Um estudo em práticas de educação física Ana Cristina Richter

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Questões de gênero na pequena infância institucionalizada:
Um estudo em práticas de educação física
Ana Cristina Richter, Carmen Lucia Nunes Vieira, Gisele Carreirão Gonçalves, Patrícia Luiza
Brener Boaventura (UFSC)
Educação do corpo; educação infantil; gênero, infância e educação física
ST 10 - Educação infantil e relações de gênero
Palavras Iniciais
O presente trabalho aborda parte dos resultados de uma investigação realizada em três
instituições de atendimento à pequena infância da rede pública de ensino de um município do sul do
Brasil. A pesquisa envolveu um extenso conjunto de observações, análise de registros pedagógicos1
organizados pelas professoras de Educação Física, entrevistas com estas e outros atores
institucionais, considerando também as diretrizes do município e os projetos pedagógicos
institucionais de cada uma das unidades. Nosso objetivo foi registrar e analisar práticas pedagógicas
de Educação Física da Educação Infantil que intentam romper com modelos escolarizantes e
encaminhar uma proposta articulada com as discussões da Pedagogia da Infância2.
Para além das questões referentes às metodologias, conteúdos e concepções ligadas às
práticas pedagógicas em Educação Física, ocupamo-nos, ao longo da investigação, do conjunto de
atividades, técnicas, ritos e cuidados com o corpo, que conferem àquele um papel preponderante na
construção de identidades. Ganham destaque, nesse contexto, os ritos formadores de
masculinidades e feminilidades gradualmente inscritos sobre o corpo infantil por diversos
mecanismos que vão compor identidades de gênero ou os sentimentos individuais de ser menino ou
menina (SAYÃO, 2002; GROSSI, 1998). Trata-se do emprego de palavras e gestos determinados
como masculinos ou femininos, atribuições, produtos para consumo, cores, marcas, cheiros,
personagens, entre tantos outros elementos que compreendem aspectos simbólicos, mas também a
materialidade dos dispositivos de conformação de gênero.
Esses mecanismos instituidores de identidades de gênero aparecem na prática pedagógica
cotidiana das instituições pesquisadas e serão abordados nesse trabalho considerando três registros:
1) a ambigüidade das ações das professoras que procuram incentivar o livre uso de artefatos
socialmente destinados a meninas ou a meninos, ao mesmo tempo em que reforçam distinções nas
atividades, na organização dos espaços, nas exigências e diferenciações relacionadas aos cuidados
destinados aos pequenos; 2) os brinquedos, brincadeiras, cores e outros utensílios materiais e
simbólicos eleitos por meninos e meninas ao longo das rotinas; 3) as falas das crianças,
freqüentemente entremeadas por reforços de preconceitos e na reafirmação dos lugares sociais
2
“claros” e “distintos” de meninos e meninas, ao mimetizarem assertivas de pais, mães e ou outras
figuras adultas, mas, também e não raro, de veículos da indústria cultural.
Das ambigüidades presentes nas vozes e ações das professoras
Ao longo de nossa pesquisa, observamos que, em determinadas situações, as professoras
buscam romper com mecanismos que vão compor as identidades de gênero e desmistificar
estereotipias, como na cena em que um menino pega uma bolsa e a professora diz: “Pega Gu, a
bolsa. Não tem problema usar a bolsa” (INSTITUIÇÃO B, 28 de setembro). Também notamos que
as professoras solicitam ajuda de meninos e meninas na realização de tarefas ligadas à papéis
habitualmente demarcados como femininos, tais como dobrar fantasias, guardar os materiais,
colocar toalhas à mesa para que se dê início a hora do almoço, entre outros.
No entanto, paradoxalmente, nos deparamos com propostas de trabalho, ações e palavras
adultas que acabam por reforçar aspectos ligados à identificação de gênero mais estreita, como na
ocasião em que “as meninas receberam para pintar uma Barbie [boneca], enquanto os meninos um
desenho de Hot Wheels [carrinho]” (INSTITUIÇÃO B, 25 de agosto), ou nas situações em que as
configurações dos espaços organizados para as crianças brincarem aparecem demarcadas, como se
lê em nosso diário de campo, com “brinquedos para ‘meninos’, dragões, carrinhos e bonecos [...]
separados dos brinquedos das ‘meninas’: instrumentos de cozinha, bonecas e roupinhas”
(INSTITUIÇÃO A, 27 de agosto).
Em uma atividade proposta pela professora de Educação Física, encontramos o seguinte
registro:
Para que a brincadeira ocorra, as crianças são divididas em peixinhas (meninas) e peixinhos
(meninos). E assim, as peixinhas se encostam a uma parede enquanto os peixinhos se
posicionam junto a parede em frente. Ao comando da professora, “peixinhos”, os meninos,
fogem até a parede (barra) onde estão as meninas (INSTITUIÇÃO B, 14 de setembro).
Se de um lado, observamos o esforço das professoras em desfazer mecanismos de distinção
entre meninos e meninas, de outro, reforçam-se diferenciações nas atividades, na organização dos
espaços, nas exigências e nos cuidados destinados aos pequenos. Nessa contradição, localizam-se
identidades que se fundamentam nos sistemas de crenças ou nos padrões estabelecidos como
legítimos que constituem a dinâmica das relações sociais e que envolvem, segundo Scott (1990),
símbolos culturalmente disponíveis, conceitos normativos expressos na religião, na ciência, na
jurisprudência; as relações de parentesco, o mercado de trabalho segmentado nos dois sexos, a
educação, o sistema político, a identidade de gênero relacionada à atividade, às organizações e
representações sociais historicamente situadas. Coloca-se então em jogo a desnaturalização de
nossas ações performáticas, ou, noutros termos, a instituição de uma outra versão de si mesmo
3
(SOUSA, 2005), uma vez que as identidades não são estanques, pois os indivíduos reproduzem,
mas também rechaçam, mecanismos de distinção valorados como normais ou anormais para
homens e mulheres.
Da eleição de brinquedos e brincadeiras, personagens e cores pelas crianças
Em alguns raros momentos, assistimos as crianças brincando com os materiais disponíveis,
sem desprezá-los por serem caracterizados como de meninos ou meninas. Destaca-se, nesse
contexto, o Boi-de-mamão3, quando indistintamente representam os personagens característicos da
brincadeira, seja a Benzedeira, o Boi, a Bernunça, a Maricota, entre outros.
No entanto, ao longo de nossa investigação, foi usual observarmos meninos brincando de
carrinho e meninas com bonecas ou representando personagens midiáticos que personificam a
imagem da força, da virilidade, de um lado, e da beleza, da dedicação e da pureza de outro. Esses
movimentos – mesmo na aparente transgressão – envolvem não somente a aparência exterior,
como também o bem-estar da conduta, compondo, assim, ideais estéticos e comportamentais que os
pequenos não podem deixar de in-corporar ou, noutros termos, auxiliando a organizar a infânciamenina e a infância-menino. Consideramos, nesse contexto, toda uma pedagogia do corpo pautada
em saberes cientificistas que o submetem à ditadura da aparência, aos ritmos da produção e do
consumo, determinando o que é ou não válido física e moralmente para que se seja aceito ou, dito
de outra forma, aprisionando os modos de ser a determinadas representações sociais.
Ganha destaque, nesse quadro, o valor atribuído à cor rosa pelas meninas, a ponto de causar
conflitos entre elas. Isso pode ser observado em cena em que
A professora esticou o pano no chão e explicou que irão pintar o pano para fazerem a
Bernunça. Cada um deveria fazer um desenho “bem bonito”. T (auxiliar de sala) foi à
lavanderia pegou as camisetas (utilizadas para que as crianças não sujem suas roupas) e
começou a distribuí-las [...]. Entre as camisetas que T. trouxera havia uma de cor rosa. Foi
quando (a menina) R. de imediato reivindicou: ”Eu quero a rosa!”, e outras meninas
repetiram: “Eu quero a rosa!”. T propôs que permanecessem na roda que ela iria distribuir as
camisetas. Sendo assim, ia entregando as camisetas seguindo a ordem da pilha de camisetas.
Coincidentemente a rosa fora entregue para uma menina, porém R ficou bastante irritada por
ter recebido uma de cor azul-marinho. Olhou [...] para a camiseta [...] e reclamou muito. [...]
A professora começa a distribuir pincéis, tintas e colas coloridas. [...] Iniciam as pinturas,
novamente a tinta rosa é disputada por algumas meninas (INSTITUIÇÃO B, 25 de setembro)
Cores, brinquedos, personagens, perfumaria, enfeites para meninos e meninas conferem
também o logotipo, as marcas da personalidade do sujeito que vai se constituindo (TÜRCKE 2001).
Personagens masculinos fortes, belos, poderosos, agressivos, tolerantes à dor e personagens
delicadas, magras, maquiadas, dóceis e igualmente tolerantes à dor, no caso das meninas, vão
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reforçando estereótipos e se colocando como importantes vetores na construção das identidades de
gênero.
Das mensagens implícitas e explícitas nas vozes das crianças
A menina começou a rir do garoto e perguntei [pesquisadora] o porquê. Ela disse que era
porque ele estava usando saia. Perguntei “o que tem ele usar saia?”. Ela respondeu
novamente: “Ele é menino e não menina para usar saia”. E reafirmou que homem não usava
saia (INSTITUIÇÃO A, 24 de agosto).
Essas e outras distinções são freqüentemente empregadas pelos pequenos. Entre outras falas,
ouvimos meninas dizendo “o canto [espaço] dos bonecos está feio” porque “essa parte é dos
meninos” (INSTITUIÇÃO A, 27 de agosto) ou “que minha caneta era bonita porque era de menina
[cor-de-rosa] e da L. era feia porque era de menino [azul]” (INSTITUIÇÃO A, 24 de setembro).
Numa ocasião, uma menina intenta vestir uma fantasia, mas não antes de se aproximar da
professora e perguntar “se a roupa que ela estava segurando era de menino ou de menina”.
(INSTITUIÇÃO A, 27 de agosto). Entre os meninos comumente se ouvia expressões tais como
“gostosa”, “ele é macho. E eu também sou macho” (INSTITUIÇÃO C, 24 de agosto), entre outros
termos.
Juntamente com a seleção de brinquedos, cores, materiais, as palavras empregadas
reproduzem ou explicitam mensagens relacionadas às formas de se viver os gêneros e também às
formas de se viver a sexualidade por meio de mecanismos de erotização dos corpos infantis.
Considerações Finais
Ao dar relevo aos mecanismos de distinção de gênero e às formas como masculinidades e
feminilidades se (re)produzem na educação, nos deparamos com o problema da classificação, fruto
de uma racionalidade que celebra os meios e deseja funcionalizar a atuação de homens e mulheres,
determinando o que é válido ou não para compreensão da realidade e que se limita a eficiência de
seus procedimentos. Aquilo que não está legitimado como norma busca-se a todo custo evitar: são
restos ou quaisquer elementos que possam sugerir práticas miméticas, mescladas, indeterminadas,
mas que, paradoxalmente, podem fazer reconhecer, representar e transformar. Esses mecanismos de
classificação se inscrevem sobre os corpos e os sentidos sob diversas nomenclaturas e
configurações, atuando na produção de uma vida qualificável em sentido estrito, tomada de
atributos, modelos, normalizações, estilos examináveis e quantificáveis que legitimam a violência, a
dominação, o preconceito, a injustiça e a desigualdade. Nesse quadro, cabe lembrar que o desvio da
norma(l) aparece como patologia que deve ser “erradicada”. Diferentes ou desviantes podem ser
(ou manter-se) facilmente excluídos.4
5
Vale recordar as palavras de Adorno ao explicitar que a capacidade de perceber o outro
como tal é substituída, na experiência limítrofe do fascismo – mas cuja diferença das democracias
contemporâneas é apenas de grau e não de natureza (ADORNO; HORKHEIMER, 1985) –, por um
conhecimento avaliativo dos homens, por
um olhar fixo que examina, fascinante e fascinado, e que é próprio de todos os
líderes [Führer] do terror. [...] As palavras do Novo Testamento, ‘quem não está
comigo, está contra mim’, são palavras que sempre vieram do fundo do coração do
anti-semitismo. Um dos elementos básicos da dominação é remeter ao campo dos
inimigos por causa da simples diferença todo aquele que não se identifica com ela.
[...] Carl Schmitt definia a essência do que é político diretamente pelas categorias
amigo-inimigo. O progresso em direção a tal consciência faz a sua regressão ao
modo de comportamento da criança que ou gosta de uma coisa ou a teme. [...] A
liberdade seria não a de escolher entre preto e branco, mas a de escapar à prescrição
de semelhante escolha (ADORNO, 1993, p. 115).
Talvez a liberdade do indivíduo e da sociedade, em direção da qual a educação deve se voltar desde
a pequena infância, repouse justamente na oposição à classificação e às escolhas pautadas em
mecanismos de distinção, ou, noutros termos, na procura pela vida que prescinda de adjetivos.
Referências
ADORNO, Theodor W. Mínima Moralia: reflexões sobre a vida danificada. 2. ed. São Paulo: Ática,
1993.
BUTLER, Judith P. Sujeitos do sexo, gênero, desejo. In: BUTLER, Judith P. Problemas de Gênero:
feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
GROSSI, Miriam Pillar. Identidade de gênero e sexualidade. Antropologia em 1a mão,
Florianópolis, UFSC/PPGAS, 1998.
HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. Dialética do esclarecimento: fragmentos
filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
ROCHA, Eloísa A.C. A pesquisa em educação infantil no Brasil: trajetória recente e perspectiva de
consolidação de uma pedagogia da educação infantil. Florianópolis: CED/NUP/UFSC, 1999. 290 p.
(Teses Nup, 2).
SAYÃO, Deborah T. A construção de identidades e papéis de gênero na infância: articulando temas
para pensar o trabalho pedagógico da educação física na educação infantil. Revista Pensar a
Prática. v. 5, jul/jun. 2001-2002. p.01-14.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, v.16.n.2,
jul/dez,1990, p.5-22.
SOUSA, Sandra M. N. Sexo e Gênero: considerações e delimitação de eixos da identidade, do desejo e do
prazer. Revista Pós Ciências Sociais. v.2 n.3 jan/jul, São Luis, MA, 2005.
Disponível em:
<http://www.pgcs.ufma.br/Revista%20UFMA/n3/n3_Sandra_Sousa.htm> Acesso em: 10/06/2008.
TÜRCKE. C. A Luta pelo Logotipo. Tradução de Peter Naumann. In DUARTE, R. &
FIGUEIREDO, V. (Orgs.) Mímesis e Expressão, Belo Horizonte: Editora Humanitas, 2001.
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1
Os relatórios ou o registro pedagógico, prática usual nas instituições pesquisadas, encontra destaque na legislação
referente à Educação Infantil. Inicialmente vinculado à avaliação do desenvolvimento e comportamento das crianças,
passa a ser tomado, a partir dos anos de 1990, como suporte da reflexão sobre a prática, do planejamento e
replanejamento das atividades, como apoio à prática pedagógica ou como instrumento de mediação entre teoria e
prática. Sobre o tema, consultar Bodnar (2006).
2
Cf. Rocha (1999).
3
Trata-se da brincadeira do Boi-de-Mamão, uma das manifestações populares mais difundidas no Estado de Santa
Catarina, desde 1871. De origem africana e composta por uma encenação que envolve dança e cantoria em torno da
morte e ressurreição de um boi, a brincadeira aparece relatada em vários de nossos registros, enquanto tema/projeto das
aulas de Educação Física.
4
Para Horkheimer e Adorno (1985, p. 144-146), “[...] a postura que todos são forçados a assumir, para comprovar
continuamente sua aptidão moral a integrar essa sociedade, faz lembrar aqueles rapazinhos que, ao serem recebidos na
tribo sob as pancadas dos sacerdotes, movem-se em círculos com um sorriso estereotipado nos lábios. A vida no
capitalismo tardio é um contínuo rito de iniciação. [...] A voz de eunuco do crooner a cantar no rádio, o galã bonitão
que, ao cortejar a herdeira, cai dentro da piscina vestido de smoking, são modelos para as pessoas que devem se
transformar naquilo que o sistema, triturando-as, força-as a ser. Todos podem ser como a sociedade todo-poderosa,
todos podem se tornar felizes, desde que se entreguem de corpo e alma, desde que renunciem à pretensão de felicidade.
[...] Na fraqueza deles, a sociedade reconhece sua própria força e lhes confere uma parte dela. Seu desamparo qualificaos como pessoas de confiança. É assim que se elimina o trágico. Nos rostos dos heróis do cinema ou das pessoas
privadas, confeccionados segundo o modelo das capas de revistas, dissipa-se uma aparência na qual, de resto, ninguém
mais acredita, e o amor por esses modelos de heróis nutre-se da secreta satisfação de estar afinal dispensado de esforço
da individuação pelo esforço (mais penoso, é verdade) da imitação.”
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