DISCIPLINA: Administração Pública e Planejamento no Brasil

Propaganda
SBS – XII Congresso Brasileiro de Sociologia.
GT 20 – Sociedade e Estado na América Latina.
A Ideologia do “Terceiro Setor”: Transformação Social ou Salvação do Capitalismo
Felipe Luiz Gomes e Silva.
1
A IDEOLOGIA DO “TERCEIRO SETOR” : TRANSFORMAÇÃO SOCIAL OU SALVAÇÃO DO
CAPITALISMO?
Felipe Luiz Gomes e Silva.1
[email protected]
RESUMO: O objetivo deste artigo é refletir a respeito de algumas concepções recentes sobre o que se
convencionou chamar de “terceiro setor”. Partindo do pressuposto de que há na sociedade três
segmentos sociais distintos, aprisionados ao mundo das aparências, alguns estudiosos realizam
reflexões, críticas ou não, sobre o significado do chamado “terceiro setor”. De um modo geral os
pesquisadores do denominado “terceiro setor” esquecem a noção de totalidade social, ignoram que
as relações sociais de produção capitalistas pautam e determinam a sociabilidade humana. Esses
pesquisadores preferem trabalhar com um referencial teórico que ignora a natureza classista do
Estado e, desta forma, no meu entender, emaranham-se em uma grande armadilha conceitual e
ideológica.
PALAVRAS - CHAVE: Estado; terceiro setor; ideologia; neoliberalismo; totalidade.
O QUE ESTÁ POR TRÁS DA NOÇÃO “TERCEIRO SETOR”?
Partindo do pressuposto de que há sociedade três segmentos sociais distintos alguns
pesquisadores aceitaram o desafio de refletir, criticamente ou não, sobre o significado da noção
“terceiro setor”.
De um modo geral, esses pesquisadores abandonam o conceito de totalidade social, ignoram
que as relações sociais de produção determinam a sociabilidade humana. Mesmo alguns teóricos
críticos do “terceiro setor” esquecem da natureza classista do Estado capitalista, o consideram como
um setor, o primeiro setor. Penso eu que, ao aceitarem o conceito “terceiro setor” e a fragmentação
da totalidade social, emaranham-se em uma grande armadilha ideológica.
Sendo assim, mesmo para pesquisadores críticos, para além das instituições que compõem o
aparelho do Estado (primeiro setor) e as empresas privadas que objetivam lucro (segundo setor)
existe, um “segmento social” que pode ser denominado de “terceiro setor”. Mesmo intelectuais
críticos não conseguem clarificar a função ideológica e o papel político do chamado “terceiro
setor”.
Muitos intelectuais afirmam que a emergência do “terceiro setor” possibilita o
aprofundamento de uma reflexão sobre a sociedade porque permite um olhar crítico sobre
“ideologias monísticas”: a ideologia “estatista” e a ideologia “mercadista”. Isto é, a existência de
um “terceiro setor” abre espaço para a construção de uma alternativa às visões que percebem a
sociedade de uma forma dicotômica e polarizada: visão “estadocentrista” versus visão
“mercadocentrista”.
Na minha opinião, é possível afirmar que, com o surgimento dessa abordagem social, surge
na realidade uma vertente ideológica neoliberal que se apropria de um discurso “esquerdizante”, a
análise da própria origem do termo evidencia esta concepção. De acordo com Coelho (2000) a
noção “terceiro setor” foi usada pela primeira vez na década de setenta por pesquisadores
estadunidenses.
Entre esses intelectuais encontra - se Amitai Etzioni, conhecido pelo seu estudo sobre
“tipologia das organizações” publicado na obra, “A comparative analysis of complex
organizations”, New York, The Free Press (1961). Acrescenta a autora que a partir desta década o
citado termo também foi adotado pelos estudiosos europeus, sendo hoje de conhecimento geral.
1
Professor Assistente-Doutor- UNESP – campus de Araraquara.
2
Portanto, a adoção desse conceito é justificada pela necessidade de identificar a existência,
na sociedade contemporânea, de instituições que apresentam uma natureza particular, isto é, uma
determinada singularidade.
Essas instituições singulares permitem a combinação ou sintonia fina de aspectos
organizacionais positivos (vantajosos) que estão presentes tanto na burocracia estatal quanto na
empresarial. Temos na burocracia estatal, como dimensões positivas, a equidade e a previsibilidade
enquanto na organização empresarial, a eficiência e a flexibilidade.
Desta forma, o “terceiro setor” difere tanto da burocracia estatal quanto da organização
empresarial, da primeira pela sua inoperância e da segunda por ser orientada pelo objetivo de
lucros máximos sem a preocupação com a equidade. Nas palavras de Coelho (2000):
(...) o termo sugere elementos amplamente relevantes. Expressa uma alternativa para as desvantagens
tanto do mercado, associadas à maximização do lucro, quanto do governo, com sua burocracia inoperante.
Combina a flexibilidade e a eficiência do mercado com a equidade e a previsibilidade da burocracia pública (
p.58).
Segundo Fernandes (1997) essa noção resulta da imaginação humana, ou seja, antes de
qualquer coisa, é uma expressão de linguagem como outra e que foi traduzida da língua inglesa:
Third Sector.
Portanto, ao demarcar as possíveis fronteiras entre os distintos segmentos, seções que
dividem a totalidade social, elabora a seguinte ilustração gráfica:
AGENTES
Privados
Para
FINS
Privados
Públicos
Privados
Públicos
Para
Para
Para
Públicos
Públicos
Privados
SETOR
Mercado
(Segundo
Setor)
Estado (Primeiro Setor)
Terceiro Setor
(corrupção)
Como é possível observar, com esta simples concepção esquemática, fica fácil de perceber
que, definido pelos seus fins, o “terceiro setor” é composto por agentes privados, por cidadãos
organizados, que buscam a realização de objetivos públicos. Sendo assim, quanto as suas
finalidades há uma clara coincidência com os objetivos do Estado (primeiro setor). O Estado,
chamado de “primeiro setor”, em uma evidente concepção liberal, pauta-se, necessariamente, pelos
interesses públicos.2
O “segundo setor” é organicamente composto por agentes que buscam objetivos privados,
orientando-se, portanto pelos interesses do mercado, os lucros. Se o Estado estiver submetido a
estes objetivos, poderá ser entendido como uma instituição corrompida e comporá o “setor da
corrupção”.
Ressalta o autor em análise que as instituições do “terceiro setor” também não estão imunes
a atos de corrupção3 e de incoerência, podem afastar-se dos objetivos declarados em seu estatuto
legal e praticar uma gestão sem transparência, principalmente quando aproximam sua forma de
2
Esta concepção simplificadora da realidade abstrai as relações sociais de produção capitalista e a estrutura social. É
como se o Estado existisse acima da sociedade, fora do regime de acumulação capitalista, portanto, distante de qualquer
relação de classe. Inclusive, é preciso considerar que estamos diante de uma nova fase do processo de acumulação, da
mundialização do processo de acumulação sob o domínio do capital financeiro. É sabido, que neste cenário, as políticas
estatais de cunho neoliberal estão presentes tanto nos países que conquistaram o Estado de bem - estar social (Europa
ocidental) quanto nas nações que construíram “estados desenvolvimentistas” da América Latina.
3
Podemos citar como um exemplo perigoso uma ONG estadunidense. Essa organização, a Limiar, oferece crianças para
adoção via internet (www. limiar. org) e cobra nada menos do que US$ 5.500. Empreendedora ONG (sem fins
lucrativos) diz que foi intermediária na adoção de mil crianças desde que se instalou no nosso país, em 1984.
3
gestão da lógica do mercado, da administração de empresas privadas voltadas para a
competitividade e para o lucro individual, ou seja, podem distanciar-se das relações de
solidariedade, palavra muito mencionada sem reflexão e aprofundamento. Assim se expressa
Fernandes (1994):
(...) o conceito de Terceiro Setor denota um conjunto de organizações e iniciativas privadas que
visam à produção de bens e serviços públicos. Este é o sentido positivo da expressão. „Bens e serviços
públicos‟, neste caso, implicam uma dupla qualificação: não geram lucros e respondem a necessidades
coletivas ( p.21).
Cumpre observar que segundo Fernandes (1997), há nos Estados Unidos outras expressões
para definir esse setor, “organizações sem fins lucrativos (non profit organizations) e “organizações
voluntárias”. Uma vez que não objetivam lucros (os diretores não podem ser remunerados) e não
são governamentais essas organizações resultam de puro ato de vontade humana.
Da Europa continental vem o predomínio da expressão „organizações não-governamentais‟ (ONGs),
cuja origem está na nomenclatura do sistema de representações das Nações Unidas. Chamou-se assim às
organizações internacionais que, embora não representassem governos, pareciam significativas o bastante
para justificar uma presença formal na ONU. O Conselho Mundial de Igrejas e a Organização Internacional
do Trabalho eram exemplos em pauta. Por extensão, com a formulação de programas de cooperação
internacional para o desenvolvimento estimulados pela ONU, nas décadas de 1960 e 1970, cresceram na
Europa ocidental ONGs destinadas a promover projetos de desenvolvimento no Terceiro Mundo.
Formulando ou buscando projetos em âmbito não-governamental, as ONGs européias procuraram parceiros
mundo afora e acabaram por fomentar o surgimento de ONGs nos continentes do hemisfério sul ( p.26).
As chamadas organizações não - governamentais da Europa Ocidental, na busca de parceiros
para o de desenvolvimento de projetos, estimulam o surgimento de ONGs no Terceiro Mundo, isto
é, essas intervenções são internacionais em sua origem. No Brasil, em especial, emergem na época
da ditadura militar com atuações de forte dimensão política.
Sua origem no período autoritário e seu horizonte internacional numa época de exacerbação dos
embates ideológicos globais resultaram numa ênfase na dimensão política das ações, aproximando-as do
discurso e da agenda das esquerdas. Na América Latina, inclusive no Brasil, é mais abrangente falar-se de
“sociedade civil” e de suas organizações. (...) Marcando um espaço de integração cidadã, a sociedade civil
distingue-se, pois, do Estado; mas caracterizando-se pela promoção de interesses coletivos diferencia-se
também da lógica do mercado. Forma, por assim dizer, um “Terceiro Setor”(Wolfe, 1992, p., grifos nossos).
Em resumo, segundo Fernandes (1997) o “terceiro setor” é composto de organizações sem
fins lucrativos, são criadas e mantidas pela ênfase na participação voluntária e atuam em um
âmbito não-governamental. Dando continuidade às práticas tradicionais de caridade, da filantropia e
do mecenato, incluindo no seu escopo de atuação ações meramente individuais, expande o seu
sentido para outros domínios, graças, sobretudo a incorporação do conceito de cidadania.
Dizendo que essa definição soa de uma maneira estranha por combinar palavras de épocas e
de contextos simbólicos diversos pergunta: sendo tantos e tão variados os componentes desse
“terceiro setor”, que sentido há em agrupá-los todos sob um mesmo nome?
Afirma o autor em estudo que quatro razões fundamentais justificam a utilização desse
conceito para agrupar componentes tão variados. Em primeiro lugar, na medida que as organizações
sem fins lucrativos desenvolvem ações públicas, são co - extensivas à própria ação do Estado,
fazem contraponto às ações do governo. Em segundo lugar, ao abrirem espaço para os interesses
coletivos e para a iniciativa individual são co - extensivas ao mercado. A existência de um
4
“terceiro setor” ultrapassa a visão dicotômica que divide a sociedade entre o público e privado e
aponta que o mercado não atende as necessidades humanas, ou seja, que gera demandas que não
pode atender. Um terceiro aspecto, muito importante, é realçar o valor político e econômico das
ações voluntárias, pois no ambiente extremamente competitivo em que vivemos recoloca o gosto
pela sociabilidade. Estimula a filantropia empresarial enquanto investimento de longo prazo.
Finalmente, “projeta uma visão integradora da vida pública”, enfatiza a complementaridade que
há entre as ações, tanto públicas como privadas. É do interesse do “terceiro setor” que o Estado
funcione da melhor maneira possível no desenvolvimento e na implantação dos serviços públicos.
E, sem contextualizar, ignorando o crescimento da precarização do emprego, afirma que
organizações sem fins lucrativos apresentam como características fundamentais: alta criatividade,
grande riqueza em eficácia simbólica, autonomia, baixo investimento em capital, utilização de
trabalho extensivo e voluntário.
Para Gohn (2000), o ponto de partida para o entendimento do “terceiro setor” deve ser sua
complexidade, fruto, em grande parte, dos diferentes objetivos contemplados pelas diversas
instituições. Segundo sua análise a complexidade deve ser considerada a categoria explicativa
fundamental. A natureza do “terceiro setor” foi elaborada a partir das transformações que estão a
ocorrer no campo das ONGs, dos movimentos sociais, e das associações filantrópicas e
comunitárias em decorrência das mudanças no mundo da economia e da política. Para a
pesquisadora essas mudanças são acentuadas a partir dos anos noventa. Em sua forma de dizer:
No nosso ponto de partida para o entendimento do terceiro setor é também nosso postulado
fundamental: trata-se de um fenômeno complexo, diferenciado e contraditório. Ele tem gerado um tipo de
associativismo que atua ao nível do poder local e suas organizações se definem com fins públicos sem fins
lucrativos. A natureza do terceiro setor foi construída nos últimos anos a partir de transformações no campo
das ONGs, dos movimentos sociais e das associações filantrópicas e comunitárias. A origem dessas
transformações advém tanto de alterações amplas, ocorridas internacionalmente no mundo da economia e da
política, como de fatores ao nível nacional, advindas de alterações no cenário da sociedade civil brasileira,
especialmente na organização popular, em mobilizações e participação popular direta, nas décadas de 70 e
80, geradoras de inúmeras ações que vieram a se constituir num grande acervo de experiência acumulada. As
transformações das ONGs são também resultado das estratégias políticas contidas nas novas políticas sociais
dos Estados e governos nacionais, nos anos 90.(p. 60, grifos nossos).
As organizações que são abrangidas por esta noção são diversas e diferenciadas,
heterogêneas e até contraditórias. Apresentam algumas diferenças nas suas origens históricas, nas
suas finalidades, nas suas maneiras de se relacionar com o Estado, com a sociedade e com o
mercado como também nas suas formas de gestão dos recursos. Nem todas atuam no campo dos
direitos sociais, civis e políticos e muito menos nas lutas pela construção e/ou pelo avanço da
cidadania plena, distribuição de renda e reforma agrária. É preciso reconhecer que há, ainda hoje,
algumas instituições que assessoram movimentos sociais tal como o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra e ações de operários que assumem fábricas falidas (Usina Cooperativa Catende Harmonia em Pernambuco) em processos sociais conflituosos.
Logicamente, o tema ficará muito mais complexo se, na busca de maior rigor científico,
contemplarmos a história de cada país, as diferentes formas de construção e evolução do Estado, do
desenvolvimento da economia de mercado, do processo de luta de classes etc.
É certo afirmar que muitas das entidades que pertencem ao denominado “terceiro setor”
apenas se apropriam do discurso da cidadania, conceito este banalizado e totalmente esvaziado do
sentido de luta e confronto. Muitas atuam simplesmente como organizações filantrópicas e
assistenciais que reproduzem, de certa forma, as desigualdades sociais, econômicas e políticas
inerentes ao modo de produção capitalista brasileiro concentrador de renda. É equivocada a idéia
5
que propala que as ações do denominado “terceiro setor” estão estruturadas de forma harmônica e
solidária e que, desde já, apontam para a emergência de uma nova sociabilidade que ultrapassa o
mundo da mercadoria.
Como é sabido, as ações assistencialistas e filantrópicas podem amenizar a dor e o
sofrimento dos seres humanos que são “excluídos” da sociedade e da economia. “Exclusão” essa
que acontece de forma acentuada nos países capitalistas “periféricos e dependentes”. As ações
assistencialistas e filantrópicas são, em grande parte, atitudes humanas pautadas pelos sentimentos
de caridade e compaixão, ou seja, sentimentos que permanecem muito distantes da noção de direito
universal, da luta pela construção da cidadania e da justiça econômica e social.
Importante também é aprofundar as pesquisas neste campo, muitas entidades assistenciais e
filantrópicas competem de forma acirrada por recursos do Estado e das fundações privadas e não
realizem esforços comuns em benefício do todo. Há, na realidade, uma grande disputa pelo que
pode ser chamado de “mercado solidário”, inclusive, como é sabido, existe todo um sistema de
premiação institucionalizado. 4Como afirma Bailey (2000):
As organizações voltadas para as questões de direitos, ou que enfocam as raízes da pobreza, são
menos favorecidas pelo establishment político e econômico (p.90) .
As pesquisas sobre a atual fase do desenvolvimento capitalista apontam para a emergência
de um “regime de acumulação mundial predominantemente financeiro” que tem exigido aos
países industrializados, assim como aos países “periféricos e dependentes” (em vias de
industrialização?), uma “Reforma do Estado” que impõe uma revisão dos direitos sociais
conquistados pela classe trabalhadora. Com a perda dos direitos trabalhistas e com o crescimento
do que se denomina “economia informal” a classe trabalhadora encontra-se diante do que podemos
chamar de exploração precarizada.(SILVA,2002;2004)
Segundo pesquisas realizadas essa mudança implica na intensificação do ritmo de produção,
na redefinição da taxa de exploração da classe trabalhadora (mais - valia relativa e absoluta)5 e
no aumento da “população excluída”, o que poderemos chamar, de uma forma mais apropriada, de
elevação do exército industrial de reserva. Com o crescimento do exército de reserva aumenta
principalmente a categoria “rebotalho do proletariado”. Há aqueles que vivem da catação de lixo –
trabalhadores ambientais que coletam resíduos sólidos na retórica progressista – que são
parcialmente organizados em cooperativas ditas emancipadas e cidadãs. Muitos destes
“trabalhadores (as) emancipados” servem ao poder público municipal e vivem, quase sempre, em
uma situação de total precariedade, sem proteção social, direitos trabalhistas.
Portanto, o que se convencionou chamar de “terceiro setor” pode ser explicado de uma
forma apropriada pela categoria superpopulação relativa, ou seja, pelas mesmas causas que
explicam o crescimento do exército industrial de reserva no final do século XX e início deste. O
necessário resgate histórico desse conceito poderá clarificar, com profundidade científica, a noção
de totalidade social e o verdadeiro significado da emergência desta expressão de linguagem.
Desta forma, considero que é por demais importante, antes de tudo, chamar atenção para a
propagação dessa noção como uma ideologia no sentido de falseamento da realidade concreta.
Muitos pesquisadores acreditam que a sociedade está diante de um novo processo histórico no qual
o “terceiro setor” - em uma mágica relação triangular, Estado, Mercado e Comunidade - terá um
papel político fundamental a desempenhar.
4
A Câmara Americana do Comércio criou, em 1982, o Prêmio Eco que tem como objetivo valorizar iniciativas de
empresas privadas que apóiam e /ou desenvolvem projetos sociais. Exemplos: Fundação Roberto Marinho, Fundação
Acesita, Mineração Rio do Norte e outras.
5
Sobre novas formas de organização que ampliam a exploração da classe trabalhadora (mais - valia absoluta e mais –
valia relativa) conferir Fordismo e Toyotismo: na civilização do automóvel. Gounet, T. São Paulo: Boitempo,1999.
6
Acredito que se faz necessário considerar o contexto social e econômico para uma
compreensão crítica do significado do “terceiro setor”, isto é, da ideologia que se constrói em torno
de possibilidades imaginadas. Como uma expressão de linguagem o seu caráter ideológico,
ideologia messiânica e salvacionista, oculta as transformações profundas que estão a ocorrer no
capitalismo contemporâneo. Esta ideologia, presente na obra maior de Rubem C. Fernandes
(Privado Porém Público), aparece, também, com toda evidência nas idéias de Jeremy Rifkin (1997),
na análise crítica de Robert Kurz (1997), nas concepções de Claus Offe (1999), na visão de Augusto
de Franco (1999) e nas reflexões de Boaventura de S. Santos (1999).Vejamos, inicialmente, como
essa ideologia salvacionista, comparece nas reflexões de Jeremy Rifkin (1997):
No seu conhecido texto “A natureza e identidade do terceiro setor”, o processo de
ideologização é elaborado em torno das promessas e possibilidades do desenvolvimento de uma
sociedade capitalista harmônica, sem conflitos e contradições de classe, que tem o denominado
“terceiro setor” como protagonista principal. Esse autor, J. Rifkin, parte de uma análise do contexto
econômico e social do final do século XX. Ele defende a tese de que está a ocorrer uma
transformação fundamental na natureza do trabalho, e essa transformação, que segue uma
evolução linear, tem um caráter mundial. Na sua previsão, em torno do ano de 2020, no mundo
todo, haverá uma eliminação radical, não somente do operário industrial, mais do trabalhador, isto
é, esta força de trabalho será reduzida a menos de 2% no planeta terra. Na sua visão basta convencer
os donos do capital para a necessidade da redução da jornada de trabalho e, também, para investir
no crescente “terceiro setor”; desta maneira será eliminado o desemprego e emergirá a sociedade
boa. Assim afirma:
Existe a esperança de que as corporações se sentem à mesa de negociações, de reunam os líderes
empresariais, os trabalhadores e a comunidade, em cada país, para repensar o contrato social. Isso é do
interesse do todos: da empresa, dos trabalhadores e da sociedade civil. Como iniciar esse processo? Quando
a Segunda Revolução Industrial substituiu a primeira, no começo deste século, – a eletricidade, as linhas de
montagem e o petróleo substituíram o vapor -, a tecnologia era espantosa, portanto a pergunta – chave era o
que fazer com as pessoas, uma vez que o trabalho humano seria reduzido. Um líder trabalhista elaborou o
raciocínio de uma maneira muito clara, ao concluir que „se as novas tecnologias reduzem o trabalho humano
em três vezes, elas economizam trabalho‟. A única questão que todos os países têm de resolver é se essas três
vezes vão implicar filas de desempregados ou mais tempo livre. Compartilhar ou não os benefícios: as
gerações passadas acreditavam que deviam trabalhar para viver, não viver para trabalhar, diferentemente da
nossa, que passou a acreditar que devia viver para trabalhar. Quando um indivíduo se baseia na equação
de que ele trabalha para viver, as tecnologias passam a trabalhar para ele, não contra ele. No passado
as pessoas uniram-se, organizaram-se em grupos políticos e pressionaram o governo e o mercado até
conseguir uma redução de sessenta para quarenta horas semanais de trabalho. Obtiveram aumentos salariais e
maiores benefícios; e é assim que definimos o sucesso da segunda Revolução Industrial do século XX:
menor número de horas de trabalho por semana e melhor remuneração” ( 1997, p. 17-18, grifos nossos).
Como se observa, a questão da redução da jornada de trabalho (redução do tempo de
trabalho socialmente necessário) para Rifkin (1997) passa pela boa lógica do convencimento. Há
uma esperança de que as corporações sentem para negociar uma nova divisão do tempo de trabalho
socialmente determinado. Mas, para este fato ocorrer, esses indivíduos precisam mudar a forma de
pensar, precisam desejar trabalhar menos e viver mais, isto é, tudo pode ser resumido pela equação:
trabalhar para viver e não, ao contrário, viver para trabalhar. Desta forma, o progresso técnico
deixará de ser um competidor da força de trabalho e passará a ser um aliado do ser humano,
contribuirá para uma nova sociabilidade, para a reativação da vida civil, ou seja, o “terceiro setor”.
Esse é o resultado das tecnologias que poupam trabalho humano: libertar milhões de pessoas para
possam restaurar a vida familiar e comunitária, enfim, a vida civil. Trata-se de trabalhar para viver, libertar a
humanidade, restaurar a família e a comunidade civil. (RIFKIN,1997, p. 18)
7
Segundo ele várias empresas tomaram esta decisão (Hewlett Packard, Renault da França e a
BMW da Alemanha) reduziram a jornada de trabalho sem redução nos salários. Os
empregados trabalham quatro dias por semana e recebem por cinco dias. Na harmoniosa visão deste
autor estão todos felizes: os diretores ao verem seus lucros aumentarem e os empregados por terem
segurança no trabalho.
Uma vez que se compreenda isso, abrir-se-á a possibilidade de um novo contrato social para esta
civilização; trata-se de uma nova visão e de uma nova missão para o século XXI. O setor do mercado cria
capitais e emprego de mercado, mas isso não é suficiente. O setor de governo cria capitais e empregos de
governo, mas isso também não é suficiente. Existe ainda na sociedade civil, que cria capital social e
empregos. Nos Estados Unidos, há 1,2 milhão de organizações sem fins lucrativos ou organizações de
serviços. Dez por cento de sua força de trabalho remunerada encontra-se nesse setor. Se o setor sem fins
lucrativos dos Estados Unidos fosse uma economia, seria a sétima maior economia do mundo. Há terceiros
setores crescentes, porque muitos países têm uma população jovem. O setor de ONGs está crescendo mais
rapidamente do que os outros dois. O problema é que os participantes do Terceiro Setor estão em um status
neocolonial. Pensam como um setor subjugado. Suplicam ao governo, ao mercado e às instituições
filantrópicas para obter verbas. Têm de compreender que o governo está começando a desaparecer da vida
das comunidades, que seu papel é cada vez menos importante, que está passando a delegar verbas e
programas. O mercado está tornando-se cada vez mais globalizado e não interno. Que vai acontecer com as
fundações? A responsabilidade da vida cívica passará a ser delas e do setor não governamental. Esse é o
processo de libertação. Essa liberdade implica uma nova responsabilidade. O problema do Terceiro Setor é
que ainda não tem consciência de sua condição. Falta-lhe uma identidade. Sem identidade, não há poder.
Sem poder, não há como o Terceiro Setor tratar como iguais o mercado e o governo; e enquanto isso não
acontecer, não poderá começar a lidar com os problemas que sociedade civil enfrenta em seus respectivos
países.(RIFKIN, 1997, p.20, grifos nossos)
A citação acima deixa muito clara a visão ideológica do autor. Fica evidente qual a natureza
do denominado “terceiro setor”. Diante do desemprego estrutural, provocado pelo avançado
processo de automação, do enfraquecimento das lutas trabalhistas e da redução do papel do Estado
em relação ao desenvolvimento de políticas sociais (Estado mínimo), o “terceiro setor” apresenta-se
como uma alternativa, as Fundações Privadas e as ONGs deverão assumir a responsabilidade da
vida cívica no interior das relações sociais de produção capitalistas harmonizadas. Será
construído um novo pacto social, uma convivência pacífica entre os três setores, o mercado - que
cada vez mais libera trabalhadores em decorrência do progresso técnico - o Estado (mínimo)
reduzido em suas ações públicas e o “terceiro setor”. Esse último será financiado por Fundações
Privadas e por empresários compreensivos e conscientes, o novo pacto social possibilitará o êxito
do mercado e do governo democrático. Esta é visão do autor, um capitalismo humanizado pela ação
solidária dos três setores, uma nova forma de estruturação social, política e econômica. Porém, o
autor faz um alerta, caso esta alternativa não seja construída pela sociedade os seres humanos,
liberados pelo desemprego, raivosos e desesperados, ou ampliarão a população dos presídios (o que
significa um elevado custo econômico para a sociedade), ou serão presas de ideologias política
extremistas.
Há seis milhões de pessoas incluídas entre os chamados „homens perdidos‟ (são quase todos
homens). Não são parte da economia e não aparecem nas estatísticas. Há milhões de trabalhadores
temporários que costumavam ter empregos fixos. O desemprego nos Estados Unidos é de 14%. Todavia criar
empregos no setor civil e provê-los de recursos financeiros custa dinheiro. As fundações podem ser
catalisadoras, mas não podem fazer tudo sozinhas. Podem ser a inspiração, o catalisador, o motivador, mas,
uma vez concretizada uma parceria entre o governo e setor civil, muitas oportunidades novas podem ser
criadas. Isso implica em falar em impostos, o que não parece oportuno atualmente. O fato é que os
8
empresários terão de pagar impostos de uma maneira ou de outra. Terão de pagar impostos para prisões ou
para a comunidade; para celas nas prisões ou capital social, mas nunca conseguirão fugir dos impostos
.Quase 3% dos homens nos Estados Unidos estão em prisões aguardando julgamento. Essa é a rede social lá;
o Estado garante alimentação e vestimenta a essas pessoas, e custa US$30 mil por ano – do dinheiro de
impostos – manter um ser humano na prisão. Mais vale aproveitar esse dinheiro para criar empregos no setor
civil.(...) O êxito do mercado e do governo democrático vai depender, finalmente, do êxito do setor civil. Se
o setor civil for forte e politicamente ativo e motivado, o mercado florescerá no próximo século. Ainda há
que se discutir como repensar a educação, o movimento trabalhista, os sindicatos, os assuntos ambientais, os
assuntos da mulher; todos esses temas entram no espectro de uma nova força intermediária. Se essas
questões não forem examinadas agora, será praticamente impossível tratar delas daqui a dez anos; as vozes
da raiva, do desespero e do ressentimento serão tão fortes que unicamente as ideologias políticas
extremas terão êxito. No setor civil há uma redução no trabalho, portanto, deve-se permitir que a revolução
tecnológica libere milhões de pessoas que possam restaurar a família e a comunidade e colocar o setor civil
novamente no centro da vida de cada país ( RIFKIN, 1997, p.21, grifos nossos).
Por enquanto o “terceiro setor” não tem sido, na sua relação triangular, muito eficiente no
seu papel de inclusão social. Os Estados Unidos da América do Norte, um dos paraísos do “terceiro
setor”, presencia um processo acelerado de concentração de renda. Apresentam a 20a. taxa de
mortalidade infantil do mundo; 1/3 de crianças em idade escolar estão sem vacinas básicas; 50% de
esquizofrênicos vivem nas prisões ou nas ruas; 40% de idosos estão abrigados em instituições em
péssimas condições humanas; 31 milhões de seres sem nenhuma cobertura de saúde; 5 milhões sem
tetos que fazem dos subterrâneos das estações do metrô verdadeiras cidades (favelas). Não
mencionamos aqui os problemas causados pela alta corrupção, as ONGs não têm conseguido
controlar, de forma eficaz ,a promiscuidade do Estado. (PETRAS, 1996).
De acordo com Lawrence Summers, ex-ministro da Fazenda do governo Clinton, presidente da
Universidade de Harvard, a desigualdade aumenta de forma acelerada nos Estados Unidos da América do
Norte.
“A renda média das famílias teve um incremento de 18% desde 1979, enquanto a renda do grupo
formado por 1% das famílias mais ricas cresceu 200%. Essa famílias ganham mais agora do que o conjunto
das famílias que compõem os 40% mais pobres”( SUMMERS apud CARDOSO, 2004).
O sociólogo Robert Kurz (1997) no texto “Para além do Estado e Mercado”, publicado no
livro “Os últimos combates”, quando analisa a visão de André Gorz (Crítica da Razão Econômica) a
respeito das “atividades autônomas, organizadas pela reunião de voluntários nas „microesferas
sociais‟ de bairros e distritos, as atividades desenvolvidas em creches, asilos, a produção de
alimentos e de bens de necessidades básicas, aceita o conceito “terceiro setor”. Ao estudar a obra de
Rifkin elabora uma análise critica ao que chamará de “vislumbre de Rifkin” . Segundo Kurz (
1997) esse pesquisador defende a tese de que, com o desenvolvimento de um“ terceiro setor
autônomo” surge uma nova era, “a era do pós-mercado”. Ou seja, segundo J. Rifkin o
capitalismo, se não foi ainda superado, transita para um outro modo de produção, da ação do
“terceiro setor” emergirá uma nova estrutrura social e de produção: uma sociedade “pós-mercado”.
Mas, em seguida, R. Kurz (1997)6, afirma que, aparentemente, não parece ser uma pura elucubração
teórica destes autores, pois, nos últimos 10 ou 20 anos, “ o mundo presenciou o crescimento da
importância de um espaço social difuso entre o Estado e o mercado” e, propõe uma questão: é
preciso saber se este espaço social,o “terceiro setor”, tem condições de ser um novo paradigma de
reprodução social. Assim coloca:
6
Quando fala da emergência de um espaço social e difuso, o terceiro setor, deixa claro que não faz referência à
“economia informal”, que não deixa de ser um mercado ilegal e brutalizado.
9
(...) o terceiro setor é composto da união de inúmeros agrupamentos voluntários, destinados a conter
a miséria social e barrar a destruição ecológica. A maioria desses grupos dá grande valor à administração
autônoma. No campo prático, eles avançam no terreno abandonado pelo mercado e pelo Estado em virtude
da baixa rentabilidade ou da falta de recursos financeiros. Suas atividades abrangem desde a criação de
cozinhas públicas, o cultivo de hortas e a coleta de lixo, até serviços de creche, reforma de moradias e
organizações de escolas particulares. Dentre os nomes citados por Jeremy Rifkin, estão entidades como os
Travaux d‟Utilité Collectiva, na França, as Jichikai (comunidades de ajuda mútua), no Japão, as
Organizações Económicas Populares no Chile, ou as juntas de vecinos em outros países da América Latina.
Como rubrica comum, foram cunhados os nomes „Non-Profit Organizations‟ – organizações sem fins
lucrativos – e „Organizações Não - Governamentais‟ (ONGs), para deixar bem claro que não se trata de
iniciativas comercias nem burocráticas.
A questão decisiva é saber se o terceiro setor tem condições de ser um novo paradigma de
reprodução social. Para que isso seja possível, ele terá de ir além das simples medidas paliativas ou de
urgência, destinadas somente a fazer curativos leves nas feridas abertas pela „mão invisível‟ do mercado
globalizado. Se não houver mais nenhum surto de crescimento econômico, como muitos esperam, o terceiro
setor precisará formular sua própria perspectiva de desenvolvimento para o século XXI, em vez de ser um
mero sintoma passageiro da crise.(...) Em ambos casos (Gorz e Rifkin), porém, o terceiro setor é visto como
o irmão caçula do mercado, pois as fontes de „financiamento‟ são necessariamente as migalhas de caridade
deixadas pela produção que visa lucro. Segundo leis objetivas do mercado, o aumento da produtividade
técnica não implica em redução da jornada de trabalho, mais simplesmente a redução dos custos produtivos.
Nas atuais condições, isso eqüivale ao desemprego em massa para grande parte da população, ao passo que o
incremento da produtividade é consumido para enfrentar a concorrência nos mercados globais. Os pontos de
vista de Gorz e Rifkin ameaçam permanecer um simples modelo de subvenção para países ricos, uma
espécie de passatempo altruísta para os campeões do mercado(KURZ, 1997, p. 152-154 grifos nossos).
Observo que, inicialmente, as ações evidenciadas pelo autor referem-se mais às práticas
desenvolvidas pelas ONGs e pelos movimentos comunitários. Sublinha que não se trata de ações
comerciais, burocráticas e nem se confunde com as atividades realizadas na chamada “economia
informal”. Após dá um certo relevo ao “terceiro setor”, realiza uma crítica avassaladora às suas
ações. Diz, se não houver crescimento econômico, o “terceiro setor” como um mero sintoma
passageiro da crise, atuará simplesmente como um paliativo para as feridas abertas pela mão
invisível do mercado. Portanto, uma vez que, encontra-se subsumido à lógica do mercado não
pode ser considerado um setor autônomo, sua importância é meramente curativa. Assim sendo,
as esperanças nascem mortas, o “terceiro setor” - subordinado ao mercado - não conduzirá a um
processo de transformação social, à geração de um novo paradigma de reprodução social livre da
competição mercantil.
Depois de fazer estas avassaladoras críticas, chamando atenção para as cooperativas que
foram criadas em tempos passados por movimentos trabalhistas, Kurz (1997), ao criticar os antigos
marxistas que preferem capitular diante do neoliberalismo, conclui que o “terceiro setor”, na
presença da atual crise econômica, poderá ser um fator político de peso.
Ou melhor, um fator antipolítico ou pós-político, pois as novas iniciativas não se deixam rotular de
acordo com as velhas categorias da política moderna. Uma tal tendência ainda é pouco aparente, pois, apesar
de algumas exceções, os politiqueiros, os arrivistas e os terroristas de Estado recebem mais atenção na mídia
do que os grandes movimentos do terceiro setor. Isso também é resultado, em parte, da timidez desses
grupos, da ausência de um discurso mais mordaz. Até agora, seus próprios integrantes não se reconhecem
como uma força histórica inovadora. O apoio de grupos da esquerda política é igualmente duvidoso. Seu
apego ao conceito de Estado é ainda muito forte para aceitarem os movimentos do terceiro setor como
um possível aliado. O mais provável é que farejem nas atividades cooperativistas uma perigosa concorrência
política, e não uma forma promissora de emancipação social. Antigos marxistas preferem capitular
diante do neoliberalismo a superar criticamente seu próprio passado ( p. 156 –157, 1997, grifos nossos)
10
Este trecho demonstra uma grande confusão que cerca o conceito “terceiro setor”. Para Kurz
(1997) o “terceiro setor” tem uma importância limitada por ser subordinado ao mercado, não
ultrapassa, diante da atual crise de crescimento econômico, a fronteira de ações paliativas. Ao
mesmo tempo pode ser considerado um movimento social, “antipolítico ou pós-político relevante”.
Mesmo sendo um importante movimento social não é reconhecido pelas velhas esquerdas marxistas
que apegadas ao Estado têm uma visão aprisionada pela “ideologia estatista”. O terceiro setor
confunde-se com o movimento cooperativista, e pode, até ser, uma forma promissora de
emancipação social, um novo paradigma de reprodução social. Para que seja um movimento
emancipatório em construção, os militantes precisam abandonar a sua timidez, necessitam
reconhecer a força histórica e inovadora que se faz presente no “terceiro setor”. Em resumo: o que é
possível entender a respeito dessas confusas apreciações sobre a noção “terceiro setor”?
O pesquisador Claus Offe (1999) diante do processo de globalização do capital e do que
denomina de pós-modernização, elabora considerações sobre uma nova visão de progresso (evitar
formas catastróficas de “des-civilização”, recaída no barbarismo) que são relevantes para a
compreensão da sua concepção sobre a “inovação das relações entre Estado sociedade e
comunidades”. No capítulo sobre pós-modernização diz o autor:
(...) o impulso moral e político oriundo das idéias de libertação, justiça social e paz internacional
parece ter perdido muito de sua atração e potencial para mobilização política. Isso se aplica particularmente a
qualquer noção de progresso que envolva, como uma vez envolveram a teoria da modernização liberal, o
marxismo revolucionário ou o zelo missionário da cristandade, uma noção universalista de fins
desejáveis, na direção dos quais a história deveria se mover e pode realmente ser encaminhada por agentes
históricos constituídos. Essa noção de progresso, na medida em que sobreviveu a todas as forças
desorganizadoras da cultura pós - moderna, está hoje sendo reformulada: o progresso é agora concebido
como capacidade de evitar continuamente a recaída no barbarismo e em formas catastróficas de descivilização ( p. 126-7, 1999, grifos nossos).
Sendo assim, entendendo progresso como a capacidade de evitar continuamente a
recaída no barbarismo, no lugar do “O que fazer?” (Lênin), a questão passa a ser: qual
configuração de agentes pode ser capaz de fazer o “que precisa ser feito” ? A resposta é simples, é
preciso superar a visão monística de configuração social.
As antigas opções de desenho são monísticas, baseando-se no Estado, no mercado ou na
comunidade para garantir em última instância a ordem social e a coesão. Soluções mais promissoras são
essencialmente “impuras”: não se deve utilizar nenhum dos três princípios exclusivamente, mas a todos eles
deve ser reservado um papel em um arranjo institucional complexo e composto. Esses são os três
componentes da ordem social em precária relação entre si: de um lado, eles se baseiam um no outro, já que
cada componente depende do funcionamento dos outros dois; de outro, entretanto, a sua relação é
antagônica, já que a predominância de um deles põe em risco a viabilidade dos outros dois. (OFFE, p.128,
1999, grifos nossos)
Após estas citações não é muito difícil descobrir qual a tese que será defendida pelo autor.
Como resultado de uma “mistura rica” e “sintonia fina” entre os três setores - o Estado, o mercado e
a comunidade - deverá emergir um novo desenho institucional.
Qualquer desenho institucional monístico tende a ignorar (no plano teórico) e destruir (em suas
implicações práticas) as contribuições que os outros dois componentes da ordem social têm para dar.
Segundo esse tipo de desenho não pode se basear nem mesmo na combinação de apenas dois desses padrões
(isto é, excluindo o terceiro respectivo), sejam sínteses mercado-Estado, Estado –comunidade, ou
comunidade-mercado. Precisamos de todos os três fundamentos da ordem social, e numa mistura que
11
consiga evitar que cada um deles se sobreponha aos outros e elimine. ( OFFE, p.129 -30, 1999,grifos
nossos)
Depois de realizar uma análise crítica sobre o que denomina de doutrinas puras, o estatismo
social-democrata - que enfatiza o uso ativo de capacidades de governos fortes como a chave para a
ordem social e a justiça social -, o liberalismo de mercado - que defende a coordenação social por
meio das sinalizações dos preços e da demolição dos direitos, em particular dos direitos do trabalho
– e as formas religiosas e não religiosas do comunitarismo e filosofias públicas conservadoras como
formas de coesão social atribui aos cidadãos e a suas associações civis um papel privilegiado no
desenho institucional e na preservação da ordem social. Assim se pronuncia:
A construção institucional que ocorre de acordo com a “linha correta”, entretanto, não pode mais ser
conduzida por filósofos e ideólogos, já que nossa época superou os esquemas descritos por eles. O papel chave para o desenho e a preservação da ordem social, portanto, deve ser ocupado pelos cidadãos e suas
próprias associações cívicas. (...) A única resposta correta a uma questão como” qual é o tamanho ótimo do
governo” é: Ninguém sabe! Ou, ao invés disso, a resposta não é passível de ser dada na forma de um
argumento econômico e filosófico, mas somente como resultado de uma deliberação democrática
construída processualmente e bem informada, levada a cabo no interior de e entre os atores coletivos da
sociedade civil, tanto formais como informais (...) A relação e a demarcação da linha entre mercado, Estado
e comunidade é ela própria uma questão política. Como conseqüência, quase qualquer resposta à questão do
papel adequado e do desejável tamanho relativo dos princípios macrossociais que organizam a economia
política será controversa e essencialmente contestada. (OFFE, 1999, p.131-2 grifos nossos)
Portanto, para quem defende a tese de que a classe trabalhadora perdeu a centralidade no
processo histórico das transformações sociais não é muito difícil elaborar uma “ideologia de
mudança social” que não rompe com o modo de produção capitalista, isto é, um novo reformismo
social e político. Como foi dito, a transição será realizada pela construção de um novo arranjo
institucional que será fruto de uma “mistura rica /sintonia fina” dos três setores básicos que
compõem hoje a ordem social, o Estado, o mercado e a comunidade. Essa transição, como vimos,
será realizada democraticamente e os cidadãos ocuparão um espaço privilegiado, atores coletivos
da sociedade civil, em luta política, demarcarão a linha e a relação entre o Estado, mercado e
comunidade, a mágica do eterno triângulo. Em suas palavras:
Os problemas de um país não vão ser resolvidos apenas pela ação do Estado ou do mercado. É
preciso um novo pacto, que ressalve o dever do Estado de dar condições básicas de cidadania, garanta a
liberdade do mercado e da competição econômica e, para evitar o conflito entre esses dois interesses,
permita a influência de entidades comunitárias. As organizações não governamentais, as igrejas, os
movimentos profissionais como os „Médicos sem Fronteira‟ atuam como uma válvula de escape nas
deficiências do Estado e do mercado. É a entidade dos direitos civis que vai defender os interesses do
cidadão junto à justiça e ao Congresso. É a solidariedade de uma organização religiosa que vai ajudar
muitos desempregados excluídos pelo mercado. A família, os vizinhos, a comunidade em que cada um
vive é a reserva moral da sociedade. É lá que o cidadão vai encontrar a solidariedade sem interesses. A
origem histórica da ação política da comunidade vem das tradições da Igreja Católica, da visão liberal do
filósofo francês Alexis de Tocqueville, que defendia a “arte cívica das organizações”. É inegável o
resultado positivo da ação comunitária. (...) Mas há péssimos exemplos de ações comunitárias. O antisemitismo na Alemanha nazista começou como uma ação comunitária para excluir os judeus da vida
econômica e social do país. Hoje isso se repete em ações contra imigrantes africanos nos países ricos da
Europa ou contra os latino-americanos nos Estados Unidos. (...). Por isso defendo um triângulo entre as três
forças, sem hegemonia de nenhum setor (Veja, 08/04/1998 grifos nossos).
Ficam muitas questões e uma das mais importantes refere-se à possibilidade de construção
de uma relação triangular equilibrada na qual o mercado, hoje hegemônico, abra mão do seu
12
grande poder sobre a classe trabalhadora, os seres humanos e à natureza. O próprio autor citado
revela que o anti-semitismo na Alemanha nazista começou como uma ação comunitária solidária.
Portanto, é sempre importante perguntar sobre a natureza das ações solidárias. Que solidariedade?
Como Augusto de Franco (1999), em seu artigo“ Reforma do Estado e o Terceiro Setor”,
entende o “terceiro setor? Como muitos outros, o “terceiro setor” é igual a “sociedade civil”,
estamos diante de uma grande reforma que significa uma refundação da (res) publica, isto é, está em
gestação um novo modelo de Estado. Este processo exige uma profunda transformação nas relações
entre o Estado e a sociedade.7
Ao longo prazo, as exigências da radicalização da democracia tendem a transformar a reforma
política, com a instalação de um regime de minorias, a combinação do sistema representativo como o
participativo e a introdução do chamado co-governo – o que exigirá a completa reformulação dos partidos
e dos processos eleitorais e a criação de novas instituições políticas.Ao curto prazo, quase todas as reformas
que estão sendo cogitadas são reformas do Estado. As reformas políticas, do sistema de governo, do sistema
eleitoral e partidário, do parlamento e do judiciário são, a rigor, reformas do Estado. Da mesma forma o são
as reformas previdenciária, fiscal e administrativa (do chamado “aparelho de Estado”) e do federalismo. Essa
constatação não deixa de revelar o alto grau de estatização ou de predominância do protagonismo estatal
na política e em outros setores da vida social indicando o alvo principal de nossos esforços (FRANCO,
p.273. 1999, grifos nossos).
É no contexto dessas reformas, no qual o Estado é apresentado como protagonista principal
(radicalização da democracia e co-governo são as palavras-chave), que o autor levanta cinco
questões derivadas de uma sexta, considerada fundamental, sobre o papel do “terceiro setor”. A
questão fundamental está relacionada ao dilema: diminuição ou redução da participação do Estado
na esfera pública. Para fundamentar sua reflexão sobre esta pergunta cita uma significativa
passagem do discurso do Presidente Fernando Henrique Cardoso realizado na cerimônia da sanção
da lei do voluntariado, em 18 de fevereiro de 1998. Para além do Estado, dos sindicatos e da
racionalidade do mercado privado empresarial há outras organizações que pertencem a uma
sociedade civil moderna, surgem novas formas de sociabilidade.
Isto é muito importante; por quê? Porque sublinha a característica do mundo que está por nascer ou
que já está nascendo, e que é um mundo no qual não podemos limitar a nossa visão àquilo que, embora
fundamental, não esgota o universo de possibilidades. A que me refiro? A duas ordens de fatores: por um
lado, este mundo não pode desconhecer o mercado nem se limitar ao mercado. Quem não reconhecer a
importância do mercado e da racionalização que o mercado introduz não entende o mundo contemporâneo
(FRANCO, Apud CARDOSO, 1998, p. 274, 1999).
Ao afirmar que o mercado, embora seja racional, é insuficiente e, muitas vezes, não
apropriado para alocação de certos recursos produzidos pela sociedade Fernando H.Cardoso (1998)
defende a tese que a solução está no que há de novo, o “terceiro setor”.
Mas quem imaginar que, porque existe o mercado e porque o mercado é “racional”,
progressivamente a racionalidade se estenderá ao conjunto da sociedade, também não entende o mundo
moderno, porque o mercado é insuficiente e, muitas vezes, ele é inadequado para a alocação de certos
recursos. E muitas vezes concentra a renda ao invés de a distribuir. Aliás, a sua tendência é mais de
concentrar do que de distribuir renda.Portanto, ao reconhecer o mercado como um dos princípios de
7
Esta equação “terceiro setor” igual a “sociedade civil” é profundamente criticada por Carlos Montaño (2002). Segundo
esse pesquisador, sociedade civil como terceiro setor, desgarrado da totalidade social, tem sua origem no positivismo e
no liberalismo vulgar. Sociedade civil em Gramsci “supõe sua articulação com outras categorias centrais: hegemonia de
classe e revolução” (p.125 -6).
13
organização do mundo contemporâneo, não se pode transformar o mercado num valor a partir do qual se
organiza o mundo, porque o mundo não pode ser organizado pelo mercado. (...) Nem o Estado é suficiente
nem o mercado.(...) O que há de novo agora é precisamente o terceiro setor. O que há de novo.é que
existem formas dinâmicas de controle social, de organização de objetivos, e até mesmo de generosidade e
de solidariedade, que não decorrem nem do princípio racionalizador do mercado, nem do princípio
autoritário de distribuição do Estado. E que são energias novas, que são cada vez mais incorporadas à
fisionomia das sociedades contemporâneas (CARDOSO, 1998 Apud FRANCO, 1999, p. 274-5 grifos
nossos).
No discurso do presidente Fernando Henrique Cardoso, que vai balizar as reflexões do
pesquisador em referência, o mercado, embora de forma insuficiente, aparece como protagonista
que organiza racionalmente a sociedade, não existem sujeitos históricos, classes sociais com
interesses antagônicos. O “mercado fetichizado” toma decisões e, mesmo de forma imperfeita,
aloca os recursos racionalmente.
Segundo Franco (1999), uma vez que as utopias são sempre necessárias para estimular
movimentos voltados para transformações da sociedade há, neste século, uma utopia que pode
inspirar a reforma do Estado. Mas ressalta o autor que não estamos diante de uma velha utopia que
acreditava na possibilidade de construir uma sociedade sem Estado ou sem mercado ou sem ambos;
democracia radical, cidadania universal e sustentabilidade são as palavras mágicas que devem
inspirar os novos movimentos sociais.
O movimento em direção a esse futuro desejável se dá através de três processos, simultâneos e
articulados entre si, que podem ser realizados a partir do presente: a radicalização da democracia, a
universalização da cidadania e a conquista da sustentabilidade (p. 276).
Este movimento, do capital sujeito, tem como referência teórica o conceito moderno de
capital social, um tipo muito especial de capital que tem como função orientar socialmente o
mercado e controlar o Estado. Portanto, nesta direção, a orientação estratégica acertada deve ser:
investir na organização da sociedade civil e na boa governança. Relevante observar, com toda
riqueza de detalhes, o que se denomina utopia do século XXI.
Na vanguarda do pensamento econômico deste fim de século e de milênio, fala-se hoje de um outro
tipo de capital, sem o qual os projetos estatais de desenvolvimento e os empreendimentos privados
empresariais, por mais bem arquitetados, orçados e implementados que forem, não poderão ser plenamente
exitosos. (...) Já se comprova, pelo menos empiricamente, a relação direta entre os graus de associacionismo,
confiança e cooperação atingidos por uma sociedade democrática organizada do ponto de vista cívico e
cidadão e a boa governança e a prosperidade econômica. Tal relação pode ser compreendida como capital
social. O capital social passa, agora, a fazer parte da equação macroeconômica do desenvolvimento,
constituindo, ao lado da renda e juntamente com o capital humano e o capital empresarial – quer dizer, o
conhecimento e a riqueza – ,uma de suas principais variáveis” (FRANCO, p.277, 1999, grifos nossos).
Na concepção dessa utopia, como a “sociedade civil moderna” emerge e transforma - se em
um “terceiro setor” que protagonizará a construção de um novo paradigma de relação entre o Estado
e a sociedade? Nessa relação às chamadas iniciativas cidadãs produzirão um “mágico campo
sinergético”, terão o condão de otimizar e “alavancar” recursos para o desenvolvimento sustentado.
Assim coloca Franco (1999):
(...) as mudanças que estão sendo introduzidas nas relações entre o Estado e Mercado podem ser
compensadas pelas mudanças que deverão ocorrer nas relações entre Estado e Sociedade Civil, composta
por iniciativas cidadãs, sobretudo aquelas com fins públicos e não-lucrativos – seja fortalecido, até que
possa assumir o seu papel protagonista e mediador no arranjo institucional que se prefigura.
14
A busca da sinergia Estado - Mercado - Sociedade Civil é uma necessidade imediata do
desenvolvimento e uma exigência do sistema de gestão das políticas públicas baseado num novo paradigma
de relação Estado - Sociedade, que prevê a articulação, a descentralização, a parceria, a transparência, o
controle social e a participação.Só esta sinergia pode otimizar os esforços e alavancar os recursos que o
Estado não possui para investir no desenvolvimento, incorporando o capital empresarial e o capital social
como fatores decisivos na estratégia nacional. Sem essa sinergia o Estado jamais poderá ser controlado e o
Mercado jamais poderá ser orientado pela Sociedade (p.277, grifos nossos).
Desta forma, há uma solução, uma nova utopia que supera as ideologias “estadocentristas” e
“mercadocentristas”. Não é possível aceitar uma visão neoliberal que pretende realizar uma fácil
transposição da “lógica” do mercado tanto para o Estado como para a sociedade civil, estes três
segmentos sociais apresentam fronteiras bem estabelecidas, isto é, têm racionalidades distintas.
Portanto, “terceiro setor”, com seu poder mágico desempenhará o papel de protagonista das
mudanças sociais.
Trata-se, pois, tão – somente de reconhecer que essas três esferas têm racionalidades próprias e
que não se pode abolir qualquer uma delas ou tentar substituir uma por outra. Não se pode, no
horizonte estratégico tomado aqui como referência, pretender extinguir o Estado ou abolir o Mercado, mas é
possível, sim promover uma integração mais construtiva entre essas instâncias, para o que, entretanto, tornase necessária a participação da Sociedade Civil (FRANCO, p.278, 1999, grifos nossos)
Diante destas colocações é possível encaminhar várias questões: como instituições
assistenciais e filantrópicas, fundações privadas, organizações não - governamentais e cooperativas
transformam-se, em um passo de mágica, em um “terceiro setor” que transformará a sociedade sem
superar as relações capitalistas? Como o “terceiro setor”, também chamado de “sociedade civil”,
enfrentará os “ajustes estruturais” promovidos pelas políticas neoliberais ?
O termo “estrutura” foi, no passado, associado à esquerda. Era associado aos esforços para
identificar configurações de poder social que sustentavam as desigualdades. A análise estrutural da Esquerda
enfatizava políticas para mudar padrões de concentração de terra e renda para uma maior igualdade. O termo
“ajuste” refere-se ao processo de intervenção estatal para enfraquecer os direitos sociais e trabalhistas e para
reconcentrar renda e propriedade.(....) O jargão tecnocrata ofusca as mudanças profundas no poder de classe
e de riqueza que resulta da intervenção radical do Estado. “Flexibilização Laboral” é o conceito colocado
em oposição aos direitos trabalhistas. (...) De acordo com os ideólogos da “flexibilização laboral”, estes
direitos trabalhistas são rigidez. (...) Trabalhador é para estar sujeito às regras do capital. (PETRAS, 1999,
p.62 – 3 , grifos nossos)
O intelectual Henrique Rattner(1999), ao fazer uma referência ao “Terceiro Encontro Ibero Americano do Terceiro Setor” que aconteceu entre 8 a 11 de setembro de 1996, na cidade do Rio de
Janeiro, pergunta sobre as “premissas lógicas e ideológicas desse novo exército de salvação”.
As informações apresentadas por diversos oradores são deveras impressionantes: mais de 40.000
fundações nos EUA, movimentando recursos imensos, e proporcionando empregos a centenas de milhares de
pessoas, apóiam programas e financiam projetos que beneficiam populações carentes nas áreas rurais e
urbanas. Pode parecer justificativa a pretensão de seus porta - vozes de representar uma via alternativa para
se construir uma sociedade mais justa e harmônica. Efetivamente, o GIFE (Grupo de Instituições,
Fundações e Empresas) pretende estimular o surgimento e a prática de novos paradigmas de
desenvolvimento social sustentável, por meio da participação da iniciativa privada na reorganização do
espaço público, com investimentos no desenvolvimento comunitário. Os dados de uma pesquisa sobre o
Terceiro Setor, efetuada por uma professor da Johns Hopkins, não deixam de causar certa perplexidade
quanto à metodologia utilizada e, portanto, a validade dos resultados apresentados. Divulgado como estudo
15
comparativo realizado em sete países, seus autores pareciam mais preocupados em somar dados empíricos do
que definir mais claramente conceitos e hipóteses.
Na contagem, misturam fundações poderosas, entidades de caridade, clubes, escolas, hospitais,
universidades e outras organizações que seriam exemplos de uma sociedade civil consciente e atuante, em
prol do bem - estar geral. Chega a causar espanto a ausência de uma análise mais profunda das origens, da
estrutura e inserção social e política do Terceiro Setor, ou seja, sua contextualização no panorama
contemporâneo. Vários depoimentos permitem inferir sobre a pretensão de substituir o Estado, a partir de
uma autodenominação de “sociedade civil”.(...) Não será mero acaso que o Terceiro Setor (representante da
sociedade civil?) parece ignorar - os movimentos sociais – os sem terra, sem-casa, sem-emprego – enfim, os
marginalizados e excluídos.(...) Se as empresas pagassem salários decentes, não sonegassem impostos e
contribuições para os fundos de seguridade social e, sobretudo, sustassem a corrida irracional atrás de maior
eficiência, enxugando a organização ou submetendo-a á reengenharia, sem preocupar-se com os custos
sociais, a demanda por serviços filantrópicos e auxílios de caridade seria bem menor. ( ...) As propostas do
Terceiro Setor, expressas por seus porta-vozes, não pretendem alterar o sistema e , portanto, objetivamente
(independentemente de vontade e convicções subjetivas de seus adeptos) contribuem para a manutenção do
status quo, ainda que o qualifiquem de insustentável.
O caminho alternativo passa pela ação política, em busca de mudanças na balança do poder
decisório. Sendo pouco provável uma virada dos atuais detentores do poder e dos setores (o Segundo e o
Terceiro?) que os sustentam, não resta outra alternativa aos desempregados, aos sem-terra, aos
marginalizados e excluídos que organizar-se e mobilizar-se, pressionando pelas mudanças políticas e
estruturais inadiáveis. O Terceiro Setor – de que lado fica? ( p.267 – 9, grifos nossos)
A questão posta pelo pesquisador H. Rattner, diante da necessidade de mudanças estruturais,
de que lado ficará o denominado “terceiro setor”, na minha forma de ver, é fundamental. Faço essa
afirmação porque a sociedade capitalista não está diante de uma simples crise conjuntural.
Em seu artigo, “Para uma Reinvenção Solidária e Participativa do Estado”, o intelectual
Boaventura de S. Santos (1999) reflete sobre a emergência de um “novo terceiro setor” no interior
do que denomina de “crise do reformismo”.
O reformismo foi o processo político por meio do qual o movimento operário e seus aliados
resistiram à redução da vida social à lei do valor, à lógica da acumulação e às regras do mercado por via da
incorporação de uma institucionalidade que garantiu a sustentabilidade de interdependências nãomercantis, cooperativas, solidárias e voluntárias. (...) Presentes a proteção social contra riscos sociais e
a segurança contra a desordem e a violência. (SANTOS, p.244, grifos nossos)
Para Santos (1999) a sociedade está diante de uma segunda reforma do Estado e é nesse
momento que o “terceiro setor” desempenhará o seu papel histórico. Para ele, um “novo terceiro
setor”.
É que, como a reforma do Estado tem de ser levada a cabo por ele próprio, só um Estado forte pode
produzir eficazmente a sua fraqueza. Por outro lado, como toda desregulamentação envolve regulamentação,
o Estado, paradoxalmente, tem de intervir para deixar de intervir.(...) Em termos de engenharia institucional,
esta fase assenta em dois pilares fundamentais: a reforma do sistema jurídico e em especial do sistema
judicial e o papel do chamado terceiro setor na reforma do Estado ( p.,249-50).
Sendo assim, diz ele, é muito importante, neste momento, ressaltar o processo histórico. A
esquerda marxista que, desde a década de 1960, criticava de forma radical, o Estado - Providência,
diante dos ataques dos “neoliberais” aos direitos conquistados pelo movimento operário e seus
aliados, ficou desarmada para elaborar defesas. É importante também lembrar que em muitos
momentos históricos, os Estados Desenvolvimentistas, haviam desenvolvido políticas
extremamente autoritárias e até, muitas receitas neoliberais passaram a ser consideradas como uma
contribuição ao processo de democratização em curso. Para Santos (1999) “terceiro setor” é uma
16
designação residual e vaga, é uma noção ampla que abriga ações não estatais e não mercantis, desde
cooperativas, associações de solidariedade social, comunitárias de base e até ONGs.
As designações vernáculas do terceiro setor variam de país para país e as variações, longe de serem
meramente terminológicas, refletem histórias e tradições diferentes, diferentes culturas e contextos políticos (
SANTOS,1999, p. 251, grifos nossos)
Na França a denominação usual é economia social, nos países anglo - saxônicos setor
voluntário e de organizações não - lucrativas, no terceiro mundo de organizações nãogovernamentais.Sua origem histórica remonta o século XIX, surgiu como uma alternativa às
relações sociais capitalistas e tem raízes ideológicas diversas, tais como: as idéias socialistas, as
idéias religiosas do cristianismo social e o liberalismo. As organizações sociais desta época tinham
objetivos sociais diversos: o desenvolvimento de novas formas de produção e de consumo que
desafiavam os princípios da economia política burguesa em ascensão, a redução dos custos
humanos que resultaram da revolução industrial capitalista.
Pergunta Santos (1999): seria a reemergência do denominado “terceiro setor”, ou economia
social, um mero regresso ao passado?
Segundo o autor em estudo, na Europa, em diversos países, o Estado e o mercado não
dispensaram intervenções sociais complementares. As cooperativas, as mutualidades e as
associações de solidariedade social desenvolveram um papel complementar em vários domínios tais
como: proteção social, proteção da previdência e da saúde e até na proteção da assistência social.
São evidentes na reemergência do “novo terceiro setor” ou da “nova economia social” a presença
dos ecos, das memórias e da cultura institucional da economia social do passado.
Portanto, há uma diferença muito clara das causas da “emergência histórica” do “novo
terceiro setor” nos países periféricos e semiperiféricos. Sobre o surgimento das organizações não
governamentais, nacionais ou transnacionais as origens podem estar no declínio de movimentos
sociais ou nas mudanças de estratégia dos países centrais.(SANTOS, 1999, p. 252)
Qualquer que seja a ambigüidade conceptual do terceiro setor, a verdade é que nos países centrais o
ressurgimento do terceiro setor está ligado à crise do Estado-Providência. Isto significa que o terceiro setor
não ressurge num contexto de lutas sociais e políticas avançadas que procuram substituir o EstadoProvidência por formas de cooperação, solidariedade e participação mais desenvolvidas. Pelo contrário,
ressurge no início de uma fase de retração políticas progressistas em que os direitos humanos da terceira
geração, os direitos econômicos e sociais, conquistados pelas classes trabalhadoras depois de 1945,
começaram a ser postos em causa, a sua sustentabilidade questionada e a sua restrição considerada inevitável
(SANTOS, 1999, p. 255, grifos nossos).
Portanto, o “novo terceiro setor” não é fruto de um processo político autônomo. E se
ressurge em um momento em que os direitos humanos (econômicos e sociais) estão sendo atacados
o seu papel fundamental seria de defesa desses direitos? Se, como diz Santos (1999), resulta de um
vazio ideológico, como serão alimentadas as lutas pela transformação social e/ou as lutas de
simples resistência aos ataques aos direitos humanos pelas políticas “neoliberais”?
A nova atração pelo terceiro setor resulta, assim, de um vazio ideológico provocado pela dupla crise
das social democracia, que sustentava o reformismo social e o Estado – Providência, e do socialismo que
durante décadas serviu, simultaneamente, de alternativa à social – democracia e de travão ao
desmantelamento desta por parte das forças conservadoras (SANTOS, 1999, p. 256).
Se o “novo terceiro setor” for um amortecedor das tensões que resultaram dos ataques da
política neoliberal às conquistas dos direitos humanos será convertido em um mito, na solução de
17
um problema insolúvel. Nos países periféricos e semiperiféricos, as ONGs, foram induzidas por
iniciativas que surgiram nos países centrais. Seus objetivos principais eram criar mercado e
sociedade civil por meio do Estado que muitas vezes não chegou a oferecer os serviços básicos.
Segundo dados estatísticos, de 1975 a 1985 as assistência das ONGs sofreu um elevado aumento,
em torno de 1.400%. Nepal em 1990 tinha 220 ONGs e passou a contar com 1.210 no ano de
1993.; Quênia as ONGs controlam 30% a 40% das despesas de desenvolvimento e 40% dos gastos
com saúde (SANTOS,1999).
Há, para o autor citado, quatro questões fundamentais para uma reflexão mais aprofundada
sobre o papel do “novo terceiro setor” na “refundação ou reinvenção solidária e participativa do
Estado”. As questões são:1 - Quais são os limites entre o público e o privado? 2- Organização
interna, transparência e “responsabilização”.3-Os tipos de relações entre as organizações que
compõem o “novo terceiro setor”. Quais os tipos de relações que são construídas entre as
organizações? 4- A relação do “ novo terceiro setor” com o Estado é um dos temas mais complexo.
O debate sobre o “ novo terceiro setor” tem dois contextos diferentes, os países centrais e os
periféricos/ semiperiféricos:
a) Nos países centrais coloca-se a questão da economia de escala, principalmente nos setores
que competem com a economia capitalista, sem descaracterizar a filosofia de base e a democracia
interna das organizações produtoras de bens e serviços.b)Nos segundos a questão central está
diretamente ligada com as relações entre as ONGs dos países centrais. Pois, segundo o autor, as
relações entre as ONGs (centro e periferia/semiperiferia) são o cimento da globalização contra –
hegemônica.
Para Santos (1999), historicamente, o terceiro setor emergiu contra o capitalismo, ciente da
sua autonomia (as cooperativas de Rochdale na Inglaterra). Nos países centrais os processos
democráticos que sustentaram o Estado Providência permitiram que o “terceiro setor” mantivesse a
sua autonomia, isto é, mantivesse simultaneamente, relações de respeito e de cooperação.
Na Bélgica o Estado delega ao terceiro setor a gestão de regimes de proteção social onde
as mutualidades administram o seguro obrigatório doença-invalidez. Na Holanda organizações do
terceiro setor gerem o seguro doença básico e o obrigatório dos trabalhadores e pensionistas
com rendimento inferior a determinado montante. Na França as mutualidades asseguram os
cuidados de saúde dos funcionários públicos, dos estudantes, dos trabalhadores independentes e
gerenciam a proteção social dos trabalhadores agrícolas. Na Espanha administram a proteção nos
acidentes de trabalho.
E nos países periféricos? Depende muito do Estado e do próprio terceiro setor, há o evidente
perigo das organizações se transformarem em simples apêndices ou instrumentos da ação estatal,
simplesmente exercerem a função executora das políticas públicas. Mas, o “terceiro setor” pode
envolver-se com a escolha das políticas e até com a formação da própria agenda governamental. Há
também a possibilidade de atuar em via dupla, uma via de complementação das políticas púbicas ou
de confrontação à ação do Estado.
Para ele houve nos países periféricos uma inversão da problemática, a questão principal
deixou de ser a preservação da autonomia das organizações não – governamentais para ser a
autonomia do Estado frente as ONGs transnacionais, tanto na formulação como na execução das
políticas públicas.
De acordo com o autor, diante da crise do reformismo há duas concepções de reforma:o
Estado empresário e o Estado -novíssimo-movimento social.A primeira concepção, Estado
empresário, tem afinidade com a filosofia política que dominou a primeira fase da reforma, o
Estado irreformável, e traduz -se em duas recomendações: privatizar todas as funções que o Estado
não tem de desempenhar com exclusividade e submeter à administração pública a critérios de
eficiência, eficácia, criatividade, competitividade e serviço aos clientes.A segunda concepção
18
propõe uma articulação privilegiada entre os princípios do Estado e da comunidade sob a égide
dessa última.
Quero, com isto, significar que as transformações porque está a passar o Estado tornam obsoletas
tanto a teoria liberal como a teoria marxista do Estado, e a tal ponto que, transitoriamente pelo menos, o
Estado pode ser mais adequadamente analisado a partir de perspectivas teóricas que antes foram utilizadas
para analisar os processos de resistência ou de autonomia em relação ao Estado. (...) É nesta articulação que
o terceiro setor emerge como um potencial força antifascista no espaço público não - estatal (SANTOS,
1999, p. 264 – 5, grifos nossos).
Qual deverá ser o caminho para superação do atual contexto no qual está presente um “vazio
ideológico?” Assim pensa o autor em análise:
Só uma reforma simultânea do Estado e do terceiro setor, por via da articulação entre a
democracia representativa e a democracia participativa, pode garantir a eficácia do potencial
democratizante de cada um deles ante os fascismos pluralistas que se pretendem apropriar do espaço público
não - Estatal. Só assim os isomorfismos normativos entre o Estado e o terceiro setor – tais como a
cooperação, a solidariedade, a democracia e a prioridade das pessoas sobre o capital – poderão ser
credibilizados politicamente. (...) De fato, a pujança avassaladora do princípio do mercado impulsionada pelo
capitalismo global põe em perigo todas as interdependências não – mercantis, sejam elas geradas no contexto
da cidadania ou no contexto da comunidade. Por isso, para lhes fazer frente é necessário uma nova
congruência entre cidadania e comunidade. É aí que reside a reinvenção solidária e participativa do
Estado.Este projeto político assenta numa dupla tarefa: refundar democraticamente a administração
pública e refundar democraticamente o terceiro setor (SANTOS, 1999, p. 266, grifos nossos).
Para “refundar” democraticamente a administração pública faz -se necessário enfrentar uma
questão fundamental, compatibilizar eficiência com equidade e democracia. Há muitas experiências
de promiscuidade antidemocrática na relação entre o Estado e “terceiro setor”. Existe um
autoritarismo centralizado do Estado que se apoia no autoritarismo descentralizado do terceiro setor
que deve ser superado. De acordo com a sua opinião a complementaridade do “terceiro setor” e o
Estado, e não substituição poderá ser um caminho para a criação de um espaço público não - estatal.
Mas para isto acontecer sem uma profunda democratização do terceiro setor será um logro
confiar a ele a tarefa da democratização do Estado e, mais em geral, do espaço público não estatal. Aliás, em
muitos países, a democratização do terceiro setor terá de ser um ato originário, já que o terceiro setor, tal
como aqui o definimos, não existe nem pode presumir-se que surja espontaneamente. Nestas situações,
será o próprio Estado a ter de tomar a iniciativa de promover a criação do terceiro setor por via de políticas
de diferenciação positiva em relação ao setor privado capitalista” (SANTOS, 1999. p. 270, grifos nossos).
É muito estranha a análise de Boaventura de S. Santos, se o “terceiro setor” mantêm uma
relação de promiscuidade com Estado como pode ser uma via da democratização do Estado
autoritário?
O autor busca saídas no interior do modo de produção capitalista, uma nova transformação
social normal, não revolucionária, na qual a cidadania, ou seja, a prioridade nas pessoas, deverá
suplantar os interesses puramente mercantis do capital; o processo de acumulação do capital será
subsumido aos interesses dos seres humanos. Estaremos diante da miragem ou da fantasia de
relações sociais capitalistas humanizadas?
CONSIDERAÇÕES FINAIS: AS MIRAGENS E FANTASIAS DO “TERCEIRO
SETOR”.
19
É relevante observar algumas das críticas avassaladoras que se encontram no artigo que foi
escrito pelo filósofo Paulo Eduardo Arantes (2000). Esse polêmico texto foi publicado no
“Cadernos ABONG” com o título: “Esquerda e Direita no Espelho das ONGs.”
Neste campo, diz Paulo Arantes (2000), não há conceito ou palavras que não exijam aspas
tais como, “Reforma do Estado”, “Administração Pública Gerencial”, “Sinergia”, “Parcerias
Felizes”, “Pro-ativo”, “Reativa”, “Sociedade Civil Eticamente Estruturada”, “Incorporação da
Cidadania”, “Marketing Social”.Como dar o nome certo à coisa certa? (p.5)
Como se pode notar, aliás sem nenhuma surpresa, trata-se do mesmíssimo palavrório das
famigeradas reformas gerenciais do Estado em nome de novos direitos ditos republicanos da cidadania etc.
etc. Sem falar no foguetório de clichês das campanhas cívicas de „marketing social‟ – como as empresas
costumam designar essa nova fronteira de negócios. (ARANTES, p.5, 2000, grifos nossos)
Portanto, observa-se que a crítica do autor toma como referência, além das ONGs, longes do
poder e do dinheiro, as empresas capitalistas, agora “cidadãs”. Essas ganham o nome de “empresas
cidadãs” como se fossem de fato organizações não lucrativas. A expressão “cidadania” passa a
nomear um novo campo de negócios. Negócios que seguem os princípios do “gerenciamento
estratégico” e que disputam nichos de “mercados sociais e inovadores”. Como se sabe, há hoje
premiações para os que alcançam a vitória, o sucesso no seu empreendimento de “produtor de
cidadania”.
Com perdão da má palavra, o fato é que também existe um mercado atraente para as iniciativas
cidadãs. Ocorre simplesmente que a mais estrita observância da cláusula sem-fins-lucrativos não é uma
barreira à entrada no mundo dos negócios, podendo até representar uma senha privilegiada de ingresso.
Segundo consta, a paulatina impregnação pelos usos e costumes da livre iniciativa começa pela inocente
elaboração e execução de um „projeto‟ em conformidade com as exigências de qualquer financiadora
(ARANTES, p.6, 2000, grifos nossos).
Sendo assim, o “terceiro setor” não é, definitivamente, o espaço social que poderá contribuir
para uma elaboração crítica do processo de dominação e exploração. Ao analisar a obra de Rubem
C. Fernandes, em particular a noção de “eficácia simbólica”, defende a tese de que o denominado
“terceiro setor” corresponde, na realidade, ao novo padrão de financiamento do Estado que se
desobriga de funções exclusivas e impõe um regime de subcontratação das suas atividades.
Está claro que a carga simbólica que imprime uma „aura positiva‟ às ações voluntárias sem fim
lucrativo não decorre apenas da sua inegável funcionalidade na legitimação das políticas sociais
compensatórias recomendadas pelos próprios patrocinadores da devastação econômica em andamento.
Tampouco, como quer o discurso edificante corrente, derivaria da pressão moral exercida sobre os agentes
econômicos para que se sintam concernidos pela „nova cultura de participação cidadã‟, como se diz na
língua geral do momento. (ARANTES, p.7, 2000, grifos nossos)
Desta forma este modelo de gerência estratégica apresenta diversas vantagens, o Estado
descentraliza contratos, cria um “terceiro setor” enxuto - flexível e promove a concorrência entre os
serviços públicos. È claro que presente está a chamada “filosofia” do management, a competição e
o individualismo escondidos pela noção de equipes de trabalho, estamos diante da palavra mágica,
teams. A era dos teams provoca uma verdadeira “revolução na administração” burocrática, rígida.
A fórmula mágica „organização social‟ designa um curioso espécime da zoologia fantástica
gerencial, algo como uma ONG clonada nas incubadeiras do Estado, uma sorte de ONG espelho similar
20
produzida por geração espontânea no seio generoso da sociedade dita atualmente civil (ARANTES, p. 9,
2000)8 .
O autor faz uma crítica às denominadas “organizações sociais” criadas pelo Ministro da
Reforma Administrativa da época, Bresser Pereira, que transforma os serviços públicos em
entidades públicas de direito privado. Ao ganhar conceitos positivos tais como, “publicização”,
“empowerment”, escondem, na realidade, o processo de privatização do espaço público.
Pelo contrário, somando as vantagens dos dois lados, estará por acréscimo nos livrando do modo de
pensar dicotômico que nos prendeu na armadilha maniqueísta do „ ou bem estatal‟, ou bem privado
(ARANTES, p.10,2000).
Sendo assim, estamos diante de uma miragem ou fantasia. O “terceiro setor” emerge com
uma linda promessa, a integração harmônica entre o Estado, o Mercado e a “Sociedade Civil- Novo
Terceiro Setor”, ou seja, uma “regulação moral da reprodução social” no interior do capitalismo
em sua fase de acumulação predominantemente financeira..
O surrealismo da empresa que não visa lucro, mas se interessa exclusivamente pelo retorno ético da
cidadania como novíssimo fator de produção, responde a essa esquizofrenia de base de um mundo
inteiramente racionalizado pela economia monetária, e por isso mesmo sem saída. Nesse sentido é que
também se pode voltar a dizer que o hibridismo das organizações do Terceiro Setor caiu do céu – verdade
que do céu dos velhos dilemas ideológicos, para o chão de um novo „fanatismo setorial‟, nas palavras de um
nostálgico dos bons tempos da guerra fria. È que a saída de cena do socialismo tornou evidente, entre outras
verificações cruciais, que ele não era apenas um „modelo‟ equivocado ou irrealista – como se a loucura
privatista fosse uma „espécie de filtro moral sem o qual a civilização moderna revela-se totalmente incapaz
de existir, a economia de mercado sufoca em sua própria imundície (ARANTES, p. 14, 2000, grifos nossos).
Bibliografia
BAILEY, M. Levantamento de Fundos no Brasil. Principais Implicações para as Organizações da
Sociedade Civil e ONGs Internacionais. In: ONGs, identidade e desafios atuais. Cadernos ABONG,
São Paulo:Editora Autores Associados, p.87-106, maio 2000.
BAVA, S.C. O Terceiro Setor e os Desafios do Estado de São Paulo para o Século XXI. In: ONGs,
identidade e desafios atuais. Cadernos ABONG, Editores Autores Associados, n. 27 , p.41-86,
maio, 2007.
BOURDIEU, P. Contrafogos, Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
CARVALHO, J. M. Cidadania No Brasil: O Longo Caminho. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002.
CARVALHO, N. V. Autogestão: O Nascimento das ONGs. São Paulo: Brasiliense, 1995.
CÉSAR, R.F. - Elos de Uma Cidadania Planetária. Revista Brasileira de Ciências Sociais, número
28, ano 10 ,junho de 1995.
CÉSAR, R.F. -O Que É Terceiro Setor? In: IOSCHPE, E.(org.) 3 Setor Desenvolvimento Social
Sustentado, Rio de Janeiro: Paz e Terra,1997.
CÉSAR, R.F.Privado Porém Público: O Terceiro Setor na América Latina, Rio de Janeiro:RelumeDumará,1994.
GRAJEW, O. ONGs, Um Passo Adiante. Folha de São Paulo, 14 de junho de 1988.
KURZ, R.. O fim da cultura de diversão Suplemento Mais – Folha de S. Paulo, 07/09/2003.
KURZ, R.. Para além do Estado e Mercado. Os últimos combates Petrópolis: Vozes, 1997.
8
Vale dizer, que na Alemanha e na França, 60% dos recursos do Terceiro Setor são financiados pelo Estado. Na Suécia,
o financiamento do Terceiro Setor é 100% público” (Bava, p.82 – Cadernos Abong 27 – 2000)
21
LANDIM, Leilah et al- ONGs: Um Perfil: Cadastro das Filiadas à Associação Brasileira de ONGs,
S. Paulo: ABONG - ISER,1996.
MONTAÑO, C. Terceiro Setor e Questão Social. Crítica ao padrão emergente de intervenção
social. São Paulo: Cortez, 2002.
OFFE, C. A atual transição da história e algumas opções básicas para as instituições da sociedade
In: Pereira, L.C.B et al (org) Sociedade e Estado em Tansformação, São Paulo: Unesp, p.119-145,
1999.
OFFE, C. O fim das ideologias...Revista Veja. São Paulo, 08/04/1998.
PETRAS, J. Globalização: América Latina, Europa, Estados Unidos. Blumenau: FURB, 1999.
PETRAS, J. Os EUA: imperialismo e luta de classes Apud Coggiola, O. (org.) Marxismo Hoje São
Paulo, Xamã, 1996, p.83-109.
RIFKIN, J. Identidade e Natureza do Terceiro Setor 3.o Setor Desenvolvimento Social Sustentado
(org.) Ioschpe, Evelyn Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997
SIGNORI, Hebe C.(org.) Organizações Não Governamentais: Solução ou Problema? S.Paulo:
Estação Liberdade,1996.
SILVA, F.L.G. A organização e a gestão de recursos humanos por meio do estoques: uma
abordagem crítica. In: VIETZ, C. G e RI DAL, N.M. (orgs) Organizações e Democracia,
Marília:Unesp-Marília – Publicações, 2000 – n.3, 21 – 43, Anual,2002
SILVA, F.L.G Apropriação da subjetividade da classe trabalhadora: burocracia e autogestão In:
VIETZ, C.G. e RI DAL, N.M. (orgs) Organizações e Democracia, Marília: Unesp – Marília –
Publicações, 2000.Semestral, v.5 n.1, p.25-38, 2004.
SANTOS, B.S. Para uma reinvenção solidária e participativa do Estado In: PEREIRA, L. C. B et all
(org.) Sociedade e Estado em Transformação, São Paulo: Unesp, p.243-272,1999.
SUMMERS, L. apud CARDOSO, F. Crescimento para quê? O Estado de São Paulo, 5/12/04,
Caderno Espaço Aberto, A.2.
WOLF, A. Estado, mercado e sociedade civil.www.academiasocial.org.br,acesso em 15/09/2001.
22
Download