911/69 – e manifestando admiração pela criatividade do direito brasileiro –,
que tal tipo de garantia estenda-se também aos imóveis financiados, o que
veio há ocorrer dezenove anos após, com a promulgação da Lei 9514/97.
225
Costa, RT. 512/11.
123
Aliás, curiosamente, este autor chega a formular um sistema que se aproxima
bastante do sistema de securitização de créditos imobiliários ora instaurado no
Brasil, por meio da Lei 9.514, de 20.11.97, com as alterações posteriormente
introduzidas pela Lei 10.931, de 2.8.04. Observe-se a semelhança entre a
securitização atual e a sugestão do autor, em 1978226: “As soluções de que
cogitamos, no âmbito da alienação fiduciária em garantia, são as seguintes: a)
Consiste uma delas em o construtor proprietário das unidades habitacionais e
devedor da entidade financiadora, transferir a esta última, em garantia, o seu
direito de propriedade sobre essas unidades, sendo a transmissão condicionada,
resolutivamente, ao pagamento da dívida. Como forma de refinanciamento do
construtor, poderia o mesmo ceder o seu direito expectativo a terceiros e estes,
ao ultimarem o pagamento da dívida à entidade financiadora, transformarse-iam em proprietários das unidades habitacionais”. Sete anos antes da
publicação deste artigo do Professor de Coimbra, Arnoldo Wald, em artigo
publicado em 1971, falando sobre a necessidade de aporte de capitais para
os financiamentos imobiliários, já preconizava que227 “uma solução adequada
para o problema poderia ser a extensão aos imóveis da alienação fiduciária,
mediante nova regulamentação da matéria. Embora não se pretenda identificar,
na sua totalidade, o regime da alienação fiduciária de bens móveis e imóveis, é
incontestável que o novo instituto, que permitiu o extraordinário desenvolvimento
do crédito ao consumidor, é suscetível de uma adequada transposição e adaptação
para o mercado imobiliário”.
6.4.2 – Tanto a alienação fiduciária de bem imóvel quanto à securitização
dos créditos imobiliários estão previstos na Lei 9514/97 que “dispõe sobre o
sistema de financiamento imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa
imóvel e dá outras providências”. Em seu artigo 17228, esta lei estabelece as formas
de garantia para as operações de financiamento imobiliário, prevendo, entre
outras, a alienação fiduciária do imóvel, estendendo assim este tipo de garantia
que anteriormente apenas poderia incidir sobre bens móveis. A lei dedica o
seu Capítulo I (artigos 1º a 21) ao “sistema de financiamento imobiliário” e
após criar a possibilidade de incidência de alienação fiduciária sobre imóvel no
artigo 17, dedica todo o seu Capítulo II, sob o título “Da alienação fiduciária
Costa, RT. 512/18.
Wald, “Novos Instrumentos para o Direito Imobiliário: Fundos, Alienação Fiduciária e ‘Leasing’”, RT. 432/250..
228
Art. 17. As operações de financiamento imobiliário em geral poderão ser garantidas por: I ... II ... III ... IV–
alienação fiduciária de coisa imóvel.
226
227
124
de coisa imóvel” (artigos 22 a 33) a fixar as regras de constituição deste tipo de
garantia (artigos 22 a 25), execução da garantia em caso de inadimplemento
do fiduciante (artigos 26 a 31) ou sua falência (art. 32).
6.4.3 – O que a lei objetivou ao fixar determinado tipo de execução
extrajudicial foi, ao lado da sólida garantia que a propriedade fiduciária
propicia, tentar afastar os entraves que a demora da prestação jurisdicional
opõe ao direito do credor. A própria extensão da alienação fiduciária
aos bens imóveis decorreu da constatação de que a forma tradicional
de financiamento pelo “SFH”, o sistema financeiro de habitação, havia
se inviabilizado, pelo desinteresse dos empresários ante a dificuldade de
execução em caso de inadimplemento, com os percalços e protelações
que a garantia hipotecária sempre propicia. Portanto, neste ponto, a lei
inovou, ao substituir a garantia hipotecária pela alienação fiduciária,
até porque a experiência havia se mostrado frutífera no que tangia ao
financiamento de bens móveis, especialmente veículos. Se por este lado,
o negócio empresarial de construção de imóveis encontrava defesa contra
a inadimplência do adquirente, colocado então na situação de devedor
fiduciante, por outro lado a securitização objetivou permitir a defesa do
próprio empreendimento contra a eventualidade de azares administrativos
e financeiros do incorporador e ou construtor.
6.5 – Securitização de crédito imobiliário e patrimônio de afetação
6.5.1 – Da mesma forma que no exame da alienação fiduciária, a
preocupação com a garantia é um dos pontos que salta à vista na análise
da securitização, pois é sistema que pretende garantir o pagamento aos
adquirentes de títulos mobiliários emitidos pela sociedade de propósito
específico, em qualquer situação de descumprimento, seja do incorporador
construtor, seja do adquirente da unidade construída ou em construção,
seja da própria companhia de securitização. Luiz Ferreira Xavier Borges229
ressalta o que a operação de securitização significa em termos de garantia
para o investidor que adquire os títulos mobiliários emitidos pela companhia,
afirmando que o sucesso deste tipo de operação deve-se aos “mecanismos
de cobrança dos créditos, cada vez mais sofisticados, que dão segurança e
229
Borges, “Revista de Direito Bancário...”, p. 260.
125
operacionalidade à transação, bem como a possibilidade de se constituir garantias
necessárias e suficientes para dar segurança aos investidores”. Com efeito, na
operação de securitização, os créditos imobiliários que servem de lastro à
emissão dos títulos mobiliários constituem patrimônio especial segregado e
afetado aos títulos emitidos, como determina o artigo 10230 da Lei 9514/97.
Portanto, neste tópico da lei, estabelece-se regime fiduciário sobre os créditos
que lastreiam a emissão, formando tais créditos um patrimônio especial
separado, afetado como lastro de pagamento dos títulos mobiliários emitidos
pela companhia securitizadora.
6.5.2 – Esta determinação da lei vem na esteira do que já havia sido
previsto no artigo 8º231, estabelecendo em que consiste a operação de
securitização dos créditos cedidos pela construtora/incorporadora, ou seja:
a vinculação de tais créditos aos títulos mobiliários (securities, daí a origem
da imprecisa nomenclatura) emitidos e colocados à venda para o público
investidor. Portanto, percebe-se que o legislador lançou mão de vários
institutos, para criar um sistema eficaz para o financiamento imobiliário
nacional, valendo-se em um primeiro momento da extensão da alienação
fiduciária a imóveis; em um segundo momento, da instituição do regime
fiduciário sobre créditos transferidos pela construtora/incorporadora;
concomitantemente, valeu-se também do instituto da securitização e, logo
em seguida, lançou mão do patrimônio especial constituído pelos créditos
transferidos afetando-os ao pagamento dos títulos mobiliários emitidos pela
companhia securitizadora.
6.5.3 – Anote-se que nos países da Europa continental (Alemanha,
França, Itália, Espanha, Bélgica), já foi introduzida, com maior ou menor
sucesso, a operação de securitização, com lastro em garantia hipotecária
sobre o imóvel, como anota Armindo Saraiva Matias, Professor da
Universidade de Lisboa. Também na Inglaterra e nos Estados Unidos é
Art. 10. O regime fiduciário será instituído mediante declaração unilateral da companhia securitizadora no
contexto do Termo de Securitização de Créditos, que, além de conter os elementos de que trata o art. 8º,
submeter-se-á às seguintes condições: ... II – a constituição de patrimônio separado, integrado pela totalidade
dos créditos submetidos ao regime fiduciário que lastreiem a emissão; III – a afetação dos créditos como lastro
da emissão da respectiva série de títulos...
231
Art. 8º. A securitização de créditos imobiliários é a operação pela qual tais créditos são expressamente
vinculados à emissão de uma série de títulos de crédito, mediante Termo de Securitização de Créditos, lavrado
por uma companhia securitizadora, do qual constarão os seguintes elementos...
230
126
comum tal tipo de operação, anota este autor232. No Brasil, porém, ao ser
introduzida a securitização sobre imóveis pela Lei 9514/97, o lastro dos
títulos mobiliários passou a advir da alienação fiduciária de imóveis e não de
garantia hipotecária. Neste ponto é que se apresenta original a securitização
brasileira, pois a transferência fiduciária da propriedade imobiliária não é a
garantia existente nos demais países. A propósito, Mário Júlio de Almeida
Costa, Catedrático da Universidade de Coimbra233 anota que “a doutrina
alemã, apesar da larga utilização das transferências de propriedade em garantia
(‘Scherungsubertragung’) no respeitante a móveis, desaconselha-as pelo que toca
aos imóveis, tanto por razões de direito civil, dada a multiplicidade de actos que
a operação envolve, como por razões de direito fiscal, que a tornariam muito
onerosa para as partes”.
6.5.4 – A Lei 9514/97 criou este novo sistema, com alienação fiduciária
sobre o imóvel, atuando como sistema de garantia eficaz ante a possibilidade
de descumprimento das obrigações assumidas por parte do adquirente da
unidade imobiliária. Ao mesmo tempo, criou também a securitização do
crédito imobiliário, bem como a afetação deste crédito ao pagamento dos
títulos mobiliários. Com tais elementos, possibilitou uma firme garantia em
favor do investidor, pois colocava-o a salvo de qualquer percalço financeiro
ou administrativo que viesse a atingir a companhia securitizadora, tendo em
vista que o crédito cedido transformava-se em patrimônio afetado; garantiu
também a higidez da negociação em caso de inadimplemento por parte
do adquirente da unidade imobiliária, pois criou um sistema de execução
extrajudicial da garantia fiduciária extremamente expedito, nos artigos
22 a 33, permitindo uma rapidíssima execução, em cujo segundo leilão
o imóvel será alienado por qualquer valor, desde que igual ou superior ao
valor da dívida em aberto, em tal caso considerando-se extinta a dívida do
devedor fiduciante. Fecha-se assim o círculo criado para proteção do crédito
do investidor adquirente de títulos mobiliários, tanto contra a eventual
insolvência da companhia securitizadora, quanto em relação ao eventual
inadimplemento do adquirente da unidade imobiliária, tudo por meio de
execução extrajudicial.
232
233
Matias, “Titularização, um novo instrumento financeiro”, RDM. 112/48-54.
Costa, “Alienação Fiduciária em Garantia e Aquisição de Casa Própria”, RT-512/14.
127
6.5.5 – No entanto, como se pode verificar, havia necessidade de
guarnecer outro flanco na proteção instituída, pois sempre haveria o risco de
percalços financeiros e até mesmo de falência da sociedade incorporadora/
construtora, temor que se apresentava especialmente atual tendo em vista
a falência da sociedade empresária Encol, que possuía empreendimentos
imobiliários espalhados por todo o País. Este aspecto veio a ser cuidado
inicialmente pela Medida Provisória 2.221, de 4.9.01, que introduziu na Lei
4.591/64 os artigos 30-A até 30-G, posteriormente substituídos pelo artigo
53 da Lei 10.931/04, que introduziu os artigos 31-A234 até 31-F; em resumo
final, por meio desta legislação veio a ser criada a possibilidade de instituição
de patrimônio especial, afetado à incorporação e entrega das unidades
imobiliárias aos respectivos adquirentes, de tal forma que mesmo a eventual
falência da incorporadora/construtora não viria a permitir a arrecadação
do terreno e das acessões sobre ele existentes. Pelo artigo 1º235, esta Lei
10931/04 pretendeu reforçar ainda mais as garantias, criando incentivos para
que a incorporadora do imóvel em construção providenciasse a afetação do
terreno e das acessões; para tanto, criou um sistema de tributação especial,
outorgando benefícios fiscais ao incorporador que transformasse terreno e
acessões em patrimônio especial de afetação.
6.5.6 – Embora não objeto específico do presente trabalho observe-se
ainda assim que a Lei 10931/04 pode eventualmente ser entendida como
inconstitucional, pois em seu artigo 1º declara estar instituindo “regime
especial de tributação aplicável às incorporações imobiliárias, em caráter
opcional e irretratável enquanto perdurarem direitos de crédito ou obrigações do
incorporador junto aos adquirentes dos imóveis que compõem a incorporação”.
No entanto, esta lei cuida de diversas outras questões estranhas ao aspecto
tributário, o que é vedado pelo artigo 7º da Lei Complementar nº 95, de
26.2.98, que dispõe “sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação
das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal,
e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona”. Tal
Art. 31-A – A critério do incorporador, a incorporação poderá ser submetida ao regime de afetação, pelo qual o
terreno e as acessões objeto de incorporação imobiliária, bem como os demais bens e direitos a ela vinculados,
manter-se-ão apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação, destinado à
consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes.
235
Art. 1º - Fica instituído o regime especial de tributação aplicável às incorporações imobiliárias, em caráter
opcional e irretratável enquanto perdurarem direitos de crédito ou obrigações do incorporador junto aos
adquirentes dos imóveis que compõem a incorporação.
234
128
lei complementar, em seu artigo 7º236, estabelece que o primeiro artigo da
lei aprovada indicará seu objeto, complementando que a lei não pode conter
matéria estranha a seu objeto ou vinculada a ele por afinidade, pertinência
ou conexão. A Lei 10.931/04 tem sofrido este tipo de crítica, tendo, aliás, já
sido julgada inconstitucional por uma das Câmaras do Tribunal de Justiça
de São Paulo237.
6.5.7 – Aliás, esta preocupação com a possibilidade de declaração
de inconstitucionalidade tem também sido motivo de cuidado por
parte das sociedades empresárias atuantes no campo do financiamento
imobiliário. A “ABDE – Associação Brasileira de Instituições Financeiras
de Desenvolvimento” apresentou consulta ao Professor Cândido Rangel
Dinamarco sobre este ponto, tendo a resposta sido publicada na Revista de
Direito Imobiliário nº 51. Concluiu Dinamarco que238 “... o sistema legal de
garantia aos créditos mediante a alienação fiduciária de bens imóveis não se choca
com a garantia constituiconal do ‘due process of law’”, indicando que o recurso
ao controle jurisdicional é possível em dois determinados momentos e com
duas finalidades, ou seja, “logo ao início, quando da notificação para purgar a
mora ou durante o procedimento perante o registro imobiliário destinado a esse
fim”. Além destes momentos, outros também surgirão e que propiciarão o
pedido de socorro jurisdicional, pois como reitera Dinamarco, “tudo, com
apoio na promessa constitucional de acesso à Justiça, que a lei não arreda nem
poderia arredar”.
6.6 – Garantia contra o devedor, contra terceiros e contra a “jurisdição”
6.6.1 – No direito atual do Brasil, a junção destes diversos institutos
– fidúcia, patrimônio de afetação e securitização – pelos diplomas legais
referidos, esteve voltada para a busca da maior eficácia possível ao sistema de
Art. 7o O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os
seguintes princípios:
I - excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto;
II - a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou
conexão;
III - o âmbito de aplicação da lei será estabelecido de forma tão específica quanto o possibilite o conhecimento
técnico ou científico da área respectiva;
IV - o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando a subsequente se
destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa.
237
Agravo de Instrumento nº 7.011.347-2, 23ª Câmara de Direito Privado do TJSP. julgado em 29.6.05.
238
Dinamarco, RDI 51, p. 241.
236
129
garantias ligadas ao negócio imobiliário. Cria-se um cinturão de proteção ao
negócio imobiliário como um todo, de tal forma que qualquer instabilidade
da incorporadora/construtora, mesmo sua falência, não interferirá na
garantia constituída pela alienação fiduciária do imóvel e sua instituição como
patrimônio de afetação. Relembre-se que na forma estabelecida no Decretolei 911/69, a falência do devedor fiduciante interferia na garantia, pois “uma
vez decretada a falência a lei determina que não mais pode ser intentada a ação
de depósito, só admitindo a restituição, conforme jurisprudência do STF e das
demais cortes do país”, nas palavras de Wald239. Da mesma forma, e também
pelo patrimônio de afetação e instituição da garantia fiduciária sobre os
créditos cedidos pela incorporadora/construtora em favor da companhia de
securitização, estão as garantias a salvo de problemas que possam vir a atingir
esta companhia. Por outro lado, pela execução extrajudicial da garantia
constituída pela alienação fiduciária da unidade imobiliária em construção
– ou já construída –, será possível neutralizar qualquer efeito deletério que
certamente viria do inadimplemento por parte do adquirente da unidade
imobiliária, sendo possível a retomada rápida do imóvel, sem que haja
obrigação de devolução de qualquer valor já pago, não importando quanto
já tenha sido pago. Portanto, a par das garantias constituídas relativamente
às partes que atuam no negócio, a lei indica também uma forma de garantia
contra a própria jurisdição, pretendendo colocar os negócios imobiliários a
salvo de pendências judiciais.
6.6.2 – Autores têm apontado o que entendem como dificuldade
decorrente da falta de adaptação do Judiciário às exigências de uma nova
economia. Diz Borges240 que “A economia brasileira, mais desestatizada e
regulamentada, tornou-se mais complexa. A velocidade do processo de mudanças
tornou mais voláteis as variáveis envolvidas no processo de negociação de crédito
bem como no gerenciamento de investimentos próprios e de terceiros. ... As
dificuldades do nosso Judiciário em adaptar-se a essa volatilidade também devem
ser consideradas como geradoras da mudança”. Às vezes, a crítica estende-se
também para outras instituições que cuidam das relações jurídicas que
interferem nos negócios, dizendo o mesmo autor pouco adiante241: “Algumas
Wald, “Os efeitos da falência sobre a alienação fiduciária”, RF. 284/451.
Borges, p. 257.
241
Borges, p. 266.
239
240
130
das principais barreiras ao crescimento das operações de securitizações de
recebíveis estão nos problemas de nosso aparelho Judiciário para dar celeridade às
lides envolvendo o Mercado de Capitais e, especialmente, nas causas trabalhistas,
fiscais e falimentares, bem como nas barreiras regulatórias, quer do Bacen quer
da CVM”. Esta perspectiva de análise trouxe repercussões no meio legislativo
e aos poucos se vem notando a tendência de dispensar-se a intervenção do
Judiciário para a solução de questões decorrentes de negócios, tendência
que se mostrou especialmente fortalecida na edição da Lei 9514/97, com o
sistema de execução extrajudicial nela instituído.
6.6.3 – Tal tipo de execução extrajudicial está previsto em dois artigos
da Lei 9514/97, os artigos 26 e 27. Estabelece o artigo 26 que se o fiduciante
não pagar o saldo devedor vencido, a propriedade consolidar-se-á em nome
do fiduciário. O fiduciante será intimado pelo Oficial do Registro de Imóveis
para o pagamento no prazo de quinze dias, não havendo previsão de prazo
para qualquer tipo de defesa. Se o fiduciante pagar, o Oficial do Registro
entregará ao fiduciário o valor recebido; se não pagar, providenciará o
registro, em nome do fiduciário, da consolidação da propriedade. Segundo
estabelece a lei, a propriedade deixará de ser resolúvel e passará a plena, em
favor do fiduciário, em prazo que, teoricamente, será de dezesseis dias, visto
que se o pagamento não for feito no prazo de quinze dias, a consolidação
da propriedade se dará de pleno direito. É necessário que se ressalte que não
há qualquer previsão de defesa por parte do fiduciante, tendo em vista que a
intimação é para “satisfazer, no prazo de quinze dias, a prestação vencida e as
que se vencerem até a data do pagamento, os juros convencionais, as penalidades
e os demais encargos contratuais, os encargos legais, inclusive tributos, além das
despesas de cobrança e intimação”. Se no prazo de quinze dias não for efetuado
o pagamento, “... o oficial do competente Registro de Imóveis, certificando esse
fato, promoverá, à vista da prova do pagamento, pelo fiduciário, do imposto
de transmissão ‘inter vivos’, o registro na matrícula do imóvel, da consolidação
da propriedade em nome do fiduciário”. Como se nota, houve um avanço
extraordinário relativamente à alienação fiduciária de bens móveis, pois o
Decreto-lei 911/69 previa a busca e apreensão imediata do bem, precedida,
porém de determinação judicial em tal sentido; a propriedade do bem móvel
apenas se consolidaria pela sentença que viesse a julgar procedente a ação,
estabelecendo aquela legislação que “a sentença... consolidará a propriedade e a
posse plena e exclusiva nas mãos do proprietário fiduciário”. No caso de imóvel,
a consolidação da propriedade prescinde de qualquer apreciação judicial.
131
6.6.4 – A Lei 9514/97, após estipular esta forma de execução extrajudicial
em seu artigo 26, prossegue prevendo no artigo 27 as providências a serem
tomadas após a consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário.
Em rápido resumo, deverá o credor providenciar a venda do imóvel no
prazo de trinta dias a contar do registro que consolidou a propriedade, em
leilão público extrajudicial, no qual o imóvel poderá ser vendido por valor
não inferior ao do próprio bem, ao qual se chegará a partir dos elementos
constantes do contrato no qual foi estipulada a alienação fiduciária. Caso
não haja lance igual ou superior ao valor encontrado, o segundo leilão será
feito no prazo de quinze dias, podendo então o imóvel ser vendido pelo
maior lance, desde que igual ou superior ao total da dívida mais encargos.
Se houver arrematação por valor superior à dívida, o fiduciário devolverá
ao fiduciante o que sobejar; caso não haja oferta de valor igual ou superior
à avaliação no segundo leilão, a lei manda considerar extinta a dívida do
fiduciante, dando o fiduciário a respectiva quitação. Deixando de lado
aspectos processuais que não interessam ao objeto do presente estudo, o que
se verifica, a final, é que se não houver licitantes, o imóvel terá retornado à
propriedade do credor fiduciário, sem qualquer devolução de dinheiro ao
fiduciante, não importando quanto tenha sido pago por ele242.
6.6.5 – Este também é um aspecto que traz severas preocupações, pois
foge aos princípios de equidade que devem nortear as relações entre as pessoas
– mesmo abstraindo-se a discussão relativa à aplicação do Código de Defesa do
Consumidor – o fato de uma parte do contrato perder tudo que pagou, bem como
o bem que pretendia adquirir. O Banco do Desenvolvimento do Espírito Santo,
por seu departamento jurídico, também manifestou preocupação relativamente a
este ponto e, na resposta à consulta formulada, Arnoldo Wald responde de forma
ampla no sentido de entender correta tal previsão, recomendando, no entanto243:
“Assim, não obstante as ressalvas expostas, ‘ad cautelam’, o que se pode sugerir sob
esse aspecto é a cláusula que encampe a proibição legal de perda das prestações pagas,
adicionando-se uma ressalva pertinente à hipótese da não obtenção do valor igual ou
superior ao da dívida no segundo leilão...”.
A propósito, há duas ações de rito ordinário em andamento no Foro Central de São Paulo, Processos nºs.
000.01.301700-4 e 000.02.224107-8, nos quais os argumentos são, respectivamente, no sentido de que: do
valor aproximado do imóvel no total de R$ 139.000,00, já foram pagos R$ 84.653,96 e do valor aproximado
inicial de R$ 130.000,00 já foram pagos R$ 184.875,59; se houvesse execução extrajudicial, os devedores
fiduciantes poderiam perder o imóvel e perder todo o valor pago, sem qualquer devolução.
243
Wald, RDI 51, p. 272.
242
132
6.6.6 – Até este momento, conforme previsto na lei, todas as
providências terão sido tomadas no âmbito administrativo, sob a direção
do Oficial do Registro de Imóveis ou por iniciativa do credor fiduciário,
seja o incorporador/construtor, seja a companhia securitizadora, para quem
os créditos imobiliários eventualmente terão sido transferidos. Observe-se
que não há qualquer controle jurisdicional do andamento das providências,
não havendo também qualquer previsão legal no sentido de que o devedor
fiduciante possa apresentar qualquer “defesa” no procedimento administrativo
previsto, competindo a ele ou pagar o valor da notificação ou aguardar que
a propriedade se consolide em favor do credor fiduciário. Apenas o artigo
30 é que prevê a necessidade de provimento jurisdicional, na eventualidade
de o devedor recusar-se a entregar o imóvel ao arrematante ou ao credor
fiduciário; em tal eventualidade, está previsto que “a reintegração na posse do
imóvel... será concedida liminarmente, para desocupação em sessenta dias”.
6.6.7 – Apresentado neste capítulo o sistema de garantias instaurado
para os financiamentos imobiliários, os demais aspectos serão examinados
no capítulo VIII, dedicado ao exame das conclusões a que se pode chegar a
partir da análise em conjunto de todos os dados coletados.
133
VII – A BUSCA DA EFICIÊNCIA DO SISTEMA DE GARANTIAS
PELO AFASTAMENTO DA JURISDIÇÃO, NO BRASIL ATUAL
7.1 – Racionalidade weberiana
7.1.1 – Para Weber, a ideia de ordem prende-se ao preenchimento da
expectativa, no sentido de que quanto mais previsível for o resultado de
um julgamento, maior legitimidade haverá do sistema judiciário e maior
prontidão existirá para a obediência. Falando sobre os diversos tipos de
legitimidade de um determinado ordenamento, Weber diz que244 “la forma
de legitimidad hoy más corriente es la creencia em la legalidad: la obediência
a preceptos jurídicos positivos estatuídos según el procedimiento usual y
formalmente correctos”.
7.1.2 – Há, portanto, necessidade não só de um sistema de produção
de leis formalmente corretos, como também de leis suficientemente claras e
corretamente elaboradas, que permitam uma aplicação a casos concretos de
tal maneira que tudo isto venha a formar uma fundada expectativa de que,
determinados tipos de julgamento serão repetidos sempre que as condições
objetivas se apresentem de forma semelhante.
7.1.3 – Este controle, que permite formar a expectativa dentro do sistema
de racionalidade proposto por Weber como método de análise, é busca para a
qual deve estar voltado o próprio sistema, como condição de funcionamento
eficiente. Evidentemente, para a parte é de interesse que sua expectativa seja
preenchida; no caso presente – exame que se inicia a seguir – criou-se um
novo tipo de garantia imobiliária, tendo a legislação procurado restringir ao
máximo a possibilidade de que haja soluções diferentes, deixando à decisão
jurisdicional apenas questões que poderíamos chamar de residuais.
244
Weber, p. 30.
134
7.2 – Previsibilidade da decisão como elemento de segurança da jurisdição
7.2.1 – A previsibilidade de que fala Weber, da qual decorre a
prontidão para a obediência, por outro lado, leva ao pensamento
da Escola de Chicago, com a aplicação da teoria econômica a todos
os campos do direito em benefício da segurança e da previsibilidade;
aliás, no caso, tratando-se de aspecto fundamentalmente econômico –
financiamento imobiliário –, mais ainda é de se lembrar tal forma de
abordagem, sempre ligado aqui à previsibilidade da decisão. Segundo esta
escola de pensamento, o estudo, a interpretação e as aplicações jurídicas
devem ter como centro de suas preocupações os aspectos relativos à
eficiência da lei bem como os custos que serão gerados a partir da opção
por determinado tipo de interpretação e aplicação da lei. Desta forma, os
agentes econômicos poderão trabalhar e produzir em favor da sociedade
de forma mais eficiente, desde que os juristas – e os juízes na aplicação
das leis – tenham como norma de conduta a lembrança de que “o único
valor social a ser considerado é o da ‘eficiência alocativa’, de forma que todos
os problemas jurídicos devem ser ‘traduzidos’ e, portanto, considerado apenas
seu viés econômico (o direito exsurge assim mais seguro e previsível)”. Paula
Forgioni245, severa crítica da análise econômica do direito, transcreve o
texto acima para tomá-lo como base para afirmar que tal pensamento não
se sustenta, trazendo exemplo relativo à lei antitruste, para afirmar em
seguida que246 “o direito é fenômeno complexo que não pode ficar enclausurado
nos limites da economia”, embora não negue utilidade à aplicação da
teoria econômica à análise do direito. Tanto é assim que ressalta logo em
seguida que “a ciência econômica... na medida em que explica a realidade, é
um poderoso e indispensável instrumental na mão do jurista”. De qualquer
forma, o que interessa aqui diretamente ao exame objeto do presente
estudo é a constatação da busca de previsibilidade da decisão judicial,
para que os agentes econômicos e as pessoas que participam dos negócios
por eles ofertados, possam guiar-se em suas atitudes de tal forma que seja
possível prever, com certo grau de segurança, qual será o resultado de
determinado ato pelo qual se optou.
245
246
Forgioni, p. 178.
Forgioni, p. 180.
135
7.2.2 – A escola de pensamento do “Direito & Economia”, cujos
alicerces teóricos podem ser identificados na obra de Adam Smith ou Jeremy
Bentham, apresenta delineamentos teóricos mais sólidos a partir da década
de 60, especialmente com Posner e Calabresi, perdendo, porém prestígio
à medida que passa a pretender que as normas jurídicas e julgamentos
sejam orientados pelo “princípio da eficiência”, tentando transplantar para
a elaboração e aplicação da norma, uma certeza matemática que apenas
existe (ou pode existir) na economia. Salomão Filho disseca o equívoco
subjacente a este pensamento, dizendo247: “Esta construção contém dois sérios
equívocos, um conceitual, outro lógico. O equívoco conceitual está em pensar
que, demonstrada a interdisciplinariedade entre Direito e Economia naquelas
áreas em que o operador do Direito deve necessariamente levar em consideração
as relações causais sugeridas pela teoria econômica, a aceitação das premissas
teóricas utilizadas para desenvolver a teoria deva ser automática. Ou seja:
o mesmo modelo teórico utilizado para explicar as relações causais deve ser
utilizado para determiná-las, pois, uma vez aceita a veracidade das relações
causais, a aceitação dos pressupostos implica necessariamente concordância com
os resultados. Tal pretensão claramente desconsidera o momento valorativo tanto
da criação quanto da aplicação de qualquer norma jurídica, seja em matéria
empresarial ou não”, terminando por afirmar que a análise econômica do
direito é um instrumento necessário, porém meramente analítico, sem
qualquer caráter valorativo ou preceptivo. O pensamento de Salomão Fº
caminha no mesmo sentido do pensamento de Paula Forgioni, como se
pode observar.
7.2.3 – Embora falando sobre a lei antitruste, o atual Ministro do
Supremo Tribunal Federal Eros Roberto Grau, escrevendo o prefácio
do livro de Paula Forgioni acima citado, traz observação que se adapta
também à matéria ora sob exame, dizendo: “Insegurança e imprevisibilidade
‘versus’ segurança e previsibilidade. E, diante dessa abertura, de um lado o
agente econômico, doutro o Estado implementador de políticas públicas e a
sociedade”. Esta delimitação das partes em conflito – ou em colaboração
– é especialmente importante, pois não se pode perder de vista que em tal
tipo de análise, na maioria das vezes haverá de um lado um empresário –
o agente econômico de que fala Grau – e de outro lado o particular – a
247
Salomão Filho, p. 30.
136
sociedade de que fala Grau. O que se busca é a segurança e a previsibilidade
da lei e de sua aplicação, não sendo porém possível olvidar a posição
de risco que o empresário optou por assumir, o que não ocorre com o
particular. Sendo a atividade empresarial de risco, é natural que tanto a
lei quanto a jurisprudência, instada a avaliar ou julgar um determinado
caso concreto, acabe optando por carrear o prejuízo decorrente do risco
ao empresário e não ao particular. Galgano248 pergunta-se: “ma come se
identifica... l’impreditore” e ele mesmo responde: “La risposta può, a prima
vista, sembrare ovvia: l’impreditore è colui che, nell’attività di produzione
o di scambio, rischia la propria ricchezza. Si è giá ricordato che questo è il
critério in base al quale la figura dell’impreditore è identificata dalla scienza
econômica: l’impreditore viene distinto dagli altri soggetti che intervengono
nel processo produttivo – viene distinto, in particolare, dai capitalisti e dai
lavoratori – como il soggetto sul quale incide il rischio del processo produttivo”.
7.2.4 – Sem prejuízo desta opção institucional do empresário pelo
risco, opção da qual não participa o particular, se a lei e a jurisprudência
não trouxerem segurança a seus (do empresário) negócios, certamente não
haverá negócios, o que acabará por prejudicar também o particular, com o
desastre que consequentemente será causado à economia do País como um
todo. Ademais, sempre haverá questões postas em juízo, nas quais ambas
as partes, autor e réu, são empresários e nem por isto se poderá, por óbvio,
descurar da previsibilidade e segurança. Arnoldo Wald bem sintetizou esta
questão, ao indicar que o interesse de ambas as partes deve ser preservado
com segurança e previsibilidade, ao falar da necessidade de justiça eficiente,
rápida e de qualidade249 “... mas não uma justiça que esteja exclusivamente
a serviço da economia, sacrificando os direitos individuais ou, em certos casos,
afetando até o respeito dos contratos e a sua fiel execução”. Complementa seu
pensamento com a citação de que direito e mercado necessitam um do
outro para a própria sobrevivência, pois o direito sem o mercado seria a
absoluta imobilidade enquanto o mercado (ou qualquer outra atividade,
acrescentamos) sem o direito, é o caos.
7.3 – Insegurança da lei positiva e afastamento da jurisdição
248
249
Galgano, “L’ Impreditore”, p. 165.
Pinheiro, prefácio de Arnoldo Wald a fls. XXII.
137
7.3.1 – Mas a insegurança contra a qual ocorre insurgência não é só
aquela que vem da diversidade das decisões de natureza jurisdicional; a
insatisfação subiu um degrau e há clamor contra a insegurança que advém
da própria lei positiva, vista às vezes como também responsável pelas decisões
jurisdicionais conflitantes. O economista Edmar Lisboa Bacha250 credita a
redução da oferta de crédito e o aumento da taxa dos juros no Brasil ao que
chama de incerteza jurisdicional, esclarecendo que por este termo entende
o “poder do Estado, no exercício de sua soberania, de legislar e administrar a
Justiça”. Já em 1969, havia clamor contra a falta de clareza da lei; em tal
ano, em artigo que escreveu após a promulgação da Lei 4728/65 e antes de
baixado o Decreto-lei 911/69, Wald clamava por uma solução a partir da
promulgação de nova lei, dizendo que251 “é evidente que uma solução se impõe
a curto prazo e que ela deve ser legislativa, pois não há tempo para aguardar que,
nos próximos quatro ou cinco anos, o Supremo Tribunal Federal venha unificar
a jurisprudência existente na matéria…” até porque “acresce que os problemas
econômicos exigem soluções rápidas…”. Relembre-se que na época, com o
recesso do Congresso Nacional por força do AI-5, foi possível solucionar
rapidamente estas questões processuais, com a promulgação do Decreto-lei
911/69. Wald, escrevendo em fevereiro de 1969, transcreve artigo publicado
no jornal “O Estado de São Paulo”, de 8.12.68, no qual o articulista comenta
a diversidade de provimentos jurisdicionais que estavam sendo expedidos,
alguns juízes entendendo que a ação cabível seria reivindicatória pelo rito
ordinário, outros entendendo que a busca e apreensão seria ação preparatória,
alguns outros entendendo cabível a ação de imissão de posse, e diz252: “De
qualquer forma, temos como certo que os reflexos decorrentes da interpretação
judiciária referida, trarão pesados ônus ao mercado de capitais com consequências
danosas para a indústria e comércio, com a retomada da inflação de custos, pela
queda do consumidor final”. Anota ainda no mesmo artigo, que os próprios
juízes reconheciam então a necessidade da promulgação de uma lei que viesse
a trazer solução para os problemas processuais que haviam surgido para a
execução do contrato de alienação fiduciária, em caso de descumprimento
por parte do devedor fiduciante.
Pinheiro, prefácio de Edmar Lisboa Bacha a fls. XXIII.
Wald, “Da Alienação Fiduciária”, RT. 400/29.
252
Idem ibidem, p. 28.
250
251
138
7.3.2 – As leis que tomamos como objeto de exame – Lei 9514/97 e
Lei 10.931/04 – visaram, a par de tentar trazer solução para a grave crise de
habitação do País, estabelecer uma forma de proteção ao negócio imobiliário
que o deixasse imune a qualquer influência deletéria externa, partissem tais
influências da construtora/incorporadora, da companhia securitizadora
ou do adquirente da unidade em construção. No entanto, para que a lei
consiga atingir o fim visado, é necessário guardar extrema cautela que,
grande parte das vezes, não é observada. Jorge Lobo recomenda que na
elaboração de uma lei se busque “a sua adequada inserção no sistema jurídico
como um todo”, relembrando manifestação do Ministro do STF, Victor
Nunes Leal, que dizia253: “Tal é o poder da lei que a sua elaboração reclama
precauções severíssimas. Quem faz a lei é como se estivesse acondicionando
materiais explosivos. As consequências da imprevisão e da imperícia não serão
tão espetaculares, e quase sempre só de modo indireto atingirão o manipulador,
mas podem causar danos irreparáveis”.
7.3.3 – A lei tende a ser o resultado do sentimento médio da população
em determinado momento histórico, brocardo, porém que não se
adapta perfeitamente às leis de natureza econômica, pois em tais casos o
sentimento médio referido pode ter sua influência mascarada pela qualidade
de articulação que os detentores do grande capital podem desencadear.
Exemplo recente desta capacidade de articulação para alterar projetos de lei
em andamento pode ser encontrado na competente pressão que o capital
financeiro desencadeou para alterações na nova lei de recuperação, tendo
como último, mas não único nem mais importante resultado, a classificação
do crédito com garantia em posição mais privilegiada relativamente ao
crédito tributário (art. 83 da Lei 11.101/05). No entanto, e sem embargo
dos defeitos conhecidos, este tipo de pressão para alteração dos projetos não é
caminho fácil de trilhar, exatamente pela quantidade de interesses divergentes
em choque. Mesmo que não fosse assim e mesmo que se estivesse numa fase
de excepcionalidade política e fosse possível – como era no tempo do AI-5,
sob o qual foi expedido o Decreto-lei 911/69 – promulgar lei exatamente
nos termos pretendidos por determinado grupo de pressão, ainda assim não
se teria a segurança perseguida, pois o teste final ocorreria no momento da
aplicação da lei pelos tribunais.
253
Lobo, p. 261.
139
7.3.4 – Carlos Dias Motta adverte que no processo de aplicação da lei
ao caso concreto, o juiz deve ter em vista o adequado manejo dos princípios
jurídicos, com a especial valoração da hermenêutica, valendo-se do poder
discricionário guiado pelo juízo de equidade, até porque254: “O direito
positivo não é perfeitamente harmônico e não está livre de conflitos e lacunas...
Devemos reconhecer a inevitabilidade dos conflitos normativos, para que possamos
desenvolver instrumentos capazes e eficazes para seu controle, guiados sempre pela
busca da harmonia, já aludida, entre a segurança jurídica e o justo”.
7.3.5 – Retomando aqui o ponto já examinado no item “6.6.5”, o campo
extremamente restrito que a Lei 9514/97 pretendeu deixar à atividade
jurisdicional, diz respeito à necessidade do uso da violência da qual o Estado
tem o monopólio, para que o fiduciante, executado extrajudicialmente,
seja retirado do imóvel, caso resista a atender à solicitação administrativa
do exequente. Esta resistência, aliás, pode até ser esperada, tendo em vista
o valor que está em jogo, ou seja, a moradia, normalmente do contratante
e de sua família. Assim, pelo que se pode verificar, nos termos em que
está redigida, esta lei não terá condições de impedir o pedido de socorro
jurisdicional, o que em princípio é uma meta que seria recomendável
atingir-se. A lei descurou-se do aspecto social e apartou-se do que Rachel
Sztajn255 diz ser razoável esperar-se do sistema jurídico, ou seja: “a exigência
atual é garantir a segurança da circulação da riqueza e a estabilidade das
relações jurídicas de modo a promover a produção/circulação de bens e
serviços, satisfazer as necessidades sociais e criar riquezas”. Algumas eventuais
modificações na lei talvez possam torná-la apta a permitir que as questões
se resolvam sem intervenção jurisdicional, aspectos a serem examinados a
guisa de conclusão da tese.
254
255
Motta, p. 344.
Sztajn, p. 11.
141
VIII – CONCLUSÃO
8.1 – O sistema de garantias do negócio empresarial de construção/
incorporação de imóveis
8.1.1 – Como se tentou demonstrar, estamos diante do antigo
fenômeno conhecido no direito, especialmente na área do direito comercial,
por meio do qual os agentes econômicos valem-se da junção de diversos
institutos jurídicos já conhecidos para tentar solucionar problemas novos,
para os quais não se encontram soluções no sistema jurídico vigente; como
resultado de tal fenômeno, surge um terceiro instituto, ainda não existente
no arcabouço institucional. O presente estudo iniciou-se com o nascimento
da fidúcia nos primórdios do direito romano, prosseguindo até os dias atuais
do direito brasileiro. Em 1965 e 1969, a alienação fiduciária surgiu no
Brasil, exatamente como instituto novo destinado a propiciar uma forma de
garantia, com eficácia e rapidez suficientes para convencer o sistema bancário
de que deveria fornecer financiamento que propiciasse o escoamento dos
bens duráveis de consumo, para o qual se pretendeu dirigir a economia do
País, no esforço de industrialização então existente. Da mesma forma, está
surgindo agora a alienação fiduciária sobre imóvel, jungida ao patrimônio de
afetação e à securitização da dívida, tudo redundando em um instrumento
novo também destinado à tentativa de captação de investimento, para
solução da crise de habitação do País.
8.1.2 – A alienação fiduciária sobre bens móveis já é figura conhecida
de nosso sistema há quarenta anos, tempo no qual demonstrou ter
efetivamente criado uma forma de garantia eficaz, de tal maneira que as
instituições financeiras destinam enorme volume de sua disponibilidade de
investimentos para tal tipo de negócio, pela garantia de que, em caso de
inadimplemento, a execução será rápida e o retorno do dinheiro investido
estará cercado de garantia sólida. Funciona, portanto – a alienação fiduciária
– como estímulo para o fluxo de capitais do sistema bancário para o
financiamento, tendo assim, em princípio, capacidade de fazer com que
outros setores fornecedores de capital – v.g., poupança popular –, também
se interessem pelo investimento. Esta alienação fiduciária sobre o imóvel é
142
garantia destinada tanto ao incorporador/construtor quanto ao fornecedor
do capital destinado ao investimento imobiliário.
8.1.3 – Na criação do novo instituto, além da alienação fiduciária o
legislador valeu-se também do patrimônio de afetação, de tal forma que o
terreno sobre o qual o imóvel está sendo construído, bem como as acessões
sobre ele existentes, podem ficar afetados à consecução da incorporação
correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos
adquirentes. É patrimônio segregado dos bens pertencentes à incorporadora/
construtora e que responde apenas por obrigações vinculadas ao próprio
imóvel, impossível de ser atingido mesmo em caso de falência do empresário
da construção, não sendo os bens passíveis de arrecadação ou sequer objeto
de ação revocatória.
8.1.4 – Com a base da garantia negocial pavimentada pela alienação
fiduciária e pelo patrimônio de afetação, o novo sistema trouxe elementos para
resolver a terceira e última questão, ou seja, estimular o fluxo de capitais para
permitir a ativação e o contínuo desenvolvimento do mercado imobiliário,
valendo-se então do novel instituto da securitização, propiciando a busca
de capitais entre o público investidor em títulos mobiliários, tentando
carrear a poupança popular para a atividade de construção de imóveis. Esta
busca da poupança popular por meio de títulos mobiliários já está sendo
efetuada há relativamente bastante tempo nos demais países desenvolvidos
do mundo, se bem que substituindo-se naqueles a alienação fiduciária pela
garantia hipotecária. Pelo criativo e bem ordenado sistema implantado pelas
duas recentes leis examinadas (Leis 9514/97 e 10.931/04), fecha-se o que
se poderia chamar o “círculo virtuoso” necessário ao encaminhamento da
solução da grave crise de habitação, colaborando-se ainda, incidentalmente,
para o encaminhamento da solução de diversos outros problemas, v.g, a
crise de desemprego, sabido que a construção civil é a que mais se presta a
propiciar empregos à mão de obra não qualificada.
8.2 – Afastamento da insegurança da lei e das decisões jurisdicionais
8.2.1 – Para que se fechasse de vez o referido “círculo virtuoso” um único
ponto deveria ainda ser “blindado”: aquele que dizia respeito à medida a
ser tomada em caso de inadimplência por parte do adquirente da unidade
imobiliária, ponto para o qual não se havia encontrado solução nas tentativas
anteriores de encaminhamento do problema, tendo sido, aliás, a causa mais
143
acentuada do insucesso do antigo “Banco Nacional da Habitação” e do
correspondente “SFH – Sistema Financeiro de Habitação”. Neste ponto, o
atual sistema poderia vir a ser perturbado por externalidades fora do círculo,
decorrente em especial da imprecisão da lei e da imprevisibilidade da atividade
jurisdicional. Para a solução da primeira possível externalidade – imprecisão da
lei –, veio a ser editada a Lei 10.931/04, que aperfeiçoou diversos dispositivos
do diploma anterior. Curiosamente, repete-se aqui o que ocorreu com a
introdução da alienação fiduciária sobre móveis, criada com o artigo 66 da
Lei 4728, de l965, aperfeiçoado posteriormente o instituto pelo Decreto-lei
911, de 1969. Para a solução da segunda externalidade – imprevisibilidade da
decisão judicial –, optou-se por um caminho já trilhado em outras situações,
ou seja, a dispensa ou o afastamento da jurisdição, pela criação de rapidíssima
execução extrajudicial, sem previsão sequer de possibilidade de defesa ao
executado. No entanto, neste ponto, de forma absolutamente infeliz, a lei não
andou bem, o que é mais de se lamentar quando se verifica que poderia ela ter
solucionado de vez a questão. E não andou bem porque, como visto, colocou o
adquirente inadimplente em tal situação que o tornou “refém” do credor, não
lhe dando qualquer outra opção a não ser valer-se do Judiciário, como única
possibilidade de tentativa de composição.
8.2.2 – Não se coloca em discussão que as normas legais devem objetivar,
tanto na fase de elaboração legislativa quanto no momento da aplicação
jurisdicional, a promoção da eficiência do sistema social, postulado da teoria
da análise econômica do direito, ressaltando-se, porém que a “eficiência do
sistema social” não se confunde com a “teoria da eficiência”; a primeira é
preocupação do direito, a segunda da economia. A previsibilidade das decisões
judiciais é elemento necessário para a eficiência, em qualquer uma das duas
modalidades ora lembradas e deve, portanto, ser constantemente buscada.
Por outro lado, a oferta de garantias de cumprimento dos contratos por parte
do sistema legal, é condição para o incremento da atividade empresarial e da
captação de qualquer tipo de investimento, visto que os agentes econômicos
apenas atuam a partir da perspectiva de que o benefício que vão auferir da
atividade é superior ao custo exigido, imprescindível, portanto a garantia
do retorno. No entanto, não se pode perder de vista, como anota Rachel
Sztajn256, que a cadeia produtiva perseguida pelo sistema econômico apenas
256
Sztajn, “Teoria...”, p. 13.
144
estará integrada e funcionará adequadamente desde que “ninguém se torne
refém de procedimentos de qualquer outro integrante do processo”. A existência
do “refém” é elemento de perturbação das relações contratuais, porque este
procurará sempre alguma forma de compensação, pois sua atividade nesta
procura sempre será inferior ao custo exigido. Exposto de outra forma: o “refém”
não terá qualquer benefício se concordar com a aplicação fria dos termos do
contrato, pois em caso de estrito cumprimento das regras contratuais, perderá
tudo; portanto, a atividade de discordar sempre exigirá esforço inferior ao
custo exigido, exatamente porque o custo da concordância é máximo, é perder
tudo. Sem embargo da advertência de Alpa, de que se o que se pretende é
evitar o descumprimento do contrato257, “la legge deve irrogare una sanzione
corrispondente almeno al costo dell’adempimento”, não é razoável irrogar uma
sanção exagerada se se pretende que a parte não recorra à jurisdição. Como
diz Rachel Sztajn corretamente258, “se as pessoas agem visando promover seus
interesses, a forma de alterar-lhes o comportamento é demonstrar que será de seu
interesse fazê-lo”. Se o interesse da lei é evitar a busca da jurisdição por parte do
devedor inadimplente, deve demonstrar que para ele, devedor, será interessante
evitar o ajuizamento de qualquer medida judicial.
8.2.3 – Um exame integrado dos aspectos jurídicos e econômicos
talvez possa levar à solução buscada, ou seja, à prescindibilidade da busca da
jurisdição, desde que haja disposição para alterações legislativas relativamente
simples. O “mercado”, como diz Rachel Sztajn, não se presta a propiciar
distribuição de riqueza de forma justa e socialmente adequada, pois a “teoria
da eficiência” leva necessariamente à busca constante de “transferência de
riqueza àqueles que possuem maior poder de barganha nas transações, ou seja,
àqueles que já possuem riqueza” 259. Roppo260, neste mesmo sentido, falando
do contrato “substancialmente injusto”, alerta para que não se confunda o
interesse geral da sociedade com o interesse apenas da parte que está em
situação dominante, por força de sua colocação no modo de produção. Ao
lado da teoria econômica da eficiência, é necessário considerar a preocupação
jurídica da “eficiência do sistema social”, para a integração perfeita das relações
contratuais e para que as partes se sintam desestimuladas de buscar proteção
Alpa, p. 96.
Sztajn, “Os custos...”, p. 75.
259
Salomão Filho, p. 30.
260
Roppo, p. 38.
257
258
145
jurisdicional, por entendê-la desnecessária. Precedentes, tanto extraídos da
história quanto colhidos de fatos atuais, podem ajudar a fundamentar o
pensamento que se está pretendendo formular.
8.2.4 – Um exemplo histórico pode ser tirado do sistema de transferência
fiduciária do direito anglo-saxão, no qual “o direito de propriedade adquirido
pelo fiduciário era, no direito inglês, como no romano, absolutamente ilimitado
e pleno, de modo que, tanto pelo ‘jus civile’ como pela ‘common law’, adquiria
ele a qualidade de ‘dominus’, podendo, consequentemente, exercer uma ‘signoria
piú assoluta sulla res’” 261. Em decorrência da plenitude da propriedade, se o
devedor não cumprisse a obrigação assumida no dia determinado, perderia
a coisa transferida fiduciariamente. Ficava o devedor na situação de “refém”,
submetido a uma condição iníqua, de tal forma que o Chanceler, como
representante do Rei, a partir do século XIV, passou a intervir na relação
estabelecida entre as partes, fazendo com que as partes comparecessem à
sua presença e impondo ao credor determinada forma de comportamento,
que restabelecesse a equidade na relação. Completa Sousa Lima, observando:
“Intervinha, assim a ‘equity’ para modificar uma situação definitiva decorrente
da ‘common law’, e isto porque, sob o ponto de vista da ‘equity’, seria iníquo que
o ‘mortgagor’, por não ter cumprido a prestação no dia fixado no ato constitutivo,
perdesse irremediavelmente a ‘res’, cujo valor era consideravelmente maior do que
o montante do débito”. Evidentemente, trata-se de outro sistema diferente
do nosso civil law; de qualquer forma, denota que a busca quase instintiva
de eficiência social em prejuízo da teoria da eficiência, é preocupação que
norteia a aplicação do direito já há séculos.
8.2.5 – Este é um exemplo histórico de busca da jurisdição, para evitar
que a perda seja absoluta e total para o devedor. Em outra ponta, há um
exemplo da atualidade, de eficaz desestímulo de busca da jurisdição, exemplo
extraído de pequena alteração que houve na lei do inquilinato atual. No
Foro Central de São Paulo, a partir de 1991, após a edição da Lei 8245/91
que cuida das locações, houve uma queda acentuada no ajuizamento de
ações de despejo por falta de pagamento, em consequência da determinação
inserida no inciso V do artigo 58, que estabelecia que os recursos interpostos
contra as sentenças passavam a ter efeito meramente devolutivo. O inquilino
261
Lima, p. 104/5.
146
inadimplente passou a considerar que, se deixasse de pagar o aluguel e se
fosse acionado, seria despejado em prazo relativamente curto (em torno de
três meses), de tal forma que deixar de pagar o aluguel não lhe propiciaria
maior benefício do que pagá-lo, ao contrário do que ocorria no regime
da lei anterior, que previa efeito suspensivo para os recursos e que, em
consequência, permitia que o inquilino permanecesse residindo no imóvel
por vários anos sem pagar aluguel. No sistema da lei anterior, o locador era
“refém” do locatário inadimplente; uma pequena mudança legislativa tornou
a lei “boa” e colocou as partes em posição tal, que dissuadiu a inadimplência
e o socorro à jurisdição262.
8.2.6 – Um exame e uma aplicação mais abrangentes dos próprios
postulados da escola do “direito e economia” podem ajudar a encontrar
o ponto que afastaria a incerteza jurisdicional, trilhando o caminho já
iniciado pelas Leis 9514/97 e 10.931/04, ou seja, o caminho que afastaria
a jurisdição, porém por outra motivação. O princípio constitucional da
indeclinabilidade da jurisdição, consagrado no inciso XXXV do artigo 5º da
Constituição de 88263, sempre será óbice para que a execução extrajudicial
possa chegar a seu final sem intervenção jurisdicional, mesmo que as duas
leis sob exame não prevejam qualquer tipo de defesa para o devedor. Por
outro lado, havendo aqui o “refém” de que fala Rachel Sztajn, a busca
da proteção jurisdicional será certa e o cumprimento do contrato, não
será assegurado nos termos em que foi celebrado. Enfim, por mais que a
atividade legislativa traga óbices à discussão jurisdicional, esta se instaurará
sempre que necessário e sempre que solicitada.
8.3 – Composição do conflito
8.3.1 – Mas, como anotado acima, relembre-se uma das premissas
da análise econômica do direito, segundo a qual “agentes econômicos são
Apesar da dificuldade para se conseguir dados estatísticos mais precisos, foi possível conseguir, na Prodesp,
dados estatísticos relativos ao ajuizamento de ações de despejo (ordinárias e por falta de pagamento), que
informam: no ano de 1991, foram ajuizadas 54.719 ações; no ano de 1992, houve 37.469 distribuições e no
ano de 1993, houve 29.755 distribuições. A “lei boa”, em dois anos, reduziu o número de demandantes em
24.964, o que corresponde a uma diminuição de 46%.
263
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade, nos termos seguintes: XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou
ameaça a direito.
262
147
maximizadores racionais de satisfação – ou seja, para suas escolhas, sempre irão
se basear na adequação racional e eficiente dos fins aos meios. Esta premissa leva
à inevitável conclusão de que indivíduos só se engajarão conscientemente em
unidades adicionais de atividade (seja de consumo, de produção de oferta de
trabalho ou qualquer outra natureza) se o benefício auferido por aquele mesmo
indivíduo for maior que o custo despendido para obtê-lo”264. Esta premissa
pode ser aproveitada também para aquele que, no mercado, contrata com
a empresa e que, pelo menos em princípio, supõe-se, pretende cumprir
o contrato. Este contratante se submeterá aos termos do contrato e não
buscará a jurisdição, na medida em que o benefício que possa lhe advir do
ajuizamento de um feito seja igual ou menor do que aquele que lhe advirá de
qualquer composição que faça com o empresário com o qual contratou. E,
paradoxalmente, no caso das leis ora sob exame, todos os elementos levam o
devedor inadimplente a socorrer-se do Judiciário, pois caso contrário perderá
tudo, ou seja, perderá o imóvel e perderá o que pagou. Portanto, estas leis
funcionam como estímulo para que ocorra ajuizamento, pois o benefício
auferido jurisdicionalmente será igual ou superior ao benefício da lei, vez
que a lei dá “nada” ao inadimplente.
8.3.2 – Ou seja, ninguém irá ao Judiciário no momento em que estiver
seguro de que o benefício que lhe advirá da sentença (mesmo que ganhe
a ação integralmente) não será maior do que aquele que desde logo lhe é
oferecido pelo outro contratante. Evidentemente, para que se possa aceitar tal
raciocínio e trabalhar com tais conceitos, seria necessário considerar a crítica
de que a chamada “teoria da eficiência” como princípio geral de maximização
da riqueza apenas transfere riqueza a quem já possui riqueza, sem qualquer
preocupação com o conceito do socialmente justo, como já acima anotado
com base no pensamento de Sztajn e de Salomão Filho. Enfim, a segurança
pretendida pelo empresário apenas será encontrada quando se encontrar
o ponto de equilíbrio entre o princípio econômico exposto na “teoria da
eficiência” e o princípio jurídico da “eficiência do sistema social”. As Leis
9514/97 e 10.931/04, se sofrerem pequenas alterações em sua redação,
poderão talvez propiciar este ponto de equilíbrio que poderá atuar como
forte e determinante desestímulo de busca da proteção jurisdicional pelo
devedor inadimplente, pela simples razão de que o benefício a ser auferido
264
Jairo Saddi, artigo no jornal “Valor Econômico”, edição de 12.12.02.
148
como resultado da sentença, não será maior do que aquele que desde logo
advirá se houver concordância e aplicação plena dos termos contratuais.
8.3.3 – Coerente com a ideia já exposta no item “1.5.1” retro, no
sentido de que o estudo das ciências humanas – especialmente o estudo
da ciência jurídica – deve, na medida do possível, tentar apontar soluções
concretas para os problemas detectados, transcreve-se, como nota de rodapé,
a sugestão apresentada em artigo publicado na Revista dos Tribunais265,
para alteração parcial dos artigos 27 e 30 da Lei 9.514/97, como tentativa
de encontrar o equilíbrio necessário, conforme apontado no item 8.3.2
imediatamente acima.
265
Revista dos Tribunais, volume 819, p. 75-76, extraído de artigo elaborado pelo autor da tese: “A melhor solução
para que não se perca o excelente espírito que norteou a lei e que se destinava a tentar resolver o problema
de aporte financeiro para o capital destinado à construção de moradia, seria alterar a Lei 9514, de 20.11.97,
para: a) dar ao parágrafo 2º do artigo 27, a seguinte redação: ‘No segundo leilão, será aceito o maior lance
oferecido, desde que igual ou superior a 75% do valor do imóvel, estipulado na forma do parágrafo anterior,
mais as despesas, prêmios de seguros, encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais’.
b) dar ao parágrafo 4º do artigo 27, a seguinte redação: ‘Nos cinco dias que se seguirem à venda do imóvel
no leilão, o credor entregará ao devedor, contra a imissão na posse do novo proprietário, a importância que
sobejar...’, mantendo no mais a redação já existente. c) acrescentar ao parágrafo 5º do artigo 27, a seguinte
expressão: ‘devendo ser pago ao devedor a diferença que existiria se o bem tivesse sido arrematado na forma
do parágrafo 2º acima’. d) dar ao artigo 30, a seguinte redação: ‘Em caso de recusa do devedor ao recebimento
e imissão na posse na forma prevista no parágrafo 4º do artigo 27, o juiz concederá liminarmente ao fiduciário,
seu cessionário ou sucessores, inclusive o adquirente do imóvel por força do público leilão de que tratam os
parágrafos 1º e 2º do art. 27, a reintegração na posse do imóvel, para desocupação em sessenta dias, desde
que comprovada, na forma do disposto no art. 26, a consolidação da propriedade em seu nome. Com a inicial,
o autor depositará o valor que sobejou ou a diferença prevista no parágrafo 5o, que será levantado em favor
do devedor, 24 horas depois da imissão na posse’”.
149
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157
A EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL DO CONTRATO DE
ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL – EXAME
CRÍTICO DA LEI 9.514, DE 20.11.971
Manoel Justino Bezerra Filho2
SUMÁRIO: 1. Delimitação da matéria; 2. A execução do bem alienado; 3.
Exame técnico dos artigos 26 e 27; 4. Exame crítico dos artigos 16 e 27; 5.
A Lei 9.514/97 e o Código de Defesa do Consumidor; 6. O princípio da
proporcionalidade; 7. Conclusão; 8. Bibliografia.
1 – Delimitação da matéria
1. 1 – Começam a ser julgadas agora, no Foro Central de São Paulo, as
primeiras ações que dizem respeito aos financiamentos concedidos na forma
da Lei 9.514, de 20.11.97, a chamada lei de “Alienação Fiduciária de Coisa
Imóvel”, que criou o sistema de financiamento imobiliário, “SFI”. Em rápida
pesquisa, foi possível verificar a existência de quatro ações julgadas, duas
das sentenças firmando entendimento favorável à posição do financiador3,
outras duas em sentido contrário4, acatando o pedido feito pelo financiado.
A matéria é nova e a lei começa a passar agora pelo teste final e fundamental
pelo qual passa toda lei, ou seja, sua aplicação pelos Tribunais; a discussão
desloca-se agora da dogmática distante e do impessoal direito positivo para a
fase angustiosa da hermenêutica do dia a dia dos tribunais. Evidentemente,
como primeiros julgados sobre a matéria, são insuficientes para formar
1
2
3
4
Artigo publicado na Revista dos Tribunais nº 819, de janeiro de 2004.
Especialista em Filosofia e Teoria Geral do Estado, Mestre e Doutor em Direito Comercial pela USP. Professor
na Graduação e Pós-graduação na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor e
Coordenador da Área de Direito Empresarial da Escola Paulista da Magistratura. Desembargador do Tribunal
de Justiça do Estado de São Paulo.
Processos nº 000.02.134051-0 e nº 000.02.127479-7, acesso pelo site www.tjsp.jus.br.
Processos nº 000.02.224107-8 e nº 000.01.301700-4, idem.
158
qualquer tendência que se poderia chamar de corrente jurisprudencial, a qual
certamente demandará ainda longos anos, até porque estão envolvidas questões
constitucionais de amplo espectro, de tal forma que além da manifestação
do Superior Tribunal de Justiça, veremos ainda a manifestação do Supremo
Tribunal Federal, até que se possa falar em formação de jurisprudência ou
de tendência jurisprudencial. Mas, sendo o sistema jurídico um aglomerado
sistemático de leis positivas, doutrina, jurisprudência, princípios gerais,
etc., estes julgados monocráticos iniciais serão os primeiros tijolos da lenta
e segura construção jurisprudencial que se deve aguardar. São importantes
como indicadores iniciais de tendências, lembrando-se, com Lenio Luiz
Streck,5 da visão nova dos institutos jurídicos que a jurisprudência possibilita
aos legisladores, forçando desta forma o processo de criação das leis na
direção da orientação propiciada pelos Tribunais. Desde a primeira aplicação
da lei, o juiz deve ter em vista que, na construção jurisprudencial, a sentença
monocrática é o tijolo inicial da construção jurisprudencial, atento ainda à
lembrança que Carlos Maximiliano6 traz de Jean Cruet, sobre a necessidade
de constante espírito crítico por parte do juiz.
1. 2 – A alienação fiduciária de coisa imóvel foi introduzida em nosso
sistema de direito pela recente Lei 9.514, de 20.11.97, que contém 42
artigos, espalhados por três capítulos, o primeiro (artigos 1o a 21) tratando
“Do Sistema de Financiamento Imobiliário”, o segundo (artigos 22 a 33)
tratando “Da Alienação Fiduciária de Coisa Imóvel” e o terceiro (artigos
34 a 42) tratando das “Disposições Gerais e Finais”. De forma esquemática
ampla, podemos dizer que o primeiro capítulo fixa as linhas mestras gerais da
alienação fiduciária de bem imóvel, estabelecendo qual é a finalidade da lei,
voltada para “promover o financiamento imobiliário em geral, segundo condições
compatíveis com as da formação dos fundos respectivos” (art. 1o).
1.3 – Até o artigo 21, a lei trata da parte que poderíamos denominar,
até com certa impropriedade, porém de forma aconselhável para fins
5
6
Lenio Luiz Streck, pg. 86.
“O juiz, esse ente inanimado, de que falava Montesquieu, tem sido na realidade a alma do progresso jurídico,
o artífice laborioso do Direito novo contra as fórmulas caducas do Direito tradicional. Esta participação do juiz
na renovação do Direito é, em certo grau, um fenômeno constante, podia-se dizer uma lei natural da evolução
jurídica; nascido da jurisprudência, o Direito vive pela jurisprudência, e é pela jurisprudência que vemos muitas
vezes o Direito evoluir sob uma legislação imóvel. É fácil dar a demonstração experimental desse asserto, por
exemplos tirados das épocas mais diversas e dos países mais variados”. Jean Cruet apud Carlos Maximiliano,
pg. 39.
159
esquemáticos, de “parte de direito material” da alienação fiduciária de imóvel,
enquanto os artigos 21 a 33 tratam da “parte de direito processual”. Na parte
material, a previsão é que a entidade financeira – bancos e assemelhados – (art.
2o) opera no sistema; as companhias Securitizadoras (art. 3º), instituições não
financeiras, poderão adquirir os créditos e securitizá-los, emitindo e colocando
no mercado os denominados “Certificados de Recebíveis Imobiliários” ou
simplesmente CRI. Caindo no plano da operacionalização, verifica-se que o
Banco “X” concede o financiamento à pessoa interessada na aquisição de um
imóvel, “Comprador”, entregando o dinheiro diretamente à Construtora “Y”;
nestes negócios ocorre também de forma bastante comum que a Construtora,
com recursos próprios, concede financiamento direto ao Comprador. Aquele
que concedeu o financiamento (seja o Banco, seja a Construtora), dirige-se a
seguir à Securitizadora e faz a cessão7 dos créditos que tem contra o Comprador.
A partir deste momento, saem de cena (pelo menos teoricamente) o Banco ou
a Construtora (enfim, quem concedeu o financiamento), transformando-se
o Comprador em devedor da Securitizadora. Por seu turno, a Securitizadora,
com um crédito digamos de R$ 100.000,00 contra o Comprador, divide este
crédito em 100 certificados de recebíveis imobiliários, “CRI” (art. 3o) de R$
1.000,00 cada um, lançando-os no mercado financeiro, para aquisição pelos
interessados em investimentos.
1.4 – O artigo 4o fala sobre o financiamento, estabelecendo que
nele serão empregados recursos provenientes da captação nos mercados
financeiros, o que, como visto acima, é viabilizado pela emissão de “CRIs.”,
que são colocados no mercado financeiro. As operações de financiamento
(art.5o) deverão prever a reposição do valor emprestado e do reajuste (inc.
I), permitidos juros capitalizados (inc. II e III), permissão que se estende
também para a comercialização de imóveis para pagamento parcelado, para
o arrendamento mercantil de imóveis e para o financiamento imobiliário
em geral (par. 2o). Este parágrafo 2o estendeu a possibilidade de cobrança de
juros capitalizados para todo e qualquer financiamento imobiliário feito sob
a égide desta Lei.
7
Para a cessão ser eficaz ou ter validade em relação ao devedor, deve ser a ele notificada, na forma do que
estabelece o artigo 290 do Código Civil em vigor e do que estabelecia o artigo 1.069 do Código Civil de 1916.
160
1. 5 – A seguir, a lei define o “CRI” como “título de crédito nominativo,
de livre negociação, lastreado em créditos imobiliários, constituindo promessa
de pagamento em dinheiro” (art. 6o), de emissão exclusiva das Securitizadoras
(par. único), a ser emitido de acordo com a rígida especificação do artigo 7o,
de forma nominativa (inc. V), pelo valor nominal (inc. VI), admitida aqui
também a capitalização (inc. VIII), podendo conter garantia de privilégio
geral sobre o ativo da securitizadora (par. 2o). O artigo 8o estabelece que o
crédito imobiliário permite a emissão de títulos de crédito, que são exatamente
os “CRIs”, dizendo ser esta a operação de securitização. O artigo 10 prevê
regime fiduciário instituído mediante declaração unilateral da Securitizadora,
com a nomeação de um “agente fiduciário”, com a definição de seus deveres
e remuneração (inc. IV). Este agente fiduciário, nomeado e remunerado pela
Securitizadora, é que seguramente deverá ter entre seus deveres a realização
do público leilão, previsto no artigo 27, que examinaremos mais adiante.
1.6 – O inciso IV do artigo 17 estabelece que as operações de
financiamento imobiliário poderão ser garantidas por alienação fiduciária
de coisa imóvel. Encerramos aqui a rápida análise da “parte de direito
material” da lei, exame como se vê bastante conciso, tendente apenas a
permitir que se conheça, sempre em linhas gerais, o funcionamento do
sistema de securitização e a forma pela qual se chega à alienação fiduciária
de bem imóvel. Examinamos assim o capítulo I da lei e, em seguida,
começaremos o exame do ponto que é objeto específico do presente
trabalho, ou seja, a alienação fiduciária do imóvel e a execução da dívida
em caso de inadimplência do Comprador do imóvel.
1.7 – Observe-se apenas – o que será útil para que se demonstre a
tendência da lei –, que o artigo 14 afasta a possibilidade de quebra em
caso de insuficiência de bens, prevendo a convocação de assembleia geral
dos beneficiários para deliberar sobre as normas de administração ou
liquidação do patrimônio. A lei pretende afastar o mais possível o Judiciário
de qualquer questão, deixando a decisão de assuntos internos à discrição da
assembleia geral dos beneficiários e, como veremos abaixo, possibilitando
a execução extrajudicial em caso de não pagamento do débito por parte do
Comprador financiado.
161
2 – A execução do bem alienado
2.1 – Acabamos de examinar, no título acima, o que chamamos de
“parte de direito material” da lei, que se encontra nos artigos 1o a 21 e vamos
iniciar agora o exame do que também denominamos de “parte de direito
processual”. Voltamos a alertar que tal divisão é feita apenas para o fim de
facilitar o exame e ordenar melhor a explanação.
2.2 – A Lei 9.514/97 estendeu para os imóveis a sistemática criada
pelo Decreto-lei 911/69 para os bens móveis em geral. Se o pagamento é
feito nos termos do contrato (arts. 22, 23 e 24), o contrato resolve-se pelo
cumprimento integral, o credor fiduciário fornece o termo de quitação
e o devedor fiduciante vai ao Cartório do Registro de Imóveis e efetua o
cancelamento da garantia lá registrada (art. 25), ficando o imóvel liberado
em favor do comprador. Esta é a sequência normal, em caso de pagamento
regular da dívida; se o contrato não é cumprido, normalmente por cessação
dos pagamentos por parte do devedor fiduciante, a lei prevê a execução
extrajudicial do contrato (arts. 26 a 29), assegurando ao credor fiduciário
ou ao adquirente no leilão extrajudicial, a reintegração na posse do imóvel.
2. 3 – A reintegração, nos termos do artigo 30 “será concedida liminarmente,
para desocupação em 60 dias”. Evidentemente, este comando do artigo 30 é
dirigido ao Judiciário, pois embora a execução seja feita extrajudicialmente,
o ato físico da reintegração na posse, a ser executado com o uso da violência
(se necessária), da qual o Estado tem o monopólio, só poderá ser efetuada
mediante prévia determinação de juiz competente. Assim, sem embargo
do que anotamos no item “1.7” acima, a “desjudicialização” tentada em
algumas leis recentes, acaba levando o conflito final para o Judiciário, como
se pode ver, como exemplo mais esclarecedor, na liquidação extrajudicial das
instituições financeiras da Lei 6.024/74, cuja falência final, se for o caso,
vem a ser decretada pelo Judiciário, muitas vezes anos após a intervenção e
tentativa de liquidação extrajudicial pelo Banco Central.
3 – Exame técnico dos artigos 26 e 27
3.1 – Os artigos 26 e 27 desta lei criaram um sistema de execução
extrajudicial, a ser efetuada ante o Cartório do Registro de Imóveis, prevendo
uma forma expedita de “consolidação da propriedade” (par. 7o do art. 26)
em favor do credor fiduciário ante a mora do devedor fiduciante; neste
162
momento, a propriedade do credor fiduciário, que era resolúvel, torna-se
plena. A partir deste momento, embora com propriedade plena, o credor
ainda não tem a posse que exercia apenas de forma indireta, pois a posse
direta ainda está com o devedor fiduciante. Ocorre aqui, no dizer de Orlando
Gomes8, a transmissão condicional da propriedade, contrato no qual o
pagamento importa implemento da condição resolutiva. Com o pagamento,
ocorre a extinção da chamada propriedade resolúvel do credor, tornando-se
plena a propriedade do devedor, que já mantinha a posse direta do bem e
que havia adquirido a propriedade sob condição resolutiva, implementada
com o pagamento da dívida. Em caso de inadimplência, a propriedade plena
estabelece-se em favor do credor fiduciário.
3. 2 – Se se tornar inadimplente, o devedor fiduciante será intimado
pelo Oficial do Registro de Imóveis da respectiva circunscrição (par. 1o do
art. 26) para pagar, em 15 dias, as prestações vencidas e as que se vencerem
até o momento do pagamento, mais juros, encargos, tributos, condomínio e
despesas de cobrança e de intimação, esta podendo ser feita pessoalmente, por
correio ou por edital (par. 3o e 4o do art. 26). Se o pagamento não for feito no
prazo de 15 dias, o oficial do Registro de Imóveis receberá do credor fiduciário
o imposto de transmissão e promoverá a “consolidação da propriedade em
nome do fiduciário” (par. 7o do art. 26). Este artigo 26 cuida das providências
a serem tomadas desde o momento em que se verifica a inadimplência do
devedor fiduciante até o momento final do procedimento, no qual o imóvel
volta à propriedade plena do credor fiduciário. A lei, ordenada tecnicamente
de forma primorosa, logo após estabelecer a atribuição da propriedade plena
do imóvel na pessoa do credor fiduciário, indica a seguir as providências
a serem tomadas para solucionar os outros dois aspectos pendentes, quais
sejam, a venda do bem em leilão extrajudicial e a transferência da posse para
o próprio credor fiduciário ou para quem vier a adquirir o imóvel no leilão.
3. 3 – O artigo 27 determina que no prazo de 30 dias a contar do
registro que devolve a propriedade plena ao credor fiduciário, este promoverá
o leilão público do bem, estipulando ainda o parágrafo 2o do artigo 27 que,
se não houver venda do imóvel no primeiro leilão por valor igual ou superior
ao do imóvel, será feito o segundo leilão, no qual o bem pode ser vendido
8
Orlando Gomes, pg. 459.
163
pelo maior lance oferecido, desde que igual ou superior ao valor da dívida
e demais encargos. O parágrafo 5o deste artigo prevê, finalmente, que se
no segundo leilão não houver licitantes que ofereçam valor suficiente para
o pagamento da dívida, esta será considerada extinta e nenhum valor será
devolvido ao devedor fiduciante. Desde logo é necessário que se apreenda o
alcance prático deste dispositivo em toda sua extensão, ou seja: o parágrafo 5o
determina que se não houver licitantes, o imóvel passa à propriedade plena
do credor fiduciário e o Comprador perde o imóvel e o total do valor já pago.
4 – Exame crítico dos artigos 26 e 27
4. 1 – Evidentemente, o legislador não se preocupou com a conhecida
resistência que o Poder Judiciário tem demonstrado, ao longo dos tempos,
a qualquer tipo de execução extrajudicial por ver nela o coroamento do
exercício de um direito por parte do credor (normalmente parte sensivelmente
mais forte do que o devedor), sem qualquer consideração com os direitos
do devedor. Esta forte resistência do Judiciário já se fazia presente tanto na
execução extrajudicial do artigo 14 do Decreto-lei 58, de 10.12.1937, como
também na execução extrajudicial prevista no artigo 32 do Decreto-lei 70,
de 21.11.96. Sintomaticamente, os dois diplomas são decretos-lei, ambos
expedidos em época de ditadura, com os poderes Judiciário e Legislativo
manietados, o primeiro sob o Estado Novo de Getúlio Vargas, o segundo sob
a Ditadura Militar de 1964.
4. 2 – Esta justa aversão do Poder Judiciário a qualquer tipo de execução
extrajudicial, que não permitiu a pacificação da matéria até hoje, passados
já 37 anos da expedição do Decreto-lei 70/66, não será aqui discutida,
remetendo-se o interessado à leitura de “Theotonio”9. Apenas para que se
tenha noção da resistência do Judiciário, relembre-se que o 1o Tribunal de
Alçada Civil de São Paulo editou súmula de nº 39, segundo a qual “são
inconstitucionais os artigos 30, parte final, e 31 a 38 do Dec.lei nº 70, de
21.11.66”.10 Este posicionamento do Judiciário tem profundo enraizamento
9
10
Theotonio Negrão, pg. 1.326.
Para atualizar a informação de Theotonio relativamente ao RE.25.545-SP, anote-se que o STF, por julgamento
de 20.8.2002, em curiosa decisão, deixou de conhecer o recurso, com a seguinte ementa, na parte que
interessa: “Revela-se inadmissível o recurso extraordinário interposto com base na letra “b” do inciso III
do artigo 102 da Constituição Federal, no caso em que a decisão recorrida não traz declaração formal de
inconstitucionalidade de tratado ou lei federal. Hipótese inconfundível com o reconhecimento de que norma
legal anterior à Carta de 1988 não foi recebida, por incompatível”. Com esta decisão do STF, prevaleceu o
164
na letra “a” do inciso XXXIV do artigo 5o da Constituição Federal, que
garante a todos o direito de petição aos poderes públicos em defesa de
direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder. Isto significa que se alguma
lei atenta contra o direito de petição “aos poderes públicos” deve ser tida como
inconstitucional. Ora, o direito de petição existe para garantia dos “direitos
ou contra ilegalidade ou abuso de poder”, devendo o dispositivo ser entendido
em toda sua extensão, ou seja, o direito de petição deve ser eficaz para evitar,
se possível, que se consume o atentado ao direito ou para coartar o efeito de
qualquer ato praticado com ilegalidade ou abuso de poder. Logo em seguida,
quase que pretendendo repetir o direito já anteriormente fixado, quase que
se confundindo com aquele direito fixado no inciso acima examinado – o
que se justifica tendo em vista que se trata da garantia dos direitos rígidos por
cláusula pétrea, consagrados ao longo de séculos de direito constitucional
–, estabelece o inciso XXXV o princípio da indeclinabilidade da jurisdição,
dizendo que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou
ameaça a direito”.
4. 3 – Estes dois incisos não podem sequer ser alterados por
leis de natureza ordinária, ante o óbvio de que o direito garantido
constitucionalmente não pode ser afastado por legislação ordinária.
No entanto, não só por isto: estes direitos, por se configurarem como
cláusulas pétreas da Carta Magna, não poderiam ser suprimidos, mesmo
que houvesse reforma da Constituição, a menos que a reforma partisse
do Poder Constituinte originário, o que não era o caso do Congresso
Nacional de 1997, ano da promulgação desta Lei 9514/97. Com esta
legislação ocorreu o que, infelizmente, nestes nossos tempos ominosos,
cada vez mais se torna comum, ou seja, a desconsideração de normas
pétreas da Constituição, avançando o legislador sobre direitos ante os
quais deveria deter-se, e isto sob as mais diversas justificativas.
4. 4 – No caso, como se sabe, o direito que se quis preservar foi a garantia
de recebimento do valor devido, em favor de construtoras, de bancos e agora,
entendimento do julgado recorrido, do Tribunal Regional Federal da 3a Região, sob o seguinte fundamento: “A
execução extrajudicial prevista no Decreto-lei 70/66 não se amolda às garantias oriundas do devido processo
legal, do juiz natural, do contraditório e da ampla defesa, constantes do Texto Constitucional em vigor, pois é
o próprio credor quem realiza a excussão do bem, subtraindo o monopólio da jurisdição do Estado, quando
deveria ser realizada somente perante um magistrado constitucionalmente investido na função jurisdicional,
competente para o litígio e imparcial na decisão da causa”.
165
das neológicas “companhias de securitização”, quintessência do capital
meramente especulativo, que tantos males tem feito a este nosso sofrido
País. Concorda-se com o argumento de que é necessário dirigir volumes
significativos de poupança para o crédito imobiliário e com isto tentar, se não
resolver, pelo menos tornar menos grave o problema da habitação no País;
no entanto, e isto é também examinado abaixo, há que se manter respeito
ao princípio da proporcionalidade, sob pena de se começar a duvidar até
da pureza das intenções daqueles que patrocinaram a promulgação da lei.
E, também sintomaticamente, as fronteiras legais são todas arrostadas sem
qualquer cerimônia quando se trata do argumento de que se está defendendo
o sacrossanto “mercado”, esquecidos todos, sempre é bom lembrar, que
contra a mão invisível do mercado sobrepõe-se a mão visível e correcional
do direito. Ou, em outras palavras, maior que o mercado e sobre ele, está o
direito, que visa à proteção do bem comum, bem infinitamente maior do
que aqueles propiciados – se é que o são –, pelas idas e vindas dos capitais
por este mundo globalizado. E, lembrando Aristóteles, no primeiro livro da
Retórica, ocorre aqui o que sempre ocorrerá com leis que não sejam “leis
bem dispostas”, que “devem deixar aos que julgam o menos possível”, pois ao
Judiciário é que competirá adaptar a lei “não bem disposta” à realidade que
se impõe.
4. 5 – Saulo Ramos11, falando sobre reforma da constituição, faz uma
apaixonada análise – como sempre ocorre, e deve ocorrer, com o bom
advogado quando defende uma causa – que também se adapta a leis como
a presente, dizendo que o desmazelo das leis hoje editadas tem como: “A
principal razão: dinheiro para a contabilidade. Este é o ponto, o direito maior é
editado sempre em razão das crises de tesouraria, e jamais inspirado pela ciência
jurídica e na evolução social. O poder constituinte não é mais a formulação
das garantias fundamentais no Estado democrático, transformou-se em regra de
contadores”. Sem falar em Aristóteles e fazendo uma análise que nada tem
a ver com a presente lei, Saulo Ramos parece que profetiza o que acontece
com a “lei mal disposta”, cuja adaptação à realidade exige a intervenção do
Judiciário, dizendo: “Nenhum jurista foi convocado para ponderar a coerência
das normas sob um mínimo de técnica legislativa que evitasse agressões aos
princípios fundamentais do direito constitucional ou alguma prudência que
11
José Saulo Pereira Ramos, in “Folha de São Paulo”, edição de 3.8.03, pg. A3.
166
amenizasse os choques previsíveis quando se mudam regras do contrato social”.
E o choque começa a se fazer presente nos julgamentos dos primeiros casos
levados aos Tribunais.
4. 6 – Com efeito, o parágrafo 2o do artigo 27 da Lei 9.514/97, ao
prever a possibilidade de ser aceito o maior lanço, desde que igual ou
superior ao valor da dívida – ou de ser simplesmente considerada quitada
a dívida e tomado o imóvel –, isto tudo, repita-se, em leilão extrajudicial,
sem a garantia do contraditório, está abrindo caminho para que ocorra com
imóveis que servem de residência para o adquirente e sua família, o que
já ocorre há dezenas de anos com veículos em geral, ou seja: a venda por
qualquer preço em leilão extrajudicial, do qual só tomam conhecimento
aqueles que se encontram próximos do círculo dominante de poder destes
capitais envolvidos. A simples redução do problema à sua proposição mais
primária já demonstra a iniquidade da situação: imagine-se que alguém tenha
adquirido um imóvel de R$ 150.000,00, tenha honrado 90% do preço e,
por qualquer azar da vida, comum aliás nesta época em que o desemprego
anula qualquer programação da economia familiar por mais cuidadosa, vejase impossibilitado de pagar o saldo restante, ou seja, dez por cento do valor
do imóvel; perderá o imóvel e perderá tudo que pagou.
4. 7 – Ora, é situação cuja iniquidade salta aos olhos, sem contar ainda
que o parágrafo 2o do artigo 27 consagra a possibilidade explícita da venda
por preço vil, o que não se aceita sequer em leilão judicial, estabelecido com
todas as garantias do contraditório e com a fiscalização do Judiciário e de
qualquer interessado, ante a publicidade do processo judicial, publicidade
que, como se sabe, não ocorre jamais em processos administrativos internos,
conduzidos pelo próprio credor.
4. 8 – Já houve discussão anterior, de forma bem mais aprofundada – ainda
não totalmente pacificada –, no sentido de se perguntar se poderia o credor
adjudicar o bem pelo valor de seu crédito, em segundo leilão, sem licitantes.
E a resposta foi no sentido de que, em tais casos, a adjudicação só é possível se
houver o depósito da diferença entre o valor em execução e o valor da avaliação.
Este correto entendimento anulava o espírito ganancioso daquele que pretendia
“levar vantagem” na execução, à custa da miserabilização do devedor; prevalecia,
portanto, o entendimento de que o lance por conta do crédito, que implica
na adjudicação do bem em favor do credor exequente, exige o depósito da
167
diferença entre o valor do crédito e o valor da avaliação do bem. É certo que os
julgados mais recentes tendem a admitir a adjudicação – ou arrematação pelo
credor – pelo valor do crédito, remanescendo sempre, porém, o entendimento
de impossibilidade de arrematação por preço vil.
4. 9 – Assim, sob um exame meramente sistemático, seria de se afastar
a aplicação da Lei 9.514/97, nesta parte em que afronta as garantias
constitucionais estabelecidas por cláusulas pétreas. Sob um exame de
natureza axiológica (qual é o valor sócio-econômico visado?) não se chegaria
a resultado diferente, uma vez que o valor social que se pretendeu defender
com a expedição do Decreto-lei 911/69 não se encontra aqui presente. As
vozes autorizadas da Ditadura Militar, à época da expedição do referido
decreto-lei, diziam que a alienação fiduciária, criada por Gama e Silva e
prontamente adotada pelo sistema financeiro então sob o comando de
Delfim Neto, seria a salvação da indústria nacional de bens de consumo
duráveis, especialmente da indústria de veículos. Dizia-se então, talvez até
com certa razão de natureza econômica, que para que se ativasse a venda
de veículos, era necessário que se propiciasse financiamento abundante, o
que só seria possível com garantia de pronta execução e, para tanto, criou-se
a alienação fiduciária, que efetivamente trouxe um desafogo temporário –
mesmo que à custa da execução sobre o corpo do devedor, com sua prisão,
retornando-se a épocas anteriores à Lex Poetelia Papiria, que já em 428 AC.
proibia a execução sobre o corpo do devedor –, sem evidentemente resolver
o problema do escoamento da produção dos bens duráveis de consumo,
como se pode ver atualmente com os pátios lotados das montadoras e com
as demissões em massa em tais indústrias. No entanto – e apesar de tudo isto
–, ainda se poderia, axiologicamente, justificar o Decreto-lei 911/69, pois a
garantia (veículo) poderia desaparecer de um momento para outro.
4. 10 – Ocorre que agora se trata de alienação fiduciária sobre imóveis
e, sobre este, não incide o argumento de desaparecimento do bem. Tanto é
assim que já se entendeu – e isto dezenas ou centenas de anos antes da criação
da alienação fiduciária –, no sistema brasileiro, que a melhor garantia de
dívida sempre foi a hipotecária. O imóvel permanece, não pode desaparecer
e, portanto, não há qualquer razão que justifique a açodada execução
extrajudicial que se pretendeu implementar sobre imóveis vendidos para
tentativa de solução do grave problema habitacional do País.
168
5 – A Lei 9.514/97 e o Código de Defesa do Consumidor
5.1 – Há razões de natureza constitucional para que não se possa dar
respaldo a qualquer tipo de execução extrajudicial; há igualmente razões
de ordem filosófico-axiológica, para que também se afaste a incidência de
uma lei que não atende a qualquer reclamo válido do bem comum. Mas
não são só estas as razões, pois há outra, de natureza puramente hierárquica
entre leis ordinárias e leis de natureza complementar, a afastar a possibilidade
de execução extrajudicial, como estabelecido na lei. Referimo-nos aqui e
passamos a examinar a seguir, o Código de Defesa do Consumidor, que se
aplica a este tipo de transação, especialmente por força de seu artigo 5312.
5.2 – O inciso XXXII do artigo 5o da Constituição Federal estabelece
que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. O título VII
da Constituição, fixando os princípios constitucionais da ordem econômica
e financeira, estabelece no inciso V do artigo 170, que esta ordem tem, por
um de seus princípios, a “defesa do consumidor”. Finalmente, o artigo 48
das Disposições Constitucionais Transitórias estabeleceu que “o Congresso
Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará
código de defesa do consumidor”. Na esteira destes expressos dispositivos da
Carta Magna é que veio a ser promulgada a Lei 8.078, de 11.9.90, o conhecido
“Código de Defesa do Consumidor” que, no dizer do Desembargador José
Osório, do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, é o diploma legal mais
revolucionário de todos quantos foram expedidos, cuja extensão apenas será
percebida em toda sua integridade depois de transcorridos ainda muitos
mais anos.
5.3 – Pois bem, com esta origem, o Código de Defesa do Consumidor,
embora formalmente lei ordinária, na realidade possui a natureza de lei
complementar, na medida em que preenche o expresso campo a ele deixado
pelos diversos artigos da Constituição acima lembrados. Esta natureza de
lei complementar, reconhecida aos diplomas legais que vêm preencher
o expresso campo reservado pela Carta Magna, é elemento que não pode
passar despercebido ao aplicador da lei a casos práticos, é elemento que
12
Ao caso, aplica-se o Código de Defesa do Consumidor, por seus princípios gerais estabelecidos em seu Capítulo
I do Título I e, especialmente, pelo que dispõe o artigo 53, que menciona expressamente os “contratos de
compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações”, falando ainda em “alienações
fiduciárias em garantia”.
169
deve ser cuidadosamente considerado pelo Poder Judiciário. E, quando
alguma lei ordinária confronte qualquer disposição destas leis de natureza
complementar, o prevalecimento deve ser desta última. Isto é o que ocorre
no presente caso, devendo o exame da questão posta ser feito também ante
as disposições do Código de Defesa do Consumidor.
5. 4 – Cláudia Lima Marques13 frisa que o CDC tem origem
constitucional e que esta origem garante-lhe uma “nova superioridade
hierárquica”, conceito que segundo repisa, pode ser de grande utilidade na
solução de conflitos entre outras normas e o Código; prossegue dizendo que
o CDC é norma de ordem pública econômica e que no campo do direito
privado, estas prevalecem sobre as demais normas de direito privado. É certo
que mais adiante de sua obra, a eminente Mestra afirma a prevalência da lei
especial posterior pelo critério da cronologia, mas outro pouco mais adiante,
quase chega a afirmar que não entende possível submeter o Judiciário de
tal forma a obrigá-lo a dar aplicação a uma lei que traga uma estipulação
abusiva, perguntando, de forma candente, se o potencial abusivo explícito
em determinada situação desaparece só porque a lei passou a prever como
correta aquela situação14, texto que, embora se refira diretamente a planos de
saúde, aplica-se também ao presente caso.
5.5 – O CDC, no inciso IV do artigo 51, diz serem nulas de pleno
direito, as cláusulas contratuais que estabeleçam obrigações consideradas
iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada
ou sejam incompatíveis com a boa-fé e a equidade. O artigo 53 estabelece
que consideram-se nulas as cláusulas que estabeleçam a perda total das
prestações pagas em contratos de compra de imóveis a prazo ou em contrato
de alienação fiduciária em geral. Ora, o simples exame da situação na qual
fica aqui colocado o consumidor, mostra que ficará em posição de absoluto
13
14
Cláudia Lima Marques, pg. 521.
Cláudia Lima Marques, a pg. 551, pergunta: “É possível revogar um princípio legal, intrínseco a um sistema
jurídico, como o da boa-fé nas relações privadas, através de simples norma ordinária? Podem normas legais,
elaboradas sob o interesse de determinados grupos econômicos e agentes no mercado, realmente autorizar a
atuação conforme a má-fé objetiva, na esperança de prejudicar o co-contratante que, por exemplo, esquecerá
de inscrever seu filho exatamente um mês antes do nascimento ou simplesmente não poderá fazê-lo por
acaso da natureza? Basta estipular por lei um caso de abuso do direito e este potencial abusivo desaparece,
tornando-se jurídica a atuação objetivamente abusiva? Será possível submeter o Judiciário e os aplicadores da
lei a dar aplicação efetiva e eficácia a estas novas normas legais, mesmo se contrárias aos princípios de nosso
sistema, aos próprios princípios constitucionais da atividade econômica (art. 170 CF/88) e aos direitos básicos
do cidadão (art. 5o, XXXII, CF/88)?”.
170
desequilíbrio ante o construtor ou a empresa de securitização. O que se tem
visto nas primeiras ações que aportam no Foro Central de São Paulo é ter o
comprador efetuado o pagamento de valor às vezes superior àquele atribuído
ao imóvel, não ter condições de continuar pagando o valor das prestações que
aumentam exageradamente, pretender devolver o imóvel e receber de volta
parte do que pagou, tendo, no entanto, que se conformar com a execução
extrajudicial estabelecida pela Lei 9.514/97, na qual perderá o imóvel e tudo
que pagou. Esta é, claramente, situação de iniquidade que o CDC veda;
aliás, mais que o CDC, o simples bom senso veda.
5.6 – Outro aspecto ainda deve ser examinado. A partir da observação
do dia a dia da alienação fiduciária de coisa móvel, o que se verifica é que o
consumidor, metodicamente, não recebe qualquer saldo pelo bem que foi
objeto de busca e apreensão; este é fato notório, de conhecimento de toda
e qualquer pessoa que esteja habituada a militar em tais campos. No caso
sob exame, a execução extrajudicial prevista no artigo 27 da Lei 9514/97,
ao permitir que o bem seja vendido por preço igual ao do saldo devedor
existente – ou que seja recebida contra a pura e simples quitação da dívida
remanescente –, na realidade subtrairá do devedor a possibilidade de receber
qualquer valor em devolução, não importa quanto tempo tenha cumprido
o contrato, não importa qual valor já tenha pago, o que também é proibido
pelo CDC, no inciso II do mesmo artigo 51, que torna obrigatória a
opção de reembolso da quantia já paga. Este privilégio criado em favor do
securitizador deve ser considerado como propiciador da vantagem exagerada
de que fala o inciso I do parágrafo 1o do mesmo artigo 51.
6 – O princípio da proporcionalidade
6.1 – Evidentemente, aquele que não cumpre sua obrigação deve ser
“penalizado”; a “pena” de quem não paga o débito, é ser judicialmente
expropriado de seu bem para satisfação do credor. No entanto, o sofrimento
em que é colocado o devedor deve ter equilíbrio compatível com o benefício
que se visa obter. Em um interessante artigo sobre a proporcionalidade,
Alexandre Santos de Aragão15, embora falando sobre direito econômico, diz
que a intervenção (no caso, diríamos, a execução) deve ser “equilibradamente
15
Alexandre Santos de Aragão, pg. 74.
171
compatível com o benefício social visado, isto é, mesmo que aquela seja o meio
menos gravoso, deve, tendo em vista a finalidade pública almejada, ‘valer a
pena’ – proporcionalidade em sentido estrito”. A finalidade almejada pela Lei
9514/97, que é “criar condições para mobilizar volume crescente de recursos
para o setor imobiliário e habitacional, com novas garantias e instrumentos
para o funcionamento de um mercado secundário de créditos imobiliários e
captação de novos recursos para esse setor”16, permite o uso de instrumentos
legais – entre eles, a edição de lei –, todos porém subsumidos ao princípio da
proporcionalidade, de tal forma que a pena mais grave só deve ser aplicada se
a pena imediatamente inferior não for suficiente para que se atinja o objeto
perseguido. Não nos estendemos sobre este ponto, por não ser o presente
um trabalho teórico e sim, um trabalho eminentemente prático; no entanto,
pode-se afirmar que a perda por parte do comprador de tudo que pagou
juntamente com o imóvel é desproporcional ante o fim perseguido.
6.2 – A par de arrostar princípios doutrinários e jurisprudenciais já
solidificados, de investir contra a consciência de proteção do mais fraco
que já permeia o direito ocidental desde fins do Século XIX, de afrontar
diretamente diversos artigos do Código de Defesa do Consumidor, de
desconsiderar sumariamente postulados constitucionais de natureza positiva,
é ainda lei que traz uma “pena” desproporcional ao “delito”, que estabelece
uma sanção que pode fazer com que se chegue ao objetivo pretendido –
ou seja, fluxo de capitais suficiente para o financiamento imobiliário ante
a facilitação da cobrança do débito pelo investidor –, mas que, certamente,
ao invés de usar do meio menos gravoso, lança mão de meio que mais que
gravoso, adentra as fronteiras da iniquidade.
6.3 – Este antigo princípio da proporcionalidade permeia todo nosso
pensamento jurídico, encontrando específica previsão em disposições da
lei positiva, bastando aqui lembrar-se, entre outros, o artigo 620 do CPC,
dispondo que “quando por vários meios o credor puder promover a execução,
o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o devedor”, repetido
no artigo 716 que determina que “o juiz da execução pode conceder ao credor
o usufruto de imóvel ou de empresa, quando o reputar menos gravoso ao devedor
e eficiente para o recebimento da dívida”. E a indagação lógica que se impõe é:
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José de Mello Junqueira, pg. 11.
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se ao próprio juiz não é dado desrespeitar o princípio da proporcionalidade
na execução judicial de dívida, como pode a consciência jurídica admitir tal
desrespeito pelo Oficial do Registro de Imóveis, em execução extrajudicial?
7 – Conclusão
7.1 – A tentativa de se estabelecer um sistema de financiamento público
do crédito imobiliário, por meio de certificados de recebíveis imobiliários,
“CRI”, merece louvor, pois é esta uma forma inteligente de tentar dar solução
ao gravíssimo problema da falta de habitação no País. Dirigir para este setor
de investimento a poupança interna da população é, sob todos os aspectos,
um caminho necessário ao desenvolvimento do País. Por isto, em princípio,
a idéia que norteou a feitura da lei merece aplausos.
7.2 – No entanto, ante tudo o que acima se tentou demonstrar, vê-se
que a lei desconsiderou uma série de dispositivos constitucionais e afrontou
outra série de artigos do Código de Defesa do Consumidor, investiu
contra princípios gerais do direito, contra a doutrina e a jurisprudência
solidificadas, transpôs as fronteiras da proporcionalidade e, por isto mesmo,
não conseguirá a celeridade pretendida na solução, pois terá grande – ou
talvez intransponível – dificuldade de passar pelo crivo do Judiciário. Ao
pedido de reintegração não será concedida liminar e se houver contestação, a
reintegração será apenas deferida no final, mediante composição de valores,
com o depósito nos autos da parte que vier a ser apurada como devida ao
comprador do imóvel.
7.3 – A mesma situação tende a ocorrer se o comprador, antes de ser
demitido da posse, ajuizar ação para rescindir o contrato, pedindo devolução
do valor que já tenha pago, ação à qual seria dada procedência, fixando-se o
valor a ser devolvido.
7.4 – O legislador deveria ter ponderado que a propriedade imobiliária
de natureza residencial, é o bem material que mais de perto afeta a vida e
a sensibilidade das pessoas, bem civil ao qual não se pode pretender aplicar
conceitos comerciais de extrema celeridade, mas que não se coadunam com
os conceitos de direito puramente civil, no caso, a propriedade imobiliária da
pessoa física, especialmente se destinada à residência familiar.
7.5 – A melhor solução para que não se perca o excelente espírito
173
que norteou a lei e que se destinava a tentar resolver o problema de aporte
financeiro para o capital destinado à construção de moradia, seria alterar a
Lei 9.514, de 20.11.97, para:
a) dar ao parágrafo 2o do artigo 27, a seguinte redação: “No segundo leilão,
será aceito o maior lance oferecido, desde que igual ou superior a 75% do valor
do imóvel, estipulado na forma do parágrafo anterior, mais as despesas, prêmios
de seguros, encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais.
b) dar ao parágrafo 4o do artigo 27, a seguinte redação: “Nos cinco dias que
se seguirem à venda do imóvel no leilão, o credor entregará ao devedor, contra a
imissão na posse do novo proprietário, a importância que sobejar ...”, mantendo
no mais a redação já existente.
c) acrescentar ao parágrafo 5o do artigo 27, a seguinte expressão: “devendo
ser pago ao devedor a diferença que existiria se o bem tivesse sido arrematado na
forma do parágrafo 2o acima”.
d) dar ao artigo 30, a seguinte redação: “Em caso de recusa do devedor ao
recebimento e imissão na posse na forma prevista no parágrafo 4o do artigo 27, o
juiz concederá liminarmente ao fiduciário, seu cessionário ou sucessores, inclusive
o adquirente do imóvel por força do público leilão de que tratam os parágrafos 1o
e 2o do art. 27, a reintegração na posse do imóvel, para desocupação em sessenta
dias, desde que comprovada, na forma do disposto no art. 26, a consolidação da
propriedade em seu nome. Com a inicial, o autor depositará o valor que sobejou
ou a diferença prevista no parágrafo 5o , que será levantado em favor do devedor,
24 horas depois da imissão na posse”.
Bibliografia
ARAGÃO, Alexandre Santos de. O Princípio da Proporcionalidade no Direito Econômico. Revista
dos Tribunais, v. 800. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
GOMES, Orlando. Contratos. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997.
JUNQUEIRA, José de Mello. Alienação fiduciária de coisa imóvel. São Paulo: Arisp - Associação
dos Registradores Imobiliários de São Paulo, 1998.
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2001.
STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito Brasileiro – Eficácia, Poder e Função. 2. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1998.
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