Tânia Mara Santiago Moreira Almeida da Fonseca O MINISTÉRIO PÚBLICO NA EXECUÇÃO PENAL “a genuína função pro societatis” Monografia apresentada como requisito para conclusão do Curso de Bacharelado em Direito da Faculdade de Direito do Centro Universitário de Brasília. Orientador: Tarciso Dal Maso Jardim BRASÍLIA 2001 2 RESUMO .................................................................................................................................................................................. 3 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................................................... 4 1 DO SISTEMA PUNITIVO ESTATAL .................................................................................................................. 8 1.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO REGIME PUNITIVO .........................................................................................................8 1.1.1 Período da vingança (“a lei do mais forte”)............................................................................................. 8 1.1.1.1 1.1.1.2 1.1.1.3 1.1.2 Período humanitário ("o homem deve conhecer a justiça").................................................................11 1.1.2.1 1.1.2.2 1.1.2.3 1.1.3 A primeira fase: da vingança privada ("olho por olho, dente por dente").....................................................8 A segunda fase: da vingança divina ("a repressão ao crime é satisfação dos deuses").................................9 A terceira e última fase: da vingança pública ("crimes ao estado, à sociedade") .......................................10 O Direito Penal e a filosofia das luzes ........................................................................................................12 O Direito Natural e sua influência...............................................................................................................14 Escola Clássica ("denominação pejorativa criada pelos positivistas").......................................................14 Período científico ou criminológico ("a justiça deve conhecer o homem").......................................16 1.1.3.1 Escola Positiva ............................................................................................................................................16 1.1.3.2 Escola Mista................................................................................................................................................21 1.1.3.3 Escola da Defesa Social ..............................................................................................................................21 1.1.3.4 Criminologia................................................................................................................................................22 1.1.3.4.1 Criminologia Tradicional..................................................................................................................23 1.1.3.4.2 Criminologia Crítica.........................................................................................................................24 1.2 ESTADO FONTE FORMAL DE PUNIÇÃO....................................................................................................................28 1.2.1 O Ministério Público e o jus puniendi ......................................................................................................28 1.2.2 Finalidade da pena.......................................................................................................................................29 1.2.3 Aplicação no Brasil – Lei de Execução Penal........................................................................................32 1.2.3.1 1.2.3.2 1.2.3.3 2 Direitos dos condenados na execução penal ...............................................................................................34 Do tratamento reeducativo na execução penal ............................................................................................35 A part icipação formal do Ministério Público na execução penal................................................................35 O MINISTÉRIO PÚBLICO E A DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS ...............................................37 2.1 EVOLUÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO....................................................................................................................37 2.1.1 No mundo.......................................................................................................................................................37 2.1.2 No Brasil........................................................................................................................................................38 2.1.2.1 2.1.2.2 2.1.2.3 2.2 2.3 Brasil Colônia..............................................................................................................................................38 Brasil Império..............................................................................................................................................38 Brasil República ..........................................................................................................................................38 O M INISTÉRIO PÚBLICO GARANTIDOR DOS DIREITOS HUMANOS .....................................................................42 O S DIREITOS HUMANOS CONTEMPORÂNEOS E A SUA EFETIVIDADE.................................................................49 CONCLUSÃO........................................................................................................................................................................61 A VERDADEIRA FUNÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA EXECUÇÃO P ENAL, EM DEFESA DA SOCIEDADE E DOS DIREITOS HUMANOS ...........................................................................................................................................................61 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA .................................................................................................................................70 3 RESUMO O Trabalho foi divido em duas partes principais: a primeira informa que a história do homem foi marcada pela evolução da pena, que se impunha para manutenção do grupo social, originariamente com caráter retributivo até alcançar o ressocializador. Já na segunda parte, observa que o Ministério Público, como instância oficial, sempre desempenhou papel importante no sistema punitivo estatal, passando de mero advogado do rei até ser guindado a defensor do Estado Democrático de Direito, porém, em contradição flagrante, não raro, os seus membros mantêm o ranço de sua origem histórica, sacrificando os Direitos Humanos, sobretudo na execução penal, onde o processo ressocializador encontra-se órfão por parte do poder público. Por fim, conclui-se que é necessário despertar o Ministério Público para sua genuína função institucional, pois ressocializar o condenado, não só defende, a curto prazo, os Direitos Humanos dele, como, a longo prazo, os interesses da própria sociedade, quer seja em se ter um cidadão útil e produtivo, quer seja, na pacificação no futuro convívio social. 4 INTRODUÇÃO Em princípio, podemos sustentar que é público e notório a incompetência governamental ao tratar da aplicação da pena no Brasil; como reforço a premissa adotada, os presídios denunciam a completa falência do sistema prisional, por outro lado, em aparente contradição, a nossa Lei de Execução Penal é considerada, pelos estudiosos, como instrumento válido e avançado na aplicação e concepção da pena. O que nos leva a conclusão de que a LEP não é legitimamente aplicada. Neste conflito visível do nosso sistema, a responsabilidade do Ministério Público se eleva, razão pela qual este trabalho de monografia teve por tema “A Função do Ministério Público na Execução Penal”. Assim, a importância da compreensão e participação do Ministério Público se faz presente em toda a execução penal, senão vejamos o seguinte caso concreto: Em 1998, o Centro de Recuperação e Apoio ao Preso e ao Egresso – CERAPE, entidade conhecida das autoridades que lidam com o sistema penitenciário local1 , realizou, na Igreja Batista Filadéfia, o “IV Encontro de Presos e Ex-presidiários de Brasília”, que teve como tema a “Ressocialização com Deus, com a família e com a sociedade”. O Encontro teve a participação, autorizada pelo Juiz - inobstante o posicionamento desfavorável do Ministério Público - de 58 presos, entre eles, alguns de regime fechado, ficando a própria entidade organizadora na função de busca, entrega e guarda. 1 O próprio Coordenador do Sistema Penitenciário do Distrito Federal, a época o Delegado Hertz Andrade, noticiou na imprensa que as três últimas experiências proporcionadas pelo Cerape foram positivas. 5 O sucesso do encontro foi incontestável, nenhum incidente ou indisciplina foi registrado, a imprensa conferiu o Encontro todos os dias até o seu término, toda a organização e vigilância estava sob a responsabilidade do CERAPE, porém, no momento da contagem dos presos para o retorno ao presídio, a grande surpresa, não havia 58 presos e sim 59, pois um visitante (que era preso foragido da penitenciária local), acabou se convertendo e se entregando para cumprir o restante de sua pena. No ano seguinte, 1999, motivado pela experiência e sucesso dos anos anteriores e apresentando um melhor planejamento, o CERAPE levou a termo, no mesmo local, o V Encontro de Presos e Ex-presidiários de Brasília. Novamente, o Juiz da VEC autorizou, nas mesmas condições de 1998 2 . Mais uma vez, numa posição institucional, todos os promotores foram contra a decisão judicial e, sem fazer nenhuma avaliação do local, segurança ou mesmo o sucesso dos 4 encontros anteriores, entraram com uma Reclamação3 contra o ato do MM. Juiz de Direito da VEC, por ter concedido saída especial a sentenciados a regime fechado. Assim, no último dia do Encontro, lograram os Srs. Promotores o deferimento da liminar, suspendendo o referido encontro, sendo todos os presos, de forma constrangedora e na presença de seus familiares reconduzidos, sob a mira de escopetas da polícia civil. Por conseguinte, surgem os seguintes questionamentos: Qual é a genuína função do Ministério Público na Execução Penal? A função limitada do custo legis, na “Nunca tivemos problemas de um preso retornar. É a confiança no detento”, atestou. (Correio Braziliense de 12/09/1998). 2 Mediante avaliação da Comissão Técnica da Papuda, que analisou o comportamento de cada detento. (Correio Braziliense de 12/09/1998). 3 TJDFT - RCL 1999 00 2 003208-4 - Reclamante: Ministério Público do Distrito Federal e Territórios; Reclamado: Juiz de Direito da Vara de Execuções Criminais do Distrito Federal; Relator: Desembargador Georges Lopes Leite. 6 execução penal, é suficiente para promover a defesa da sociedade e do estado democrático de direito? No conflito entre o caráter retributivo e ressocializador da pena, qual o Ministério Público deverá privilegiar? Inicialmente, temos que, a verdadeira função do Ministério Público na execução penal, ao promover a defesa da sociedade e do estado democrático de direito, fundado no respeito a dignidade da pessoa humana, é implementar os direitos, explícitos e implícitos, do preso, a fim de que o preceito ressocializador ganhe efetividade, afastando o caráter retributivo da pena. É o que se infere dos princípios fundamentais para a formação do estado democrático de direito e dos direitos e garantias individuais, consagrados no texto constitucional, destacando a cidadania, a dignidade da pessoa humana, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a promoção do bem estar de todos sem preconceitos e quaisquer outras formas de discriminação e da prevalência dos direitos humanos (art. 1º, incisos II e III, art. 3º incisos I e IV e art. 4º inciso II, art. 5º, incisos III, X, XLI, XLVI, XLVII, XLVIII, XLIX, L, LXIII, LXXIV, LXXVII, par. 2º, todos da Constituição Federal), também é a opinião de Mirabete: “O objeto da Lei de Execução Penal, diante de algumas flagrantes contradições entre a cominação e aplicação da pena e a sua execução, dirigiu-se ao estudo do desenvolvimento de meios e métodos para a execução da pena como defesa social e ressocialização do condenado ”4 . Quanto ao estudo proposto, constata-se que, apesar da visão moderna e das funções alcançadas pelo Ministério Público, com diversos princípios aplicáveis em sede de execução penal, mormente os implícitos, ainda persiste um conservadorismo que impede a humanização na aplicação das penas, uma vez que não se encontram suficientemente desenvolvidos dogmática e pragmaticamente ao ponto de converterem-se em força ativa que influa decisivamente na realidade política e social. Desse modo, o trabalho foi estruturado em dois capítulos, inicialmente, abordou-se o sistema punitivo estatal, compreendendo a sua evolução histórica, a fundamentação da pena e a participação formal do Ministério Público. Depois, para o atuar do Ministério Público, em sede da execução penal, buscou-se afastar a concepção limitada de 4 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução penal. São Paulo: Atlas, 1995, p. 34. 7 mero fiscal da lei e estabelecer como marco os Direitos Humanos, resgatando a vontade do legislador no que tange a implementação e fiscalização de instrumentos para a efetiva ressocialização do condenado. Com isto, enfocou-se a verdadeira função do Ministério Público brasileiro na execução penal, na defesa da sociedade e do estado democrático de direito, tendo como fundamento os Direitos Humanos, particularmente, para promover os direitos do preso e salvaguardar o caráter ressocializador da pena. O conteúdo temático e objetivos delineados do plano de estudo amoldam-se, portanto, integralmente, à linha de pesquisa do Curso, abordando tema atual e relevante para a adequada compreensão do papel do Ministério Público no processo de execução penal. O método será o dialético-jurídico, pois visa a investigação da realidade pelo estudo de sua ação recíproca, da contradição existente entre o caráter retributivo e ressocializador da pena. Quanto ao procedimento será o funcional, pois será enfatizado as relações e o ajustamento do desempenho das funções do Ministério Público, corroborado pelos métodos de interpretação das leis: lógica, histórica, gramatical e principalmente a sistemática, sociológica e a teleológica. 8 1 DO SISTEMA PUNITIVO ESTATAL 1.1 Evolução histórica do regime punitivo 1.1.1 Período da vingança (“a lei do mais forte”) Tendo início nos tempos primitivos, nas origens da humanidade, o Período da Vingança prolonga-se até o século XVIII. Nestes tempos não se pode imaginar a existência de um sistema orgânico de princípios gerais, já que grupos sociais, dessa época, eram envoltos em ambiente mágico e religioso. Assim, fenômenos naturais como a peste, a seca, e erupções vulcânicas eram debitados a castigos divinos, pela prática de fatos que exigiam reparação. De qualquer forma, é neste período, da vingança penal, que poderemos, didaticamente, identificar três fases de evolução na aplicação da pena: 1.1.1.1 A primeira fase: da vingança privada ("olho por olho, dente por dente") Imperava a vingança individual, onde o próprio ofendido punia sem nenhuma limitação o seu ofensor, onde prevalecia a lei do mais forte. Desse modo, cometido um crime, ocorria a reação da vítima, dos parentes e até do grupo social (tribo), que agiam sem proporção a ofensa, atingindo não só o ofensor, como também todo o seu grupo. A inexistência de um limite (falta de proporcionalidade) no revide à agressão, bem como a vingança de sangue caracterizaram esta época, onde a vingança privada constituiu-se a mais freqüente forma de punição, adotada pelos povos primitivos. A vingança privada constituía uma reação natural e institiva, por isso, foi apenas uma realidade sociológica, não uma instituição jurídica. Duas grandes 9 regulamentações, com o evolver dos tempos, notabilizaram a vingança privada: o talião 5 e a composição. Apesar de se dizer comumente pena de talião, não se tratava propriamente de uma pena, mas de um instrumento moderador da pena 6 . Consis tia em aplicar no delinqüente ou ofensor o mal que ele causou ao ofendido, na mesma proporção. Temos como exemplo o Código de Hamurabi7 , a Bíblia Sagrada 8 e a Lei das XII Tábuas9 . Posteriormente, surge a composição, através do qual o ofensor comprava sua liberdade, com dinheiro, gado, armas, etc. Adotada, também, pelo Código de Hamurabi (Babilônia), pelo Pentateuco (Hebreus) e pelo Código de Manu (Índia), foi largamente aceita pelo Direito Germânico, sendo a origem remota das indenizações cíveis e das multas penais. 1.1.1.2 A segunda fase: da vingança divina ("a repressão ao crime é satisfação dos deuses") Fase onde a vingança pertencia aos deuses, através dos sacerdotes, detentores do poder social- religioso, que desempenhavam o papel de magistrado e aplicavam sanções severas. Aqui, a religião atinge influência decisiva na vida dos povos antigos 10 . O direito penal impregnou-se de sentidos místicos desde os seus primórdios, já que se devia reprimir o crime como satisfação aos deuses pela ofensa praticada no grupo social. O castigo ou oferenda, por delegação divina, era aplicado pelos sacerdotes que infligiam penas severas, cruéis e desumanas. A vis corpolis era usada como meio de intimidação 11 . A repressão ao 5 Com a evolução social, para evitar a dizimação das tribos, surge o talião, que limita a reação à ofensa a um mal idêntico ao praticado. 6 "Ut supra", o Talião foi adotado por vários documentos, revelando-se um grande avanço na história do Direito Penal por limitar a abrangência da ação punitiva. 7 "Art. 209 – Se alguém bate numa mulher livre e a faz abortar, deverá pagar dez siclos pelo feto"; e "Art. 210 – Se essa mulher morre, então deverá matar o filho dele". 8 "Levítico 24, 17 – Todo aquele que ferir mortalmente um homem será morto". 9 "Tábua VII, 11 – Se alguém fere a outrem, que sofra a pena de Talião, salvo se houver acordo". 10 No antigo oriente, pode-se afirmar que a religião confundia-se com o Direito, e, assim, os preceitos de cunho meramente religioso ou moral, tornavam-se leis em vigor. 11 Legislação típica dessa fase é o Código de Manu, mas esses princípios foram adotados na Babilônia, no Egito (Cinco Livros), na China (Livro das Cinco Penas), na Pérsia (Avesta) e pelo povo de Israel. 10 delinqüente nessa fase tinha por fim aplacar a "ira" da divindade ofendida pelo crime, bem como castigar o infrator. 1.1.1.3 A terceira e última fase: da vingança pública ("crimes ao estado, à sociedade") Fase onde se justificava a sanção em função do interesse coletivo 12 , teve seu marco histórico com a Magna Carta da Ingla terra, em 1.215 e com a Revolução Francesa, em 1.789. Com uma maior organização social, especialmente com o desenvolvimento do poder político, surge, no seio das comunidades, a figura do chefe ou da assembléia. A pena, portanto, perde sua índole sacra para transformar-se em uma sanção imposta em nome de uma autoridade pública, representativa dos interesses da comunidade. Não era mais o ofendido ou mesmo os sacerdotes os agentes responsáveis pela punição, mas o soberano (rei, príncipe, regente). Este exercia sua autoridade em nome de Deus e cometia inúmeras arbitrariedades. A pena de morte era uma sanção largamente difundida e aplicada por motivos que hoje são considerados insignificantes. Usava-se mutilar o condenado, confiscar seus bens e extrapolar a pena até os familiares do infrator. Embora a criatura humana vivesse aterrorizada nessa época, devido à falta de segurança jurídica, verifica-se avanço no fato de a pena não ser mais aplicada por terceiros, e sim pelo Estado. Dessa maneira o período da vingança foi dividido nestas três fases, que não se sucedem umas às outras com precisão matemática. Uma fase convive com a outra por largo período, até constituir orientação prevalente, para, em seguida, passar a conviver com a que lhe se segue. Assim, a divisão cronológica é meramente secundária, já que a separação é feita por idéias. Além do que, na história antiga iremos encontrar algumas tentativas incipientes no estudo e no pensamento sobre a finalidade da aplicação da pena, assim poderemos constatar que a Criminologia, como ciência causal-explicativa, tem início com Platão em sua obra "República” e nas “Leis", pois foi o primeiro a falar em prevenção. Em seguida, Aristóteles 12 Mirabete sobre esta época nos ensina: “Com a maior organização social, atingiu-se a fase da vingança pública. No sentido de se dar maior estabilidade ao Estado, visou-se à segurança do príncipe ou soberano através da aplicação da pena, ainda severa e cruel.” (Mirabete, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. P. 37). 11 em sua obra "A política" levanta o princípio do livre arbítrio, onde a responsabilidade penal advinha da moral13 . De qualquer maneira, este período é tempo de desespero, noite de trevas para a humanidade, idade média do Direito Penal. 1.1.2 Período humanitário ("o homem deve conhecer a justiça") Neste liame, sem desconhecer que o “talião” surge na história do Direito como significativo avanço na aplicação das penas, limitando a vingança privada, e inobstante a presença de um ou outro pensamento isolado, a pena permanecia sem uma abordagem científica, e o que é pior, aplicada de maneira cruel, bárbara e arbitrária; até que no século XVIII 14 , se contrapondo ao absolutismo decadente, quando o Direito servia aos privilegiados15 , surgiu, então, um sistema de idéias que deu origem ao liberalismo burguês. Assim, reagindo a essa crueldade 16 , apresentam uma abordagem legalista para aplicação da pena, através das idéias iluministas e humanitárias 17 que reclamavam pela individualização e proporcionalidade entre o delito e a pena. Mas, somente no século XIX é que estas idéias foram estruturadas como correntes de pensamento, que ao longo do tempo denominou-se Escolas Penais. 13 Nildo Nery ao buscar a contribuição de Platão como precursor da Criminologia escreve: “Platão (427-347 a.C.) na República escreve que ‘o ouro do homem sempre foi causa de muitos delitos’, enquanto que nas Leis ele proclama que ‘quando em alguma comunidade não há miséria nem grande riqueza é provável que prevaleça o tipo mais alto de moralidade, porque não haverá presunção de injustiça, nem atos inspirados na inveja e no ódio”. E ao buscar a contribuição de Aristóteles arremata: “Na sua obra Política, Aristóteles diz que ‘a miséria engendra rebelião e delito’ e, também, afirmou que os maiores delitos não são cometidos para adquirir o necessário, mas o supérfluo. Outra contribuição de Aristóteles foi projetada em sua Retórica, onde estuda o caráter dos delinqüentes e faz referência ao problema da reincidência criminal, sendo o primeiro a aludir à existência de circunstâncias atenuantes da prática do delito.“ (1.000 Perguntas de Direito, Série Penal – Criminologia, p.19). 14 O período conhecido por Período Humanitário transcorre durante o lapso de tempo compreendido entre 1750 e 1850. Pregava-se a reforma das leis e da administração da justiça penal no fim do século XVIII. 15 Nesta época, os juizes eram arbitrários, julgavam os homens de acordo com sua condição social. 16 O pensamento predominante neste período ia de encontro a qualquer crueldade e se rebelava contra qualquer arcaísmo do tipo: "Homens, resisti à dor, e sereis salvos". (Basileu Garcia). 17 É no decorrer do período humanitário que se inicia o período humanitário do direito penal, movimento que pregou a reforma das leis e da administração da justiça penal no fim do século XVII. É nesse momento que o homem moderno toma consciência crítica do problema penal como problema filosófico e jurídico que é. 12 Essas idéias ganharam destaque através do movimento cultural conhecido como Iluminismo ou Filosofia das Luzes, movimento liberal, que tem como representantes Montesquieu, Locke, Rousseau, Voltaire, como também, Diderot e D’Alembert, porém o apogeu é alcançado por Cesar Bonesana 18 , conhecido como Marquês de Beccaria, que imbuído dos princípios iluministas, faz publicar em Milão, em 1764, a obra “Dos delitos e das penas” que, posteriormente, foi chamado de pequeno grande livro, por ter se tornado o símbolo da reação liberal ao desumano panorama penal então vigente. Os princípios básicos 19 pregados pelo jovem aristocrata de Milão firmaram o alicerce do Direito Penal moderno 20 , e muitos desses princípios foram, até mesmo, adotados pela Declaração dos Direitos do Homem, da Revolução Francesa. Segundo ele, deveria ser vedado ao magistrado aplicar penas não previstas em lei. A lei seria obra exclusiva do legislador ordinário, que representa toda a sociedade ligada por um contrato social. Quanto a crueldade das penas afirmava que era de todo inútil, odiosa e contrária à justiça. Já sobre as prisões de seu tempo dizia que eram a horrível mansão do desespero e da fome, faltando dentro delas a piedade e a humanidade. 1.1.2.1 O Direito Penal e a filosofia das luzes Os séculos XVII e XVIII foram marcados pela crescente importância da burguesia, classe social que comandava o desenvolvimento do capitalismo. Mas nem tudo era belo e tranqüilo: havia um grave conflito de interesses entre os burgueses e a nobreza. 18 Filho espiritual dos enciclopedistas franceses Rousseau e Montesquieu. 19 Primeiro: os cidadãos, por viverem em sociedade, cedem apenas uma parcela de sua liberdade e direitos. Por essa razão não se podem aplicar penas que atinjam direitos não cedidos, como acontece nos casos da pena de morte e das sanções cruéis. Segundo: só as leis podem fixar as penas, não se permitindo ao juiz interpretá-las ou aplicar sanções arbitrariamente. Terceiro: as leis devem ser conhecidas pelo povo, redigidas com clareza para que possam ser compreendidas e obedecidas por todos os cidadãos, etc. 20 Não foi à toa que alguns autores o chamaram apóstolo do Direito: o jovem marquês de Beccaria revolucionou o Direito Penal e sua obra significou um largo passo na evolução do regime punitivo 13 Os pensadores iluministas, em geral, defendiam uma ampla reforma do ensino, criticavam duramente a intervenção do Estado na economia e achincalhavam a Igreja e os poderosos. Deus 21 foi encarado como expressão máxima da razão, legislador do Universo, respeitador dos direitos universais do homem, da liberdade de pensar e se exprimir. Era também o criador da lei, e lei no sentido expresso pelo filósofo iluminista Montesquieu, ou seja, relação necessária que decorre da natureza das coisas. Foi, evidentemente, os escritos de Montesquieu, Voltaire, Russeau e D’Alembert que prepararam o advento do humanismo e o início da radical transformação liberal e humanista do Direito Penal. Locke, filósofo inglês, considerado o pai do iluminismo, escreveu "Ensaio sobre o entendimento humano”. Montesquieu, jurista francês, escreveu "O Espírito das leis", defendendo a separação dos três poderes do Estado. Voltaire, pensador francês, tornou-se famoso pelas críticas ao clero católico, à intolerância religiosa e à prepotência dos poderosos. Rousseau, filósofo francês, célebre defensor da pequena burguesia e inspirador dos ideais da Revolução Francesa, foi autor de "O Contrato social" e "Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens. Por fim, Diderot e D’Alembert foram os principais organizadores da "Enciclopédia", obra que resumia os principais conhecimentos artísticos, científicos e filosóficos da época. Os pensadores iluministas, supra citados, em seus escritos, fundamentaram uma nova di eologia, o pensamento moderno, que repercutiria até mesmo na aplicação da justiça: à arbitrariedade se contrapôs a razão, à determinação caprichosa dos delitos e das penas se pôs a fixação legal das condutas delitivas e das penas. Os povos clamavam pelo fim de tanto barbarismo disfarçado. 21 Nem mesmo Deus escapou às discussões da época. O Deus iluminista, racional, era o grande relojoeiro nas palavras de Voltaire. 14 1.1.2.2 O Direito Natural e sua influência Entre os séculos XVI e XVIII, na chamada fase racionalista surgia a chamada Escola do Direito Natural, de Hugo Grócio, Hobbes, Spinoza, Puffendorf, Wolf, Rousseau e Kant. Sua doutrina apresentava os seguintes pontos básicos: a natureza humana como fundamento do Direito; o estado de natureza como suposto racional para explicar a sociedade; o contrato social e os direitos naturais inatos. De conteúdo humanitário e influenciada pela filosofia racionalista, a Escola concebeu o Direito Natural como eterno, imutável e universal. Se por um lado a Escola do Direito Natural teve uma certa duração, a corrente que se formou, ou seja, o jusnaturalismo prolongou-se até a atualidade. Romagnosi, um dos iniciadores da Escola Clássica, fundamentou sua obra, "Gênesis do Direito Penal", concebendo o Direito Penal como um direito natural, imutável e anterior às convenções humanas. Embora ainda sob uma pseudo-compreensão de alguns juristas, o Direito Natural tem sobrevivido e mostrado que não se trata de idéia metafísica ou princípio de fundo simplesmente religioso. O Jusnaturalismo atual constitui um conjunto de amplos princípios, a partir dos quais o legislador deverá compor a ordem jurídica. Os princípios ma is apontados referemse ao direito à vida, à liberdade, à participação na vida social, à segurança, etc. É evidente a correlação que existiu e ainda existe entre Direito Natural e Direito Penal: os princípios abordados pelo Jusnaturalismo, especialmente os correspondentes aos direitos naturais inativos, estão devidamente enquadrados no rol dos bens jurídicos assegurados pelo Direito Penal. 1.1.2.3 Escola Clássica ("denominação pejorativa criada pelos positivistas") Desse contexto histórico, no período humanitário, nasceria, o que se convencionou a chamar, a primeira Escola Penal, a “Escola Clássica”; onde o conjunto de escritores, pensadores, filósofos e doutrinadores, que sem desprezar as influências da 15 denominada Escola do Direito Natural, adotaram as teses ideológicas básicas do iluminismo, expostas magistralmente por Beccaria 22 , sendo o seu maior expositor Francesco Carrara com a sua obra “Programa de Direito Penal e Opúsculos”. Também contou com o reforço, na Alemanha, do jurista Anselmo Von Feurbach23 que formulou o “Princípio da Legalidade” e Giovanni Carmignani, considerado o lançador da pedra fundamental da Escola que escreveu a “Teoria das Leis de Segurança Social e Elementa Iris Criminalis”, além disso, teve adeptos preciosos como os filósofos Emmanuel Kant e Friedrich Hegel, além de outros expoentes como, na Itália, do jurisconsulto Gian Domenico Romagnosi24 , autor de “Gênese do Direito Penal”, Pelegrino Rossi com o “Tratado de Direito Penal”, Enrique Pessina com “Elementos de Direito Penal”, Karl Binding com “As Normas e suas Transgressões”, e ainda, na Inglaterra, a figura expoente do jurisconsulto Jeremias Bentham25 . Na Escola Clássica, dois grandes períodos se distinguiram: o filósofo ou teórico e o jurídico ou prático. No primeiro destaca-se a incontestável figura de Beccaria. Já no segundo, aparece o mestre de Pisa, Francisco Carrara 26 , que tornou-se o maior vulto da Escola Clássica. A Escola Clássica teve como seu principal postulado - o delito é um ente jurídico - verificado pelo método especulativo, dedutivo, racionalista 27 e lógico abstrato. Fez nascer o conceito formal de crime, ou seja, crime é o que a lei diz que é; surgindo o princípio da legalidade, o da reserva legal; e ainda, declarou que o crime tem como conseqüência ou imputabilidade, o livre arbítrio, que é o discernimento dado por Deus, que se dá na culpabilidade moral do agente ao cometer o crime e nunca como produto natural ou social. 22 Em sua obra “Dos Delitos e das Penas”, escrita em 1764. 23 Opina que o fim do Estado é a convivência dos homens conforme as leis jurídicas. A pena, segundo ele, coagiria física e psicologicamente para punir e evitar o crime. 24 Concebe o Direito Penal como um direito natural, imutável e anterior às convenções humanas, que deve ser exercido mediante a punição dos delitos passados para impedir o perigo dos crimes futuros 25 Considerava que a pena se justificava por sua utilidade: impedir que o réu cometa novos crimes, emendá-lo, intimidá-lo, protegendo, assim a coletividade. 26 Carrara defende a concepção do delito como ente jurídico, constituído por duas forças: a física (movimento corpóreo e dano causado pelo crime) e a moral (vontade livre e consciente do delinqüente). Define o crime como sendo a infração da lei do Estado, promulgada para proteger a segurança dos cidadãos, resultante de um ato externo do homem, positivo ou negativo, moralmente imputável e politicamente danoso. 27 Sistema dogmático baseado sobre conceitos racionalistas. 16 No que tange a aplicação da pena 28 a Escola Clássica considera o homem, como se todos fossem rigorosamente iguais entre si, dando importância só ao ato criminal; Carrara reconhece o crime como ação, infração, entidade de direito, ente jurídico, justiçaretributiva. Assim, estabeleceu-se a Teoria Absoluta, conhecida também de retribuição ou retribucionista, que tem como fundamento da sanção penal a exigência da justiça: pune-se o agente porque cometeu o crime. Enfoca-se o caráter retributivo da pena, ora divino sustentado por Bekker e Stahl; ora moral segundo Kant; ora jurídico para Hegel e Pessina. A pena serviria para intimidar os criminosos futuros; inobstante os avanços históricos no que tange na busca da proporcionalidade entre o delito e a pena, seus defensores ao conceituar a pena procuraram, sem sucesso, não confundir com o castigo. Para eles o crime é um ente jurídico e a pena uma medida repressiva, aflitiva e pessoal29 , servindo como retribuição merecida, onde paga-se o mal com o mal. 1.1.3 Período científico ou criminológico ("a justiça deve conhecer o homem") Este período, que ainda se vive, caracteriza-se por um notável entusiasmo científico. Começa a partir do século XIX, por volta do ano de 1850 e estende-se até os nossos dias. Inicia-se, neste período 30 , a preocupação com o homem que delínqüe e a razão pela qual delínqüe. O notável médico italiano Cesar Lombroso, revoluciona o campo penal na época. Ferri e Garofalo também merecem destaque, além do determinismo e da Escola Positivista que tiveram sua devida influência no período criminológico. 1.1.3.1 Escola Positiva O movimento naturalista do século XVIII, que pregava a supremacia da investigação experimental em oposição à indagação puramente racional, influenciou o Direito 28 Investigando-se o direito de punir do Estado (também dever de punir), que nasce com a prática do crime, surgiram três correntes doutrinárias a respeito da natureza e dos fins da pena, a absoluta, a relativa e a mista. 29 Dizia Kant que a pena é imperativo e conseqüência lógica do direito. 17 Penal. É uma época de franco domínio do pensamento positivista no campo da filosofia (Augusto Comte) e das teorias evolucionistas de Darwin e Lamark, das idéias de John Stuart e Spencer. Neste período científico 31 e contrapondo-se aos preceitos da Escola Clássica surge a Escola Positiva 32 , que enfoca o homem na sua mais substancial natureza, utiliza os métodos naturalísticos, surgindo como postulado básico que o crime é um fenômeno biológico e social, é um produto do atuar biopsicossocial, e não um mero ente jurídico. Neste contexto, surge o conceito material de crime, ou seja, crime como ente social. Destaca-se como método, o experimental e afirma que não há o livre arbítrio pois este é uma ilusão subjetiva, face as influências da realidade biológica e social sobre o homem. Foi neste contexto, que Cesar Lombroso com “O Homem Criminoso”33 , apontou os novos rumos do Direito Penal, através do estudo do delinqüente e a explicação causal do delito. Criou o estudo da Antropologia Criminal, descrevendo o criminoso nato 34 , caracterizado por determinados estigmas somato-psíquicos e cujo destino indeclinável era delinqüir, sempre que determinadas condições ambientais se apresentassem. O ponto nuclear de sua teoria é a consideração do delito como fenômeno biológico e o uso do método experimental para estudá- lo. Embora tenha cometido alguns exageros na definição do criminoso nato, a idéia de uma tendência para o crime não foi sepultada com Lombroso. Estudos feitos por geneticistas têm levado à conclusão de que elementos recebidos por herança biológica, 30 Puig Peña refere -se a esse período, afirmando que caracteriza-se pela irrupção das ciências penais no âmbito do Direito punitivo, e graças a ele se abandona o velho ponto de vista de considerar o delinqüente como um tipo abstrato imaginando sua personalidade. 31 O movimento naturalista do século XVIII, que pregava a supremacia da investigação experimental em oposição à indagação puramente racional, influenciou o Direito Penal. Numa época de franco domínio do pensamento positivista no campo da filosofia (Augusto Comte) e das teorias evolucionistas de Darwin e Lamark, das idéias de John Stuart e Spencer, surgiu a chamada Escola Positiva. 32 A Escola Positiva proclamava outra concepção do Direito. Enquanto para a Clássica ele preexistia ao Homem (era transcendental, visto que lhe fora dado pelo criador, para poder cumprir seus destinos), para os positivistas, ele é o resultado da vida em sociedade e sujeito a variações no tempo e no espaço, consoante a lei da evolução. 33 Este livro, publicado em 15 de abril de 1876, o qual denominou-se originalmente de L’Uomo Delinquente é o marco do nascimento da Criminologia. 34 É de Lombroso a descrição do criminoso nato. Ei-la: assimetria craniana, fronte fugida, zigomas salientes, face ampla e larga, cabelos abundantes e barba escassa. criminoso nato é insensível fisicamente, resistente ao traumatismo, canhoto ou ambidestro, moralmente impulsivo, insensível, vaidoso e preguiçoso. 18 embora possam não condicionar um modus vivendi no sentido de tornar o homem predestinado em qualquer direção, influem no modo de ser do indivíduo. Discípulo dissidente de Lombroso, Henrique Ferri, criador da Sociologia Criminal35 , relevou as influências sociais, considerando a patologia individual e social como objetos de estudos criminológicos. Ferri ressaltou a importância de um trinômio causal do delito: os fatores antropológicos, sociais e físicos. Distinguiu cinco classes de criminosos, as quatros já identificadas por Lombroso: o criminoso nato 36 , o criminoso louco ou insano 37 , o criminoso de ocasião ou eventual38 e o criminoso passional39 , acrescentando o criminoso habitual40 , aquele que elege o crime como meio de viver. E dividiu as paixões em: sociais (amor, piedade, nacionalismo, etc.) e anti-sociais (ódio, inveja, avareza, etc.). Ferri e Lombroso nos estudos da criminalidade e do homem criminal, trazem dados hereditários, o atavismo 41 , físicos e do meio social, mostrando que era mais 35 Ferri definiu a Sociologia Criminal como sendo a ciência da criminalidade e da defesa social ou o estudo científico do crime, como fato individual e social, para sistematizar a defesa social preventiva e repressiva. 36 Lombroso des creveu o criminoso nato como um indivíduo de baixa estatura, de crânio pequeno, branquicéfalo, de testa estreita, arcadas superciliares proeminentes, lábios finos e queixada volumosa. Assinalava ainda as seguintes características taras degenerativas fisiológicas, tais como o daltonismo, mancinismo, a insensibilidade à dor, a precocidade sexual, e como características psicológicas, a vaidade, as ações impulsivas, o egocentrismo, as tendências alcoólicas, a negligência, as superstições, o uso de gíria, a imprevidência, a instabilidade e a indolência. Já Ferri afirma que o criminoso nato se caracteriza sobretudo pela vontade anormal ou pela impulsividade desta, passando subitamente o indivíduo da idéia à ação, impelido por motivos desproporcionados à gravidade do delito. Distingue-se pela ausência ou fraqueza do senso moral. Na escala da periculosidade, ele está no cimo, dada a tendência inata de delinqüir. 37 Ferri afirma que não só a loucura explica o delito, pois nem todos os loucos são criminosos, e sim a atrofia do senso moral, isto é, a aceitação natural da concepção e execução do crime. 38 Para Ferri, o criminoso ocasional porta anomalias bio-psíquicas congênitas ou adquiridas, que já o predispõem ao delito, potencializada pela solicitação que faz a vida ao homem, quer seja necessidades familiares, quer seja uma provocação injusta, quer seja uma comoção pública, acaba por cometer um crime. Para ele este criminoso tem uma periculosidade menor e o seu reajustamento é mais fácil. 39 Aqui Ferri destaca que o criminoso passional, geralmente jovem, tem temperamento nervoso e sensibilidade exagerada, age sem premeditação e sem dissimular, acaba por confessar o delito e arrepende-se, muitas das vezes chega ao suicídio. 40 Assevera Ferri que o habitual pode apresentar taras hereditárias, quer somáticas quer psíquicas, mas é principalmente devido à influência do meio em que nasceu e vive, de miséria moral e material, que delinqúe. 41 Lombroso na qualidade de médico, e por circunstâncias sanitárias, veio a praticar necrópsias e se dedicou, em especial, aos delinqüentes. E, ao periciar o cadáver de um famoso criminoso de nome Vilela, verificou a presença, no seu crânio, de uma fosseta média da crista occipital que, apenas, se conhecia em raças antigas e em algumas espécies de animais. Foi a antevisão do atavismo como fator criminal. 19 importante o ato criminal do que o ato incriminado, com isso, passam a distinguir os criminosos, dando tratamento diferenciado. O crime passa a ser estudado como fenômeno social patológico por Ferri aplicando o método de Emile Durkheim, normal e anormal42 , que diz que a criminalidade está ligada à sociedade, à cultura, não é acidental ou fortuita. Durkheim 43 mais adiantado que Ferri reconhece a anomia 44 , onde situações conflituais surgem da contínua inadaptação dos indivíduos de um grupo numa mesma cultura. Outro vulto da tríade é Rafael Garofalo 45 , o primeiro a usar a denominação "Criminologia" para as Ciências Penais. Fez estudos sobre o delito, o delinqüente e a pena. Assim, Lombroso, Ferri e Garofalo, corroborados pelos pensamentos de Fioretti e Floriam, entre outros, afirmaram que a pena não tem um fim puramente retributivo, mas também uma finalidade de proteção social que se realiza através dos meios de correção e intimidação. Fomentaram o início da ciência criminológica, amadurecendo o respeito aos direitos e a dignidade da pessoa humana, dando ênfase em seus estudos ao meio ambiente e ao criminoso. Neste liame, finalidade diferente da Escola Clássica, foi buscada para a aplicação da pena, surgindo a Teoria Relativa, conhecida também como utilitária ou utilitarista, onde a pena abandona o seu caráter retributivo e passa a funcionar como instrumento da defesa societária e recuperação dos infratores. Assim se consagrou o sistema binário da pena, que teve como inovação o destaque para o caráter preventivo, exercido 42 Anomalia seria a falta de normas que dirigem a conduta dos membros da sociedade, em geral ou em áreas específicas da atividade. 43 Lola Aniyar de Castro afirma que para Durkhein a pena mantém a solidariedade social e cumpre com o objetivo da defesa social: proteger a sociedade mediante a expiação de culpa. (Criminologia da reação social. Rio de Janeiro, Forense, 1983, p. 87) 44 Significa ausência de norma. 45 Uma das contribuições de Garofalo foi inovar os estudos sobre o delito, apresentando o delito natural, onde o delito seria a ofensa aos sentimentos altruísticos fundamentais de piedade e propriedade, na medida em que os possua um determinado grupo social. Assim, tentou demonstar que no conceito do delito aparece sempre a lesão de alguns daqueles sentimentos mais profundamente radicados no espírito humano e que, no seu conjunto, formam o que se chama senso moral. 20 através da coação psíquica, intimidação e materializada na coação física pela segregação 46 . É verdade que a história registra que o precursor desta idéia foi Platão 47 , porém foi Filangieri, no século XVIII, o iniciador da teorização da prevenção geral pela intimidação, o objeto da pena é afastar os homens dos delitos pelo medo ao mal da pena. Assim, a Teoria Relativa foi consagrada pela expressão: punitur ut ne peccatur – pune-se, para que não se peque. Dessa forma, a pena passou a ter um fim prático, a prevenção geral48 , pelo desestímulo para todos, bem como a intimidação face a coação psicológica. A partir daí teremos a preocupação científica com o fenômeno criminal, pois até então, historicamente, nunca se havia importado com os motivos do crime, muito menos com a figura do criminoso. Como bem observou o antropólogo holandês Van Hammel ao afirmar que: "Beccaria disse ao homem, conheça a justiça e Lombroso disse a justiça conheça o homem”. 49 Surge uma doutrina que vai influenciar o pensamento da época, repercutindo, inclusive, no âmbito criminal: a filosofia determinista, onde todos os fenômenos do universo, abrangendo a natureza, a sociedade e a história são subordinadas a leis e causas necessárias. Coube a Laplace 50 a formulação conceitual mais ampla do determinismo. Onde, o delito, como fato jurídico, deveria também obedecer esta correlação determinista, já que por trás do crime haveria sempre razões suficientes que o determinaram. Para certa corrente filosófica, a noção de determinismo é central na conceituação do conhecimento científico, tanto na esfera das ciências físico-naturais, quanto na das ciências do homem; para uma segunda corrente, o determinismo é incompatível com a 46 dava-se à pena um fim exclusivamente prático, em especial o de prevenção. O crime não seria causa da pena, mas a ocasião para ser aplicada. 47 Platão afirmava que não se castiga porque alguém tenha delinqüido, senão para que ninguém delinqua. 48 Feuerbach é o autor da Teoria da Prevenção Geral pela coação psicológica, onde a pena deveria ter esta conotação, devendo o Estado, através da pena, ameaçar com a realidade da sanção, todo possível transgressor, exemplificando o seu futuro, com a demonstração da aplicação concreta da pena aos transgressores atuais. 49 Esta afirmação foi feita durante o Congresso de Antropologia Criminal de Turim, em 1908. 50 Segunda a visão "Laplaciana", corresponde ao "caráter de uma ordem de fatos na qual cada elemento depende de outros, de tal modo que se pode prevê-lo, provocá-lo ou controlá-lo segundo se conhece, provoque ou controle a ocorrência desses outros". 21 idéia da ação deliberada e responsável, ou seja, o determinismo nega o livre arbítrio. Foi aceito por Ferri, que afirmava ser o homem responsável, por viver ele em sociedade. 1.1.3.2 Escola Mista Mais tarde, surgiria a Escola Mista, conhecida também como Eclética ou Técnico-jurídica ou, ainda, como Neoclássica, sem nenhuma originalidade conceitual; teve como mérito fundir e conciliar o que havia de bom nas duas correntes, para isto, apoiou-se na Antropologia da Escola Positiva, sem desprezar a tese da responsabilidade moral da Clássica, inobstantemente negar o livre arbítrio. Foi sistematizada da seguinte forma: o delito é pura relação jurídica, de conteúdo individual e social; a pena constitui uma reação e uma conseqüência do crime, com função preventiva geral e especial, aplicável aos imputáveis; a medida de segurança é aplicável aos inimputáveis; responsabilidade moral decorre da vontade livre; aplica o método técnico-jurídico e, finalmente, refuta o emprego da filosofia no campo penal. Seus maiores representantes foram: Carnevale, Alimena, Implalomenis e Gabriel Tarde 51 , fundador do Psicologismo Sociológico. Porém, ao procurar a finalidade da aplicação da pena, a Escola Mista, defendida por Pellegrino Rossi, Guizot e Cousein, se destacou, ao estruturar a Teoria Mista ou Eclética, identificando que a pena tem o caráter retributivo, no que tange ao aspecto moral e mais a finalidade de prevenção como misto de educação e correção, ou seja, a pena é constituída pela retribuição e prevenção (educação e correção). 1.1.3.3 Escola da Defesa Social Por fim, no amadurecimento histórico das ciências e da humanidade, no século XX, conseqüência da luta entre a Escola Clássica e a Positiva, percebeu-se que o estudo sobre a aplicação da pena merecia um enfoque até então desprezado, assim foi que os 51 Contemporâneo de Lombroso, Garofalo e Ferri, foi um membro destacado da corrente sociológica, na Criminologia, para ele, a explicação dos fenômenos coletivos tem sua raiz no fator psíquico e o fato social é um fenômeno interpsíquico, ou seja, de relação entre consciências, entre mentes de pessoas, num verdadeiro processo de imitação, em virtude do qual o individual se converte em coletivo, assim, o fenômeno criminal, como toda manifestação social, é um processo de imitação. Mas tarde, Sutherland, observou que uma pessoa chega a criminalidade em razão de um excesso de definições favoráveis à violação da lei, em contraposição às definições desfavoráveis, assim aproveitou a idéia original de Gabriel Tarde, para sustentar o princípio da associação diferencial, onde os indivíduos chegam ao crime por contatos com esquemas criminais e por isolamento de esquemas não-criminais. 22 novos postulados da Escola da Defesa Social52 ou Neodefensivo Social ou Escola da Defesa Social, segundo Adolfo Prins e Fillippo Gramatica ou ainda Nova Defesa Social, segundo Marc Ancel53 e Thorsten Sellin, apresentam a Teoria Ressocializadora, onde se atribui uma importância particular à prevenção individual e que se esforça por tornar operante um sistema de prevenção do crime e tratamento dos delinqüentes, humanizando o direito penal, apoiandose no conhecimento científico do fato criminal e da personalidade do criminoso, quando então passou a se estudar o efeito curativo ou preventivo da pena. Assim, a finalidade é pela ressocialização do delinqüente (excluindo, definitivamente, a retributividade da sanção penal), característica marcante da Política Criminal Humanista, onde a pena eqüivale a prevenção especial, nas modalidades de reeducação e reinserção social. 1.1.3.4 Criminologia Pode-se dividir a Criminologia em dois grandes ramos: o da biologia criminal e o da sociologia criminal. Assim, a biologia criminal estuda o crime como fenômeno individual, ocupando-se essa ciência das condições naturais do homem criminoso no seu aspecto físico, fisiológico e psicológico. Inclui ela os estudos da antropologia 54 , psicologia55 e endocrinologia criminais 56 . Já a Sociologia Criminal toma o crime como um fato da vida em sociedade, estuda-o como expressão de certas condições do grupo social. 52 O Estado, para a doutrina da Defesa Social, tem a obrigação de promover a integração social do indivíduo e jamais de oprimi-lo. 53 Para Ancel a doutrina da Defesa Social funciona como um sistema anticriminal que não vise unicamente à expiação de uma falta por meio de um castigo, mas busque proteger a sociedade contra as ações criminais. Já o seu ideal é de transformar a Justiça Penal em jurisdição protetora, da forma que ocorre em relação aos menores delinqüentes, porém com as adaptações necessárias. 54 A Antropologia Criminal, criada por César Lombroso, preocupa-se com os diferentes aspectos do homem no que concerne à sua constituição física, aos fatores endógenos e à atuação do delinqüente no ambiente físico e social. 55 A Psicologia Criminal trata do diagnóstico e prognóstico criminais. Ocupa-se com o estudo das condições psicológicas do homem na formação do ato criminoso, do dolo e da culpa, da periculosidade e até do problema objetivo da aplicação da pena e da medida de segurança. 56 A Endocrinologia Criminal é a ciência que estuda as glândulas endócrinas e a sua influência na conduta do homem. 23 1.1.3.4.1 Criminologia Tradicional É verdade que se a finalidade da pena difere na concepção de cada escola penal, ora retributiva, ora preventiva, ora ressocializadora, a Criminologia, por sua vez, preserva o seu enfoque original, positivista, na concepção de todas as escolas, qual seja, o da defesa social. Até a publicação de "L'Uomo Delinque nte", de Lombroso, com a tese principal do delinqüente nato, não tínhamos a Criminologia como ciência. Apenas havia a Escola Clássica do Direito Penal que estudava o delito individualizadamente, de acordo com a lei. Assim, deu-se o início da Escola Positivista, bem como, da Criminologia positivista que, como todo positivismo, tentava criar leis como nas ciências naturais. O maior mérito atribuído ao positivismo, mesmo por autores de outras correntes, é o de que ele serviu como ponto de partida para um estudo da realidade que até então era restrita ao Ordenamento Jurídico. É verdade que o positivismo, como doutrina, serviu a função política, por encobrir a verdadeira e maior causa de delinqüência na sociedade capitalista, que é a injustiça social ocasionada por essa sociedade dividida em classes. E nesse contexto, estão todas as ramificações do positivismo criminológico, todas as teorias e correntes, tanto as de cunho estritamente biológico como as de cunho social, porque nenhuma se interessava em questionar a lei e direcionaram suas atenções para o criminoso, ou como um ser anormal ou como alguém que precise de uma ressocialização, mas nunca como um fruto do próprio desajuste da sociedade, nunca vendo a lei como um produto de uma ideologia dominante na sociedade. Assim, a Criminologia, neste primeiro momento, se apresenta como base de uma política criminal do tipo reformista, porém, opera, na verdade, como uma instância do sistema, contribuindo para legitimar e auxiliar o sistema penal e a política criminal oficial, já que, tem por objeto limitado, o estudo científico das penas privativas de liberdade e de sua execução, o que lhe assegurou a denominação de Criminologia Tradicional, partindo do pressuposto da existência de uma qualidade natural de comportamentos e de sujeitos que têm uma característica que os distingue de todos os outros comportamentos e de todos os outros sujeitos: essa qualidade natural seria a criminalidade. Defende ainda que, sendo a criminalidade uma entidade ontológica, seria possível investigar suas causas e colocar a ciência das causas a serviço da prática que deve 24 combatê- la. Para tanto, utiliza-se do processo de verdadeira subordinação à lógica do Direito Penal positivo onde a conduta do agente, face a diversidade comportamental constitui-se numa anomalia. Assim, a Criminologia Tradicional, desconsidera, entre outras coisas, as normas jurídicas ou sociais, a ação das instâncias oficiais, a reação social respectiva e, em geral, os mecanismos institucionais e sociais, através dos quais se realiza a definição de certos comportamentos qualificando o seu transgressor como criminoso. Desse modo, o seu objetivo viu-se frustrado, pois, trabalhar definições como criminoso e criminalidade sem ter como base as definições sociais e penais, sem que haja uma aplicação da lei penal pelas instâncias oficiais e, por fim, sem uma análise das reações nãoinstitucionais, torna-se impraticável. 1.1.3.4.2 Criminologia Crítica A Criminologia Crítica 57 é um movimento caracterizado pela orientação de questionar58 a ordem social que produz o fenômeno do crime e pelo compromisso com uma prática social transformadora, em condições estruturais de desigualdade material e da marginalização econômica nas sociedades fundadas na divisão e na exploração de classes 59 . O contexto conflitual em que os E. U. A. 60 viveram na década de sessenta, representado pelos conflitos racistas, as rebeliões estudantis, a guerra fria e a do Vietnã, bem como pelos movimentos hippies, não só desconcertaram as autoridades no poder, como promoveram o debate criminológico, já que, era incompreensível a pesada criminalização de pequenos delitos, como o protesto político, o consumo de estupefacientes e o pequeno crime contra o patrimônio, enquanto o sistema se revelava impune e tolerante com a criminalidade do colarinho branco. 57 Etimologicamente a expressão Criminologia Crítica tem sentido amplo, sendo sinônima de Nova Criminologia, Criminologia Radical, Economia Política do Crime e Criminologia Moderna. Cuida de um movimento criminológico que importa numa reação à chamada Criminologia Tradicional. 58 O esquema teórico desse questionamento é defendido pelas categorias fundamentais do pensamento marxista. 59 Visão marxista. 60 A Criminologia Crítica tem seu marco imediato no movimento estudantil de 1968, face a revolta universitária aos interesses e preconceitos do neocapitalismo. Houve importantes trabalhos acerca da conduta desviada e do controle social realizados por Nagel, Taylor, Walton e Yong, desenvolvendo-se, a partir daí, estudos científicos de cunho político-culturais levando ao extremo as indicações metodológicas dos teóricos da reação social e do conflito, e do paradigma etiológico, dando lugar à rica discussão acerca do processo de criminalização e sobre a legitimação e funcionamento do Sistema Penal. 25 Esta contradição visível na sociedade americana 61 , foi enfrentada pelo movimento denominado perspectiva interacionista, também designado por labelling approach, teoria da reação social ou teoria da rotulação, exposta por Becker, Goffman, Strauss e Lemert entre outros. A virada metodológica, ampliou o objeto de investigação da Sociologia Criminal, pois não considera a criminalidade como qualidade natural dos sujeitos, mas, sim, um adjetivo atribuído pelas instâncias oficiais e pela opinião pública, no processo de definição destes sujeitos e comportamentos. Permitindo a conclusão, que conceitos como criminoso e criminalidade consistem muito mais em qualidade cultural do sujeito, na medida em que resultam de um processo 62 de definição, que se desenvolve no interior do mecanismo ideológico pelo qual tem lugar a reprodução da realidade social. Desse modo, a Criminologia Crítica se contrapôs à Tradicional na medida em que redefiniu o objeto e os termos mesmos da questão criminal, resultando na instauração de um novo paradigma, qual seja, o da reação social ou também denominado paradigma da definição. Este paradigma fez com que o estudo criminológico não mais partisse das causas do comportamento criminoso, mas sim das condições, a partir das quais, em uma sociedade, as etiquetas de criminalidade e o status de criminoso são atribuídos a certos comportamentos e a certos sujeitos. Implica na análise do processo de definição e reação social que se estende à distribuição do poder de definição e de reação numa sociedade, em relação à desigual distribuição deste poder e aos conflitos de interesses que estão na origem deste processo. Assim, podemos concluir que, a Criminologia Crítica, preocupa-se em saber não só porque os delinqüentes praticam crimes, mas ainda, em saber quais os critérios de seleção de certos indivíduos, geralmente de classes inferiores, como delinqüentes. O que significa que o problema criminal, tradicionalmente centrado no estudo da ação delinqüente (bad actors), passou a integrar na sua investigação os sistemas de controle ou instâncias de 61 O Professor de Sociologia da Universidade de Nova Iorque, Richard Quimney, sustenta que o Direito Criminal nos Estados Unidos pode ser compreendido, criticamente, em termos da preservação da ordem social e econômica existente, sendo ele usado pelo Estado e pela classe dominante para assegurar a sobrevivência do sistema capitalista, e como o sistema capitalista é, posteriormente, ameaçado por suas próprias contradições, o direito criminal é, crescentemente, usado na tentativa de manter a ordem doméstica. Assim a classe inferior, a classe que deve permanecer oprimida para o triunfo da classe econômica dominante, continuará a ser objeto do direito criminal, enquanto a classe dominante perpetuar a si mesma. Por isso, remover a opressão, eliminar a necessidade de uma revolta posterior, significaria, necessariamente, o fim da classe dominante e de sua economia capitalista. 62 Estes processos conhecidos como de etiquetamento e de criminalização, contribuem para a consolidação do estereótipo dominante da criminalidade e do desvio, como comportamento normal destes grupos sociais 26 reação social ao crime (powerful reactors), e cuja análise se concentra nos mecanismos de seleção da delinqüência. O problema, considerado neste sentido, constitui um dos aspectos centrais da dimensão política do labelling approach cujo discurso levanta questões relacionadas com o poder e a legitimidade das instâncias de controle do crime na manipulação da verdade e na definição do desvio 63 . Os sistemas de controle, especialmente os institucionais, seriam responsáveis, segundo a perspectiva em análise, por uma efetiva seleção quantitativa da delinqüência e por uma efetiva seleção qualitativa da delinqüência. Assim, embora a Criminologia Crítica constrói nos dias de hoje seus próprios contornos, teve sua fluente nas correntes mais progressistas da Criminologia Liberal: a teoria organizacional ou de rotulação, a teoria da reação social da qual podemos citar grandes nomes como Lola Aniyar de Castro e Alessandro Baratta. A partir da Nova Criminologia (1975), consolidou-se três correntes, denominadas de a Criminologia Abolicionista 64 ; a Criminologia do Minimalismo 65 ou do Direito Penal Mínimo e a Criminologia do Neo-Realismo de Esquerda 66 . 63 A noção de desvio que temos aqui em vista, é a mesma defendida por Howard S. Becker, apresenta-se não como uma qualidade do comportamento, mas, da interação entre uma determinada pessoa e os outros significantes. O que quer dizer que os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio, e ao aplicar estas regras a pessoas particulares, e rotulando-as como marginais 64 Criminologia Abolicionista - Trata-se de um movimento criminológico que propõe abolir as prisões e o próprio Direito Penal, substituindo-o por intervenções comunitárias e institucionais de caráter alternativo. Entendem seus defensores que numa sociedade repleta de desigualdades nas relações de poder, o Sistema Penal se destina apenas a reforçar essas diferenças. Por outro lado, um sistema informal e comunitário de solução de situações problemáticas e conflitivas contribuiria em muito para diminuir essas desigualdades. Dividi-se o movimento abolicionista em três subcorrentes que buscam o mesmo objetivo, porém, por fundamentos diversos. A primeira é liderada por Louk Hulsman denominada também de Anarquismo Penal, uma vez que fundamenta o abolicionismo nos primitivos valores da sociedade, não admitindo a intervenção do Es tado na solução dos conflitos. Sustenta que a impunidade é a solução habitual da sociedade, justificando-se acerca da cifra negra da criminalidade, que indica que a grande maioria dos crimes ocorridos na sociedade não chegam sequer ao conhecimento da polícia, e dentre os que são conhecidos, apenas um número diminuto culmina em resultado condenatório. Desta forma, a impunidade é a regra e nem por isso existe no mundo uma grande comoção social. A segunda corrente fundamenta suas idéias em rígidas regras morais, desse modo, infringir sofrimentos ao indivíduo é comportamento insuportável, mesmo que esse sofrimento decorra da imposição de uma pena. A terceira corrente decorre de uma concepção materialista da sociedade cingindo-se em fundamentos políticos, segundo o qual, a abolição do Sistema Penal não passa da conseqüência das ações políticas no âmbito das classes sociais mais débeis. 65 Criminologia do Minimalismo - Defende-se a idéia de um Direito Penal de conteúdo mínimo destinado à preservação dos direitos humanos fundamentais. Reconhece, como no abolicionismo, que o Sistema Penal é fragmentário e seletivo, vale dizer que o sistema punitivo representa, tão somente, um sub-sistema funcional 27 Hodiernamente essas são as linhas gerais do quadro da Criminologia que busca de uma forma ou de outra a verdade para o entendimento e controle do fenômeno crime. Inobstante, o leque que se apresenta nos estudos criminológicos, o Ministério Público, de forma generalizada, se identifica com a Criminologia Tradicional, atua com respaldo na fonte formal de punição estatal, contudo privilegia o caráter retributivo da pena em detrimento ao caráter ressocializador. de reprodução material e ideológica do sistema social global, isto é, das relações de poder e propriedade existentes. A corrente minimalista se desmembra em duas outras tendências. A primeira sustentando a necessidade de manutenção da lei penal, para defesa dos mais fracos, além de evitar reações indesejáveis, seja por parte do Estado, seja por parte da vítima ou de parte de outros sujeitos sociais. A segunda tendência entende que a lei penal teria por finalidade apenas, limitar a violência institucional, representada pela pena e sobretudo pelo sistema penitenciário. A pena em suas manifestações mais drásticas é violência institucional, ou seja, limitação de direitos e repressão de necessidades fundamentais dos indivíduos mediante a ação legal ou ilegal de funcionários do poder legítimo, ou do poder de fato de uma sociedade. Ademais, os órgãos que atuam nos distintos níveis da organização da justiça penal não representam nem tutelam interesses de grupos minoritários dominantes e socialmente privilegiados. Por outro lado, o sistema penal é altamente seletivo, seja relação ao processo de criminalização e ao recrutamento da clientela. Conclui-se que o sistema penal provoca mais problemas que os que pretende resolver. Finalmente, entende que o sistema punitivo é absolutamente inadequado para desenvolver as funções socialmente úteis declaradas em seu discurso oficial. 66 Criminologia do Neo-Realismo de Esquerda - O neo-realismo de esquerda é liderado por alguns criminólogos críticos da Inglaterra e dos Estados Unidos da América, em reação ao pensamento idealista que no início dos anos oitenta dominava os horizontes da Criminologia Crítica, foi denominada de esquerda em repúdia ao realismo de direita. Atuava através dos movimentos denominados "Lei e Ordem". Seu propósito principal é ser leal à realidade do delito, desta forma critica as teorias criminológicas existentes e surgidas nos anos oitenta. Dispondo de uma estratégia realista, ocupa-se do estudo do delito, centrando sua atenção sobre a vítima, o autor, a reação social contra o delito e sobre o próprio comportamento delitivo, desde uma perspectiva socialista. No campo prático das modificações, podemos notar que a partir desse movimento houve uma acentuada suspensão de institutos jurídicos que possam amarar o delinqüente, a severidade da pena tornou-se crescente assim como a criminalização de condutas. Todavia, é inegável que o efeito dessa estratégia de atuação punitiva não trouxe a diminuição das infrações delitivas, mas sim o seu aumento, pois é tão acirrada e incutida a obsessão em punir que atropela-se direitos e garantias fundamentais da pessoa humana. Entendem que o Direito Penal não é seletivo, vale dizer que a pobreza não se relaciona com a percentagem dos delitos. Desta forma, expressão que "a carência relativa produz inconformidade; inconformidade mais falta de solução política, produz o delito". 28 1.2 Estado fonte formal de punição 1.2.1 O Ministério Público e o jus puniendi O Estado, na sua função de promover o bem comum e combater a criminalidade, tem o direito de estabelecer e aplicar as sanções penais. É, pois, o único e exclusivo titular do direito de punir (jus puniendi). O direito de punir, todavia, não é arbitrário, mas limitado pelo próprio Estado ao elaborar este as normas que constituem o direito subjetivo de liberdade, que é o de não ser punido senão de acordo com a lei ditada pelo próprio Estado. A manifestação do jus puniendi é decorrente do poder soberano do Estado, do poder jurídico destinado a cumprir sua função de assegurar as condições de existência e a continuidade da organização social. Esse poder jurídico, entretanto, se desdobra em três momentos lógico-jurídicos diferentes. São eles: 1- elaboração da norma jurídica penal; 2persecução penal; 3- momento de sua aplicação. Num primeiro momento atua o Legislativo e Executivo criando a norma jurídica repressora: é o jus puniendi in abstrato; depois vem o Ministério Público com o jus persequendi in juditio, auxiliado pela Polícia Judiciária (órgão do Executivo): jus puniendi in fiere; e, finalmente, concretizando o direito de punir, o Judiciário aplicando a lei ao caso concreto, impondo ou não a sanção penal: jus puniendi em concreto. As etapas de concretização do poder-dever de punir estatal não são estanques, carecendo de uma complementariedade. Assim, a norma penal criada pelo Executivo e Legislativo requer um órgão que promova a sua aplicação (Ministério Público), e este, por sua vez requer um órgão que aplique a norma ao caso concreto (Judiciário). Só depois de tudo isso é que se pode falar, realmente, na concretização do direito de punir do Estado. Após isso, esse direito de punir transmuda-se em jus executionis, ou seja, o Estado passa a deter o poder de executar a sanção penal. O direito de punir ou, como se tem preferido ultimamente, o poder-dever de punir, ensina Mirabete, só se realiza pelo exercício do jus persequendi; é um direito de coação 29 indireta, circunscrito ou delimitado em sua executoriedade pelo Direito Positivo. É o jus persequendi a investidura do Estado no direito de ação 67 . Extrai-se do que foi dito, que a participação do Ministério Público, detentor privativo da ação penal pública e fiscal dos princípios norteadores da ação penal de iniciativa privada, é indispensável para a efetivação do direito de punir do Estado. Assim, o Ministério Público exerce juntamente com os outros poderes do Estado, de forma independente e protegido a qualquer injunção, a função soberana consistente no direito de punir. Antes da Constituição Federal de 1988, poderia se entender o contrário, visto que, o Ministério Público constituía-se num órgão subordinado ao Executivo. Assim, subordinado funcionalmente, a sua atuação na concretização do direito de punir estatal, não passava de uma extensão da atuação do Executivo, sem as características de soberania e independência que hoje apresenta. É verdade que a independência institucional deferida constitucionalmente ao Ministério Público há de refletir também no exercício do jus executionis, devendo ele observar, nesta fase, os preceitos formadores do Estado Democrático de Direito, entre os quais, o de implementar e defender, não só os direitos positivados dos presos, mas também, os que estão ancorados nos Direitos Humanos. 1.2.2 Finalidade da pena Relevante é, a luz dos princípios constitucionais, a análise da finalidade da pena. Em comparação a odiosas concepções, felizmente já extirpadas tanto de nosso ordenamento quanto da consciência social, podemos vislumbrar uma fenomenal evolução da finalidade da pena. Não constitui, mais, a pena, mera retribuição de um mal injusto por um mal justo, isenta de caráter intimidatório, corretivo ou preventivo, de modo que o condenado devia 67 12- Cf. Manual de Direito Penal, Vol. I, Parte Geral, Ed. Atlas, 6ª ed., São Paulo, 1991, p. 349. 30 apenas e tão-somente expiar seu pecado à sociedade 68 . Em contraposição a este pensamento, outras teorias 69 buscaram salientar uma outra característica da pena, colocando em evidência seu aspecto preventivo, no sentido de evitar a prática de novas infrações, onde a finalidade da pena é de impedir a prática delituosa, através da prevenção geral70 , sobre o conj unto de cidadãos; ou especial71 , dirigida, por sua vez, ao apenado, visando sua reeducação e ressocialização. Nos dizeres de G. Bettiol, "não se trata, na verdade, de reconstituir o status quo ante, a situação de fato que se desenhava antes que o réu, com seu delito, viesse a alterar; não se trata de proceder ao ressarcimento de um dano e, desta forma, de retornar a uma posição de equilíbrio entre interesses antagônicos, fim a que tende a sanção civil; não se trata de depurar o organismo social dos indivíduos que comprometem o desenvolvimento normal da vida de relações, como sob certos aspectos se verifica na sanção administrativa, na esfera em que ela deve ter aplicação; mas se trata de reafirmação da autoridade do Estado, ferida no que tem de mais particular: a frustração das normas penais destinadas à tutela dos valores sociais.” A legitimidade do Estado na imposição da pena e o dizer que seu fim principal é a necessidade do bem comum, emanam de um dos pressupostos de existência e manutenção do agregado social, ou seja, a possibilidade do Estado tornar efetivo o respeito aos interesses vitais dos indivíduos e da coletividade. O embate entre as correntes retribucionista e finalista que se degladiaram acerca do fundamento e fins da pena foi árduo e duradouro, ainda mais a partir do momento em que as investigações sobre os fundamentos da pena foram além da pura culpabilidade do agente e alcançou todo o complexo da sua personalidade com o esforço do positivismo 68 Essa visão a respeito da pena foi desenvolvida pelas teorias absolutas, nas quais a pena apresenta a característica de retribuição, de ameaça de um mal contra o autor de uma infração. A pena deveria ser entendida, segundo esta teoria, como um mal, um sofrimento, uma expiação, ou privação de bens jurídicos, que o Estado impõe, como reação, ao violador das suas normas fundamentais. 69 Conhecidas como Teorias Relativas ou Utilitárias. 70 Na prevenção geral, o fim intimidativo da pena dirige-se a todos os destinatários da norma penal, visando a impedir que os membros da sociedade pratiquem crimes, ou seja, é endereçada à coletividade para intimidação geral. 71 Na prevenção especial a pena visa o autor do delito, retirando-o do meio social, impedindo-o de delinqüir e procurando corrigi-lo, ou seja, visa o delinqüente, quando, ao retirá -lo da sociedade, se intenta a sua emenda ou reeducação, para que não volte a entrar em conflito com as normas de conduta legalmente estabelecidas. 31 criminológico italiano em impor à consideração do Direito Penal a figura biológico-social do homem que existe dentro do criminoso. Do resultado desse conflito emergiu uma composição entre as teorias extremas, ou seja, uma teoria mista na qual é possível encontrar os dois objetivos, da retribuição e da preve nção. Os doutrinadores em geral, modernamente, procuram colocar como preponderante o objetivo da regeneração do delinqüente, destacando a tendência ressocializadora e humanitária, considerando a pena, principalmente, como meio de reeducação e reinserção social, embora sem olvidar sua natureza culpabilista-retributiva ou compensadora. A prevenção geral do delito, porém, encontra-se intimamente relacionada com as condições econômicas e bio-sociais da população. Assim, só se realizará atividade preventiva honesta e produtiva pela promoção do bem-estar geral, pela ação enérgica no sentido mais amplo possível do desenvolvimento físico, psíquico, moral e educacional da população, pela maior possibilidade de aprendizagem técnica e de trabalho bem remunerado, pelo amparo efetivo dos menos favorecidos e, principalmente, pela luta em torno da criação de uma consciência coletiva orientada no respeito ao próximo e às leis, menos pela intimidação da sanção penal e mais pela repulsa moral à violação dos valores que o Direito procura resguardar. A prevenção especial do delito precisa ser realizada procurando-se agir sobre a personalidade do delinqüente, pelo seu estudo científico, pela sua cura física, psíquica, moral, pelo ensino, pela sua readaptação social e, quando já de volta à comunidade, pelo amparo e ajuda necessários até sua ambientação e sua reintegração total. Se a sobrevivência ou a supervivência da pena persiste como uma realidade, embora tenha-se humanizado, atenuando-se de muito a sua extrema rigidez, é necessário que a sua cominação, aplicação e execução tenham em vista cada vez mais o homem, considerado como um ser humano, como membro integrante da comunidade, voltando mais os olhos para os seus predicados positivos, para o que possa ele, ainda, oferecer à sociedade, se for ajudado e orientado, do que para o crime cometido. Dessa maneira, ocorre a substituição da idéia de que a pena era um mal pelo mal pela de que a pena é um meio para o bem, um instrumento de regeneração individual e de preservação social. O fim da pena não estaria, no sentido estrito 32 da palavra, em castigar pelo ato passado, como se tratasse de satisfazer um sentimento de vingança individual ou coletiva, mas em procurar um resultado no futuro. A verdadeira função e, conseqüentemente, a legitimidade da pena, no entanto, quando a buscamos dentro dos limites do Estado Democrático de Direito, de modo a atender a sua função social, deve-se configurar tanto como uma medida de prevenção ao crime quanto restauração da ordem jurídica violada, além estar orientada para reeducação e reinserção social. Por fim, cabe registrar, que, por força do nosso direito, devem existir na pena várias características: legalidade 72 , personalidade 73 , proporcionalidade 74 e inderrogabilidade 75 . 1.2.3 Aplicação no Brasil – Lei de Execução Penal O nosso diploma legal consagra um sistema em que a recuperação do condenado deixa de constituir mera justificação teórica do encarceramento para servir de medida da própria pena e das formas de seu cumprimento; ao lado dos institutos tradicionais do livramento condicional e do sursis, traz a lei uma série de situações em que as indicações sobre a ressocialização do indivíduo submetido à execução passam a exercer influência decisiva na quantidade e na forma da sanção punitiva. São previstas ainda hipóteses de remição, pelo trabalho, de parte do tempo da execução, abatendo-se um dia de pena para cada 3 dias efetivamente trabalhado, além de serem admitidas conversões, sempre relacionadas com os resultados da execução. Em razão dessa sistemática, é fácil concluir que o acompanhamento da execução pelo juiz deve ser permanente e intenso, pois são os dados resultantes da observação da conduta prisional que irão permitir a correta adequação da pena à personalidade do sentenciado. 72 Reserva Legal ou Legalidade (C.P. art. 1º): nulla poena sine lege – não há pena sem prévia cominação legal. 73 Personalidade ou Intranscedência (C.F. art. 5º, inc. XLV, 1ª parte): só atinge a pessoa do autor do crime, não pode alcançar seus familiares ou amigos. 33 Por outro lado, tratando-se de uma fase do processo penal em que se realiza a individualização da pena, entende-se que a verificação concreta das situações que autorizam as modificações do título executivo deve resultar não somente de uma decisão jurisdicional (nulla poena sine iudicio), mas sobretudo de um provimento resultante da observância das regras do devido processo legal76 , de acordo com a previsão do art. 5º, inc. LIV, da Constituição da República. Atualmente, tem-se entendido que à idéia central da ressocialização, há de unir-se, necessariamente, o postulado da progressiva humanização e liberação da execução penitenciária, de tal maneira que, asseguradas medidas como as permissões de saída, o trabalho externo e os regimes abertos, tenha maior eficácia. A tendência moderna é a de que a execução da pena deve estar programada de modo a corresponder à idéia de humanizar, além de punir. Neste sentido, a Lei de Execução Penal adotou os postulados da Nova Defesa Social, aliando a esta a prevenção criminal e a humanização da execução da pena e afastando o tratamento reformador, na esteira das mais recentes legislações a respeito da matéria. Em apertada síntese poderíamos dizer que, consoante a doutrina penal, são três os fins que a pena persegue: retributivo (castigo); prevenção geral (desestímulo para todos) e prevenção especial (recuperação do condenado – humanização da pena). 74 Proporcionalidade (C.F. art. 5º, inc. XLVI): deve haver proporcionalidade entre o crime e a pena. 75 Inderrogabilidade: a imposição deve ser certa e a pena deve ser cumprida. 76 Nesse sentido tem sido, inclusive, a firme orientação da jurisprudência: "a execução criminal tem inescondível caráter de processo judicial, que, por isso, como garantia que é do réu, deve observar os princípios constitucionais respectivos; justamente por isso, não é possível o juiz da execução excluir algum benefício prisional, quer indeferindo-o, quer revogando-o, sem observância do devido processo legal, fazendo ouvir previamente o réu e assegurando a ele a assistência técnica indispensável a que se observe o preceito constitucional do contraditório" (Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, Habeas Corpus 132.752/5, relator Juiz Adauto Suannes); "quando chamado a julgar na execução, o juiz exerce função jurisdicional e deve fazê -lo através do devido processo legal, que assegura às partes (Ministério Público e condenado) o direito à prévia audiência, à produção de provas e à ampla defesa" (Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, Agravo em Execução 418.025/5, relator Juiz Dante Busana); ainda: "a execução das penas se desenvolve sob garantia do contraditório e deve obedecer ao princípio do due process of law de tal sorte que dispondo o art. 67 da LEP, sobre a intervenção do MP, no processo e nos incidentes de execução, é nula a decisão que, sem a sua prévia ouvida, julga extinta a pena" (Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, relator Juiz Marrey Neto, "julgados" 96/33-5). 34 1.2.3.1 Direitos dos condenados na execução penal O preso não só tem deveres a cumprir, mas é sujeito de direitos, que devem ser reconhecidos e amparados pelo Estado. O recluso não está fora do direito, pois encontra-se numa relação jurídica em face do Estado, e exceto os direitos perdidos e limitados a sua condenação, sua condição jurídica é igual à das pessoas não condenadas. Os Direitos Humanos do condenado estão previstos em vários documentos internacionais e nas Constituições modernas. Sobre a conservação dos direitos do preso a Constituição Brasileira nada cita em seu contexto, somente o Código Penal, em seu art. 38 que reza: “Art. 38. O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral.” Já o art. 41 da LEP, entre outros, enuncia formalmente outros direitos do condenado: direito à vida (corresponde a obrigação da administração quanto à assistência material, à assistência à saúde, à assistência jurídica e religiosa); direito de propriedade; direito de família (dentro das limitações da prisão); direito de orientar a educação dos filhos (se a sentença não se referiu expressamente a esse direito); direito da presa de manter consigo o filho até a idade pré-escolar; direito à educação e ao trabalho remunerado (juntamente com os benefícios da seguridade social, descanso, pecúlio e recreação); direito à seguridade social (como direito adquirido, que não se suspende com o rompimento da relação de emprego no meio livre); direito ao tratamento reeducativo (direito fundamental, do qual derivam os demais direitos); direito a cela individual; direito a alojamento (com condições sanitárias); direito ao processo disciplinar (para responder a infração disciplinar); direito à qualidade de vida; direito à progressão e afetação do regime apropriado, direito ao estabelecimento apropriado; direito do egresso à assistência pós-penal (que decorre da obrigação do Estado de assistir moral e materialmente o recluso na sua volta ao meio livre); direito de propor ação judicial para defesa de seus direitos por intermédio de Defensoria Pública ou advogado constituído. 35 1.2.3.2 Do tratamento reeducativo na execução penal A educação tem por objetivo formar a pessoa humana do recluso, segundo sua própria vocação, para reinseri- lo na comunidade, no sentido de que haja sua contribuição na realização do bem comum. O tratamento reeducativo é uma educação tardia do recluso, que não a obteve na época oportuna. A esse direito corresponde a obrigação da assistência educativa, prevista no art. 17 da LEP. O legislador não adotou o termo tratamento penitenciário, preferindo a denominação assistência penitenciária que, segundo o art. 10 da LEP, tem por objetivo a reinserção social do preso e prevenção da reincidência. São instrumentos do tratamento penal: assistência, educação, trabalho e disciplina. O tratamento reeducativo é o termo técnico usado no Direito Penitenciário, na Criminologia Clínica e na Legislação Positiva da ONU. Segundo a concepção científica, o condenado é a base do tratamento reeducativo e nele observa-se: sua personalidade, através de exames médico-biológico, psicológico, psiquiátrico; e um estudo social do caso, mediante uma visão interdisciplinar e com a aplicação dos métodos da Criminologia Clínica. É ponto de união entre o Direito Penal e a Criminologia. Com efeito, o tratamento compreende um conjunto de medidas sociológicas, penais, educativas, psicológicas, e métodos científicos que são utilizados numa ação compreendida junto ao delinqüente, com o objetivo de tentar modelar a sua personalidade para preparar a sua reincersão social e prevenir a reincidência. 1.2.3.3 A participação formal do Ministério Público na execução penal A intervenção do Ministério Público é obrigatória 77 , quer seja nos incidentes executórios, quer seja no processo executivo principal, porém cabe a advertência de que uma 77 Ministério Público - Intimação pessoal - O Ministério Público, por suas características jurídicas, como a Defensoria Público, goza de prerrogativa de intimação pessoal (Lei n° 8.625/93). Precedentes jurisprudenciais. (Resp. 116.821-MA, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, recorrente Ministério Público do Estado do Maranhão, DJU I 04.08.97, pág. 34914). 36 vez oportunizado é facultativo a sua manifestação e, mesmo sem ela, poderá agora prosseguir o processo. A sua participação, porém, tem um significado maior do que mero custos legis.78 O Ministério Público galga, constitucionalmente, o patamar de defensor mor da sociedade, resguardando agora não só a defesa da Ordem Jurídica, mas o regime democrático e principalmente os interesses sociais e individuais indisponíveis e, particularmente, os Direitos Humanos. Senão vejamos: “Art. 127 - O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da Ordem Jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.” (Constituição Federal do Brasil - 1988) Assim, sendo a liberdade individual, matéria prima da execução penal, deverá agora o parquet não só zelar pelo cumprimento da Ordem Jurídica, mas também pelos direitos e ressocialização dos presos. Neste liame, difícil tarefa se apresenta, pois quase sempre se estabelece o conflito entre as obrigações dos presos e o descaso com os seus direitos. De qualquer forma, qualquer inclinação por parte do Ministério Público distante da defesa dos direitos dos presos é negar o seu status constitucional de defensor da sociedade, além do que, não se pode olvidar, até para aqueles, no exercício limitado do custos legis, que um dos objetivos formais da execução penal, conforme a lei, é “proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.” (L.E.P. art. 1º), e não restam dúvidas, que sob este enfoque, toda aplicação da sanção na execução penal há de buscar, necessariamente, essa finalidade. 78 Fiscal da Lei - Defensor do Princípio da Legalidade. 37 2 O MINISTÉRIO PÚBLICO HUMANOS E A DEFESA DOS DIREITOS 2.1 Evolução do Ministério Público 2.1.1 No mundo A origem da função punitiva vincula-se diretamente ao poder político estatal. A história da inquisição ou dos Tribunais do Santo Ofício é um exemplo. Precisamente a instituição do Ministério Público surge na França, no século XIV, através do Documento Ordenança de Felipe "o Belo"; os seus representantes eram denominados Procuradores do Rei, com atribuições de defesa dos interesses pessoais e da Coroa, especialmente quanto ao fisco, no recolhimento e cobrança de impostos. Com a Revolução Francesa, em 1789, delineia-se a divisão dos Poderes do Estado, e através da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, nasce um Ministério Público, bem no instante em que os Reis deixam de fazer ou aplicar justiça para os seus interesses, aparecendo o Poder Judiciário e um órgão fiscalizador para a correta aplicação das leis (Ministério Público). Na primeira Constituição francesa, de 1791, surgem os acusadores públicos do Estado. Origem remota do sistema de processamento e julgamento do Direito Romano, através da "quaestio", "acusatio" ou "iudicium publicum", sem olvidarmos do sistema acusatório grego. Antigamente a figura do Promotor Público era vinculada a acusação obrigatória, hoje o representante do Ministério Público, o Promotor de Justiça, possui ampla e irrestrita autonomia e independência funcional, ante o princípio do livre convencimento, podendo deliberar pela condenação, como também, de forma livre, pela absolvição dos acusados de crime. 38 2.1.2 No Brasil 2.1.2.1 Brasil Colônia No Brasil as funções dos representantes do Ministério Público constam desde as Ordenações Filipinas (do Reino Unido de Portugal), sendo que no período Brasilcolônia, eram nominados de Procuradores dos Feitos da Coroa, Fazenda e do Fisco. 2.1.2.2 Brasil Império A primeira Constituição do Brasil, a de 1824, nem mesmo se referia à Instituição, tão só mencionava, em seu artigo 48, de forma vaga, a existência de um Procurador da Coroa e Soberania e Fazenda Nacional, ao qual, incumbia proceder a acusação no juízo dos crimes. Em 1828, pela Lei de 18 de setembro, foi criado o cargo de Promotor de Justiça para ter exercício perante as relações e os diversos juízos das comarcas. Mas o Aviso de 16 de janeiro de 1838, foi, por assim dizer, o verdadeiro ato precursor, no Brasil, da finalidade máxima e característica da Instituição, considerando os Promotores como fiscais da lei. Todavia, a expressão Ministério Público só veio a ser mencionada no Brasil, segundo as pesquisas realizadas por Abdon de Melo e ratificadas por José Henrique Pierangelli, inicialmente, no art. 18 do Regimento das Relações do Império, datado de 2 de maio de l847 79 . A figura do Promotor Público aparece também no Código de Processo Penal (Lei n.º 261/1841). 2.1.2.3 Brasil República Na Constituição de 1891 tocou-se apenas na figura do Procurador-Geral da República, que seria um Ministro do Supremo Tribunal Federal indicado pelo Presidente da República e cujas atribuições se definiram em lei. 79 (cf. Jersey de Brito Nunes, “O Ministério Público, Ontem - Hoje”, p. 03). 39 A Constituição Federal de 1934, efetivamente institucionalizou o Ministério Público, ao inseri- lo no Capítulo VI, do Título I, particularmente, nos artigos 95 a 98, onde, previa-se inclusive, que lei federal organizaria o Ministério Público na União, no Distrito Federal e nos Territórios, e que leis locais organizariam o Ministério Público nos Estados. Cabe relembrar as palavras do Prof. Alcides de Mendonça Lima: “A partir da Carta Magna de 1934, a corporação vem adquirindo posição institucional de relevo no texto e em leis especiais”80 . Observa-se então, que nessa Carta Política se previu apenas a organização do Ministério Público na União, no Distrito Federal e nos Territórios, tendo ficado aos Estados a faculdade de legisla rem livremente sobre o assunto. Daí a diferenciação fundamental e a falta de unidade reinantes nas diversas leis de organização judiciária do país, na vigência daquela Constituição, relativamente à Instituição do Ministério Público, não só quanto ao provimento dos respectivos cargos, como quanto à natureza das funções, amplitude de atribuições, garantias e deveres. Note-se, en passant, que na época, por se entender que o Ministério Público estava subordinado ao Judiciário, as disposições legais atinentes à Instituição vinham nos Códigos de Organização Judiciária, e não em lei especial. Tanto que, atentando para o fato, o 1º Congresso do Ministério Público, realizado em São Paulo, em 1942, recomendou a elaboração de leis de regência do Ministério Público, separadamente das leis de organização judiciária. Quanto ao provimento, em muitos Estados as nomeações eram feitas livremente, pelo governo, não obstante a exigência constitucional de concurso, para o Ministério Público Federal. Quanto à natureza das funções, os representantes do Ministério Público eram considerados como órgãos do Poder Judiciário, meros auxiliares da administração da Justiça, ou ainda como agentes do Poder Executivo. 80 “Atividade do Ministério Público no Processo Civil”, Revista de Processo, 10/64. 40 Na Carta outorgada, de 1937, desaparece o Ministério Público, mandando o art. 99 que para Procurador-Geral recaia a escolha “em pessoa que reúna os requisitos exigidos para Ministro do Supremo Tribunal Federal”. Essa Carta sequer se dignou tomar conhecimento do importante órgão defensor da sociedade, senão de maneira genérica, sem fixar- lhe expressamente as bases de sua estrutura institucional. A Constituição de 1946 restituiu a dignidade da Instituição dispensando- lhe um título autônomo, sem dependência aos poderes da República e com estrutura federativa (Ministério Público estadual e Ministério Público federal). Seus membros ganham estabilidade (art. 127), ingresso só por concurso (art. 127) e promoção na carreira (art. 128). Nas constituições posteriores, o Ministério Público ficou agregado, aqui e acolá, como um penduricalho, do Judiciário (1967) e do Executivo (1969), de modo geral, sem independência funcional, financeira e administrativa, com vigor apenas para manter a engrenagem do sistema funcionando, inane para alçar vôos mais edificantes. No dia 14 de dezembro de l981, foi sancionada a Lei Complementar Federal nº 40/81, dispondo em seu art. 61 que essa data marcaria o dia dedicado ao Ministério Público. A escolha de tal dia - mantido pela atual Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, em seu art. 82 -, prende-se ao fato de, naquele momento, ter ingressado, em nosso ordenamento jurídico, o primeiro diploma básico, definindo de forma moderna o perfil institucional do nosso Ministério Público, assemelhando-o, à época, guardadas as devidas proporções, ao porte dos que foram instituídos em nações civilizadas, servindo de exemplo, a Alemanha, a França, a Itália e a Suécia. Campos Salles, apelidado por César Salgado, como o Promotor das Américas, é o patrono do Ministério Público do Brasil. De fato, as primeiras leis precursoras da importância funcional da entidade deve-se àquele estadista, que na exposição do Decreto 848, de 11.10.1890, quando Ministro da Justiça no Governo Provisório da República, já afirmava ser "O Ministério Público instituição necessária em toda organização democrática." Ao contrário do que alguns pensam, a história do Ministério Público sempre foi construída através de embates. Graças ao empenho de, entre outros, Ada Grinover, Cândido Rangel Dinamarco, Barbosa Moreira, Hugo Mazzilli, Édis Milaré e Nelson Nery, a 41 instituição conquistou tal importância jurídica. Sem dúvida, adequado para reprimir ou impedir os danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, ao patrimônio público e cultural, bem assim para agir em defesa dos deficientes físicos, dos indígenas, das crianças e adolescentes e de outros interesses difusos, coletivos e indisponíveis do povo. O Prof. Jersey de Brito Nunes, em interessante trabalho histórico sobre o Ministério Público, focalizando a evolução institucional do Ministério Público, diz o seguinte: “Pelo que consta das Constituições sobre as quais tecemos comentários, o Ministério Público nunca foi institucionalizado no Brasil. Na Constituição do Império ficou atrelado ao Poder Legislativo (Senado); na de 1891, ao Judiciário; na de 1934, aos órgãos de cooperação nas atividades governamentais (Executivo); e, nas de 1946 e 1967, também ao Poder Executivo. Adquiriu foro de instituição há bem pouco tempo com a promulgação da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, pela qual desvinculou-se das amarras dos Poderes do Estado, situando-se em capítulo próprio (Capítulo IV – Das Funções Essenciais à Justiça)”81 . A respeito da atuação cotidiana do Parquet, vale lembrar, hoje, as palavras de Pierro Calamandrei: "Entre todos os cargos judiciários, o mais difícil, segundo me parece, é do Ministério Público. Este, como sustentáculo da acusação, devia ser tão parcial como um advogado; como guarda inflexível da lei, devia ser tão imparcial como o juiz." Ou então, as proféticas palavras de Prudente de Morais: "O Ministério Público não recebe ordens do Governo, não presta obediência aos juízes, pois age com autonomia em nome da Sociedade, da Lei e da Justiça." Evolutivamente, o Ministério Público inverteu o seu raio de ação. Outrora, era o procurador do rei. Modernamente, é o defensor dos valores fundamentais da sociedade e ouvidor do povo. Neste contexto, o Ministério Público tem por horizonte a edificação de um Estado social de direito, capaz de garantir a qualquer homem, como categoria universal e eterna, a preservação das condições básicas de subsistência, dando- lhe a oportunidade de respirar o ar da vida com o natural status de dignidade. A Constituição de l988 estendeu ao Ministério Público semelhantes garantias e prerrogativas que foram conferidas aos demais Poderes, dotando-o de 42 independência, de parcela da soberania estatal, objetivando que o mesmo possa, ao lado de suas atividades rotineiras, ser o permanente defensor da ordem jurídica, do regime democrático, da sociedade, da natureza e dos direitos essenciais do povo. Como posto na Lei Fundamental, o poder exercido pelo Ministério Público é de natureza sui generis, determinado pela vontade popular, através de seu Poder Constituinte, representando um avanço na estrutura política do Estado que, além dos poderes tradicionais deferidos aos seus órgãos fundamentais, reconhece um outro Poder, para ser o defensor dos interesses essenciais da Nação, os quais não podem ser contrapostos por nenhuma pessoa, tampouco por seus governantes, em seus respectivos afazeres, ou por qualquer órgão vinculado direta ou indiretamente ao sistema de atuação do Estado. Noutras palavras, o Ministério Público somente se afigura como defensor do Estado, quando a sua missão está em consonância com o sentimento da sociedade e as jus tas aspirações populares. O povo espera, portanto, que o Ministério Público, quer atuando no âmbito federal ou estadual, por intermédio de todos os seus membros, valendo-se do seu significativo Poder Social, venha ter uma participação cada vez mais ativa frente às questões que o País necessita solucionar, primando pela efetividade da Constituição e das leis dela decorrentes, zelando pela condução da coisa pública e afirmando-se como um forte instrumento de transformação social e de aprofundamento da democracia, possibilitando a participação, o trabalho, a igualdade de condições e a liberdade política e econômica para todos os brasileiros. 2.2 O Ministério Público garantidor dos Direitos Humanos O legislador constituinte ao colocar num mesmo plano de garantias o Poder Judiciário e o Ministério Público, irmanando-os na mesma independência, na mesma liberdade de ação, teve em mira furtá- los aos caprichos do Executivo ou do Legislativo, para que assim, pudessem ser realmente defensores da lei e da sociedade. E não para que o Ministério Público fosse órgão subserviente e coadjuvante do Judiciário, como alguns falsos intérpretes e veranistas do Direito sugeriram. 81 “O Ministério Público Ontem - Hoje”, p. 24-25 43 Mas, toda essa infrutífera discussão já faz parte do passado, pois, hoje, após o clamor público contra a criminalidade oficiosa, contra a violência e o despreparo do aparelho policial, contra a impotência do Ministério Público, contra o emperramento da Justiça e contra a falência do sistema penitenciário brasileiro, a Constituição Federal de 1988 criou (ou diríamos melhor, deu azo a que a existência se compatibilizasse com a essência) um verdadeiro e vigoroso Ministério Público, assim conceituado: “Art. 127, caput - O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” No dispositivo acima transcrito está a destinação constitucional do MP, tornando-o verdadeira instituição permanente essencial à função jurisdicional, conferindo- lhe, ainda, a incumbência de fiscalizar o cumprimento da Constituição e das leis, bem como a defesa da própria Democracia e também dos interesses sociais e individuais indisponíveis, perante os poderes públicos. Acima de tudo, sua exis tência justifica-se pela cerberesca fiscalização no cumprimento fiel da lei e da Constituição, lábaro de um Estado Democrático de Direito. A tal respeito, lecionou o Prof. Jersey de Brito Nunes, em linhas memoráveis do nosso repertório jurídico, verbis: “A fiscalização do cumprimento da norma legal constitui sempre e em todas as épocas, a razão de ser do Ministério Público... vez que fiscalizando o cumprimento da Constituição e das leis, o Ministério Público automaticamente estava defendendo os interesses da sociedade, defendendo a ordem jurídica, hoje atributo na atual Constituição” 82 . Em complemento, seja- nos permitido acrescentar, que como fiscal da lei, o MP tem as vestes de parte em relação ao que faz, e se avizinha do juiz, no tocante ao motivo de agir. Visto desse prisma, as atribuições ministeriais ao mesmo tempo em que são dignas, são também árduas, pois materializam- se na eterna conciliação entre a parcialidade da parte e a imparcialidade do juiz (veja-se que o agente ministerial está sujeito aos mesmos motivos de suspeição e de impedimento do juiz, cf. art. 258, in fine, do CPP e art. 138, I, do CPC). E por dever de ofício, o parquet tem de incorporar essa dupla face, refugiando-se sempre no imperativo da lei e imposições das consciências de seus agentes, utilizando esses moldes para refazer a realidade social. 82 (ob. cit., p. 69-70) 44 Na fiscalização da lei e, portanto, da própria Constituição, é relevantíssima a missão do Ministério Público, não só em benefício da Justiça, como, mormente, da Sociedade. Mais relevante talvez do que a da Magistratura, porque o juiz, face ao princípio da inércia da jurisdição, representa uma força estática, declaratória do direito e reveladora da justiça, ao passo que o Ministério Público representa uma força dinâmica, sempre em ação, que promove essa declaração de direito, essa revelação da justiça, pondo em andamento a máquina processual, investigando, fiscalizando, promovendo responsabilidades que podem atingir a quaisquer dos três poderes: executivo, judiciário ou legislativo 83 . A relevância superior da existência e do ofício desempenhado pelo Ministério Público é, por outro lado, também, facilmente aferível, pois enquanto o Legislativo e o Executivo têm livre iniciativa para legislar e administrar, o Judiciário não tem iniciativa, motu proprio, para julgar (CF, art. 5º, XXXV). Assim, seria ineficaz a sua atuação, se não houvesse um órgão representativo dos interesses sociais, para promover a aplicação da lei nos casos em que se faz necessário. Esse órgão é o Ministério Público. Nas sociedades civilizadas não há poder absoluto, independência completa, ou liberdade plena. Em busca da harmonia organiza-se constitucionalmente um sistema de pesos e contrapesos, onde cada movimento de um dos poderes provoca contramovimentos dos demais, que assim se delimitam reciprocamente. A falta do Ministério Público implicaria: ou na necessidade da intervenção direta do Executivo perante o Poder Judiciário, o que significaria subordinação de um a outro, com a quebra da harmonia e independência entre as funções; ou na atribuição de iniciativa ao Poder Judiciário, com violação dos mesmos preceitos, pois a sua própria natureza rejeita qualquer iniciativa, a não ser com o risco de invadir atribuições alheias; ou finalmente, na destruição da ordem social, pela inação do Poder Judiciário, à falta de um órgão provocador. Dentro da organização constitucional, portanto, o Ministério Público é essencial à vida do regime. Assim, é forçoso concluir que, constitucional e juridicamente, a existência do Ministério Público é ind ispensável ao funcionamento das instituições. Sem ele, a sociedade fica desprovida dos meios de promover a aplicação da lei, em sua própria defesa. 83 (cf. art. 129, II, da CF/88). 45 São tais balizas que nos levam a crer que o Ministério Público deve ater-se e concentrar seus esforços sobre as deficiências do nosso sistema, que retrata uma carência de controle sobre quem exerce o poder, e de falta de mecanismos de fiscalização, de equilíbrio e ajuste, que o tornem mais justo em suas variegadas facetas político, social e econômico. John Locke ao trabalhar sobre as idéias de vontade e liberdade, propôs um conceito de poder contido na seguinte afirmação “poder, vontade e liberdade constituem um todo coerente”, mas, ao projetá-lo no contexto político, foi ele o primeiro a defender sua limitação, seu controle e o direito de resistência. Não há legalidade, diz84 Celso Antônio Bandeira de Melo, sem sua garantia. E não há garantia de legalidade sem um órgão imparcial, isento, sobranceiro. E não há órgão imparcial, isento, sobranceiro, sem independência real e efetiva. À falta disto esboroa-se todo o projeto de contenção do Poder; em uma palavra: frustra-se, liminarmente, a concepção de Estado de Direito Tem-se como conatural do Estado Democrático de Direito que é inconcebível a existência de poder estatal sem controle, ou mesmo que um deles, dentro da clássica estrutura tripartida, seja auto-suficiente na verificação da regularidade de sua atuação. Constata-se, desta forma, a necessidade de controle, inerente a toda sociedade razoavelmente organizada e policiada, e, por isso foi que a Carta Magna de 1988, no ímpeto de exorcizar os fantasmas de um passado autoritário, cinzelou energicamente a estrutura do Ministério Público, elevando-o à categoria de uma Instituição firme e com atribuições bem delineadas, sem paralelo em qualquer outro país. A independência funcional dos Poderes da República, aí incluído o Ministério Público, não significa que os tradicionais vínculos entre eles possam desaparecer. Pelo contrário, é a interação e a harmônica operatividade dessas Instituições que possibilitam a existência una da soberania Estatal, por conseguinte, como o Executivo legisla, julga, aciona e administra o Estado, o Legislativo, o Judiciário e o Ministério Público, também, de tal forma, se comportam nas suas funções interna corporis, pois em assim não acontecendo, haveria uma paralisação e engessamento do Estado que não cumpriria suas funções 46 administrativa, legislativa, judicial e actio fiscalizatória nos termos propostos na Constituição Federal. Dentre as relevantíssimas funções de cada um dos Poderes, o seu exercício externo deve respeitar os limites constitucionais expressos. Como procederia o Judiciário, com suas limitações impostas pelo princípio do ne procedat ex officio, para processar um criminoso se não fosse ativado pelo Ministério Público? Conseqüentemente, ambos dependem do Executivo para a efetivação do cumprimento da pena, caso haja condenação, necessitando todos, Executivo, Judiciário e Ministério Público, da cominação de ilicitude do fato pelo Legislativo para a existência da figura típica. Por isso, verifica-se que o Constituinte de 1988 alçou o Ministério Público à sua devida posição, entre as potestades da República, garantindo à sociedade um dos mais representativos órgãos de defesa da democracia, da ordem jurídica e da cidadania. A Constituição elencou como princípios fundamentais a dignidade da pessoa humana e a busca da igualdade substancial, extraída do objetivo fundamental de erradicação da pobreza e marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, inciso III). Elencou, entre os direitos e garantias fundamentais, diversos direitos individuais e coletivos no art. 5º, direitos sociais no art. 6º e direitos políticos no art. 14. Foram expressamente garantidos, em diversos dispositivos, os direitos à saúde e à educação, dentre outros, que a todos beneficiam, e por esta razão denominados difusos e coletivos. Priorizou a tutela da família, da criança, do adolescente e do idoso. Estabeleceu, enfim, metas a serem seguidas por qualquer governante, independentemente da ideologia política a qual se filie. A evolução foi tanta que, embora já decorridos mais de 10 anos da promulgação da Constituição, o parquet ainda não conseguiu exercer com plenitude as suas notáveis e inúmeras atribuições. Seja, por deficiência de suporte material ou, pela falta de consciência do real papel do Ministério Público brasileiro perante a sociedade e o estabelecimento de prioridades institucionais em sua atuação. 84 “Sobre a Magistratura e o Ministério Público no Estado de Direito”, RDP 68/144 47 Porém, conforme expõe o professor Gustavo Tepedino 85 , o Ministério Público permanece com a tarefa, nada simples, de unificar um sistema constitucional fragmentado, no qual existem duas Constituições, uma, que vem sendo aplicada, disciplinadora de princípios de ordem e manutenção do domínio econômico e estruturação do Estado, e outra, transformada numa espécie de carta de intenções, que assegura os direitos indispensáveis à cidadania e à dignidade do homem, tendo como princípio fundamental a erradicação da pobreza e diminuição das desigualdades sociais, com a promoção da reforma agrária, saúde pública, educação básica, levada ao esquecimento ou à malversação. Na definição de Chiovenda "o Ministério Público vela pela observância das leis, pela pronta e regular administração da justiça, pela tutela dos direitos do Estado, dos corpos morais e das pessoas destituídas de plena capacidade jurídica...tem, da mesma forma, ação direta para fazer executar e observar as leis de ordem pública e que interessem aos direitos do Estado, sempre que tal ação não se atribui a outros agentes públicos."86 Para Liebman "o Ministério Público é, ele, próprio, um órgão do Estado, ao qual cabe tutelar um específico interesse público (administrativo latu sensu), que tem por objeto a atuação da lei por parte dos órgãos jurisdicionais nas áreas e nos casos em que as normas jurídicas são ditadas por razões de utilidade geral ou social; trata-se de casos em que a concreta observância da lei é necessária à segurança e ao bem-estar da sociedade, não podendo a tarefa de provocar a sua aplicação pelos juízes ser deixada à iniciativa dos particulares. O Ministério Público pode ser definido, então, como o órgão instituído para promover a atuação jurisdicional das normas de ordem pública."87 De qualquer forma, ainda com influência italiana, o Ministério Público brasileiro tem características peculiares próprias, inerentes à sociedade na qual encontra-se inserido, razão pela qual sua real destinação deve ser interpretada consoante os dispositivos constitucionais. Embora o Ministério Público seja essencial à função jurisdicional do Estado e lhe incumba a defesa da ordem jurídica, não lhe compete intervir em todos os feitos 85 Temas de Direito Civil, ed. Renovar, 1999, pag. 301. 86 Chiovenda, Instituições de direito precessual civil, v. 2, p. 123-4. 87 Liebman, Manual de direito processual civil, v. 1, p. 135. 48 submetidos ao Poder Judiciário. A Defensoria Pública também foi considerada essencial à função jurisdicional e nem por isso se torna indispensável a presença de um Defensor Público para que o Estado exercesse sua função jurisdicional. Cada instituição é essencial naquilo que lhe incumbiu a Constituição 88 . Como expõe Hugo Nigro Mazzili89 , a expressão "essencial à função jurisdicional do Estado" diz menos do que deveria, visto que o Ministério Público detém notável atribuição extrajudicial, como paradoxamente, diz mais do que deveria, pois o parquet não oficia em todos os feitos submetidos à prestação jurisdicional. É necessário que haja algum interesse indisponível, difuso ou coletivo (neste conceito incluída a definição de individual homogêneo criada pelo legislador infraconstitucional) para que haja a atuação do parquet nas causas submetidas ao Poder Judiciário. Assim, é obrigatória a intervenção do Ministério Público nos feitos submetidos às Varas de Família, porque é do interesse da sociedade a tutela da família e da criança, às Varas de Infância e Juventude, nas causas em que há interesses de incapazes, nas ações civis públicas, nas ações populares, nos mandados de segurança, nas causas em que haja manifesta possibilidade de lesão ao patrimônio público, como nas desapropriações e ações de indenização em face do Estado, e, particularmente, na Execução Penal, face a presença do interesse social, individual, inalienável, imprescritível, irrenunciável no que tange a liberdade, dignidade e integridade humana, entre outros. Nesse sentido, cumpre transcrever a lição de Hugo Nigro Mazzili. 90 "Não há confundir o interesse do bem geral (interesse público primário) com o interesse da Administração (interesse público secundário), pois este último é apenas o modo como os órgãos governamentais vêem o interesse público”. É verdade que nem sempre coincidem o interesse primário e o secundário. E é pelo primeiro deles que deve sempre zelar o Ministério Público, só defendendo o segundo quando efetivamente coincida com o primeiro. Nesse sentido, o interesse público primário 88 Heloisa Helena Barboza, em artigo publicado na Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro nº 2, pág. 49 - "O Poder Discricionário do Ministério Público na Avaliação dos Interesses Indisponíveis. 89 Hugo Nigro Mazzili, Regime Jurídico do Ministério Público, 3ª ed, Ed. Saraiva, pág. 73. 49 (bem geral) pode ser identificado com o interesse social, o interesse da sociedade ou da coletividade, e mesmo com os mais autênticos interesses difusos (o exemplo, por excelência, do meio ambiente em geral). “O Ministério Público deve, dessa forma, estar atento à sua missão constitucional de efetivo representante da sociedade, e não reduzir-se à mero auxiliar do Poder Judiciário. A ausência de sua atuação nas áreas fundamentais acarretará o seu descrédito. E é nesse sentido que se afirma que todo Promotor de Justiça atuando como fiscal da lei tem atribuição concorrente, por força da Constituição, de zelar pelos serviços de relevância pública e qualquer outro interesse difuso e coletivo cuja lesão tome conhecimento. Pode, dessa forma, tomar a iniciativa de expedir notificações extrajudiciais, instaurar procedimentos administrativos, propor ações fundadas na lei de improbidade administrativa (Lei 8.429), bem como ajuizar ações civis públicas, independente da existência de equipe especializada.” O Promotor de Justiça não é e nem pode ser inerte. Não aguarda a manifestação das partes, a vinda do inquérito ou a abertura de vista do processo pelo juiz para manifestar-se. Deve, ao contrário, buscar os meios de tutela mais adequados e avocar a si a iniciativa da defesa da sociedade, promovendo a tutela dos valores eleitos como prioritários pelo ordenamento constitucional, precisa tomar uma atitude mais firme com relação ao respeito aos Direitos Humanos. 2.3 Os Direitos Humanos contemporâneos e a sua efetividade No século XX, o direito natural, que possuía origem metafísica ou racionalista, adquire nova roupagem e, didaticamente, alguns doutrinadores distinguem três gerações de Direitos Humanos, visando sempre afirmar novo regime e novas bandeiras ideológicas, as quais delimitam como: a) primeira geração, os direitos civis e políticos, com o valor liberdade, na luta da burguesia para a instauração dos Direitos do Homem, exemplificados pelos direitos de ir e vir, de pensamento, de locomoção, de reunião, voto, filiação partidária, crença e os demais; b) segunda geração, os direitos econômicos, sociais e culturais, com o valor igualdade, resultado das conquistas necessárias para a implementação dos valores de primeira geração e c) terceira geração, com o valor solidariedade, visando a implementação dos direitos dos povos ou direitos coletivos, que surgiu no período do pósguerra do século XX e exemplificam pelos direitos ao meio ambiente sadio, à paz, à independência, ao patrimônio genético intocável, ao desenvolvimento, autonomia e cultura 90 in Regime Jurídico do Ministério Público, Ed. Saraiva, 3ª Ed., pág. 73). 50 dos povos, à informação e outros que surgem. Para Michel Miaile o direito natural identificase com o direito natural de combate, o que explica, nas palavras de Max Weber como sendo: "a forma específica da legitimidade de uma ordem criada por via revolucionária. A invocação de direito natural foi sempre a forma através da qual as classe se revoltaram contra a ordem estabelecida, conferiram legitimidade à sua reivindicação de criar direito, na medida em que se não apoiassem em revelações e normas positivas religiosas"91 A construção moderna dos Direitos Humanos, propiciada pela cumulação de tratados internacionais e pelo aprimoramento dos mecanismos de monitoramento e promoção, implicou o surgimento de características próprias que iluminam sua compreensão, direcionando a interpretação de suas normas no sentido de sua máxima eficácia. Num primeiro momento, valorizou-se o sujeito individual de direito, dentro de um positivismo jurídico que busca observar e atender a todas as demandas por direitos de uma maioria, encontrando no Poder Judiciário o mediador da conflituosidade social. A noção de que os direitos são inerentes a cada pessoa, pelo simples fato de sua existência, decorre do fundamento jusnaturalista racional adotado pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos. Assim é que o Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, logo no primeiro parágrafo, reconhece que a dignidade inerente a todos os membros da família humana e seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz do mundo. Esta noção, leva-nos a crença de que o sistema normativo dos Direitos Humanos renova-se sempre que a noção de dignidade inerente a todos os membros da família humana mudar, uma vez que a elaboração de normas tem em mente consolidar a dignidade fundamental do ser humano que é fonte dos seus direitos positivados. Conseqüentemente, a formulação positivada destes Direitos Humanos deve ser mutável, à medida em que os conceitos de dignidade dos seres humanos individuais ou coletivos altera-se com o passar do tempo, sempre dentro do contexto sócio-cultural e econômico ao qual está inserido. Assim, ainda que os tratados internacionais tenham conteúdo obrigatório, gerando direitos aos seus beneficiários , nada impede uma nova formulação, seja 51 pela sua inclusão em algum texto legal futuro, seja por via da interpretação das expressões empregadas. Vê-se então o surgimento de novos direitos, cuja titularidade extrapola os limites individuais, para alcançar grupos determinados ou mesmo a humanidade toda. A concepção universal dos Direitos Humanos decorre da idéia de inerência, a significar que estes direitos, fundados em atributos inerentes aos seres humanos, pertencem a todos os membros da espécie humana, sem qualquer distinção ou posição social que ocupam. No dizer de José Geraldo de Souza Júnior, a Declaração Universal “foi o esforço de generalização dos Direitos Humanos por impulso de fatores supranacionais e universalizantes: a liberdade, a justiça e a paz” 92 . Passados trinta anos, quando da Segunda Conferência Internacional dos Direitos Humanos (Viena, 1993), prevaleceu a concepção segundo a qual, a natureza universal desses direitos e liberdades não pode ser questionada. No mesmo sentido, o item quinto da Declaração originada daquela conferência dispõe que as peculiaridades regionais e nacionais, os contextos histórico, cultural e religioso, ainda que importantes, não servem de obstáculo à obrigação estatal de promover e proteger todos os Direitos Humanos e liberdades fundamentais. Esta universalização, entretanto, deve ser limitada a determinados campos, como observa Norberto Bobbio, para quem a universalidade não se aplicaria aos direitos sociais e nem mesmo aos direitos políticos, sendo válida apenas no caso das liberdades negativas. Realmente, ao se retornar à formulação da universalidade contida na Decla ração Universal dos Direitos Humanos, que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, verifica-se que o modelo com o qual se trabalha é o do liberalismo, para o qual o sentido da igualdade consistia na uniforme abstenção do Estado diante da esfera 91 in Introdução Crítica ao Direito. Lisboa: Editora Estampa, 1.994, p. 274. 92 Jornal da UnB, julho/98, pag 6/7 52 individual de todo e cada ser humano, aqui desprovido de um sentido concreto da existência, tido como mera formulação racional genérica e abstrata. Segundo Bobbio, no dizer de José Geraldo: “não se trata, portanto, apenas de um ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, mas de um programa para assegurar por medidas progressivas de ordem nacional e internacional seu reconhecimento e aplicação efetivos”93 e para que se obtenha esta efetividade, é necessário que os meios voltados à sua obtenção estejam adequados às realidades sociais, culturais e econômicas das sociedades que buscam a efetivação do seu exercício, ou seja, a universalização, antes de ser fórmula pronta a ser aplicada, é objetivo geral maior que deve adequa r-se à realidade local. A universalidade dos direitos sociais pode ser entendida no contexto mais amplo da dignidade humana, a que toda pessoa tem direito. Desta forma, ainda que aqueles direitos digam respeito somente a certos grupos sociais, isso se deve ao fato de se almejar a garantia efetiva, e para todas as pessoas, de um nível de vida condizente com aquele princípio moral universal. Em conseqüência, “a promoção dos direitos econômicos, sociais e culturais, com a adoção de políticas voltadas a determinados setores da sociedade – atualmente denominados “grupos vulneráveis” - é condição necessária para o respeito pleno da universalidade dos Direitos Humanos, os quais não se realizam integralmente sem a adoção das medidas previstas nos documentos que compõe o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Não há mais como pensar em respeito aos Direitos Humanos sem que o Estado tome as providências que lhe compete, em vista a assegurar a elevação das condições de vida ao que se convencionou chamar de padrão mínimo de dignidade humana”. A Declaração e Programa de Ação adotada pela Conferência Mundial sobre Direitos Humanos (Viena,1993), em seu item quinto afirma que: “Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados”. A indivisibilidade, então, está ligada ao objetivo maior do sistema internacional de Direitos Humanos, a promoção e garantia da dignidade do ser humano. Ao se afirmar que os direitos humanos são indivisíveis, significa dizer que não existe meio-termo; só há vida verdadeiramente digna se todos os direitos previstos no Direito Internacional dos 53 Direitos Humanos estiverem sendo respeitados, sejam civis e políticos, sejam econômicos, sociais e culturais. Trata-se de uma característica do conjunto das normas e não de cada direito individualmente considerado. Como diz Dalmo de Abreu Dallari: “Não existe respeito à pessoa humana e ao direito de ser pessoa se não for respeitada, em todos os momentos, em todos os lugares e em todas as situações a integridade física, psíquica e moral da pessoa. E não há qualquer justificativa para que umas pessoas sejam mais respeitadas do que as outras”.94 Há, portanto, uma interdependência entre os direitos, uma vez que não se pode falar em eficácia plena de um direito sem a realização simultânea de todos os outros, visto que o exercício de um direito específico pode depender do respeito e promoção de diversos outros, mesmo que de classes distintas. Tomamos como exemplo o direito de moradia. Para sua concretização no mundo contemporâneo, não basta a atividade estatal ou sua inércia, uma vez que as necessidades objetivas dos seres humanos implicam em se construírem habitações nos grandes centros urbanos, para os desabrigados, bem como distribuir glebas de terra nos meios rurais, permitindo que a população possa exercer seu direito de ter uma habitação digna. Além do Estado criar as condições para que as pessoas gozem este direito, faz-se necessário que as pessoas disponham de meios materiais que as permitam exercer seus direitos através de ações estatais voltadas à realização dos direitos sociais. Assim, as “famílias de Direitos Humanos” anteriormente aludidas destoamse da classe social ou grupo social dos sem terra, os quais figuram como grupos não isolados com interesses comuns. José Afonso da Silva 95 avança sobre tal conceito, relacionando-o ao modelo democrático instituído pela Constituição Federal de 1988. Assim, os direitos e garantias previstos no artigo 5º da Carta Política – de natureza preponderantemente civil e política “estão contaminados de dimensão social”, o que opera a transição “de uma democracia de conteúdo basicamente político- formal, para a democracia de conteúdo social, se não de 93 Rolim, Marcos, Jornal SAJU, julho/97 - UFRGS 94 Viver em sociedade. São Paulo: 1995. P. 13 54 tendência socializante. Quanto mais precisos e eficazes se tornem os direitos econô micos, sociais e culturais, mais se inclina do liberalismo para o socialismo”. E acrescenta: “O certo é que a Constituição assumiu, na sua essência, a doutrina segundo a qual há de verificar-se a integração harmônica entre todas as categorias dos direitos fundamentais do homem sob o influxo precisamente dos direitos sociais, que não poderiam ser tidos como categoria convergente”. Novamente fica evidente que os direitos sociais, voltados à criação de condições mais igualitárias de vida, são condição de verdadeira eficácia das liberdades clássicas e vice- versa. Daí porque Paulo Bonavides associa tais direitos ao que chama de globalização dos direitos fundamentais, que se contrapõe à globalização política neoliberal. Diz o autor: “A globalização política na esfera da normatividade jurídica introduz os direitos de quarta geração, que aliás, correspondem à derradeira fase de institucionalização do Estado social. São direitos de quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralis mo. Deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência.” 96 Além da universalidade e interdependência, os Direitos Humano s contemporâneos apresentam outra característica: a transnacionalidade, bem resumida por Dalmo Dallari, para quem “Os direitos fundamentais da pessoa humana são reconhecidos e protegidos em todos os Estados, embora existam algumas variações quanto à enumeração desses direitos, bem como quanto à forma de protegê- los. Esses direitos não dependem da nacionalidade ou cidadania, sendo assegurados a qualquer pessoa”. 97 Assim, o homem é detentor dos Direitos Humanos onde quer que esteja. Tal assertiva é respeitada até mesmo pelos países que vêem o Direito emanado do Estado e não como a corrente Jusnaturalista o preceituar: o direito é emanado do homem, independente de qualquer circunstância externa ao seu ser. 95 Curso de Direito Constitucional Positivo, 12 ed, São Paulo: Malheiros,1996. P. 182 96 Curso de Direito Constitucional, 6 ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 524 97 O que são direitos da pessoa. São Paulo: Abril Cultural/Brasiliense p.22 55 Porém, apesar de se forçar a tendência para o respeito aos Direitos Humanos, vários “acidentes” e desrespeitos são cometidos, chacina do Morro do Vidigal, o massacre aos menores na Candelária, o efeito estufa provocado pelo desmatamento etc. A grande questão que permeia as discussões a respeito de Direitos Humanos é que, mesmo sendo asseguradas em Declarações de Direitos e Constituições dos Estados e embora tendo inúmeras organizações de defesa desses direitos, estes não são respeitados, sendo vários os motivos pelos quais não se consegue a sua efetivação. É o campo onde aparece a maior defasagem entre a norma e sua efetiva aplicação. Grande parte das vezes sua concretude é negada pelo próprio poder público, o qual é ao mesmo tempo protetor e adversário dos Direitos Humanos e o responsável direto pela sua possível efetividade, uma vez que os direitos humanos de liberdade normalmente buscam limitar o poder do Estado ou, então, os direitos sociais buscam a ampliação desse poder ou, ainda, devido à falta de regulamentação por leis complementares para dar vigência efetiva a direitos formais. Neste sentido afirma José Paulo Bisol que: “... quanto menos constitucional é a constituição tanto mais o Estado se inclina para violar a dignidade humana, sobretudo ali onde estão os afetados desconstituídos da condição de constituintes, ali onde estão os que sobram, os que são excesso quantitativo, os que são desnecessários, os doentes, as crianças, os adolescentes, as mulheres, os loucos, os velhos, os fracos, e, por motivos ainda mais óbvios, os que erraram e por isso foram condenados”98 . E, pensando assim, podemos dizer que não mais se trata de fundamentar os Direitos Humanos, mas de protegê- los. Para Norberto Bobbio, trata-se de saber "qual é o modo mais seguro para garanti- los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados"99 . Embora se afirme que os Direitos Humanos devam ter a mesma força normativa que a Constituição, ou seja, um valor superior ao da lei ordinária, isto não acontece, porque “... os direitos humanos são pervertidos no exato momento em que são objeto de tratamento jurídico: afinal, concebidos historicamente como um mecanismo de proteção dos cidadãos livres contra o arbítrio dos governantes absolutistas e contra os abusos do Estado, sob a forma de censura e tortura, os direitos humanos são 98 RIO GRANDE DO SUL. Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Relatório Azul: Garantias e Violações dos Direitos Humanos no RS. 1995. 9 p. 99 BOBBIO. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro : Campus, 1992, 25 p. 56 esvaziados na medida em que é o próprio Estado que os regulamenta. Dito de outro modo, como os direitos humanos são inseparáveis de sua garantia, e como essas garantias são limitações normativas impostas pelo poder constituinte ao poder público, na realidade eles somente têm condições de funcionar através do próprio poder público.”100 Na ótica processual, os Direitos Humanos elencados no texto constitucional dependem de uma prévia regulamentação, por meio de leis ordinárias, pelos próprios organismos estatais que as declarações de direitos visam controlar no exercício de suas funções em matéria de políticas públicas. Ou seja, na prática corre-se sérios riscos de não se conseguir sua aplicação por falta de meios legais que conduzam à sua efetividade. Por outro lado, corre-se o risco de uma desintegração da sociedade, ocasionada pela inefetividade constitucional, reflexo de um sentimento de vitimização e percepção da impunidade que criam condições de anomia, ou seja, desrespeito generalizado às normas de vida em comum, de modo que fica comprometida a eficácia das leis, sua expressão moral e a legitimidade do poder institucionalizado, que é representado pela autoridade legal. Os Direitos Humanos não podem ficar restritos à sua validade formal, considerando sua efetividade, bem como a análise do conhecimento e das imagens formadas pelos sujeitos destinatários das normas. Como nos lembra José Eduardo Faria, através da construção do ‘sentimento de civilidade’, da integração dos indivíduos em uma ‘comunidade’ e da extensão da cidadania a todos os seus integrantes, pode-se efetivar e universalizar os direitos humanos. “Lutar pela universalização e pela efetivação dos direitos humanos significa, assim, formular, implementar e executar programas ema ncipatórios no âmbito dessas redes ou configurações de poderes - programas esses cujo valor básico é o ‘sentimento de civilidade’ em que se fundamenta a idéia mesma de comunidade. Segundo essa idéia, o que articula uma totalidade ética, fazendo do conjunto de indivíduos uma ‘comunidade’, não é o sistema jurídico-positivo, mas uma conexão muito mais profunda, que tem suas raízes no ‘espírito do povo’, do qual o sistema jurídico-positivo é apenas e tão somente uma de suas manifestações. Invocar o ‘sentimento de civilidade’, portanto, é fazer algo mais do que exigir o império da lei; é, para além disso, promover a extensão da cidadania do plano políticoinstitucional para os planos econômico, social, cultural e familiar, mediante o 100 FARIA, José Eduardo. Mitos e Conflitos: Os Direitos Humanos no Brasil. In: Faria, José Eduardo (org). A Crise do Direito numa Sociedade em Mudança. Brasília : Editora Universidade de Brasília, 1988. P. 52. 57 reconhecimento dos direitos dos indivíduos de influir nos destinos globais da coletividade.”101 Enquanto os Direitos Humanos não forem efetivados concretamente, nossas cartas constitucionais representarão apenas cartas de boas intenções sem nenhuma garantia de sua efetividade, pois, de acordo com Bobbio: “...uma coisa é um direito; outra, a promessa de um direito futuro. Uma coisa é um direito atual; outra, um direito potencial. Uma coisa é ter um direito que é, enquanto reconhecido e protegido; outra é ter um direito que deve ser, ou para que passe do dever ser ao ser, precisa transformar-se, de objeto de discussão de uma assembléia de especialistas, em objeto de decisão de um órgão legislativo dotado de poder de coerção”102 . Embora exista um reconhecimento legal e o Estado seja visto como canal de expressão de direitos humanos e cidadania, o formalismo jurídico exerce uma excessiva influência na cultura política do país, o que impede a real efetividade desses direitos. Ocorre que, segundo José Eduardo Faria: “... um dos grandes mitos é de que a democracia só é garantida quando os direitos humanos são inscritos numa constituição aprovada por cidadãos livres e iguais e cujo respeito impõe-se a todos, inclusive ao próprio legislador. (...) Na prática, contudo, sua reiterada afirmação nos textos legais não tem sido a garantia necessária e suficiente de sua efetividade. Embora os juristas afirmem que os direitos humanos devam ter a mesma força normativa da própria Constituição, ou seja, um valor superior ao da lei ordinária, isso nem sempre acontece”103 . Na medida em que a ordem política é injusta e não há contrapartida por parte do Estado, ocorre a privação de direitos de determinadas pessoas ou segmentos da população. Como o Estado deve ser feito para o homem e não este para o Estado, ao ho mem deve ser possibilitado fiscalizar o poder do Estado, o que somente é possível através do conhecimento da subjetividade jurídica do homem e dos Direitos Humanos e cidadania. Por outro lado, temos um universo muito grande de contradições sociais. Extrapolando a esfera do direito, temos presente que esta falta de efetividade está condicionada pelo projeto social, econômico e político implementado pelo grupo dominante. 101 FARIA, José Eduardo. O Estado e o Desafio da Implementação dos Direitos Humanos na América Latina. In: Direito em Debate. Ijuí : Ed Unijuí, Jul/Dez 1995. p. 24. 102 BOBBIO. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro : Campus, 1992, 83 p. 103 FARIA, José Eduardo. Mitos e Conflitos: Os Direitos Humanos no Brasil. In: Faria, José Eduardo (org). A Crise do Direito numa Sociedade em Mudança. Brasília : Editora Universidade de Brasília, 1988. P. 51-52. 58 Neste sentido, é importante salientar que as políticas públicas impostas por setores dominantes da sociedade são fator decisivo para uma análise desta inefetividade. Desta forma, para situar corretamente a crise de cidadania e a inefetividade dos Direitos Humanos, neste final de século, é necessário ter claro como um dos pressupostos históricos a questão do direito ao trabalho como fator da exclusão social. Na sociedade capitalista, que é o nosso caso, o que rege o mercado é o capital, ficando as necessidades humanas coletivas em segundo plano. O mercado capitalista propicia a exclusão e destruição dos meios de vida 104 . Desta forma, a democracia capitalista mostra-se incapaz de regular os direitos humanos fundamentais de grande parte da população, pois existe um paradoxo entre sua regulação e a exclusão, principalmente, das camadas pobres da população. Embora nos últimos anos tenha aumentado o universo dos bens, valores e interesses que possam ser identificados como Direitos Humanos, aí incluídos os direitos de solidariedade, no plano social com o enfraquecimento do Estado nacional torna-se praticamente impossível o reconhecimento dos direitos mínimos de grandes contingentes populacionais. E, apesar destes direitos estarem consagrados nas diversas Declarações de Direitos e, em nosso caso, na Constituição Federal de 1988, concretamente nada é feito em termos de políticas públicas no sentido de torná- los realidade para este grande contingente populacional. Outro fator importante que colabora com o aumento de pessoas excluídas dos Direitos Humanos, tem relação com o processo de globalização econômica, sendo que algumas de suas conseqüências estão relacionadas ao seu impacto sobre o mercado de trabalho, à redistribuição geo-espacial da produção industrial e à redefinição das funções, dos espaços e dos campos de competência da política no âmbito do Estado nacional, o que 104 FRIGOTTO, Gaudêncio. Trabalho, não-trabalho, desemprego: problemas na formação do sujeito. In: BIANCHETTI, Lucídio; PALANGANA, Isilda Campaner (Orgs). Trabalho e Educação numa Sociedade em Mudança. Florianópolis : Editora da UFSC, 1992. p. 99. 59 ocasiona uma maior desigualdade estrutural, o desemprego crônico dos menos qualificados e a desarticulação das demandas operárias105 , o que leva à redução dos benefícios sociais. Um fato marcante que está presente é que a terceira revolução industrial configura uma nova divisão do trabalho, com mudanças no seu conteúdo, quantidade e qualidade, bem como novas demandas de qualificação humana. Ao invés de ser incorporada ao mercado de trabalho como forma de propiciar benefícios ao trabalhador, passa a substituir o trabalhador, criando novas formas de exclusão social. Gaudêncio Frigotto 106 entende que a nova base técnica, potenciadora das forças produtivas, ao contrário de liberar tempo livre ao trabalhador, produz tempo de tensão, sofrimento, preocupação e flagelo do desemprego estrutural e subemprego. Tal ocorre pelo fato desta revolução tecnológica dar-se sob forma de relações de exclusão social, quando os menos capacitados são excluídos do mercado de trabalho. “Na moderna sociedade de mercadorias, sob a égide do capital financeiro, da tecnologia flexível, das máquinas inteligentes, da robótica e do fantástico campo da microeletrônica, microbiologia, engenharia genética e novas fontes de energia, a libertação do homem da máquina que o embrutece ¾ e, portanto, tecnologia que tem a virtualidade de liberar o homem para um tempo maior para o mundo da liberdade, da criação, do lúdico, paradoxalmente, sob a sociedade de classes, esteriliza, escraviza e subjuga mediante o emprego precário e desemprego estrutural.”107 Se por um lado as pessoas não têm acesso aos direitos fundamentais, a sua inefetividade por si só e conseqüentemente o não-exercício de sua cidadania plena ocasiona uma certa acomodação, que é claramente vista pela falta de vontade de lutar por mudanças. A impossibilidade de alguns segmentos da sociedade alcançarem determinados direitos é mascarada no momento em que todos os indivíduos são juridicamente iguais, isto é, têm direitos aos mesmos direitos. Em outras palavras, têm direito ao trabalho, à educação, à saúde, dentre outros direitos constitucionalizados. Embora o vínculo jurídico dê a este sujeito o direito aos direitos, isso não significa que os mesmos estejam presentes; significa apenas a possibilidade de que eles venham a ser proporcionados. 105 FARIA, José Eduardo. (org.). Direito e Globalização Econômica: implicações e perspectivas. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 133-143. 106 FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e a Crise do Capitalismo Real. São Paulo : Cortez, 1995. 60 p. 107 FRIGOTTO, Gaudêncio. Trabalho, não-trabalho, desemprego: problemas na formação do sujeito. In: BIANCHETTI, Lucídio; PALANGANA, Isilda Campaner (Orgs). Trabalho e Educação numa Sociedade em Mudança. Florianópolis : Editora da UFSC, 1992. p. 103. 60 A grande meta para se chegar ao efetivo cumprimento dos Direitos Humanos passa por descobrir e lutar para combater as causas da desigualdade social. É buscar as raízes dos problemas sociais. Combater as desigualdades iniciando por práticas em que as próprias populações marginalizadas sejam os articuladores das práticas que desencadearão esses movimentos. Seu início se dá pelo direito à educação e à educação em e para os Direitos Humanos. A este marco filosófico, deverá o Ministério Público, necessariamente, se filiar. A todo instante os Direitos Humanos se apresentarão como instrumento eficaz na defesa do Estado Democrático de Direito. Assim, a conscientização do Parquet sobre a finalidade ressocilizadora da pena, perseguida na lei, é o primeiro passo na defesa dos Direitos Humanos dos condenados. 61 CONCLUSÃO A verdadeira função do Ministério Público na execução penal, em defesa da sociedade e dos Direitos Humanos Inicialmente, observa-se que as penas surgem simultaneamente ao aparecimento da própria humanidade, ora com o caráter de vingança para satisfazer o sentimento de vindita de que todos homens são naturalmente investidos, ora com o caráter de sobrevivência do grupo, como automática conseqüência da ação coletivamente condenada 108 . Assim, por mais rústico e primitivo que seja a origem da organização social da humanidade, houve a necessidade para a manutenção desse grupo a imposição de regras mínimas 109 , ainda que fossem rudimentares, surgindo como decorrência lógica, a punição para quem desrespeitasse tais regras. Cabe registrar, que nos grupos sociais dessa era, envoltos em ambiente mágico e religioso, a peste, a seca e todos os fenômenos naturais maléficos são tidos como resultantes das forças divinas. Para aplacar a ira dos deuses, criam-se séries de proibições (religiosas, sociais e políticas), conhecidas por tabu, que não obedecidas, acarretam castigo. A infração totêmica ou a desobediência ao tabu leva a coletividade à punição do infrator para desagravar a entidade, gerando-se assim o que, modernamente, denominamos "crime" e "pena". De qualquer forma, a história nos ensina que a finalidade da pena, surge com o caráter retributivo, passando ao preventivo (geral e especial), chegando ao ressocializador (reeducativo). Neste liame, o Direito Penal tem evoluído junto com a humanidade, saindo dos primórdios até penetrar a sociedade hodierna. Diz-se, inclusive, que: "ele surge com o 108 Podemos afirmar que através dos tempos o homem tem aprendido a viver numa verdadeira "societates criminis". 109 É aí que surge o Direito Penal, com o intuito de defender a coletividade e promover uma sociedade mais pacífica. 62 homem e o acompanha através dos tempos, isso porque o crime, qual sombra sinistra, nunca dele se afastou"110 A pena de prisão surge nos últimos séculos como a esperança das estruturas formais do Direito em combater o processo da criminalidade. Ela constitui a espinha dorsal dos sistemas penais de feição clássica. É tão marcante a sua influência em todos os setores das reações criminais, que passa a funcionar como centro de gravidade dos programas destinados a prevenir e a reprimir os atentados mais ou menos graves aos direitos da personalidade e aos interesses da comunidade e do Estado. Herdamos um sistema que encontra o seu apogeu no século das luzes, quando o reconhecimento formal dos direitos naturais, inalienáveis e sagrados do Homem, impõe a abolição das penas cruéis. E a prisão não seria, portanto, uma pena cruel, principalmente, porque ela manteria a vida que tão freqüentemente era o preço do resgate para o crime cometido. Nesta época, respaldando as instâncias oficiais, surge a Criminologia Tradicional que defende a legitimidade na aplicação da pena como retribuição ao autor de um crime, justificada pela necessidade de prevenção. Este conceito compreende as idéias 111 de sua natureza, ou seja, a essência da pena; de sua finalidade, para que serve a pena e de sua fundamentação, qual a legitimidade da pena. Essa teoria procura afastar os equívocos da Escola Clássica, distinguindo a pena da vingança, já que, aquela tem forte conteúdo ético e racional, exigindo proporcionalidade e esta, por sua vez, é irracional, desproporcional e, por isso mesmo, inviabilizaria a convivência humana. Por fim, acrescenta que o Direito Penal tem função preventiva, cabendo- lhe a missão de evitar a ocorrência do crime e a pena seria o instrumento de controle da criminalidade que se concretiza através de uma atuação especial sobre o indivíduo que cometeu o crime. 110 Magalhões Noronha 111 Os que defendem a necessidade da aplicação da pena defendem que a pena é, pela sua natureza, aflitiva, retributiva e pública. Onde o seu caráter aflitivo revela -se pelo sofrimento ético decorrente da perda, pelo infrator, da disponibilidade de um bem jurídico essencial. É retributiva: corresponde a uma resposta do ordenamento jurídico a uma conduta reprovável, obedecida a exigência ética da proporcionalidade. É pública: banida a pena privada, somente a sociedade politicamente organizada (o Estado), através de um rígido sistema assecuratório das garantias do cidadão, pode impô-la. 63 Para alguns, tal justificativa está na necessidade de associar a idéia de crime ao temor do castigo. É a intimidação decorrente da ameaça do sofrimento imposto ao criminoso, uma forma de prevenção geral negativa. 112 E se, não obstante, a ameaça não se revelar suficiente, e alguém ainda assim resolva cometer um crime, então a pena aplicada terá justificativa na necessidade de defender a sociedade pelo efetivo castigo do criminoso (prevenção especial). Esse binômio prevenção geral negativa e prevenção especial é a solução engendrada pela Escola Positivista 113 de Direito Penal no final do século passado, resultando nas denominadas teorias relativas. A essas idéias associam-se, posteriormente, as denominadas teorias mistas, através de um movimento surgido na Itália e na França, Movimento da Nova Defesa Social. Entendendo-se que a prevenção especial somente pode justificar-se pela ressocialização do delinqüente que, submetido a processos revalorativos e reeducativos durante a execução da pena, retorna à sociedade com padrão de comportamento ajustado às regras da boa convivência e não mais cometerá delitos. É inegável que a finalidade da pena, através dos tempos, encerrou uma das formas de controle do poder dominante e para isto, as escolas penais, contaram com o auxílio da Criminologia Tradicional, que cristaliza um dos princípios filosóficos que sustenta a aplicação da pena, o da defesa social, que proclama a necessidade de proteger a sociedade em relação ao infrator. Porém, não se pode desconhecer, que a imposição da pena, como nos ensina a história e a nossa própria inteligência, decorre da necessidade de fazer cumprir as regras, naturais ou não, que viabilizam a convivência entre os homens, assegurando a manutenção do grupo social, já que, sem o cumprimento destas regras parece impossível ou inimaginável o 112 Geral, porque dirigida a toda a sociedade; negativa, porque seu efeito dissuasivo levaria as pessoas a não praticar crimes. 113 No nosso entender, a função do positivismo ao levar a um estudo do criminoso, nada mais era que um desvio de atenções. Cumprindo uma função política, o positivismo, como doutrina, apenas encobria a verdadeira e maior causa da delinqüência na sociedade capitalista, que é a injustiça social ocasionada por essa sociedade dividida em classes. Neste contexto estão todas as ramificações do positivismo criminológico, todas as teorias e correntes, tanto as de cunho estritamente biológico como as de cunho social, porque nenhuma se interessava em questionar a lei e direcionaram suas atenções para o criminoso, ou como um ser anormal ou como alguém que precise de uma ressocialização, mas nunca como fruto do próprio desajuste da sociedade. Nunca vendo a lei como um produto de uma ideologia dominante na sociedade. Nunca é demais ressaltar que qualquer visão numa sociedade dividida em classes será uma visão 64 convívio ou o relacionamento entre as pessoas, aliás regras sem pena, é o mesmo que ter apenas intenções ou normas morais; certamente, se assim o fosse, voltaríamos a era da lei do mais forte, forma embrionária e grotesca que se socorreu a força dominante para impor a sua vontade. Desprezar por completo a utilidade da pena como quer a Criminologia Radical114 , propondo a sua extinção generalizada, sem se preocupar com o preço da idéia é uma negligência que o estudioso não pode endossar. Assim, entendo que a defesa social, em sentido amplo, se impõe como mecanismo de defesa da manutenção da existência do grupo social, buscando a preservação e o respeito dos direitos humanos de todos, e não como mecanismo mesquinho de dominação e de poder. Desse modo, a justificação básica da pena só pode ser encontrada na idéia de manutenção da confiança comunitária na prevalência do Direito. Isto significa que a ordem jurídica estará protegida pela pena na medida em que sua aplicação reafirmar a validade da norma violada pelo infrator, restabelecendo a expectativa da comunidade de ver respeitados os seus bens jurídicos, não na perspectiva simplista da Escola Clássica, mas sob o novo prisma da preservação do grupo social, num enfoque humanista. "Nisto consiste essenc ialmente a idéia, hoje fundamental e irrenunciável, da prevenção geral positiva (ou de integração, no preciso sentido do restabelecimento, através da punição, da paz jurídica comunitária) como finalidade básica da aplicação da pena."115 De tudo se conclui que o fundamento da pena reside na prevenção geral positiva. Onde a pena destina-se à proteção da ordem jurídica, porque esta é a função do Direito Penal. Por outro lado, sem descuidar da análise crítica e teórica, é preciso saber como na prática se deva realizar essa prevenção geral positiva e como tratar de forma humana as pessoas a serem custodiadas e ao mesmo tempo reabilitadas para o convívio social, concretizando a justiça social. de classe, seja de classe explorada, seja da classe dominante, e o investigador criminológico não escapa dessa regra. 114 Explicando a denominação, diz Lola Aniyar de Castro em seu livro Criminologia da Reação Social: “Palavra radical, porque vai à raiz das coisas, vai buscar a essência, não se conforma com a existência”. 115 Figueiredo Dias, José. Sobre o Estado Atual da Doutrina do Crime - Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº zero, pág. 31. 65 É verdade que a realização da justiça social depende, sobretudo, da eficácia dos direitos amparados pela Constituição Federal e pela legislação, dela decorrente, no âmbito social. O Direito não se realiza por si só. Depende de sua aplicação aos fatos sociais, econômicos, políticos e culturais. A evolução dos direitos fundamentais nas últimas gerações encontra-se baseada nos valores liberdade, passando para os valores econômicos, sociais e culturais, até o valor solidariedade que visa amparar interesses relativos a toda a comunidade. Além da necessidade de se partir para uma análise mais ampla destas implicações, sem neutralidades absolutas, o estudioso da teoria da justiça precisa estar convicto de sua função transformadora e recriadora do Direito, fazendo uma eterna comunicação dialética, um ir e vir de comportamentos levando a soluções cada vez mais justas. O caminho para a justiça é ainda mais longo se compreendermos a necessidade de construirmos um mundo com pessoas livres e racionais, admitindo uma condição de igualdade ampla, irrestrita, libertando os oprimidos dos dominadores que, uma vez conscientes, irão se sentir oprimidos por dominar, por sua completa ignorância do valor liberdade. Esta liberdade abrange não só a plena eficácia dos direitos fundamentais, assegurados judicialmente, mas também a concepção do bem, do jus to, do moral e do mínimo ético. Necessário portanto que o estudioso do Direito possua esta visão crítica e abrangente, não se limitando ao estudo normativista puro e socorrendo-se dos subsídios sociais, políticos, econômicos e culturais, estudados no tempo e no espaço de forma ilimitada, assumindo a função recriadora do Direito na sociedade. Neste contexto, ao abordarmos os Direitos Humanos devemos lembrar que são conquistas do ser humano na luta por melhores condições de vida. Podemos nos referir aos direitos que estão elencados na Constituição brasileira ou a outros presentes nas diversas Declarações de Direitos. Porém isso não significa que estejam presentes na vida das pessoas, pois, normalmente, não são juridicamente protegidos. Devemos ter claro que não basta simplesmente ter direitos escritos em uma Constituição; eles devem estar presentes na vida das pessoas. Devemos entender Direitos Humanos como os direitos mínimos para uma pessoa ter uma vida digna. É verdade, que estes 66 direitos somente estarão garantidos no momento em que diminuírem as desigualdades sociais. Neste sentido, afirma Roberto Aguiar: “A vida humana só será socialmente digna se as maiorias dominadas transformarem a produção, a troca e a distribuição de bens materiais, requisito mínimo para o exercício de virtude e para se acoplar ao substantivo vida o maravilhoso adjetivo digna”116 . Podemos afirmar que, Direitos Humanos dizem respeito principalmente à garantia dos meios necessários à manutenção da vida e, mais que isso, da vida digna. O grande paradoxo é que não são observados pelas autoridades competentes, de modo que ocorre sua constante violação, até mesmo por aqueles que deveriam garanti- los. É fato, que grande parte destes direitos estão elencados em nossa Constituição Federal e em diversas Declarações de Direitos, mas que, infelizmente, não estão presentes na realidade social de um grande contingente populacional, particularmente na realidade dos presos. É este o motivo que nos leva a fazer um aprofundamento desta questão que, em nosso entender, o tratamento aos encacerrados, impõe, necessariamente, a implementação dos Direito Humanos. E assim sendo, o que fazer? Inicialmente, temos que procurar combater os desvios conceituais da aplicação da pena, eliminando os interesses setoriais que comprometem a finalidade da preservação do grupo social, e muito mais que isto, reservar a aplicação da pena como último recurso a ser utilizado no tratamento do problema, já que outras armas, mais poderosas e eficazes se apresentam através do investimento social na prevenção do crime, demonstrada pela distribuição de renda eqüitativa, o acesso à educação, saúde, moradia etc.; bem como, pela despenalização, quer seja discriminalizando os fatos irrelevantes de conteúdo penal, quer seja pela aplicação de penas alternativas. Todavia, ainda que se busque e se aprofunde cada vez mais a criatividade pela não aplicação da pena, mesmo assim, restará as hipóteses extremadas, que impõe a adoção de pena, separando o infrator do seio da sociedade, qualquer que seja ela, sem desrespeitar os direitos dos presos. É verdade que com isto, corre-se o grave risco de 116 AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito, Poder e Opressão. São Paulo : Editora Alfa -Omega, 1984. 153 p. 67 voltarmos ao cativeiro dos interesses do dominador, mas aí estaríamos diante de um desvio da finalidade na aplicação da pena, e não diante de uma causa justificadora para a sua extinção. Temos é que adotar medidas legais, constitucionais, sofisticando o mecanismo de segurança contra estes desvios, garantindo cada vez mais os Direitos Humanos individuais e coletivos, privilegiando uma sociedade justa, sem compromisso com interesses setoriais. É certo que a eficácia e o sucesso na execução penal, no que tange a ressocialização do preso, depende da participação efetiva e consciente de toda sociedade, (Juiz, ONGS, empresários, empregadores, agentes políticos, imprensa, conselhos da comunidade etc), todavia este trabalho, limitou-se a enfocar a participação do Ministério Público, por considerá- lo uma das peças principais, como defensor dos Direitos Humanos, e participante obrigatório na execução penal; parece- me inegável ser ele o defensor da sociedade, entre os quais se encontram, os presos. A tarefa não é simples, até porque impõe-se uma aparente contradição, pois a história do Ministério Público encontra-se fortemente marcada pela postura acusatória, punitiva e perseguidora, sob o enfoque primitivo de defensor da sociedade no sentido de isolar (condenar e prender) o mal, que era o criminoso. Agora, no Estado Democrático de Direito, onde exerce a nobre missão de guardião dos Direitos Humanos, na execução penal, a sua missão caminha em sentido inverso daquele historicamente percorrido, busca-se aqui recuperar o infrator para amanhã devolvê- lo à sociedade, como pessoa capaz de desempenhar função útil à coletividade, assegurando, desta forma, através de um processo ressocializador, a implementação dos Direitos Humanos do encarcerado e a segurança futura da própria coletividade. Observa-se que sequer é necessário depreender muito esforço para admitir o respeito aos Direitos Humanos dos presos, pois até para aqueles, que militam, na via estreita de fiscal da lei, a própria Lei de Execução Penal, ao adotar os postulados da Nova Escola de Defesa Social, dispõe como princípio e finalidade da pena o seu caráter ressocializador, estando toda lei empreguinada de dispositivos que buscam assegurar esta finalidade. 68 O que se espera do Ministério Público, é que os discursos sobre o respeito aos Direitos Humanos, sejam por eles perseguidos na execução penal, ou seja, o mesmo entusiasmo que buscam para à imposição da pena, hão de ter para buscarem a ressocialização do condenado. Não é mais possível, reduzir ou delimitar as funções do Ministério Público, agora guindado a defensor da sociedade e dos Direitos Humanos, terão que vencer o enquadramento enraicado em sua tradição histórica, quer seja ao defender os direitos do consumidor, da criança, do patrimônio artístico e cultural, da ecologia, dos interesses públicos, quer seja, na defesa dos direitos dos presos. Sintetizando, a participação do Ministério Público tem significado maior do que mero custos legis. O Ministério Público galga, constitucionalmente, o patamar de defensor mor da sociedade, resguardando agora não só a defesa da Ordem Jurídica, mas o regime democrático e, principalmente, os interesses sociais e individuais indisponíveis. Assim, sendo a liberdade individual, matéria prima da execução penal, deverá o parquet zelar pelo cumprimento da Ordem Jurídica e também pelo direito à ressocialização dos presos. Neste liame, difícil tarefa se apresenta, pois quase sempre se estabelece o conflito entre as obrigações dos presos e o descaso com os seus direitos. De qualquer forma, qualquer inclinação por parte do Ministério Público distante da defesa dos direitos dos presos é negar o seu status constitucional de defensor da sociedade117 , além do que, não se pode olvidar, até para aqueles, no exercício limitado do custos legis, que um dos objetivos da execução penal, conforme a lei, é “proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.” (L.E.P. art. 1º), e não restam dúvidas, que sob este enfoque, toda aplicação da sanção na execução penal há de buscar, necessariamente, essa finalidade. Por tudo isso, atrevo- me a dizer que durante a execução da pena, o maior advogado do condenado deverá ser o Ministério Público. Pois se ele, na ação penal, lutou para prendê-lo, aqui, na execução penal, há de lutar para soltá- lo, certificando-se que o Estado fornecerá os meios para viabilizar a ressocialização. 117 Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: “Art. X – Todo homem é presumido inocente até que seja declarado culpado e, se julgada indispensável sua prisão, todo rigor desnecessário para assegurar-se de sua pessoa deve ser severamente reprimido por lei”; Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Art. V – Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”. 69 Por fim, registre-se que não se presta o presente estudo, para questionar a filosofia do processo ressocializador 118 , pois este, inegavelmente, defenderá os interesses das instâncias oficiais e conseqüentemente a mantença estrutural da nossa sociedade, que é reconhecidamente desigual e injusta. Também não se furta, a reconhecer como válida a advertência da Criminologia Crítica, em questionar a legitimidade do sistema penal. O que se busca aqui, é algo mais prático e acessível, que é efetivar, a ressocialização do preso, ainda que seja nestes padrões, pois nem os Direitos Humanos lhes são deferidos, impondo- lhes uma exclusão definitiva e permanente da nossa sociedade, não podendo o Ministério Público, na genuína função pro societatis, desapercebe-se desta violência. 118 Como faz a Criminologia Crítica. 70 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ACOSTA, Valter P. O processo penal. Rio de Janeiro: do Autor, 1975 ALBERGARIA, Jason. Manual de direito penitenciário, São Paulo, Ed. Aide.. ALVES, Roque de Brito. Criminologia. Ed. Forense,1986. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Cidadania: do direito aos direitos humanos. São Paulo: Acadêmica, 1993. ARAGÃO, Antonio Moniz Sodré de. As três escolas penais. São Paulo: Freitas Bastos, 1977. ARFINENGO VE. 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