3. A perspectiva hegeliana e suas antinomias - DBD PUC-Rio

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3.
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
« Le vrai est le tout. Mais le tout est seulement
l’essence s’accomplissant et s’achevant
moyennant son développement. »
Hegel, 1941:19
Em uma época onde se fala de aceleração do tempo, de inter-relação entre
sujeito e objeto, parece ser sempre útil voltar à obra filosófica de Hegel, que está
centrada na idéia de dinamismo. Se Hegel é, sem dúvida, um filósofo moderno, de
acordo com suas concepções do Absoluto e/ou da Verdade total final, ele se
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aproxima muito do pensamento da modernidade tardia, ao negar uma realidade
fixa e imutável, apontando para a necessidade de se pensar esta realidade como
dinâmica, ou seja, algo que está sempre em processo, em movimento.
Da dialética do senhor e do escravo à célebre afirmativa na introdução da
Filosofia do Direito, de que “o real é racional e o racional é real”, o legado de
Hegel é tomado como inspiração pelas mais díspares tradições político-filosóficas
contemporâneas. Com efeito, do totalitarismo da raison d’État ao comunismo,
dificilmente se encontra uma teoria política que não partilhe princípios em comum
com Hegel.1 De Meinecke e Marx até os comunitaristas do início do século XXI,
passando pelo existencialismo, pela Escola de Frankfurt, pela hermenêutica e,
inclusive, por alguns setores da tradição liberal, todos em algum momento, uns
mais outros menos, aproximam-se das idéias hegelianas.2
1
Habermas chega a afirmar que, neste sentido, ainda somos todos Jovens Hegelianos. Cf.
Habermas, 2001. Ver também Anderson, 1997.
2
Meinecke e Marx bebem diretamente na fonte da Filosofia do Direito e na Fenomenologia do
Espírito, respectivamente. (para Meinecke, cf. Iggers, 1988). Os comunitaristas retiram do
conceito hegeliano de Sittlichkeit sua inspiração para a crítica ao liberalismo (cf. Brown, 1992). O
existencialismo tem profunda inspiração hegeliana, mesmo que tenha sido negada por
Kierkegaard, principalmente com respeito à dialética do ser e do nada, que inicia a Ciência da
Lógica (cf. Hyppolite, 1955). A Escola de Frankfurt tem como projeto reformar a filosofia
hegeliana para superar seus impasses e aprofundar a crítica marxista da sociedade contemporânea.
Diversos teóricos críticos redigiram obras sobre a filosofia hegeliana. Para citar os mais
conhecidos: Adorno, 1994; Marcuse, 1972 e 1978; Horkheimer, 1974; Habermas, 2002 (cf.
Nicholsen & Shapiro In: Adorno, 1994). A hermenêutica também compartilha pressupostos do
hegelianismo, mesmo que indiretamente. Apesar de pretender superar a primazia do sujeito
consciente, Gadamer considera a tradição hermenêutica herdeira legítima da dialética hegeliana.
(cf. Gadamer, 1971:99; e Robert Pippin, “Gadamer’s Hegel”, 2002). Quanto à tradição liberal,
Shlomo Avineri desenvolve uma interpretação clássica da filosofia política de Hegel,
aproximando-o do institucionalismo liberal (cf. Avineri, 1972).
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
74
A influência hegeliana na prática política reflete a mesma amplitude da
teoria. Ernst Cassirer argumenta que, diferentemente da tradição filosófica que lhe
antecede, Hegel exerce profunda influência na prática política dos séculos XIX e
XX, e poderíamos acrescentar ainda, do início do XXI, tendo em vista o
desenvolvimento comunitarista da política do reconhecimento (Taylor, 1995). O
nome de Hegel é, então, associado desde o fascismo até o marxismo. Cassirer
chega mesmo a afirmar, de forma anedótica, que a Segunda Guerra Mundial
poderia ser definida como uma disputa entre hegelianos de direita e hegelianos de
esquerda (Cassirer, 1976:268).
Desta criatividade e multiplicidade que emana da obra filosófica de Hegel
pode-se chegar a um consenso mínimo: o que é inovador na filosofia hegeliana é a
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forma de interpretar a realidade (Marcuse, 1978; Taylor, 1979; Cassirer, 1976).
São as perguntas formuladas por Hegel, e não suas respostas, que inspiraram seus
seguidores e seus críticos. Daí a afirmativa de Habermas de que a publicação da
Fenomenologia do Espírito em 1808 é um marco para a filosofia ocidental.
“Hegel inaugurou o discurso filosófico da modernidade. Introduziu o tema – a
certificação autocrítica da modernidade – e estabeleceu as regras segundo as
quais o tema pode ter variações – a dialética do esclarecimento. Ao elevar a
história contemporânea ao nível filosófico, pôs em contato, ao mesmo tempo, o
eterno e o transitório, o intemporal e o atual e, com isso, alterou de modo inédito
o caráter da filosofia” (Habermas, 2002:73).
Seguindo esta mesma lógica, Marcuse faz remontar a origem da teoria
social ao pensamento hegeliano (Marcuse, 1978).
Ao localizar a questão temporal no centro da sua reflexão filosófica, Hegel
inaugura toda uma tradição que dará especial ênfase ao aspecto da mudança na
filosofia, superando neste sentido a tradicional metafísica da eternidade. Shlomo
Avineri sustenta este ponto de vista, argumentando que Hegel é o primeiro
filósofo político moderno, porque substitui o tema da legitimidade, central à
filosofia clássica, pela questão da historicidade e da mudança, que a partir de
então se tornaram os focos da reflexão moderna. Nesse sentido, “for Hegel, all
discussion of political issues is immediately a discussion of history, (...) because
history, as change, is the key for meaning.” (Avineri, 1972:X).
Ao mesmo tempo, o desenvolvimento do pensamento hegeliano abre as
portas para a sistematização e consolidação de uma nova forma de saber: a
história. Tal saber já estava em gestação desde as idéias de Herder e Vico, no
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75
século XVIII, mas é somente a partir da ontologia histórica de Hegel que adquire
um status central no pensamento ocidental (Koselleck, 1997).
« Grâce à cette nouvelle articulation du passé et du futur, grâce à la qualité
historique que la catégorie de temps y a gagnée, la philosophie de l’histoire à
ainsi ouvert un nouvel espace d’expérience dont toute l’école historique se
nourrit depuis. » (Koselleck, 1997:51).
O que está em gestação nos escritos de Iena e que já aparece plenamente
desenvolvido na Fenomenologia do Espírito é uma nova concepção do homem,
não mais natural, bom ou mau, mas necessariamente histórico; daí sua ontologia
da historicidade (Marcuse, 1972). Este é o Hegel que será destacado neste
trabalho. Mas, conforme fora mencionado inicialmente, existem muitos Hegels.
As antinomias de seu pensamento são inúmeras e inevitáveis. De um lado, tem-se
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o Hegel da historicidade, e de outro, o do sistema, aquele da lógica dialética, e o
da teleologia do saber absoluto.
Diante da amplitude de sua obra – que aborda desde questões religiosas até
a teoria política, passando pela estética – optou-se por selecionar quatro pontos
essenciais para o tema do reconhecimento, que será desenvolvido mais
sistematicamente no próximo capítulo. Da mesma forma, fez-se necessário centrar
a análise em três obras fundamentais para o tema: a Fenomenologia do Espírito, a
Filosofia do Direito e a Filosofia da História.
Portanto, buscando compreender melhor as idéias hegelianas e seu
encadeamento com relação ao tema do reconhecimento, é fundamental destacar
primeiramente a temática central de todo o esforço filosófico de Hegel: a tentativa
de síntese entre o particular e o universal. Em seguida, já direcionando a análise
para a questão da historicidade, observa-se a relação de Hegel com o tempo e
como sua reflexão insere a temporalidade no sistema. O terceiro tópico refere-se
diretamente à noção de historicidade, contrastando suas duas obras principais
sobre o tema, a Fenomenologia do Espírito e a Filosofia da História. Finalmente,
chega-se à sua Filosofia do Direito, onde aparece de forma mais sistemática seu
emprego do conceito de reconhecimento à esfera da teoria política.
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
76
3.1
A dialética do particular e do universal
A filosofia contemporânea a Hegel define uma divisão do ser entre sujeito
e objeto, herança da tradição dualista cartesiana. À teoria da consciência herdada
do idealismo kantiano, Hegel soma a tradição expressivista da teoria da linguagem
de Herder, onde o pensamento não pode ser separado do meio em que é gerado.3
A questão fundamental para Hegel é, portanto, buscar uma síntese entre a
necessidade de autonomia radical e a unidade expressiva do homem, sem ignorar
o primado da razão, ou seja, a fusão do ideal iluminista de racionalidade ao ideal
romântico de expressividade (Taylor, 1975).
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O ímpeto para a (re)união deste ser dividido advém de uma situação
histórica da filosofia idealista, em crise diante da crítica cética. Kant já inicia o
processo de pensar a união, a despeito da tradição cartesiana. Mas Kant sustenta
uma união apenas no interior do ser, enquanto no exterior ele mantém a distinção
entre subjetividade e objetividade (Marcuse, 1972:25). Schelling lança, então, o
projeto de totalidade do ser, da união entre concreto e abstrato, entre natureza e
pensamento, mas estabelece uma identidade direta entre estes diferentes
momentos. Hegel volta-se para Aristóteles para identificar uma união entre ser e
pensamento que seja dinâmica, ou seja, que atenda aos ideais de expressividade de
Herder, que não isole um sujeito consciente abstrato e o mundo concreto em que
ele vive (Marcuse, 1972; 1978 e Taylor, 1975).
Esta união, que em Hegel é definida como absoluta, implica o fim do
dualismo sujeito/objeto, um ser pensante e um saber real. Mas ela só é possível
quando concebida como um processo, um movimento constante. Todos os
conceitos de união absoluta e de totalidade estão regidos pela característica da
mobilidade, do processo. A reconciliação entre sujeito e objeto, entre filosofia e
história são os estímulos predominantes no sistema filosófico de Hegel. Neste
3
No Tratado sobre a origem da linguagem de Herder, a linguagem assume uma dupla função: é o
meio através do qual o homem toma consciência do seu self e também a chave para o
entendimento de suas relações externas. Atua como elemento que unifica e ao mesmo tempo
diferencia os homens. Atua também como elo entre o passado e o presente, via tradição, e
mecanismo de perpetuação e enriquecimento desta tradição. Daí a noção de que a linguagem
incorpora as manifestações de continuidade histórica e psicológica de uma determinada
comunidade. Esta idéia de tradição em Herder é, portanto, voltada para uma concepção de
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sentido, a verdade não é um atributo do pensamento, mas da realidade em
processo. Está sempre em movimento. Daí todos os conceitos hegelianos serem
ambíguos porque são modos do pensamento, são movimento:
“All fundamental concepts of the Hegelian system are characterized by the same
ambiguity. They never denote mere concepts (as in formal logic), but forms or modes
of being comprehended by thought. Hegel does not presuppose a mystical identity of
thought and reality because the latter, in its development, has reached the stage at
which it exists in conformity with the truth.” (Marcuse, 1978:25).
O argumento está exposto já no prefácio da Fenomenologia do Espírito,
onde Hegel classifica o absoluto como totalidade da realidade, que está
necessariamente em processo. Portanto o próprio absoluto é processo, ou seja, ele
é “ la médiation entre son propre devenir-autre et soi-même” (Hegel, 1941:17). A
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idéia que segue é aquela que o próprio Hegel classifica como pressuposto central
de todo seu sistema, ou seja, a de que a substância é sujeito:
« Selon ma façon de voir, qui sera justifiée seulement dans la présentation du
système, tout dépend de ce point essentiel: appréhender et exprimer le Vrai, non
comme substance, mais précisement aussi comme sujet. (...) La substance vivante
est l’être qui est sujet... » (Hegel 1941:17).
O que Hegel está salientando nesta afirmativa é que, de um lado, como
sujeito, a substância contém os elementos em si (essência, interior) e para si
(mediação, exterior); não é estática. De outro, entretanto, tal afirmativa também
pode ser lida de uma perspectiva mais expressivista, onde o tema central da
filosofia não é necessariamente o sujeito cognoscente, mas a substância que o
envolve. Daí a afirmativa seguinte no prefácio da Fenomenologia, onde Hegel
destaca que “La conscience ne sait et ne conçoit rien d’autre que ce qui est dans
son expérience.” (Hegel, 1941:32). Nesse sentido, o saber racional é ele também
um processo, é movimento de reflexão em si e para si, onde o tempo é fator
constitutivo (Marcuse, 1978; Taylor, 1975:85). Assim, a realidade efetiva – a
união da essência e da existência, de tudo aquilo que é em si e para si – é
automovimento.
A dialética do particular e do universal, cuja síntese é o singular (ou
individual), é a aplicação desta tese da totalidade dinâmica da substância como
processo contínuo que funde o novo e o velho ao invés de um acumulado estático de crenças e
costumes. Ver Berlin, 1979 e Barnard, 1969.
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
78
sujeito.4 Porque Hegel parte deste princípio, a dialética do particular e do
universal é inevitável, é o próprio fundamento do seu sistema, a relação
ontológica primordial que pauta o esforço filosófico de Hegel (Marcuse, 1978:71).
Segundo Michael Inwood, o universal, o particular e o singular são o que
Hegel chama de momentos do conceito (Inwood, 1997:316; Kolb, 1986). O
padrão triádico do universal, particular e singular repete-se incessantemente ao
longo de toda a obra hegeliana. Tudo aquilo que existe obedece a esse padrão de
desenvolvimento. O singular, ou a categoria que representa a síntese da união
entre o particular e o universal, é um momento essencial da transformação da
realidade, mas num instante posterior volta a exercer seu caráter universal,
reiniciando o ciclo dialético.
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Todos os três momentos do conceito – universalidade, particularidade e
singularidade – estão inter-relacionados. Cada um existe e é pensado através dos
outros. Por não haver ordem de prioridade entre estes momentos do conceito, seus
conteúdos também estão inter-relacionados. Assim, separar o universal dos outros
dois momentos leva somente a uma concepção vazia e formal deste universal.
Esta interdependência entre os momentos do conceito é contrária a qualquer
tentativa de teleologia, pois não há um primeiro momento, tudo passa a ser
mediação (Kolb, 1986:70).5
Desta forma, na lógica hegeliana não se trata de desenvolver um conjunto
de categorias e depois aplicá-las ao mundo real, porque isso significaria a
existência de duas verdades, de dois mundos, o do sujeito e o do objeto. Este é um
dos principais pontos do prefácio da Fenomenologia do Espírito e da crítica de
Hegel a Kant. Para Hegel, a relação entre o pensamento e a realidade se dá em
4
Existe uma discordância quanto à tradução deste terceiro momento da dialética do particular e do
universal. No original alemão, a palavra utilizada é Einzelne, que literalmente significa singular.
Normalmente, em traduções inglesas, ou em textos de autores anglo-saxões, a síntese do universal
e do particular é chamada de individual, chamando atenção para uma das formas que esta síntese
assume, o indivíduo. Já em textos e traduções francesas, é comum encontrar a denominação de
singular. Em traduções e textos em português, não há um consenso estabelecido. Para evitar
confusão com o termo “indivíduo”, será adotado aqui o padrão francês, dando portanto preferência
ao vocábulo “singular”.
5
Daí parecer-me insuficiente a idéia de um espírito cósmico hegeliano presciente, que conduz o
processo histórico (Taylor, 1975: cap. XV). Em sua análise da dialética do universal e particular,
Taylor dá demasiada ênfase ao aspecto universal, componente do espírito cósmico, em detrimento
dos outros dois momentos do conceito (Taylor, 1975:114), acentuando a teleologia do sistema
hegeliano. Para crítica mais ampla da interpretação de Taylor, ver Kolb, 1986 e Beiser, 1993.
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
79
termos de movimento da forma absoluta, ou seja, universalidade, particularidade e
singularidade.
Esta interdependência entre o universal, o particular e o singular, o fato de
que o universal só se realiza através do particular, está exposta até mesmo nas
suas últimas obras, tidas como conservadoras. A universalidade, em Hegel, é
apenas a relação do pensamento, um autodesenvolvimento de um sujeito racional,
e não uma relação de existência concreta, porque qualquer existência é particular
(Marcuse, 1978; Inwood, 1997:314). Na Filosofia da História, onde a tese
teleológica da razão na história está mais abertamente exposta, Hegel afirma que
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“... o universal está nos fins particulares, e realiza-se por intermédio deles. (...)
O interesse particular da paixão é, portanto, inseparável da participação do
universal, pois é também atividade do particular e de sua negação que resulta o
universal.” (Hegel, 1995:30-35).
Na Filosofia do Direito, a tese da singularidade está claramente definida:
“Every self-consciousness knows itself as universal, as the possibility of
abstracting from everything determinate, and as particular, with a determinate
object, content, and end. But these two moments are only abstractions; what is
concrete and true (and everything true is concrete) is the universality, which the
particular as its opposite, but this particular, through reflection into itself, has
been reconciled with the universal. This unity is individuality” (Hegel, 1991:41)
Volta-se, por conseguinte, ao leitmotiv da filosofia hegeliana, exposto no
início desta seção, ou seja, o esforço de união entre a razão universal abstrata
iluminista e a expressão concreta da particularidade da vida. Esta preocupação
com a síntese entre o abstrato e o concreto leva Hegel a designar a tríade como
universal abstrato/particular/universal concreto. Da mesma forma, a esta versão da
tríade do universal/particular/singular pode-se associar, respectivamente, as idéias
de
identidade/diferença/alteridade.
Ou
imediaticidade/mediação
e
oposição/reunião reflexiva. Ou ainda, indeterminação/determinação/realidade
humana. De uma maneira geral, todas estas tríades são derivações específicas do
padrão central da dialética: tese/antítese/síntese.
Na lógica hegeliana, qualquer definição deve expressar movimento do ser
que nega sua condição objetiva. Se sujeito e objeto compartilham a mesma
substância, isto é, se não há diferença ontológica entre sujeito e objeto, então
ambos estão submetidos ao tempo e possuem história – no sentido de que seus
conteúdos são definidos através de um processo. Daí a afirmativa de Marcuse de
que somente a história pode explicar a realidade: “In short, a real definition
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
80
cannot be given in one isolated proposition, but must be elaborate the real history
of the object, for its history alone explains its reality.” (Marcuse, 1978:72). É
neste sentido que Hegel rompe com a idéia de conceitos fixos – e
conseqüentemente, com a lógica formal.
A dialética é sempre o movimento contínuo do particular e do universal
entre si. Todo o empenho de Hegel será mostrar como o indivíduo se torna
universal. Hegel reforma a lógica aristotélica. Sua inovação não está em
incorporar a dinâmica da realidade à lógica (o que já estava em Aristóteles), mas
em dar forma distinta a esta dinâmica.6
As concepções da substância como sujeito e da não distinção entre sujeito
e objeto têm como resultado a dialética da qualidade. Sendo a substância sujeito,
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todo conteúdo passa a ser reflexão em si sobre si mesmo. Assim, a substância da
existência é sua igualdade para consigo mesma (igualdade enquanto não
qualificável, já que tudo existe, como intransitividade), posto que a desigualdade
para consigo mesma seria sua dissolução. Mas igualdade para si é abstração pura
(essência interior), abstração esta que é a reflexão. Ao incluir a qualidade (tipo de
existência) volta-se para uma determinação simples, à distinção entre os seres
existentes. Se a existência é definida pelo ser ‘para si’ que, entretanto, é apenas
uma abstração, ou seja, existe apenas como essência interior, esta existência
constitui-se, então, em reflexão.
Forma-se, porém, um paradoxo, pois a existência é, de um lado, reflexão
abstrata, e de outro, determinação simples. Aí se estabelece a diferença –
característica da filosofia moderna, desde o dualismo cartesiano até o idealismo
kantiano – entre essência e existência, que é a expressão ao nível do sujeito, da
dialética do particular e do universal. Entretanto, porque esta diferença é uma
tautologia, tendo em vista que essência e existência são momentos do mesmo ser,
a igualdade só se atinge através do movimento. Só há igualdade no movimento, e
6
A influência de Aristóteles no pensamento de Hegel parece ser consensual entre especialistas:
“For, Hegel’s philosophy is in a large sense a re-interpretation of Aristotle’s ontology, rescued
from the distortion of metaphysical dogma and linked to the pervasive demand of modern
rationalism that the world be transformed into a medium for the freely developing subject, that the
world become, in short, the reality of reason. Hegel was the first to rediscover the extremely
dynamic character of the Aristotelian metaphysic, which treats all being as process and movement
– a dynamic that had got entirely lost in the formalistic tradition of Aristotelianism.” (Marcuse,
1978:42). Ver principalmente a discussão em Marcuse, 1972 e 1978; Taylor, 1975; Kolb, 1986; e
Beiser, 1993.
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
81
sendo esta igualdade o próprio conhecimento, este só se realiza em processo
(Hegel, 1941:47-49).
Se a essência da existência é reflexão, ela deve necessariamente possuir
um conteúdo concreto. Assim, existência passa a ser qualidade, é determinada
como espécie, como universalidade determinada e por isso é reflexão simples,
uma reflexão que se diferencia e que está em movimento. Deste modo, a
compreensão é um processo, é o caminho do universal (a razão, ainda uma
abstração), que se expressa através do particular (o sujeito) e retorna ao universal
após a experiência do particular concreto, provocando o movimento deste
absoluto inicial. Se o objeto é conceito, então o sujeito é também conceito, ou
seja, o ser é conceito a partir do momento em que a formação concreta (a
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realidade efetiva) ao mover-se em si torna-se determinação simples (conceito).
Esse movimento é a existência concreta.
O conhecimento para Hegel é, assim, a experiência, a elevação da
consciência particular ao absoluto (ou universal), ou seja, o caminho da dúvida, da
negação desta diferença.7 Porém essa dúvida não deve ser negação geral do
conhecimento, mas uma negação determinada, o que proporciona o surgimento de
novas formas que serão negadas, estabelecendo-se um processo no interior da
consciência (Hegel, 1941:71). Neste sentido, todo conhecimento é ação, porque é
experiência da consciência – centro do método fenomenológico. Essa progressão
da consciência leva ao conhecimento. Tudo o que é limitado à vida natural (sem
consciência) não tem como ultrapassar sua existência imediata.
Assim, a negação é a qualidade definidora da lógica dialética. Implica
negar as categorias fixas do senso comum e conseqüentemente negar o caráter
fixo da realidade que estas categorias refletem. A idéia central é a de que o
absoluto traz em si a negação – ele próprio é movimento de superação constante
desta negatividade. A negação, além do caráter de movimento, implica também
poder de superá-la.
“The moving principle of the concept, which not only dissolves the
particularizations of the universal, but also produces them, is what I call
dialectic.” (Hegel, 1991:60).
7
Para Hegel, o conhecimento não pode ser nunca crítico (cf. Kant), porque a própria atividade de
criticar já implica separação entre sujeito e objeto. Haveria nesse caso duas verdades, a do sujeito e
a do objeto. (Hegel, 1941:65).
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
82
A oposição não nega a igualdade, mas estabelece a identidade como
resultado de um processo onde as potencialidades se desenvolvem. Por isso, o
homem só encontra sua identidade a partir da relação com outros homens, ou seja,
da negação da sua particularidade. Este é o princípio da mediação, momento
fundamental do processo dialético. No percurso fenomenológico da consciência,
antes de ela ser para si, ou seja, antes de atingir a igualdade na alteridade
(tornando-se sujeito), ela é necessariamente um “ser para outro”. Dois momentos
se apresentam: o primeiro com aquilo que simples e imediatamente é, isto é, a
essência, o ser em si; e o segundo, o momento da não-essência e da mediação, do
que não é em si, mas somente através da mediação de outro, o ser para outro.
O momento da aparência, da existência concreta, é sempre o momento do
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ser para outro. Daí poder-se concluir que a realidade concreta para Hegel é
essencialmente o momento da mediação entre estes “seres para outrem”. O ser,
para atingir seu conteúdo concreto, o ser para si, deve passar, portanto, por essa
mediação do outro, o que será a base da concepção de consciência de si e da teoria
do reconhecimento.
Duas conseqüências decorrem deste tema da mediação. Uma delas, a idéia
de mediação como intersubjetividade, ou seja, a negação da possibilidade de
existência isolada. A outra, atribui uma concepção temporal ao processo da
mediação, isto é, nada existe sem relação àquilo que existiu antes. É a relação
entre mediação e interiorização. Ambas culminam na concepção de consciência de
si, que, diante desta dupla tendência, traz em si os conceitos de intersubjetividade
e historicidade.
Segundo Marcuse, o ser hegeliano só existe no outro, como idêntico a si
mesmo na transformação (Marcuse, 1972). Isso porque o ser é a primeira síntese
que Hegel define como igualdade na alteridade. Por isso, o ser é negatividade,
separação. A divisão é o fundamento do ser como movimento. A mediação do ser
com sua alteridade é o mesmo que a igualdade em movimento. Mostra a
necessidade do ser de se afirmar (de manifestar-se). Finalmente, esta idéia de
igualdade na alteridade, de ser como movimento, nada mais é do que uma
concepção do ser dotado de vida. Vida, que é ao mesmo tempo, unidade e
distinção dos termos.
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
83
“Cette infinité simple, ou le concept absolu, doit être nommé l’essence simple de
la vie, l’âme du monde, le sang universel qui, omniprésent, n’est ni troublé ni
interrompu dans son cours par aucunne différence, qui est plutôt lui-même toutes
les différences aussi bien que leur être supprimé...” (Hegel, 1941:136).
O conceito de vida é o primeiro conceito desenvolvido por Hegel que
propõe a união de contradições (Marcuse, 1978). O conceito de vida é o ponto de
partida para a historicidade e permite abandonar a metafísica da razão. O processo
da vida consiste em interiorizar as condições externas na subjetividade, através do
processo de mediação entre o sujeito e as condições objetivas. A vida é, pois, a
primeira forma de liberdade, porque aí a substância é concebida como sujeito. Da
mesma forma, é também a primeira dialética, porque é modelo real de união dos
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opostos.
Esta idéia de vida como totalidade é comum a todo o romantismo alemão,
desde Goethe, passando por Herder e Schelling (Hyppolite, 1955). A originalidade
do pensamento hegeliano está na interpretação dialética da vida, em que a
particularidade não se dissolve na totalidade. A equivalência entre os conceitos de
vida e de infinitude (Hegel, 1941:135-141) reflete a tese da união contínua entre a
dialética do particular e do universal. Mesmo que o ser seja finito, sua
determinação primordial, as relações que ele estabelece, são infinitas, porque o ser
existe sempre como ser para outro, porque esta existência é mediada. A
singularidade do ser finito não é sua existência isolada, mas as relações que tem
com outros seres; ele só se transforma dentro de uma relação ontológica com
outro. Este processo de relações entre seres finitos é, por sua vez, infinito. É esta
concepção de finitude como infinitude (finitude do ser, infinitude do processo)
que permite a Hegel afirmar a historicidade do ser (Marcuse, 1972:70).
O movimento do ser (da consciência) no mundo da vida implica duas
conseqüências: a percepção de diversidade e o surgimento da contradição. A
resolução destes desafios à consciência é o estabelecimento de uma relação de
interdependência entre as contradições, onde o oposto é interiorizado, dando
origem ao sujeito (a igualdade na alteridade) – em resumo, é a tese do
reconhecimento. O corolário da dialética da vida é a concepção de uma realidade
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
84
continuamente em processo, porque o sujeito é em si processo, ele se define pelas
determinações da vida (a alteridade).8
Se este sujeito hegeliano é movimento, se ele é igualdade na alteridade, ou
igualdade em processo, em resumo, se este sujeito hegeliano é, na realidade, um
sujeito intersubjetivo, ele é também necessariamente um sujeito histórico. Antes
de entrar na discussão específica da historicidade atribuída ao sujeito por Hegel,
faz-se necessária uma breve incursão na idéia de tempo e de seu lugar no sistema
hegeliano.
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3.2
A dimensão temporal como elemento principal do sistema hegeliano
A noção de tempo no sistema hegeliano tem sido o centro da polêmica
entre seus diferentes intérpretes, e conseqüentemente, uma das principais marcas
das antinomias de seu pensamento. Como conciliar uma concepção de razão
construída em processo pelo sujeito, também em processo, e a idéia de um saber
absoluto, por definição não-temporal?9
Ao invés de solucionar este paradoxo, Hegel aprofunda-o ao conceber um
saber absoluto, que é oriundo deste processo histórico, ou seja, a historicidade do
espírito dá origem à não-historicidade do saber absoluto (Marcuse, 1972). Toda a
discussão sobre o fim da história está inserida neste paradoxo fundamental do
sistema hegeliano. Associada a este paradoxo também se encontra a discussão
mais especificamente relacionada à Filosofia do Direito e à Filosofia da História,
de que o sistema hegeliano seria uma glorificação do modelo político-social
prussiano, conforme alguns intérpretes o definem (Popper, 1974 e 1986, Taylor,
1975). Finalmente, a este tema relaciona-se a controvérsia sobre a teleologia do
sistema, tema sobre o qual o próprio Hegel disserta na Fenomenologia do
Espírito.
A temática do tempo produz ao menos três desenvolvimentos.
Primeiramente, pode-se pensar o tempo dotado de sentido, como inerente à
8
Tal concepção, de acordo com Hyppolite, invalida qualquer noção de um absoluto fora da vida e
do sujeito, o que seria apenas uma noção abstrata de absoluto (que já é a própria crítica de Hegel
ao absoluto de Schelling). Cf. Hyppolite, 1955.
9
Esta discussão sobre o papel do saber absoluto, apesar de central, não será abordada de forma
aprofundada aqui, porque supera em muito o âmbito deste estudo.
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
85
teleologia. Pode-se inferir-lhe, contrariamente, um significado de transitoriedade,
mudança constante, que se desenrola em relativismo, sendo contrário à qualquer
idéia de algo único e total. Finalmente, pode-se concebê-lo como mediação, em
que tudo existe no tempo, mas o próprio conceito de tempo é não-temporal, ele é
absoluto porque ele existe eternamente (Kojève, 2002:319-361; Marcuse,
1972:159).
A relação entre tempo e verdade, que é o cerne da discussão da
hermenêutica hegeliana, reflete exatamente estes paradoxos da interpretação do
tempo. Neste sentido, a afirmativa de Adorno pode ser um guia:
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“ Hegel’s truth is no longer in time, as nominalist truth was; nor is it above time,
in the ontological fashion: for Hegel, time becomes a moment of truth itself.
Truth, as a process, is a passage through all moments, as opposed to a
proposition that contains contradictions, and as such, it has a temporal core”
(Adorno, 1994:40).
Na introdução da Filosofia da História, Hegel define o tempo como
negação: “o tempo é, no sensível, a negação.” (Hegel, 1995:71). A associação
entre
tempo
e
negação
conduz
a
duas
concepções
complementares.
Primeiramente, associa tempo e sujeito, pois a negação é característica do sujeito
hegeliano, ou seja, aquele que traz em si a negatividade (“ comme sujet, elle est la
pure et simple négativité” – Hegel, 1941:18). Com efeito, mais adiante no
prefácio, Hegel define o próprio tempo como negatividade, como pura inquietude
da vida, processo de distinção absoluta (Hegel, 1941:40). Considerando-se que a
negação é responsável pelo movimento e pela potência, o sujeito hegeliano é um
sujeito transformador. Mas em Hegel, este sujeito está em diversos níveis.
Portanto, o indivíduo é sujeito, assim como o espírito e, fundamentalmente, a
substância (Taylor, 1975:98).
« L’esprit entier seulement est dans le temps, et les figures qui sont les figures de
l’esprit entier comme tel se présentent dans une succession temporelle. En effet,
c’est seulement le tout qui a une effectivité propre et par conséquent la forme de
la pure liberté à l’égard d’autre chose, forme qui s’exprime comme temps. »
(Hegel, 1941:207).
De outra forma, pode-se vincular tempo e mediação, posto que o momento
da negação é o momento da mediação, da negação da diferença e da
reinteriorização da alteridade. Esta tese está diretamente ligada à concepção de
tempo inerente ao sujeito, conforme exposta acima. O tempo como mediação
revela a esfera da memória, pois o processo de interiorização está ligado à idéia de
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
86
assimilação da experiência na consciência e recordação. Etimologicamente, o elo
está mais claro quando se considera a tradução alemã para memória, Erinnerung,
onde ‘er’ é indicativo de movimento e ‘innen’ , de interior (Arendt, 2002:216).10
O conceito hegeliano de re-interiorização é categoria fundamental da
historicidade (Marcuse, 1972:80). A volta do ser em si refere-se à dimensão
permanente do passado-presente, ou seja, à essência.11 O retorno em si se dá pela
negação. Esta negação é o presente imediato, que é ultrapassado a todo o
momento. O ser só existe porque a todo o momento este presente imediato tornase passado, e o ser retorna em si, para a dimensão da essência. É uma categoria
ontológica universal, parte do movimento do ser. Esta idéia de movimento do ser,
de re-interiorização como essência do ser, transforma a categoria tradicional de
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essência em uma categoria concreta, ligada à experiência no mundo real. Esta
essência é o passado, que não desaparece; está apenas superado, ultrapassado.
Aqui, a idéia de passado não adquire necessariamente um significado
temporal, conforme argumenta Marcuse, mas implica uma dimensão de avaliação
das experiências no interior, ou seja, com relação a outras experiências já vividas
e já avaliadas. Esta é a dimensão da universalidade do ser, e a volta à ação no
mundo exterior conclui o processo da individualidade.
“Si, d’une part, la première manifestation du nouveau monde (...) est le
fondement universel de ce tout; d’autre part, pour la conscience, la richesse de
l’être-là précédent est encore présente dans l’intériorité du souvenir. » (Hegel,
1941:13).
Não obstante, o meio termo entre este universal interiorizado e a
individualidade universal, aquilo que é comum a ambos, é a história mundial
(Hegel, 1941:247). É neste sentido que Hegel argumenta que o mundo, ou a
história do mundo, existe tanto em si e para si, quanto história do indivíduo. Daí a
definição de individualidade: « l’individualité est ce qu’est son monde » (Hegel,
1941:256).
O momento da mediação, conseqüentemente, implica uma reflexão sobre o
passado, sobre experiências anteriores. Se não constitui uma esfera temporal,
posto que permanente, é a esfera da reflexão (ou da auto-reflexão) sobre a
10
Não se trata de uma observação meramente formal com relação à palavra Erinnerung. Porque
em Hegel forma é igual a conteúdo, a forma de uma palavra certamente reflete seu conteúdo
interior. Muitos conceitos são desenvolvidos por Hegel através desta dissecação de palavras. Daí a
dificuldade de traduzir sua obra do alemão original. (cf. Hyppolite, 1974).
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
87
temporalidade do indivíduo. Por isso, este movimento de re-interiorização é o
fundamento da historicidade. E é também o momento do reconhecimento, como
veremos no próximo capítulo.
O tempo possui, assim, uma dupla definição, como sujeito e como
mediação. Neste sentido, está ligado tanto ao indivíduo quanto ao espírito, pois
ambos são sujeito e mediação. Daí a afirmativa ainda em Iena, de que “ l’esprit est
le temps” (cf. nota Hyppolite 1941:40). Sendo este espírito a síntese das
individualidades universais – entretanto, como toda síntese, é mais que a mera
soma das partes – pode-se concluir que em Hegel, o próprio homem é o tempo
(Arendt, 2002:218). Uma vez que este homem é tempo, que o espírito é tempo,
enfim, que o tempo é sujeito, então o tempo é necessariamente transformação. Por
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conseguinte, o tempo histórico é o tempo da mudança, e não mais da
continuidade. Porque a história é “a exteriorização do espírito no tempo...”
(Hegel, 1995:67), ela é transformação, posto que o espírito é em si transformação,
movimento contínuo (Hegel, 1941:12), é o tempo, ou inquietude da vida,
conforme definição da Fenomenologia.
Todavia, assim como o tempo, que é transformação, mas também eterno
enquanto conceito, o homem apresenta esta dupla determinação. É a idéia da
dialética da infinitude/finitude vista anteriormente. Se o indivíduo (ou o espírito) é
filho de seu tempo, portanto finito, suas relações compõem a infinitude do
processo histórico. Daí que “explicar a história significa descobrir as paixões do
homem, seu gênio, suas forças atuantes” (Hegel, 1995:20). A idéia de espírito
como tempo e tempo como transformação conduz ao processo de atualização,
elemento fundamental do sistema hegeliano.
A atualização é a capacidade de união do essencial e do existencial. É o
que Hegel chama de realidade efetiva (Wirklichkeit), que se forma através da
identificação progressiva entre essência e existência. Assim como o ser, que
apresenta uma bidimensionalidade, a realidade também – a Realität e a
Wirklichkeit, contingência e potencialidade. Não obstante, porque a igualdade só
se dá em movimento, a realidade também só existe como movimento. Daí a idéia
central de que a apreensão da realidade só se faz através de seu processo, ou seja,
o processo é parte do resultado (Hegel, 1941:07).
11
Cf. principalmente Marcuse, 1972, cuja análise está fundamentada nos dois primeiros livros da
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
88
A compreensão nunca é completa se ela não leva em consideração o
processo do objeto (que é o mesmo do sujeito, afinal possuem a mesma
substância).12 Esse é o princípio do método dialético, apreender a singularidade
através de suas contradições. Se não há necessariamente uma seqüência temporal
no método – afinal tese, antítese e síntese são geradas simultaneamente, numa
relação de reciprocidade contínua (Hegel, 1941:37) –, pensar este processo
implica pensar sua temporalidade.
13
Hyppolite chega a firmar que « sa
dialectique, avant d’être logique, est d’abord un effort de la pensée pour
appréhender le devenir historique et réconcilier le temps et le concept. »
(Hyppolite, 1968:34).
A conseqüência do método dialético, isto é, a intrínseca relação entre a
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lógica e o resto do sistema, é uma ode à temporalidade (Marcuse, 1978). O
espírito só existe no processo temporal histórico. A dialética olha a realidade do
ponto de vista temporal, onde a negatividade é exercida pelo tempo, que é o motor
do processo do pensamento e da consciência. Deste ponto de vista, a filosofia da
história expõe o conteúdo histórico da razão.
Seja como temporalidade, seja como conceito absoluto, a reflexão sobre o
tempo encontra-se no centro do sistema hegeliano, e de suas maiores antinomias.
Desta reflexão sobre o tempo, originam-se duas concepções distintas de história.
A idéia de temporalidade conduz à noção de historicidade do sujeito, presente na
Fenomenologia do Espírito, enquanto que a de conceito do tempo, está vinculada
ao conceito de História, mais próximo da Filosofia da História e da teleologia,
como manifestação do espírito.14
Lógica.
12
Segundo Marcuse, a idéia de realidade como comportamento (ser refletido em si) é a
determinação central em que se baseia toda a Lógica de Hegel. A realidade só existe como unidade
imediata numa determinada singularidade factual, mas ela só é real ao tomar esta determinação
como negatividade e ultrapassá-la. O fato é o momento de repouso do real, é o resultado do
movimento. (Marcuse, 1972).
13
Ver também Foster, 1993.
14
« Plus exactement, il semble que Hegel distingue um devenir temporel contingent dans certaines
manifestations, une science du savoir phénoménale (la Phénoménologie) et enfin, une philosophie
de l’histoire, qui appartiendra au système proprement dit et sera vraiment l’histoire conçue en soi
et pour soi. » (Hyppolite, 1946:38).
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
89
3.3
Os conceitos de história em Hegel: Fenomenologia x Filosofia da História
O problema da atualização como elemento de compreensão constitui-se
num dos focos de críticas ao sistema hegeliano. Se a atualização é sempre
constante, então dificilmente pode conceber-se um absoluto. É o dilema da
temporalidade. Mas Hegel, que em Iena tinha definido o espírito como tempo,
altera sua definição já a partir da Fenomenologia, mas fundamentalmente na
Filosofia da História. Nestas obras, o espírito é história, e como a história é o
tempo racional, sem a interferência de contingências, ou melhor, onde estas
contingências já foram absorvidas pela lógica do processo, o espírito vai
adquirindo um sentido teleológico.15 À definição de espírito como história não é
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inerente a idéia de teleologia, mas não se pode dizer o mesmo da definição de
história como exteriorização do espírito. Daí a crítica de Anderson de que o
sistema hegeliano como um todo só faz sentido se concebido a partir de uma
perspectiva de um processo histórico acabado, em que a razão é apreendida a
partir do processo do objeto (Anderson, 1997).
Em Hegel, seguindo a tradição de Herder, o tempo assume uma relação
com a experiência, negando assim a formulação kantiana em que o tempo era uma
forma pura da intuição interior (Koselleck, 1997:47). A associação entre tempo e
experiência conduz Hegel à noção de força, que une capacidade de ação e
singularidade histórica, substituindo o mecanicismo da causalidade pela idéia de
forças dinâmicas. A noção de singularidade de cada momento histórico também
redefine a relação da sociedade com o conhecimento histórico. Porque cada
momento histórico não possui paralelo com momentos passados, a idéia de
exemplaridade histórica se dissolve: “La temporalisation et la transformation de
l’histoire en un processus toujours singulier ne peuvent plus être étudiées pour
leur valeur d’exemple.” (Koselleck, 1997:50). O aprendizado histórico volta-se
para a necessidade de transformação do presente em direção a um futuro
determinado de acordo com as expectativas geradas pela visão da história
desenvolvida naquele momento dado. Em Hegel, esta negativa da exemplaridade
e a idéia de singularidade estão expostas na sua introdução à Filosofia da
História.
15
Cf. principalmente Marcuse, 1972 e 1978; Hyppolite, 1946, 1955 e 1968; Taylor, 1975.
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
90
O conceito de história, tal como o conhecemos hoje, é originário do final
do século XVIII, sendo resultado de dois eventos: a constituição de um coletivo
singular – a História –, um conjunto de histórias particulares; e a fusão dos
conceitos de Geschichte, de cunho mais evennementielle, e de Historie, voltado
para o conhecimento, o relato e a ciência histórica (Koselleck, 1997). A fusão
entre evento e conhecimento, que gera a moderna concepção de história, está
explicitada em toda a obra dos românticos, em Herder, e conseqüentemente
também em Hegel. Este, na elaboração de sua obra filosófica, apreende os dois
significados inerentes ao conceito de história: o lado objetivo (eventos) e o lado
subjetivo (conhecimento).
As principais marcas da filosofia hegeliana da história são herdadas de
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Herder (concepção da história como processo universal da humanidade), de Kant
(do objetivo do processo histórico ser a liberdade identificada à razão moral do
homem), de Schiller (ponto culminante da história é o presente), de Fichte
(identidade entre liberdade e consciência, entre o desenvolvimento da liberdade e
da consciência) e, finalmente, de Schelling (história é ao mesmo tempo processo
humano e cósmico, onde o mundo se converte em consciência de si – espírito). O
que é original na concepção hegeliana de história é a forma como ele combina
todas estas tradições em um sistema único e coerente (Collingwood, 1981).
Na Filosofia da História, a junção entre filosofia e história é plenamente
atingida – e o conceito chave é o espírito. O movimento do espírito se dá tanto na
história como na filosofia. Assim, Hegel divide a historiografia em três gêneros: a
historiografia original, a reflexiva e a filosófica (Hegel, 1995). A história como
coletivo singular não é apenas o resultado de uma reflexão racional humana, mas
a forma de expressão do espírito, que se move no processo da história mundial.
Em termos hegelianos, este é o processo de realização da liberdade na
humanidade.
Mas Hegel não recai no absoluto relativismo que imobiliza o movimento
do processo histórico. Ao contrário, é em Hegel que se articula pela primeira vez a
crítica ao historicismo, retomada no início do século XX.16 O historicismo elimina
a tensão entre filosofia e história – entre o saber absoluto e a consciência humana
16
Principalmente através da sua crítica à escola histórica do Direito, representada por Savigny, que
Hegel formula principalmente na Filosofia do Direito.
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
91
–, entre o eterno e o temporal, ou seja, exatamente aquilo que era a dinâmica do
processo histórico.17
Segundo Beiser (1993) e Collingwood (1981), a grande originalidade da
filosofia hegeliana da história é sua historicização da filosofia. As correntes
filosóficas são, portanto, autoconsciência de uma cultura específica, articulação e
crítica de suas crenças e valores. Hegel transforma as diferentes perspectivas
filosóficas em reflexos das relações desenvolvidas entre os indivíduos e seu
respectivo tempo.
O capítulo da Fenomenologia sobre a consciência infeliz ilustra esta
perspectiva, demonstrando como o pensamento filosófico da humanidade estava
vinculado às condições históricas (Hyppolite, 1946). Com efeito, Collingwood
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chega a afirmar que o verdadeiro legado metodológico de Hegel para a história
encontra-se nos oito volumes dedicados à história da religião, da filosofia e à
estética, sendo a Filosofia da História propriamente dita uma “excrescência
ilógica no corpo das obras de Hegel” (Collingwood, 1981:195).
Excessos à parte, partindo da tese hegeliana de identidade no processo
entre sujeito e objeto, a filosofia passa a ser possível somente quando histórica,
consciente de suas origens, contexto e desenvolvimento. Este é um dos
significados que podem ser atribuídos à afirmativa na Filosofia do Direito de que
“ Philosophy is its own time comprehended in thought” (Hegel, 1991:21). Esta
idéia de filosofia historicizada pressupõe uma concepção orgânica de sociedade,
onde as partes formam uma união sistemática. Esta é a tese central da teoria
política hegeliana cujo foco é a Sittlichkeit, o que será visto mais adiante. O
importante aqui é que essa idéia de um todo social impede a separação entre
filosofia e história. É uma herança direta da noção de tradição de Herder como um
elo entre o passado e o presente. É função do filósofo assimilar esta tradição e
transformá-la de acordo com o contexto de sua própria época.
Hegel divide a história em três tipos: original, reflexiva e filosófica – que
correspondem à máxima do universal imediato, abstração mediada e universal
concreto, mediado (Hegel, 1995).
17
As correntes que se seguem à obra hegeliana dividem-se entre aqueles que enfatizam a história
em detrimento da filosofia – historicismo – e aqueles que, inversamente, privilegiam a filosofia
sobre a história, constituindo uma teodicéia. Muitos autores vêm em Hegel o primeiro teórico da
teodicéia – cf. Binoche, (1994).
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
92
No primeiro tipo, a história original, o autor é o narrador do evento cuja
descrição já faz parte deste evento e é um documento histórico, porque narrador e
evento compartilham a mesma época. É, entretanto, por demais restrita, falta o
caráter universal. É então superada pela história reflexiva, onde o autor é o
historiador, que faz uso de idéias gerais aplicadas a épocas históricas, retirando
significado de suas análises. Sua fraqueza, não obstante, está na separação entre
sujeito e objeto, e a conseqüente imposição da perspectiva do autor ao objeto. A
história filosófica representa, portanto, a reunião e superação destas duas esferas
através da restauração da união original entre sujeito e objeto mediante uma
perspectiva universal reflexiva. Tal reunião se faz, no método de Hegel, através da
fenomenologia, que permite a conciliação da metodologia filosófica (idéias) com
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a histórica (empiria).
Uma vez que o método é fenomenológico, a matéria-prima da história
passa a ser a consciência de si das nações (ou espírito das nações – Volkgeist), ou
mais precisamente, a dialética que conduz a esta consciência de si. Ao seguir este
caminho, Hegel retoma as lições de Herder. Mas o problema do conhecimento
histórico se mantém. Sendo o homem finito, nunca é possível a total compreensão
da cultura passada, mas somente aquilo que foi potencializado, ou seja, aquilo que
passou para a esfera do espírito absoluto, que é imortal (Hegel, 1995:72). Porém,
esquivando-se desta terminologia teleológica característica de Hegel, este é ainda
o dilema do conhecimento histórico, que por definição não prescinde da
experimentação e, no entanto, advoga-se científico (Beiser, 1993:287).
É tarefa do historiador-filósofo, portanto, a análise das culturas passadas
de acordo com suas próprias crenças, valores e ideais. Porque toda cultura é um
processo dialético entre sua realidade e sua potencialidade, ela está sempre em
movimento, com o objetivo de equiparar essência e experiência. Esse movimento
constante é o que permite o historiador do presente compreender culturas
passadas. É o próprio princípio do conhecimento histórico como ciência humana.
O fato de a filosofia ser a compreensão de seu próprio tempo implica
necessariamente, por conseguinte, um conhecimento do passado. O presente, visto
como um processo, passa a ser a evidência da existência de um passado (Hegel,
1995:72).
Muitas críticas são feitas à tese da filosofia da história de Hegel. Com
efeito, é uma das mais criticadas obras do filósofo. Uma das críticas mais comuns
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
93
é aquela que acusa Hegel de transformar a história numa grande metafísica, posto
que diferentemente do que pensava Hegel, os homens não seriam produto de um
conceito, mas do sistema produtivo em que estão inseridos (Beiser, 1993:279).
Em geral, esta é a visão da crítica marxista.
Mas, para além da terminologia do absoluto e do objetivo primordial de
realização da razão, a noção fundamental em Hegel é que os homens pertencem a
determinados sistemas sócio-culturais, aí incluídas as determinações de ordem
econômica. Assim, em Hegel a história é necessariamente a história da cultura,
seja cultura artística, econômica, política etc., e não apenas uma história dos
modos de produção. Não há uma determinação original da economia sobre as
outras esferas da vida social, mas um todo social onde as esferas se relacionam
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reciprocamente, sem ordem de prioridade.
Uma segunda crítica é que Hegel, na Filosofia da História, limita sua
análise às ações dos Estados, às ações políticas, abandonando, de certa forma,
outras esferas da sociedade. Daí a crítica ácida de Collingwood, que sublinha a
necessidade de não se restringir a história à política, mas de conceber as
transformações históricas no plano da economia, das artes, da filosofia e da
religião. Em Hegel, entretanto, o Estado é uma totalidade cultural e não somente
uma instituição política, e isso escapa um pouco da crítica de Collingwood. Daí
sua análise dos elementos de formação dos povos. É o Volkgeist que interessa, e o
Estado é visto como agente que potencializa este espírito nacional.
Todavia, em ambas as críticas, fica evidente um incômodo comum: a
inerente teleologia que adquire o sistema na Filosofia da História. De fato, o
único sujeito da história em Hegel é o espírito mundial. Para Marcuse, este
espírito mundial é substituto metafísico do sujeito real, é metáfora para um Deus
calvinista (Marcuse, 1978:234), que assume forma real no reino da liberdade no
Estado. Nesse sentido, o Estado é a institucionalização do espírito mundial, daí a
aplicação de Hegel da tipologia aristotélica para a história mundial. Na mesma
perspectiva, as histórias nacionais devem ser entendidas de acordo com a história
mundial; o Estado deve ser avaliado de acordo com a definição de liberdade
daquele período.
Mas esse espírito mundial assemelha-se a uma entidade metafísica superior
que coordena o processo. Diferentemente da Fenomenologia do Espírito, onde a
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
94
metafísica surge da dialética do concreto, na Filosofia da História toda a realidade
é julgada a partir desta metafísica. Daí a noção de Marcuse, de que a Filosofia da
História de Hegel representa uma ode ao processo de libertação da classe média
(Marcuse, 1978).
Independentemente disso, o que diferencia as duas obras e que leva a esse
diferente papel da metafísica, é o papel da dialética no sistema. Na
Fenomenologia, o negativo, o momento da negação – em última instância, o
momento da mediação, ou seja, da existência – era o centro do sistema. Já na
Filosofia da História, Hegel passa a dar maior ênfase ao momento da superação,
da síntese, isto é, do retorno da essência na existência, o universal concreto.
Assim, enquanto na Fenomenologia do Espírito, Hegel fala da “ puissance
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prodigieuse du négatif, l’énergie de la pensée” (1941:29), na Filosofia da
História, ele define história como “conciliação [que] só pode ser alcançada pelo
conhecimento do afirmativo, no qual desaparece o negativo” (1995:21). Não é
mais uma questão de transformação, de negação das condições reais, e sim de
aceitação da vontade do espírito consciente de si. Neste ponto, torna-se impossível
fugir da idéia de teleologia, e o próprio Hegel trata da providência como motor da
história e não mais a consciência (Hegel, 1995:63).
Ao final, a crítica marxista se mantém, quando vista de uma perspectiva
mais ampla. O mesmo, entretanto, não pode ser aferido à tese da historicidade,
conforme ela emerge da Fenomenologia do Espírito.
Historicidade é conceito desenvolvido no interior da tradição historicista,
que busca se contrapor à idéia de atingir a verdade através da metafísica. É a
tentativa de enfatizar a experiência histórica como única via humana de acesso ao
conhecimento da verdade. A origem da reflexão de historicidade está em Herder,
mas só foi sistematizada por Dilthey e Heidegger. Herder desenvolve o conceito
de historicidade (por ele denominado de humanidade e singularidade) como
característica positiva do homem.18 O adjetivo “histórico” deixa seu conteúdo
negativo, quando comparado à eternidade da divindade, para se definir como
característica essencialmente humana. É uma conseqüência da crítica de Herder ao
racionalismo radical do Iluminismo, que concebe a abstração do homem racional
universal. Em Herder, tal idéia é ainda embrionária. Faltava pensar o sentido da
18
Cf. Gadamer, 1988; Barnard, 1969; e Berlin, 1979.
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
95
história do mundo como o objetivo final da história sem, entretanto, dissolver as
diversidades históricas. Tal tarefa será desenvolvida à exaustão por Hegel.
Para Gadamer, o esquema histórico de Hegel é necessariamente
teleológico porque compreende a totalidade do processo histórico de acordo com
sua finalidade. Não obstante, sua originalidade está em conceber algo que é
próprio do homem sem, no entanto, conferir algum tipo de positividade ou
qualidade à consumação da história. Por conseguinte, não se trata de um fim da
história. A única essência imutável na história é a da própria necessidade de
transformação e atualização da consciência humana. A teodicéia histórica
desenvolvida por Hegel, que concebe a idéia da singularidade dos fatos históricos,
aliada à dialética, o movimento que busca a reconciliação dos contrários, confere
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ao conceito de verdade uma significação histórica.19 Em Hegel – quem primeiro
utilizou o substantivo “historicidade” para referir-se aos gregos –, a estrutura da
historicidade é a mesma do autoconhecimento.
“Graças a Hegel, o significado da história como tal foi pela primeira vez
colocado no centro do pensamento filosófico, tornando-se simétrica e homóloga
da teodicéia cosmológica. O debate bem conhecido sobre o fim da história,
travado no interior da escola hegeliana e no campo adversário, permanece a este
título como curioso mal-entendido, uma vez que Hegel foi justamente o primeiro
a justificar o autêntico valor ontológico da história com os meios da reflexão
filosófica” (Gadamer, 1988:105).
A base da historicidade é o elo entre a história e o ser da vida humana.
Para a teoria da historicidade hegeliana, o conceito de vida deve estar dentro de
sua historicidade e ser o conceito fundamental da ontologia. Segundo Marcuse,
Hegel se apropria do conceito de união transcendental e o reformula de tal forma,
que a vida – essencialmente histórica – passa a ser o fundamento do ser
cognoscente, até então ahistórico. Ela é, então, designada como modo de ser da
realidade, do mundo – característica de toda a realidade. É um todo dividido
infinitamente, mas que se mantém unido. A vida é a primeira determinação do
modo do ser, pois antes de refletir, é preciso existir, é preciso viver. A reflexão é
outro momento do ser, o momento da separação, mas não implica um abandono
da vida.
19
Ver Gadamer, 1988; Binoche, 1994; e Collingwood, 1981.
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
96
O elo entre vida finita e infinita, entre universal e particular se faz no
momento em que a vida é vivida como espírito (Marcuse, 1972:220). Neste
sentido, a reflexão, como modo de ser da vida, é um processo real, da vida total.
Neste momento, Marcuse aponta duas tendências que pautam a filosofia de
Hegel. Ambas estão relacionadas através do conceito de vida, idéia mentora
original, posteriormente superada pela idéia de saber. Nos escritos de juventude, o
espírito aparece definido a partir da vida. Já com a filosofia de Iena, é a vida que
aparece como modo do espírito (Hyppolite, 1955). Hegel, neste sentido, está
definindo a vida como conhecimento e, portanto, conduzindo sua ontologia para o
campo da vida humana. Como atividade de conhecer, o deslocamento da vida é,
assim, o deslocamento do homem. A história torna-se modo de ser da vida
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humana.
Entretanto, sendo a vida conhecimento, a historicidade acaba ausente da
história da vida. A verdade da vida é dada como saber absoluto e não histórica. A
Fenomenologia é a primeira e última tentativa de reunir as duas tendências
contraditórias em uma comunhão original, com vistas a fundar, historicamente, a
não historicidade do saber absoluto – como vida que é histórica traz em si a
possibilidade de ser não-histórica. Esta última tendência é a que prevalece na
Filosofia da História, onde Hegel não considera mais a historicidade como
determinação do ser da vida, mas analisa a história de forma não-histórica, a partir
do saber absoluto (Marcuse, 1972:234-235; Beiser, 1993).
A Fenomenologia do Espírito é, ao lado da Lógica, a obra que contém o
conceito original de vida e de história como historicidade interna ao espírito
(Marcuse, 1972). Nelas, a reinteriorização e a exteriorização são movimentos
decisivos do processo histórico. A conservação e superação do passado e o
desenvolvimento do futuro com base no passado são formas que assume o
“movimento dotado de saber” da consciência de si. Exatamente porque é histórica
e devido à sua historicidade, a vida pode se tornar espírito.
A vida é conceito central na Fenomenologia porque é o local onde a
consciência de si encontra seu objeto, ou seja, ela mesma (Marcuse, 1972;
Hyppolite, 1946). A vida é o meio em que os seres estabelecem uma mediação
entre si, por isso é autonomia infinita. A consciência de si é um modo desta
autonomia (um modo de vida). Porque tudo é vida, então, a relação entre
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
97
consciência e objeto não é mais de sujeito x objeto, mas a relação autonomia x
não-autonomia. Daí a vida ser uma totalidade em processo.
Conforme visto anteriormente, a vida é sempre “para outro”, porque
reflete a reciprocidade entre indivíduos autônomos. Neste sentido, é essencial à
vida o momento do reconhecimento, porque só aí ela se torna vida. Assim, o
processo de descoberta da alteridade – ilustrado pela dialética do senhor e do
escravo – é determinação ontológica da vida (Marcuse, 1972:247). É aquilo que
origina o processo da experiência da vida no mundo concreto em duas direções: o
desejo e o reconhecimento. Estes são determinações ontológicas da vida humana
em sua historicidade no processo concreto do mundo.
A consciência de si repete o movimento do processo da vida: o processo
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da individualidade primeiramente imediata, como desejo, e posteriormente
refletida, como reconhecimento. Aí se atinge a alteridade, que adquire, diante
deste movimento duplamente dividido, duas direções: como desejo, onde a
relação é entre sujeito e objeto; e como reconhecimento, onde é uma relação entre
sujeitos.
O desejo é o modo de ser da consciência, uma relação imediata inautêntica
que conduz à perda de essência (Hegel, 1941:146-147). O passo decisivo é a
passagem do desejo ao reconhecimento, à noção de realidade do ser não mais com
relação a objetos, mas a outras consciências, outros sujeitos. Esta noção de
processo da vida composto da dialética do “nós”, da oposição e da reciprocidade
entre consciências de si é o que introduz a dimensão da historicidade da vida.
Dimensão esta que está explícita no conceito de espírito – a substância que
permite a união refletida do ser e do nós (Marcuse, 1972:254-255).
Segundo Marcuse, o conceito de historicidade da vida é a necessidade
material de Hegel, uma vez que seu sujeito não é mais a consciência
transcendental de Kant e Fichte, mas um sujeito que experimenta o mundo. A
historicidade é enfatizada a partir do momento em que a consciência de si só é
plenamente real quando afirmada, sempre no movimento de se tornar realidade.
Assim, a consciência depende do estado atingido pelo desenvolvimento do
espírito mundial. A realização efetiva do espírito depende de conscientização
daquilo que já se afirmou, ou seja, tal como a consciência, o espírito também é
filho de seu tempo.
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
98
A realidade efetiva do ser, que é realidade da consciência e ao mesmo tempo
consciência dela mesma, é o espírito. A passagem da consciência racional ao
espírito é o desenvolvimento verdadeiro, oriundo do processo histórico, da
realidade efetiva da vida. O espírito é a totalidade da existência, ele é o mundo da
consciência de si se realizando. É a união da vida como consciência e como
objeto. O povo livre é a figura em que a vida se realiza como mundo espiritual
(totalidade). É aquilo que confere existência e realidade efetiva (racional) às ações
individuais. É a universalidade concreta; a transformação da consciência de si em
consciência universal. É a primeira figura do espírito como desenvolvimento
efetivamente real.
Assim como o indivíduo sujeito, o espírito sujeito apresenta os momentos
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de negação e mediação, ambos ligados ao tempo. Somente quando o espírito
apreende, assimila e supera as figuras passadas, isso é, as suas diferentes
exteriorizações, ele pode atingir o conhecimento da consciência de si e de sua
verdade. Da mesma forma que o indivíduo, a reinteriorização demonstra a
historicidade necessária do espírito, que é renúncia e transformação.
Daí a lei interna da historicidade: toda forma de vida se origina da
renúncia e auto-reflexão das formas de vida anteriores (Marcuse, 1972:325). Ela
permite agitação e transformação constante do espírito, mas também um sentido
de desenvolvimento, porque se acumula conhecimento. O mundo dos diferentes
espíritos constitui uma sucessão que não se desfaz no tempo, mas que, para Hegel,
é superada no tempo pelo espírito absoluto, que por sua vez supera o próprio
tempo (Marcuse, 1972:326). Daí a determinação essencial da história para Hegel:
a revelação do conceito absoluto. Mas a configuração do espírito absoluto ao final
da Fenomenologia não invalida a dialética do indivíduo como parte integrante e
ativa do espírito que o envolve.
A problemática da historicidade nasce, portanto, da centralidade que o
conceito de vida assume na ontologia hegeliana. Como meio universal ou
substância onipresente, a vida coloca imediatamente o problema da historicidade a
partir do momento em que tudo se realiza no tempo, a natureza, as leis, o espírito.
Neste sentido, a historicidade é o próprio fundamento do conhecimento, a base da
filosofia. Marcuse (1972) sustenta, com efeito, que este é o sentido profundo da
ontologia hegeliana. Ela dissolve completamente no processo histórico tanto o
conceito abstrato de homem, quanto o sistema natural.
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
99
3.4
A dimensão política: a Filosofia do Direito
Principalmente com Herder, a reflexão histórica passa de uma reflexão
orientada pela moralidade absoluta à noção de moral temporalizada, ou seja, a
história é concebida como um processo (Koselleck, 1997). Daí a frase síntese de
Schiller: “A história mundial é o tribunal mundial” ( Die Weltgeschichte ist das
Weltgericht.) – citada por Hegel na Filosofia do Direito. A constituição da história
como tribunal expõe a idéia de uma justiça (mundial) que se realizaria pela
história, e esta relação entre o processo histórico e o Estado é o principal centro
nervoso da Filosofia do Direito, de acordo com a perspectiva adotada neste
estudo.
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O propósito de Hegel, ao escrever o seu tratado sobre a política, era “to
comprehend and portray the state as an inherently rational entity” (Hegel,
1991:21). O Estado está, portanto, no centro de sua preocupação política, e não
mais o indivíduo, como era característico da tradição jusnaturalista de Hobbes,
Locke e Grotius. Neste sentido, Hyppolite, ao analisar os primeiros trabalhos de
Hegel, afirma que o indivíduo em Hegel é apenas uma abstração, pois a
verdadeira unidade orgânica – ou o universal concreto – era o povo (Hyppolite,
1968). Assim, o povo ocupa o lugar da conciliação entre objetivo e subjetivo, o
consciente e o inconsciente. É somente na esfera do povo que a intuição
intelectual se torna real, somente aí que a moral se realiza. Em resumo, o povo é o
tempo no espaço.
O espírito do povo é aquilo que reconcilia o dever ser com o ser, uma
realidade história que supera o indivíduo. Daí a idéia de que o Estado é uma
totalidade temporal, porque está necessariamente associado ao espírito do povo. O
Estado em Hegel é, antes de tudo, uma comunidade ética.
“Essa totalidade temporal é uma essência, o espírito de um povo. Os indivíduos
pertencem a ele; cada um é o filho de seu povo e, igualmente, um filho de seu
tempo – se o seu Estado se encontra em processo de desenvolvimento. Ninguém
fica atrás no tempo e muito menos o ultrapassa. (...) O espírito de um povo é um
espírito particular e determinado, e é também, como acabamos de dizer,
determinado pelo grau de seu desenvolvimento histórico” (Hegel, 1995:50).
Ao definir o povo como sujeito de sua teoria política, Hegel se coloca
entre o individualismo e o cosmopolitismo, pois a idéia central que ele desenvolve
é a de que a humanidade (o universal) só se realiza através dos povos distintos (o
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
100
singular).20 A noção de espírito assemelha-se à de comunidade religiosa. Com
efeito, Hyppolite argumenta que esta é a origem da noção de Sittlichkeit que
sintetiza as idéias éticas na teoria política hegeliana (Hyppolite, 1968). Mas longe
de advogar aqui a tese da divinização do Estado, o que cabe ressaltar é que esta
noção de espírito permite superar a esfera original do contrato como pilar da teoria
política em voga no século XVIII. Aqui, mais uma vez, Hegel encontra-se mais
próximo de Herder, que associa à nacionalidade as idéias de linguagem, costumes
e cultura comuns.
Nos seus primeiros escritos políticos, onde está em gestação o conceito de
Sittlichkeit, nada é superior ao espírito do povo.21 Mesmo a religião e a arte, que a
partir da Fenomenologia do Espírito, incorporam o espírito absoluto, estão
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incluídas nesta totalidade (Hyppolite, 1968). A idéia da comunidade ética é que
ela possa transcender a discussão entre racionalismo e empirismo, cara ao
Iluminismo.
A crítica ao empirismo é particularmente interessante para este
estudo, porque está direcionada diretamente às teorias da natureza humana e do
estado de natureza.
Em ambos dos casos, o Estado surge como oposição à natureza, como algo
imposto do exterior. É esta oposição que Hegel quer superar, através da idéia da
totalidade orgânica, o fundamento ontológico do indivíduo, aquilo que une a
particularidade da natureza e a universalidade do espírito. Quanto ao segundo
caso, do estado de natureza, a crítica é essencialmente lógica. Segundo Hegel, se o
estado de natureza é uma determinação absoluta, uma unidade absoluta original,
então, independentemente do Estado que se imponha do exterior, “ their [men’s]
only relationship consists in being many (...) they are destined to be mutually
opposed and in absolute conflict with one another” (Hegel, 1999:112). Se o
Estado é exterior, ele não resolve o dilema do estado de natureza. Ademais, este
estado de natureza é um a priori cuja determinação está no próprio a posteriori.
Ou seja, em última instância, é a conseqüência que determina a causa.
“In the state of nature or the abstraction of man, the isolated energies of the
ethical realm must be thought of as embroiled in a war of mutual annihilation.
For precisely this reason, however, it is easy to show that, since these qualities
20
É este meio termo entre individualismo e cosmopolitismo que chamou a atenção dos teóricos
atuais para a filosofia política hegeliana. Os comunitaristas, como eles se denominam, destacam
em especial a tese da Sittlichkeit. Cf. sobretudo Benhabib, 1994 e Taylor, 1995.
21
Cf. Hegel, 1999; e 1979.
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
101
are purely and simply opposed to each other and consequently purely ideal, they
cannot survive in this ideality and separation as they are supposed to do, but
cancel each other out and reduce each other to nothing.” (Hegel, 1999:112).
Com relação ao cosmopolitismo, a crítica de Hegel volta-se diretamente
contra o universalismo kantiano, afirmando que este perde totalmente o contato
com a realidade, passa a ser apenas uma tautologia, uma vez que se isola a
determinação de seu contexto, retirando-lhe sentido, e submete-a à forma mais
geral (Hegel, 1999; Hyppolite, 1968).
É o dilema dos impérios: extensão x
profundidade. Quanto mais extenso o domínio, menos articulado ao cotidiano dos
cidadãos, menor a legitimidade, portanto.
Diante das insuficiências da teoria política moderna, apontadas por Hegel,
a Filosofia do Direito constitui uma proposta alternativa à teoria do Estado
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moderno (Taylor, 1975; Avineri, 1972). A concepção de Estado ético, que emerge
da obra, simboliza a dupla crítica de Hegel à filosofia empirista de Hobbes, com
seu corolário do Estado utilitarista – devido à associação entre interesse e bem,
razão e cálculo, sendo objetivo do Estado a harmonia de interesses – e ao
idealismo formal de Kant, cuja doutrina da autonomia radical moral, baseada
(assim como o empirismo hobbesiano) no ideal de natureza humana, é vazia, sem
conteúdo. Daí a crítica ao formalismo kantiano, como um vácuo onde, ao final, a
racionalidade não é imanente, mas externa. É a universalidade formal imposta ao
homem onde só a idéia de liberdade negativa é possível (Taylor, 1975).
Toda a estrutura da obra – direito abstrato, moralidade, vida ética –
evidencia a versão hegeliana do processo dialético de formação do Estado
moderno. É neste sentido que Hegel define-a como uma abstração racional do
processo histórico de formação do Estado. Com efeito, Hyppolite argumenta que
uma das grandes críticas a esta obra é que não se sabe se ela é uma descrição
idealizada do Estado ou uma descrição histórica do seu processo de formação
(Hyppolite,
1968).
De
acordo
com
a
metodologia
exemplificada
na
Fenomenologia, trata-se de ambas as descrições; afinal, lembrando o paradoxo
hegeliano da historicidade do espírito absoluto (Marcuse, 1972), trata-se de uma
formulação do conceito de Estado de acordo com a história de sua formação.
O que é relevante para o tema do reconhecimento, no entanto, é que toda a
obra, todas as passagens entre direito abstrato e moralidade, e desta à vida ética (e
inserida neste último momento, entre família e sociedade civil, e posteriormente
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
102
Estado) está fundamentada no pilar do reconhecimento, seja com relação à
propriedade e ao desejo (como no direito abstrato e na sociedade civil) –
momentos por definição insuficientes – seja à alteridade e ao reconhecimento
recíproco da interdependência entre consciências de si (principalmente a
passagem da moralidade à vida ética e da sociedade civil ao Estado).
Na Fenomenologia, a consciência de si era primeiramente desejo, isto é,
uma relação destrutiva com a alteridade, relação de satisfação absoluta. Este é o
efeito da primeira tomada de consciência de uma alteridade: o desejo de
particularidade, negação da alteridade. Mas é apenas o primeiro momento. Por
conseguinte, a existência só se realiza efetivamente na luta entre consciências, na
dialética do senhor e do escravo. O resultado da luta é sempre um impasse porque
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o ser para si (o senhor) não pode abstrair-se de sua existência, que é
necessariamente para outrem. Aí se recupera o movimento do reconhecimento em
direção à incorporação da alteridade através do trabalho e da cultura. Daí a
afirmativa de Hyppolite de que a dialética do reconhecimento tem como produto
uma individualidade incompleta, que necessita da outra individualidade, ou seja, o
resultado é uma intersubjetividade.
Neste sentido, na Filosofia do Direito está implícita a idéia de que apenas
no Estado o indivíduo atinge sua plena autonomia, ou seja, onde ele é unidade na
alteridade. É um Estado visto como esfera que aglutina as experiências de trabalho
e cultura (Bildung) dos diferentes indivíduos, isto é, não é uma instituição superior
ou externa aos indivíduos, mas o conjunto da própria comunidade; é o espírito
daquela comunidade objetivado na realidade, é a chamada Sittlichkeit, ou vida
ética. Não é, entretanto, um Estado totalitário como alguns críticos o designam,
porque mesmo sendo espírito, ele está objetivado, não está na sua essência
(porque o momento da existência é aquele da mediação, da negação, da nãoessência). Por conseguinte, não pode ser um Estado absoluto; seu direito não pode
ser absoluto porque neste caso imobilizaria o próprio processo histórico. De fato,
Hegel afirma categoricamente, e diversas vezes ao longo do texto, que o direito do
Estado está sempre submetido ao processo histórico mundial.
“ The right of the state is therefore superior to the other stages: it is freedom in its
most concrete shape which is subordinate only to supreme absolute truth of the
world spirit” (Hegel, 1991:64).
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
103
Hegel define o direito essencialmente como espírito, e assim sendo, como
vontade (1991; §04); porque a base do direito é o espírito, seu ponto de partida
passa a ser a vontade (inerente ao espírito). Uma vez que vontade e pensamento
desenvolvem uma relação dialética, pois são superficialmente distintos, mas partes
de um mesmo todo (espírito), ela permite a atualização do direito na realidade,
representa o elemento ativo do processo, o elemento particular, que refletido no
universal (espírito), produz o singular, o direito: “ the theoretical is essentially
contained within the practical (...) It is equally impossible to adopt a theoretical
attitude or to think without a will, for in thinking we are necessarily active”
(Hegel, 1991:36).
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Mas vontade é diferente de arbítrio: “arbitrariness is contingency in the
shape of will” (Hegel, 1991:48). A liberdade não deve ser confundida com
arbitrariedade, pois a contingência é o conteúdo do arbítrio, conseqüentemente o
“eu” deste arbítrio também é dependente desta contingência exterior, portanto não
é livre. De fato, a relação arbitrária é imediata. Neste sentido, passa a ser conteúdo
da ciência do direito a transformação das inclinações, impulsos (“ drives”) em um
sistema racional de vontades determinadas. A vontade só é livre através do
processo de mediação da consciência de si, ou seja, via reflexão. A consciência de
si refletida em si diferencia-se da contingência e constitui princípio do direito, da
moralidade e da ética.
Na Filosofia do Direito, a esfera da vida ética é definida como síntese
(conseqüentemente, superação) da esfera do direito abstrato e da moralidade.
Segundo a lógica dialética de Hegel, o primeiro momento, ou o direito abstrato,
supera seu imediatismo através da penalidade, voltando-se para a esfera subjetiva
da moralidade. Não se encontra aí, como argumenta Marcuse (1978:200), um
mecanicismo; afinal, o erro, através da penalidade, é o componente dialético desta
passagem. Assim, o direito, que era vontade imediatamente objetivada na
realidade no primeiro momento, retorna em si através do processo de mediação e
auto-reflexão, transformando-se em vontade subjetiva, lócus do interesse e da
conscientização da diferença. Neste momento de moralidade, o direito, que era
proibição na imediaticidade do direito abstrato, mantém-se como obrigação mas
ainda não passa à esfera do mundo objetivo. Essa passagem dialética da
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
104
moralidade subjetiva para o mundo objetivo marca a base da vida ética, ou seja, o
processo de objetivação da vontade particular refletida no universal:
“The sphere of right and that of morality cannot exist independently; they must
have the ethical as their support and foundation. For right lacks the moment of
subjectivity, which in turn belongs solely to morality, so that neither of the two
moments has any independent actuality.” (Hegel 1991:186)
Aqui fica claro que, através da concepção de individualidade incompleta
ou intersubjetividade que permeia sua noção de sujeito, Hegel desloca o pólo de
gravidade da filosofia política, do indivíduo para a comunidade. Os indivíduos são
definidos pela comunidade a que pertencem. Mas é sempre importante lembrar
que, assim como Hegel nega o utilitarismo do Estado, ele também o faz com
relação à visão utilitarista dos indivíduos como instrumentos para realização do
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Estado (Taylor, 1975). A relação entre indivíduo e Estado não é a de meios e fins,
mas uma relação orgânica: seres humanos só são humanos em uma comunidade
cultural – é a dialética da consciência de si e do reconhecimento. A cultura passa a
ser a esfera definidora do ser humano e de sua sociedade; ela molda tanto as
experiências públicas quanto privadas. Assim, “ this universality, as the quality of
being recognized is the moment which makes isolated and abstract needs, means
and modes of satisfactions into concrete, i.e. social ones.” (Hegel, 1991:229).
De fato, a esfera da vida ética é aquela em que a idéia de liberdade como o
bem real cuja vontade e conhecimento faz parte da consciência de si e cuja
atualidade está engendrada na ação autoconsciente: “ Ethical life is accordingly
the concept of freedom which has become the existing world and the nature of self
consciousness”
(Hegel, 1991:189). Esta idéia de liberdade manifesta-se
primeiramente na família, sendo então imediata e, portanto, não essencial,
posteriormente na sociedade civil, aí como liberdade negativa, pois é a esfera da
propriedade (e do desejo), e finalmente como liberdade mediada, refletida, no
Estado.
A substância ética atinge seu direito através dos costumes e o direito, sua
validade também via costumes, porque é aqui que oposição entre consciência
particular e consciência da comunidade (ética) se dissolve a partir da mediação
(processo mediado e não imediato) – Hegel 1991: §152. Somente no mundo
exterior, ou seja, na esfera da vida ética, podem os indivíduos atingir a liberdade
real por eles postulada na esfera da moral (aí ainda abstrata). Por isso, vida ética
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
105
supera a moralidade e indivíduo atinge seus direitos somente através do
pertencimento a um Estado (Hegel, 1991: §153).
A noção de Sittlichkeit propõe, por conseguinte, que a moralidade atinge
sua acepção completa somente na esfera da comunidade. Aqui, Hegel recupera e
flexibiliza o conceito de moral kantiano. Ao historicizar o conceito de imperativo
categórico no conceito de Sittlichkeit, Hegel propõe um equilíbrio entre razão e
sensação (Wood 1993). Segundo a filosofia hegeliana, os conceitos de indivíduo e
subjetividade só atingem significado concreto no sistema social da vida ética.
Considerando que a vida ética se objetiva na liberdade do ser, é através de uma
ordem social racional que a dimensão ética se realiza plenamente. Esta liberdade
só pode ser atingida socialmente colocando a ética não como uma esfera
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coercitiva diante das vontades humanas, mas como esfera libertária (Wood
1993:229).
Porque o reconhecimento é o elemento central da definição hegeliana de
Sittlichkeit, não pode estar separado da noção de Estado, que em Hegel é a esfera
síntese da vida ética. Segundo Avineri, o momento ético que representa o Estado é
a união entre a consciência subjetiva e a ordem objetiva, por isso o
reconhecimento é a base do Estado ético, já que a ação humana tem origem na
vontade subjetiva (Avineri 1972:178). Conseqüentemente, o conceito de
reconhecimento também se faz central na teoria da soberania de Hegel, crucial
para sua concepção de relações internacionais.
A idéia de soberania de Hegel está vinculada à noção de individualidade.
Neste sentido, ele afirma que:
“Sovereignty, which is initially only the universal thought of this ideality, can
exist only as subjectivity, which is certain of itself and as the will’s abstract (...)
self-determination in which the ultimate decision is vested. This is the individual
aspect of the state as such, and it is in this respect alone that the state is itself
one” (Hegel, 1991: §279).
Em Hegel, o Estado depende dos indivíduos, pois a liberdade concreta
depende da individualidade pessoal e de seus interesses para se realizar. Assim, o
universal não atinge validade e reconhecimento sem o interesse, a vontade e o
conhecimento do particular. No entanto, indivíduos ao reconhecerem-se como
interdependentes desenvolvem não somente sua subjetividade, mas também sua
objetividade, ou seja, seu universal, por isso agem conscientemente para este fim
(Hegel, 1991:§260).
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
106
Assim, a teoria da soberania em Hegel está subdividida em duas. A
soberania interna realiza-se quando os momentos do espírito e sua atualização, o
Estado, desenvolvem-se em sua necessidade e subsistência como membros da
totalidade do Estado. Mas o espírito é também ser para si, ou seja, além da
unidade, é constituído pelo elemento de exclusividade. Neste sentido, o Estado
tem individualidade (Hegel, 1991:§321). A soberania externa reflete a posição
negativa da individualidade – a mediação e a negação. Na Filosofia do Direito,
estes dois momentos representam, respectivamente, a diplomacia e a guerra.22 Em
Hegel, a reflexão sobre a guerra como momento ético chama bastante atenção,
relegando a um segundo plano sua idéia de soberania.
A análise sobre a dimensão internacional da realidade social está
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subdividida na Filosofia do Direito no momento da guerra e na idéia de soberania.
Esta, por sua vez, subdivide-se em duas: a soberania interna e a externa. Mas
porque a soberania em Hegel está associada à noção de individualidade do Estado,
ambas as soberanias são relativas, ou seja, dependem do reconhecimento de
outrem. Aí a associação deve ser feita com o processo de construção da
individualidade descrito na Fenomenologia. Daí a argumentação de Shlomo
Avineri de que, assim como ocorre com a consciência de si, somente através do
reconhecimento externo de sua soberania o Estado pode ser definido enquanto tal.
Daí que: “there is nothing more dialectical than Hegel’s assertion that is
precisely in the moment of sovereignty which appears as power unlimited by any
other factor, that the ultimate limitation of the State’s action is inherent” (Avineri
1972:204).
Mas Hegel define expressamente a esfera internacional como o campo da
contingência, do estado de natureza (Hegel, 1991: §333). Embora a dimensão
internacional esteja definida como sistema de costumes onde se alternam
momentos de guerra e de paz, ela é ainda um lócus de contingência. Todavia é
preciso analisar com cuidado a definição de estado de natureza utilizada por
Hegel.
“But since the sovereignty of states is the principle governing their mutual
relations, they exist to that extent in a state if nature in relation to one another,
and their rights are actualized not in a universal will with constitutional powers
over them, but in their own particular wills” (1991: §333).
22
Para a reflexão sobre a guerra como momento ético de atualização do Espírito ver § 323-324 da
Filosofia do Direito. Avineri (1972) e Hyppolite (1968) apresentam sínteses da visão hegeliana da
guerra.
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
107
Na realidade, as relações internacionais constituem-se em estado de
natureza porque não existe um poder coercitivo superior capaz de impor-se sobre
a vontade dos Estados particulares. Assim, para Hegel o estado de natureza que
caracteriza a esfera internacional não é um princípio metafísico pré-social, como é
típico da definição de estado de natureza no jusnaturalismo. Esta definição de
estado de natureza como etapa pré-social é amplamente criticada por Hegel em
seu ensaio sobre o direito natural (Hegel, 1999). Como fora visto no capítulo
anterior, Norberto Bobbio (1991) considera este ensaio um dos elementos
responsáveis pelo fim da tradição jusnaturalista.
Além disso, Hegel define a soberania estatal como a força que coordena as
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relações entre Estados no plano internacional. Mas como fora visto anteriormente,
a soberania é definida por Hegel como individualidade, portanto, pressupõe um
processo de conscientização e afirmação diante de outras individualidades, no
caso, de outro Estados, ou seja, pressupõe um processo de reconhecimento.
Assim, o estado de natureza ao qual Hegel se refere para definir as relações
internacionais trata-se antes de um estado de luta pelo reconhecimento, processo
similar à constituição das consciências como individualidades, descrito na
Fenomenologia.
Hegel é bastante criterioso ao definir o internacional. Ele localiza a
dialética do particular e do universal através dos processos de reconhecimento que
se estabelecem no plano internacional, podendo constituir guerra ou tratados. Daí
a afirmativa que mesmo em períodos de guerra, o reconhecimento se mantém
porque é ele que permite a própria existência da guerra (1991: §338). Deste modo,
na Filosofia do Direito, mesmo que os Estados sejam definidos como totalidades,
estes, ao atuarem no sistema internacional, agem como individualidades. Daí ser
necessária a esfera da alteridade, do reconhecimento externo, assim como ocorre
com as consciências (Avineri, 1972).
A apologia da guerra no final da Filosofia do Direito poderia levar
erroneamente à conclusão de que o Estado hegeliano é expansionista e autoritário,
em resumo, uma teorização do Estado prussiano. Com efeito, esta é a conclusão
de uma série de críticos (Marx, 1970; Taylor, 1975; Marcuse, 1978; Popper, 1974;
Cassirer, 1976). Mas fazendo analogia ao processo de reconhecimento, que é a
base da ontologia hegeliana, assim como há luta pelo reconhecimento, há
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
108
constituição de uma cultura e hábitos intersubjetivos que conferem realidade às
consciências. O mesmo ocorre no plano internacional.
3.5 Conclusão
O sistema hegeliano está, portanto, fundamentado em uma ontologia da
historicidade. Porque Hegel concebe o homem como ser histórico e social, o
processo de conscientização só se completa por meio da dialética do
reconhecimento. Isto permite a construção de uma lógica de pensamento que é em
si dinâmica, pois parte do princípio da dialética do universal e do particular. Tudo
na filosofia hegeliana está definido em termos de universal, particular, singular. É
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a relação constante entre estes momentos do ser que permite o dinamismo
característico de seu sistema. O processo de reconhecimento evidencia estas
passagens constantes. A partir dele é possível pensar individualidade e alteridade
através da idéia de intersubjetividade que é latente no pensamento hegeliano.
Diferentemente da noção de História como exteriorização do espírito, idéia
esta que traz em si a teleologia do saber absoluto, a noção de historicidade é
dinâmica e permite associar continuidade e transformação. Ela está, enfim,
associada diretamente à noção de reconhecimento, pois, conforme será visto no
capítulo seguinte, o reconhecimento é composto de dois momentos, o autoreconhecimento e o reconhecimento recíproco. Ambos são cruciais para a relação
de intersubjetividade e historicidade que formam o sujeito hegeliano.
No plano da filosofia política, as noções de historicidade e reconhecimento
são a base da concepção de Sittlichkeit, ou vida ética. O Estado é assim concebido
como uma das instituições da vida ética, ao lado da família e da sociedade civil. A
forma como esta institucionalização se dá também pode ser lida via a lógica do
reconhecimento e, de fato, assim o será no próximo capítulo. O que é relevante
neste momento é que diferentemente do jusnaturalismo característico das análises
da Escola Inglesa, na ontologia hegeliana está voltada para o caráter social e
histórico que pautam as ações humanas. Daí ser a origem da teoria social, de
acordo com a análise de Marcuse (1978).
Como fora visto no capítulo anterior, a esfera do reconhecimento
internacional é componente essencial da idéia de sociedade internacional. A
ontologia hegeliana, uma vez centrada sobre esta idéia primordial de
A perspectiva hegeliana e suas antinomias
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reconhecimento, partilha este princípio com a definição original de sociedade
internacional. Portanto a idéia de sociedade internacional e a lógica do
reconhecimento não estão fundamentadas em princípios opostos entre si. Ao
contrário, a associação destes dois conceitos permite uma leitura dialética da
sociedade internacional espaçando, conseqüentemente, do imobilismo.
O reconhecimento implica tanto conflito, quanto reconciliação. Assim, o
movimento deste reconhecimento se faz por meio da cultura diplomática, que
pode levar a conflito (guerra) ou reconciliação (direito). No plano internacional,
este processo encontra-se em aberto, diferentemente do plano individual. A
sociedade internacional está, por conseguinte, pautada sempre por conflito e
reconciliação. Isto conduz à noção de Sittlichkeit. Possíveis instituições de uma
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sociedade internacional podem ser pensadas em termos de Sittlichkeit, pois esta é
a esfera em que se institucionaliza o processo do reconhecimento. Em última
instância, estas instituições refletem o processo histórico de reconhecimento entre
as nações.
É em direção a estes temas, com o intuito de incorporar a noção de
reconhecimento ao conceito de sociedade internacional, que este trabalho volta
agora.
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