CAMPANHA NACIONAL DE ESCOLAS DA COMUNIDADE FACULDADE CENECISTA DE CAPIVARI – FACECAP PEDAGOGIA SURDEZ E ORALISMO MARILIA BORTOLETO PIRES Capivari, SP 2014 CAMPANHA NACIONAL DAS ESCOLAS DA COMUNIDADE FACULDADE CENECISTA DE CAPIVARI – FACECAP PEDAGOGIA SURDEZ E ORALISMO Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia da FACECAP/CNEC Capivari, para obtenção do título de Pedagogo, sob a orientação da Prof.ª Me. Elizaete Costa Arona. MARILIA BORTOLETO PIRES Capivari, SP 2014 FICHA CATALOGRÁFICA P746s PIRES, Marília Bortoleto. Surdez e Oralismo/ Marília Bortoleto Pires. Capivari - SP: CNEC, 2014. 42 p. Orientadora: Prof.ª Me. Elizaete Costa Arona Monografia apresentada ao curso de Pedagogia 1.Memorial 2.Autobiografia 3.Surdez 4.Oralismo 5. Deficiência auditiva 6. Educação. I. Título. II Faculdade Cenecista de Capivari. CDD. 371.9 DEDICATÓRIA Primeiramente a Deus, que me deu todas as oportunidades que hoje tenho, assim também a minha querida mãe, que me ensinou os caminhos certos para andar, que acreditou ser esse sonho possível e contribuiu intensamente para que me tornasse um ser humano digno e de caráter, uma pessoa pela qual não esperava que me tornasse professora, hoje graças ao seu esforço, seu amor e sua fé o sou. Ao meu pai, que mesmo não estando mais entre nós, contribuiu com sua lição de vida, para que eu tenha caráter e humildade. E também a minha fonoaudióloga, parceira que acreditou na minha capacidade de evoluir e como minha mãe sempre fala, “ela é o anjo que Deus enviou para nos orientar e nos ajudar”. Enfim, a todas as pessoas, como meus colegas, professores, família, que contribuíram para o meu crescimento espiritual, social e escolar. Muito obrigada! Amo todos vocês. AGRADECIMENTO Quero agradecer primeiramente a Deus por ter a família que tenho, por ter meus amigos, pela oportunidade de chegar onde estou, não estaria me formando como professora, sem o desempenho, a luta, a fé, o amor da minha querida mãe Neusa Aparecida Bortoleto Pires, do meu Pai Adilson José Lopes Pires (em memória), do apoio da minha família, principalmente da minha fonoaudióloga, segunda mãe de coração, minha professora e é claro minha orientadora Prof.ª Me. Elizaete Costa Arona. Quero agradecer as minhas colegas de estudo especialmente Eliane Colen, Janaina Helena, Solange Magno, Cristiane Lima, Sirlei Daniela Gonçalves, Suzana Fernandes, minhas amigas queridas, sempre “puxando” minha orelha para me esforçar nos estudos e a todas as alunas que cursaram Pedagogia comigo, pela paciência e incentivo, que sempre em meus momentos de timidez chamavam atenção dos professores para nunca ficar de costas para mim. Quero agradecer a todos os professores, coordenadoras e direção pela preocupação em atender à minha necessidade da deficiência e meus estudos. Agradeço minha avaliadora Cláudia B.C. de Nascimento Ometto pela direção e sugestão. Quero agradecer Sr. Mário Lemblo e Sr. André Lemblo pela confiança e pelo recurso financeiro para que pudesse pagar o meu curso. A Marta Araújo e Sileide Tavares pelas revisões e correções ortográficas. A todas as pessoas que passaram pela minha vida deixando suas marcas e outras que foram passageiras, de alguma forma contribuíram para o meu crescimento como pessoa com caráter e dignidade. Obrigada a todos, por tudo. Você precisa ser surdo para entender... Como é “ouvir” uma mão? Você precisa ser surdo para entender! O que é ser uma pequena criança na escola, numa sala sem som com um professor que fala, fala e fala e, então quando ele vem perto de você ele espera que você saiba o que ele disse? Você precisa ser surdo para entender! Ou o professor que pensa que para torná-lo inteligente você deve, primeiro, aprender como falar com sua voz assim colocando as mãos no seu rosto por horas e horas sem paciência ou fim até sair algo indistinto assemelhado ao som? Você precisa ser surdo para entender! Como é ser curioso na ânsia por conhecimento próprio com um desejo interno que está em chamas e você pede a um irmão, irmã e amigo que respondendo lhe diz: “Não importa”? Você precisa ser surdo para entender! Como é estar de castigo num canto embora não tenha feito realmente nada de errado a não ser tentar fazer uso das mãos para comunicar a um colega silencioso um pensamento que vem, de repente, a sua mente? Você precisa ser surdo para entender! Como é ter alguém a gritar pensando que irá ajudá-lo a ouvir ou não entender as palavras de um amigo que está tentando tornar a piada mais clara e você não pega o fio da meada porque ele falhou? Você precisa ser surdo para entender! Como é quando riem na sua face quando você tenta repetir o que foi dito somente para estar seguro que você entendeu e você descobre que as palavras foram mal entendidas? E você quer gritar alto: “Por favor, me ajude, amigo! Você precisa ser surdo para entender! Como é ter que depender de alguém que pode ouvir para telefonar a um amigo ou marcar um encontro de negócios e ser forçado a repetir o que é pessoal e, então, descobrir que seu recado não foi bem transmitido? Você precisa ser surdo para entender! Como é ser surdo e sozinho em companhia dos que podem ouvir e você somente tenta adivinhar, pois não há ninguém lá com uma mão ajudadora enquanto você tenta acompanhar as palavras e a musica? Você precisa ser surdo para entender! Como é estar na estrada da vida encontrar com um estranho que abre a sua boca e fala alto uma frase a passos rápidos e você não pode entendê-lo e olhar seu rosto porque é difícil e você não o acompanha? Você precisa ser surdo para entender! Como é compreender alguns dados ligeiros que descrevem a cena e fazem você sorrir e sentir-se sereno com a “palavra falada” de mão em movimento que torna você parte deste mundo tão amplo? Autores: Willerd e Madsen PIRES, Marilia Bortoleto. Surdez e Oralismo. Trabalho de Curso. Curso de Pedagogia. Faculdade Cenecista de Capivari - CNEC. p. 42, 2014. RESUMO O tema é Surdez e Oralismo, baseado na minha autobiografia. Escolhi esse tema devido as dificuldades encontradas durante meu desenvolvimento como pessoa. O objetivo desta pesquisa busca relatar dificuldades e conquistas durante o meu desenvolvimento cognitivo e da linguagem, na interação social e no processo emocional, buscando através de leituras de autores como Launay e Borel-Maisony; Lopes Filho; Quadros e Moura e artigos como Documentos do MEC, relacionando-os aos relatos apresentados por mim, pela minha mãe, e da fonoaudióloga e dos professores. Buscou assim responder a principal questão: Pode o surdo oralizado, tendo a língua portuguesa como a primeira língua, ter maior chance de concluir o ensino superior na atual realidade da educação brasileira? O método utilizado foi o memorial autobiográfico em forma de narrativa. Posso concluir, concordando com Vygotsky que ao destacar que o sujeito não se torna sujeito ativo sem a interação com o próximo, confirmo que minha aprendizagem não teria ocorrido sem ajuda do outro, ou seja, a minha comunicação tanto como gestos, sinais, fala, escrita, expressão corporal e facial, começou a partir do momento que interagi com o outro e me desenvolvi. Minha experiência mostra que é possível um surdo profundo ter um desenvolvimento nos estudos e concluir o curso superior, desde que este consiga se comunicar. Palavras-chave: 1.Memorial 2.Autobiografia 3.Surdez 4.Oralismo 5. Deficiência auditiva 6. Educação. LISTAS DE ILUSTRAÇÕES Imagem 1- Audiograma ........................................................................................................... 19 Imagem 2- Helen Keller .......................................................................................................... 30 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10 1. COMPREENDENDO A SURDEZ E OS MÉTODOS DE DESENVOLVIMENTO DE LINGUAGEM PARA O SURDO ........................................................................................ 15 1.1 O que é audição? ....................................................................................................... 15 1.2 O que é surdez? ......................................................................................................... 17 1.3 Métodos de desenvolvimento para linguagem do surdo ........................................... 20 1.3.1 Língua Brasileira de Sinais ........................................................................... 21 1.3.2 Oralismo com a Língua Portuguesa .............................................................. 22 1.3.3 Bilinguismo................................................................................................... 24 2. MINHA HISTÓRIA DE SUPERAÇÃO.......................................................................... 25 2.1 O dia em que minha mãe descobriu minha surdez .................................................... 25 2.2 Perdas de audição ao decorrer da minha vida............................................................ 27 2.3 O primeiro passo ....................................................................................................... 29 2.4 Parceria da família com a Escola .............................................................................. 33 2.5 Experiência de Aprendizado no ensino Fundamental I............................................. 35 2.6 Experiência de Aprendizado no ensino Fundamental II ........................................... 35 2.7 No Ensino Médio ...................................................................................................... 36 2.8 Ensino Superior ......................................................................................................... 37 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 39 REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 40 INTRODUÇÃO Meu nome é Marilia, nasci dia 18 de Dezembro de 1992, na cidade de Capivari, interior de São Paulo. Ao primeiro ano de vida fui diagnosticada com Perda Auditiva Neurossensorial Profunda em ambas as orelhas, faço uso de aparelho auditivo apenas no lado esquerdo devido as características da minha perda auditiva. O silêncio para mim é o meu mundo, nunca havia ouvido antes. Hoje percebo que quando alguém descobre que é surdo, parece que tudo passa a ser problema. Como se surdo não pudesse viver sem sons, existe um fator real que torna os sons importantes, mas o silêncio é o nosso mundo. É assim! Minha família é composta por meu irmão gêmeo masculino e um irmão quatro anos mais velho, moro com minha mãe, meu pai já é falecido. Hoje sou uma jovem de 21 anos me graduando na área de Pedagogia. Como formação profissional escolhi ser professora de LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais) em escolas e universidades num futuro próximo. Busquei compreender a palavra surdez, e segundo Lopes Filho “tem sido empregada para designar qualquer tipo de perda de audição, parcial ou total. Recentemente a surdez adquiriu novo significado. Surdo é um termo muito forte e depreciativo da condição do individuo, daí a tendência atual em utilizar „deficiência auditiva‟ em seu lugar.” (LOPES FILHO, 1997 p.7). Porém hoje nós os surdos preferimos ser chamados de surdos, pois não nos consideramos deficientes, sendo esta uma característica pessoal, como algo da minha personalidade. Faz parte de mim. Segundo o MEC (Ministério de Educação e do Desporto), deficiência auditiva é: [...] a diminuição da capacidade de percepção normal dos sons, sendo considerado surdo o individuo cuja audição não é funcional na vida comum, e parcialmente surdo, aquele cuja audição, ainda que deficiente é funcional com ou sem prótese aditiva. [...] Existem dois tipos principais de problemas auditivos. O primeiro afeta o ouvido externo ou médio e provoca dificuldades auditivas “condutivas”, normalmente tratáveis e curáveis. O outro tipo envolve o ouvido interno ou nervo auditivo. “Chama-se surdez neurossensorial.” (BRASIL, 1997 p.31). A Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) foi oficializada como língua oficial do surdo brasileiro por meio da LEI Nº 10.436, de 24 de abril de 2002. (BRASIL, 2002). Antes deste período, era frequente que os profissionais especializados em trabalhar a comunicação do surdo recebessem em sua formação orientação para o trabalho com o foco oralista, defendendo ser este o melhor método a ser utilizado, desvalorizando assim a Língua de Sinais, uma vez que esta era utilizada em núcleos e comunidades de surdos. Na minha vivência diante da surdez não tive acesso a uma comunidade surda ou a uma 10 associação de surdos que me auxiliasse no processo de desenvolvimento durante o ensino fundamental. Foi necessário minha família buscar apoio de profissionais especialista para aprender a lidar com minha dificuldade, sendo orientada a trabalhar com minha oralização. Somente na adolescência tive maior contato com outros surdos e ao observar estes colegas surdos que usavam a LIBRAS como forma de comunicação, pude descobrir que eu não tive grandes dificuldades no processo de educação, mas percebi que outros colegas surdos usuários de LIBRAS, ao terminarem sua escolarização básica não eram capazes de ler e escrever fluentemente ou deter domínio sobre os conteúdos pertinentes a este nível de escolarização. Diante deste dilema, decidi fazer um memorial com relatos da minha experiência como surda oralizada, que tem como primeira língua o português, apresento como se deu meu processo de interação social e desenvolvimento educacional. Escolhi como metodologia o método autobiográfico, visando contar a minha própria história, relacionando-a à visão de vários autores sobre o tema. Assim, é importante compreender o que seja Memorial Autobiográfico que segundo Brandão é “quando resgatamos as narrativas dos sujeitos trabalhamos com a lembrança única, a experiência solitária da qual o informante é a única testemunha”. (BRANDÃO, 2005, pág. 02). Apoiei também na definição de Severino para explicar minha escolha pelo método: O Memorial constitui, pois, uma autobiografia, configurando-se como uma narrativa simultaneamente histórica e reflexiva. Deve então ser composto sob a forma de um relato histórico, analítico e crítico, que dê conta dos fatos e acontecimentos que constituíram a trajetória acadêmico-profissional de seu autor, de tal modo que o leitor possa ter uma informação completa e precisa do itinerário percorrido. Deve dar conta também de uma avaliação de cada etapa, expressando o que cada momento significou as contribuições ou perdas que representou. (2000. p. 175-176 Apud SANTOS, 2005, s/p) E em Silvana Goulart compreendi que o memorial é: A lembrança é uma experiência individual que nasce múltiplas camadas de experiência sociais. Cada memória pessoal é singular, mas aponta para um recorte da memoria coletiva. A apreensão desse coletivo se faz a partir do enquadramento dado por aquele que se lembra. A memória individual transforma-se em fonte histórica, pois as pessoas são impregnadas de elementos que ultrapassam suas próprias existências e que aludem aos conteúdos comuns dos grupos nos quais se inserem. A história se concretiza a cada instante nas vidas particulares, e a memória do grupo se imprime e se revela nas rememorações pessoais. (GOURLAT, 1997, p.234). 11 Desta forma o método que utilizo nada mais é que contar minha própria história. Ela surgiu teoricamente como método científico, que é explicado por Severino como um: [...] instrumento pedagógico, o Memorial tinha como objetivo contribuir para suscitar reflexões sobre Sociedade e Educação, oferecendo aos sujeitos participantes a oportunidade de pensar sobre si mesmos no conjunto de relações que se estabelecem no processo de formação social e educacional. Sendo assim, tem-se a pretensão de compartilhar associações, articulações, descobertas, reflexões e possibilidades que foram tergiversadas durante o Seminário e que permitiram pensar no Memorial de Formação como um instrumento pedagógico promotor de demandas reflexivas frente ao vivido e a atualidade, inseridas no contexto social passado e presente, num movimento que envolve ações estruturais políticas, estatais e institucionais, com atuação sobre os sujeitos de forma recursiva na vida em sociedade. Um movimento que muitas vezes impede os sujeitos de pensarem sobre suas próprias condições sociais de vida e que estas condições não são apenas suas, mas de todo um conjunto social. Embora, se reconheça que há particularidades que são próprias de cada sujeito, há nele um sujeito, coletivizado pelo processo de socialização, como nos diz Severino: “A história particular de cada um de nós se entretece numa história mais envolvente da nossa coletividade”. (SEVERINO, 2001, p. 175 apud SANTOS JUNIOR e SILVA, 2005, s/p). Compreendi que é um método recente, sendo este uma escrita em forma de narrativa segundo esses mesmos autores os resultados e possibilidades podem ser: Durante a apresentação dos Memoriais, observou-se que eles são instrumentos pedagógicos que trazem inúmeras fontes de pesquisa, embora se reconheça que a forma autobiográfica narrativa carrega em si uma carga de subjetividade não encontrada em outros instrumentais pedagógicos. No entanto, é valido ressaltar que subjetividade e objetividade se não andam par e passo e são dictomizados na ação reflexiva. (SANTOS JUNIOR, SILVA, 2005, s/p). Ao estudar os autores Santos Junior e Silva, compreendi que em sua pesquisa se basearam na definição de Freire ao relatar que o Memorial transforma-se em subjetivismo e objetivismo, assim: Confundir subjetividade com subjetivismo, com psicologismo, e negar-lhe a importância que tem no processo de transformação do mundo, da historia, é cair num simplismo ingênuo. É admitir o impossível, um mundo sem homens, tal qual a outra ingenuidade, a do subjetivismo, que implica homens sem mundo. Não há um sem os outros, mas ambos em permanente integração. (FREIRE, 1987, p. 37 apud SANTOS JUNIOR, SILVA, 2005, s/p). Estes autores me mostraram também que os trabalhos desenvolvidos em forma de Memoriais são instrumentos pedagógicos reflexivos, pois: a) Promovem a articulação entre vivências sociais e educativas no contexto em que ocorrem; 12 b) dão ressignificação ao espaço, ao tempo e ao lugar vividos, ressituando-os; c) permitem que se teçam interconexões entre as diferentes histórias de vida dos sujeitos em termos políticos, sociais, educacionais e familiares; d) fomentam reflexões sobre as condições materiais nas quais se produziram determinados processos educativos; e) denotam diferentes formas culturais de vida, de educação, de sociabilidade e de valores humanos; f) trazem à tona a vida real e concreta do cotidiano social e educativo, como foi experienciado, carregado de afetos, de marcas e de sentimentos; g) possibilitam que o sujeito se pense como parte integrante de uma história social que não é só sua, identificando-se com as demais histórias; h) enfim, incrementam a religação de saberes por demonstrarem diversas formas de ensinar e de aprender. (SANTOS JUNIOR, SILVA, 2005, s/p). Ainda sob a visão de uma pedagogia com pesquisa baseada na construção social, os autores veem como possibilidade considerar o Memorial de Formação Escolar e Social como um importante modelo de trabalho acadêmico poderá, pois este permite: a) Ampliar o acervo de trabalhos de pesquisas sobre Sociedade e Educação; b) contribuir com dados para a construção de uma cartografia da Educação Básica Brasileira das últimas décadas do século passado c) disseminar as experiências sociais e educativas exitosas registradas nos Memoriais através de publicações em revistas, coletâneas de artigos, entre outras; Assim sendo, os pensamentos e ações dos educadores possibilitam o prolongamento de nossa Memória e de nossa História da Educação. (SANTOS JUNIOR, SILVA, 2005, s/p) Desta forma, pude perceber que um memorial autobiográfico é um método científico que respondeu ao meu desejo de relatar minha história. Segui a orientação de Santos Junior e Silva (2005) para elaborar o memorial de formação escolar e social, sugerindo que inicialmente se faça a leitura com perspectiva de caráter mais cientifico recorrendo a referenciais teórico-metodológicos que dialogam com memórias e narrativas autobiográficas de diferentes culturas para que se pudessem contextualizar de forma mais ampla, com base nas leituras e os níveis e modalidades de ensino, como a vida social e política vivido pelos sujeitos. Segundo os mesmo autores, outros pesquisadores também utilizaram o método autobiográfico, como Nóvoa (2000) que abordam histórias de vida de professores em perspectiva autobiográfica, Pereira (2002) que fez reflexões sobre o significado e a compreensão do desenvolvimento do ensino primário em Portugal da época em que viveram, por meio de depoimentos, são os que relatam as suas trajetórias, Hampâté Bá (2003) que traz seu relato em uma obra autobiográfica na qual reconstituiu sua vida educativa e social, e seu itinerário social na cultura africana, mostrando a descrição de sua vida social, educativa, suas marcas, seus traumas e suas lembranças. (Apud SANTOS JUNIOR e SILVA, 2005). 13 Para tanto, defini como objetivo dessa pesquisa relatar dificuldades e conquistas durante o meu desenvolvimento cognitivo e da linguagem, na interação social e no processo emocional, buscando através de leituras de autores Launay e Borel-Maisony; Lopes Filho; Quadros e Moura., e artigos como Documentos do MEC relacionando-os aos relatos apresentados, tanto o meu como da mãe, da fonoaudióloga e dos professores, com finalidade de responder a principal questão: Pode o surdo oralizado, tendo a língua portuguesa como a primeira língua, ter maior chance de concluir o ensino superior na atual realidade da educação brasileira? Dividi o trabalho em dois capítulos: o primeiro capítulo busca compreender por meio de uma revisão bibliográfica os conceitos de: surdez, graus de perdas auditivas, audição, sons, ondas sonoras, e quais são os métodos para o desenvolvimento de linguagem para o surdo sendo três métodos: oralização com Língua Portuguesa, Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) e Bilinguismo (Língua Portuguesa e LIBRAS) e no segundo capítulo a história de superação com trajetória por mim revelada fazendo-se relação com a teoria dos autores pesquisados. Espera-se com este trabalho ajudar os surdos a identificarem mediante as dificuldades encontradas e apontadas na pesquisa, como superar barreiras, bem como estimular futuras pesquisas sobre os métodos de desenvolvimento da linguagem do surdo como apoio ao processo educacional. 14 1. COMPREENDENDO A SURDEZ E OS MÉTODOS DE DESENVOLVIMENTO DE LINGUAGEM PARA O SURDO É comum encontrar o pensamento de que o surdo não é capaz de ter um desenvolvimento de linguagem que o torne acessível ao ouvinte e que esse também tenha garantido a acessibilidade ao mundo do ouvinte. Assim é importante compreender como se é a audição dentro de seu processo físico e fisiológico. É o processo de aquisição de linguagem tais como Oralismo, Bilinguismo e Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). 1.1 O que é audição? A audição, no caso dos ouvintes, é o primeiro contato com o mundo a sua volta, ainda que o sistema auditivo do feto já se encontre completo quanto à forma aos seis meses de gestação. Deve se preocupar quando uma criança não tem audição, pois é um dos principais meios de comunicação com a sociedade, uma vez que a ausência da audição pode afetar a linguagem e também o desenvolvimento global da criança. (QUADROS, 1997) A audição é o “funcionamento do córtex auditivo é associado a atividades como analisar sons complexos” (PEREIRA, 2004, p. 547), ou seja, a audição é um processo que envolve o funcionamento do cérebro, que pode identificar: Os sons detectados (descriminação), atenção interaural (cada hemisfério seleciona o estimulo vindo do lado oposto), ajustar o estímulo auditivo no contexto e prolongar estímulos curtos (tempo), percepção do espaço auditivo (localização), formação de conceitos auditivos em geral (compreensão). (PEREIRA, 2004, p. 547). O ser humano é capaz de perceber sons de 20 Hz a 20.000Hz, sendo assim: O ouvido humano é sensível somente aos sons cuja faixa de frequência situa-se entre 20 e 20.000 Hz, denominada faixa audível. Ondas sonoras situada abaixo de 20 Hz são chamadas de infrassom e acima de 20.000 Hz de ultrassom. A faixa de frequências audíveis difere para alguns animais, tais como gatos= 10Hz a 60 kHz; cães= 15 Hz a 50kHz; morcegos= 10kHz a 120 kHz; golfinhos= 10kHz a 240 kHz. Nestes experimentos foi determinada a faixa de audição humana, que compreendia a área de frequência de 20 a 20.000 Hz, incluindo o limiar mínimo de detecção ou audibilidade, isto é, a mais fraca intensidade sonora capaz de impressionar o ouvido humano para um tom puro, em 50 % das vezes em que o estimulo sonoro é apresentado por base a frequência de 1.000 Hz e a pressão sonora de referência de 20 PA. (OKUNO, CALDAS, CHOW, 1982 apud RUSSO, 1997, p. 73). Segundo o SILMAN e SILVERMAN, 1991 “A classificação dos limiares da via aérea 15 nas frequências de 500, 1.000 e 2.000 Intensidades ouvida dentro da normalidade é de -10dB a 25dB. ” (SILMAN e SILVERMAN, 1991 apud REDONDO, LOPES FILHO, 1997, p.107). Definem como um gráfico onde apresentam as diferentes classificações dos limiares auditivo como: Normal: até 25 dB Leve: de 26 a 40dB Moderada: de 41 a 55 dB Moderadamente/severa: de 56 a 70 dB Profunda: maior que 91 dB. Um sistema de classificação é considerado normal a média for igual ou menor a 15 dB. (SILMAN e SILVERMAN, 1991 apud REDONDO, LOPES FILHO, 1997, p.107). Segundo o Ministério da Educação para entender o gráfico do audiograma é preciso entender as qualidades dos sons: a) DECIBÉIS: A intensidade ou volume dos sons é medida em unidades chamadas decibéis, abreviadas para dB. Sessenta dB é a intensidade do som de uma conversa, e 120 dB a de um avião a jato. Se uma pessoa “perder” 25 dB de volume, poderá ter problemas de audição. A perda de 95 dB pode ensurdecer totalmente uma pessoa. b) HERTZ Hertz (Hz) é a unidade que determina o comprimento da onda sonora e envolve a frequência do som, ou seja, a capacidade de perceber sons graves e agudo. Assim a audição normal é aquela que situa entre 0 a 20 dB e entre 250 a 4.000 Hertz. Para determinar a perda em um teste audiométrico geralmente são usadas as frequências 500, 1000, 2000 e 4000 Hz. (Brasil, 1997 p. 47 e 48) E o Ministério da Educação define o som como: O som é produzido quando alguma coisa faz o ar se mover. Esse movimento chamase vibração. Quando as moléculas de ar vibram, elas batem umas contra as outras, fazendo com que as vibrações se espalhem pelo ar sob a forma de ondas, produzindo o som. As ondas sonoras são invisíveis, mas podemos provar sua existência colocando um diapasão na água. As ondas sonoras fazem a água movimentar-se e respingar. (BRASIL, 1997, p.24). Outra forma de conhecer o som é através da sensação proprioceptiva, ou seja, sentir a vibração nas cordas vocais, colocando a mão sobre o pescoço, ao emitir o som, sentimos a vibração na garganta, “quando queremos falar ou cantar, expiramos o ar dos pulmões através 16 das cordas vocais e isso faz as cordas vocais vibrarem e produzirem sons, que a língua e a boca transformam em palavras”. (BRASIL, 1997, p.24). 1.2 O que é surdez? A surdez pode ter diversas causas, assim: A deficiência auditiva pode ser congênita ou adquirida. As principais causas da deficiência congênita são hereditariedade, viroses maternas (rubéola, sarampo), doenças toxicas das gestantes (sífilis, citomegalovírus, toxoplasmose), ingestão de medicamentos ototóxicos (que lesam o nervo auditivo durante a gravidez). É adquirida, quando existe uma predisposição genética (otosclerose), quando ocorre meningite, ingestão de remédios ototóxicos, exposição a sons impactantes (explosão) e virose, por exemplo. (BRASIL, 1997, p33). Algumas surdezes podem ter início mesmo durante a gestação do bebê sendo importante compreende-las, sendo estas: Causas pré-natais: (A criança adquire a surdez através da mãe, no período da gestação). Desordens genéticas ou hereditárias; Pressão alta, diabetes; Exposição à radiação; Sífilis, citomegalovírus, toxoplasmose, herpes [...]. Causas perinatais (a criança fica surda, porque surgem problemas no parto) Prematuridade, pós-maturidade, anóxia, fórceps; Infecção hospitalar; Outras Causas Pós-natais (A criança fica surda, porque surgem problemas após seu nascimento). Meningite Remédios ototóxicos, em excesso, ou sem orientação médica; Sífilis adquirida; Sarampo, caxumba; Exposição continua a ruídos ou sons muito altos; Traumatismos cranianos; Outros. (BRASIL, 1997, p.33, 34). Para um diagnóstico de surdez existem várias avaliações a serem feitas, desde observar a resposta comportamental da criança diante de sons ambientais até exames com médicos especialista em audição, o otorrinolaringologista, “que pode examinar o canal auditivo e o tímpano com um instrumento chamado otoscópio [...] ele verifica se há obturação no canal auditivo ou se há perfuração na superfície do tímpano, inchaço ou deformação. ” (BRASIL, 1997 p.41). 17 Os exames para a detecção de surdez podem ser realizados a partir do nascimento da criança por meio de exames objetivos como a Otoemissão Acústica (OEA)1, o BERA 2 e a Imitanciometira3 ou por exames subjetivos como Audiometria Clinica Comportamental4. Segundo o Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005 que regulamenta a lei 10.436: de 24 de abril de 2002. Art. 2o Para os fins deste Decreto, considera-se pessoa surda àquela que, por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais - Libras. Parágrafo único. Considera-se deficiência auditiva a perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibel (dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz. (BRASIL, 2014, p1.). Já no art. 18 da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000 é observado que: Para uma maior compreensão das especificidades dos diferentes graus da perda auditiva, estes podem ser demarcados como: Audição normal com limiar entre-10 a 25dB; Perda auditiva leve: Sons fracos não são ouvidos. É difícil entender a fala em ambientes ruidosos, com limiar entre 26 a 40dB; Perda auditiva moderada: Sons fracos e moderadamente fortes não são ouvidos. Entender a fala é muito difícil quando a ruídos de fundo, com limiar entre 41 a 55dB; Perda auditiva severa: Conversas tem que ser conduzidas em voz alta. Conversas em grupo só são possíveis com muito esforço, com limiar entre 56 a 70dB; Perda auditiva profunda: mesmo alguns ruídos muito fortes não são ouvidos. Sem um aparelho auditivo, a comunicação não é mais possível, mesmo com muito esforço, com limiar acima de 71 dB. (GOODMAN, 1965 apud YANTIS, 1999, p1; PHONAK, 2014, s/p). A empresa Phonak (2014) exemplifica em imagem um audiograma 5 com dos diferentes graus de perda auditiva, comparando-os aos sons ambientais: 1 OEA - é o registro da energia sonora gerada pelas células ciliadas da cóclea (orelha interna) em resposta a sons captados por um microfone miniaturizado colocado no conduto auditivo externo do recém-nascido .BERA - É o exame do Potencial Evocado Auditivo do Tronco Encefálico e tem por objetivo avaliar a integridade funcional das vias auditivas nervosas, desde a orelha interna até o córtex cerebral. Com ele é possível determinar se existe ou não perda auditiva, assim como precisar seu tipo e grau. 2 BERA - É o exame do Potencial Evocado Auditivo do Tronco Encefálico e tem por objetivo avaliar a integridade funcional das vias auditivas nervosas, desde a orelha interna até o córtex cerebral. Com ele é possível determinar se existe ou não perda auditiva, assim como precisar seu tipo e grau. 3 A imitanciometria é um exame que permite avaliar as condições da orelha média e da tuba auditiva fornecendo informações sobre a integridade funcional da membrana timpânica e da cadeia ossicular. Avalia também a presença ou ausência dos reflexos do músculo estapédio que irão auxiliar no diagnóstico diferencial das perdas auditivas identificando o local da lesão. 4 A Audiometria Comportamental é uma técnica de Audiometria Infantil, realizada em crianças de 06 meses até 02 anos de idade. É um exame para observar a presença e/ou ausência de reações reflexas aos estímulos sonoros. O teste é uma técnica importante para coletar informações a respeito do desenvolvimento auditivo da criança e ajuda na detecção de perdas auditivas mais graves. 5 Audiograma: é uma representação gráfica da capacidade auditiva, que por meio de um teste a audição é medida em diferentes faixas de frequência, buscando definir o menor limiar auditivo para cada tom. O resultado é representado por uma curva característica no audiograma. (Phonak, 2014). 18 Imagem 1: Imagem dos sons ambientais e dos fonemas em um Audiograma 6 Ao observar o exemplo do gráfico, verificamos como se apresentam diferentes estímulos sonoros dentro do audiograma, assim se uma pessoa apresenta uma perda leve de audição, terá dificuldades em ouvir os barulhos das folhas ao balanço do vento, sons dos pássaros cantando e outros sons com a mesma intensidade, no caso do sujeito surdo, com perda de acima de 80 dB, ou seja, perda severa ou profunda, não sendo possível o sujeito ouvir as vozes das pessoas, som da TV, rádio, barulho de carro quando dirige, toque de celular e muitos outros sons ou ruídos, porém pode ouvir som com intensidade muito forte como a turbina de avião, explosão de uma bomba, tiro de uma arma etc. Segundo a lei, para ser considerada surda a pessoa deve ter perda auditiva bilateral, parcial ou total. No meu caso, tenho uma Perda Auditiva Neurossensorial Profunda na orelha esquerda e na orelha direita Perda Auditiva Neurossensorial Profunda, com respostas auditivas apenas em frequências graves. A surdez neurossensorial pode se manifestar em qualquer idade, desde o pré-natal até a idade avançada. A cóclea é um órgão muito sensível e vulnerável aos fatores genéticos, às doenças infantis, aos sons muitos altos e a alguns medicamentos. Muitos idosos também sofrem de surdez neurossensorial. (BRASIL, 1997, p.37). 6 Imagem 1 - Disponível em: <http://www.phonak.com.br/b2c/pt/hearing/understanding_hearingloss/types_of_hearing_loss.html>. Acesso em 09/04/2014. 19 No caso do sujeito surdo, o silêncio parece ser natural, a “audição”, para nós, olhos, pois interagimos por meio da visão, Portanto, será que faz falta a audição para quem nunca “ouviu sons”? Muitos acreditam que não ouvir é um problema, é claro que, por exemplo, ao atravessar a rua e não ouvir a buzina do carro pode provocar um acidente. Quando alguém bate na porta da casa e o sujeito não ouve a campainha, pode acontecer de a pessoa ficar esperando e não ser atendida. O sentimento dos surdos em relação à audição é expresso por Nembri (2008, p. 118) como: “por fim, ser surdo num mundo ouvinte é ter, sobretudo, o sonho de ser, de alguma forma, ouvinte um dia, mas respeitando a surdez”. 1.3 Métodos de desenvolvimento para a linguagem do surdo A linguagem é uma forma de comunicação com o outro, pode ser expressa por meio da fala, oralmente, visualmente, por meio da música como uma forma de expressar seus pensamentos. A linguagem é, ao mesmo tempo, uma função e um aprendizado: como função possibilita ao ser humano falar, pois o sistema simbólico linguístico que a criança deve assimilar é adquirido progressivamente pelo contato com o meio em que vive. Por si só, a linguagem é a comunicação com o outro e é o modo mais elaborado e exclusivamente humano de comunicação (LAUNAY e BOREL-MAISONNY, 1989, p.3) Vygotsky destaca que a linguagem é resultado da relação com o outro, pois a aprendizagem não é adquirida sozinha e sim com o próximo, a sua “teoria da associação é igualmente inadequada para explicar o desenvolvimento do significado das palavras na infância”. (VYGOTSKY, 2008, p.152). Launay e Borel-Masisonny (1989) destacam que nos primeiros meses de vida a criança começa o processo chamado de lalação, sendo importante a criança passar por essa fase de associação dos sons vocálicos às palavras, a fim de adquirir significados desde a infância. Portanto, é importante o papel da família neste processo, pois é o primeiro grupo social em que o bebê está inserido, sendo o primeiro acesso a linguagem para a criança, pela qual chamamos de linguagem materna. Assim, a nossa primeira língua é adquirida a partir do outro, e a família é o nosso primeiro agente. 20 Fazendo uma análise bibliográfica podemos perceber que os primeiros albucios adquirida pela a crianças numa forma de comunicar com o outro, a imitação da fala da criança começa com a família pois interage primeiro. A palavra, segundo Vygotsky, está associada diretamente ao pensamento, assim um sujeito que tem palavras é um sujeito que pensa: O significado de uma palavra representa um amálgama tão estreito do pensamento e da linguagem, que fica difícil dizer se trata de um fenômeno da fala ou de um fenômeno do pensamento. Uma palavra sem significado é um som vazio; o significado, portanto, é um critério da „palavra‟, seu componente indispensável. Pereceria, então, que o significado poderia ser visto como um fenômeno da fala. Mas, do ponto de vista da psicologia, o significado de cada palavra é uma generalização ou um conceito. E como as generalizações e os conceitos são inegavelmente atos de pensamentos, podemos considerar o significado como um fenômeno do pensamento. (VIGOTSKI, 1998, p.150e 151). Fontana e Cruz ao retratarem a elaboração do conceito da palavra pela criança explicam que: Vygotsky considera que a elaboração conceitual pela palavra, desenvolvida culturalmente pelos indivíduos como forma de refletirem cognitivamente suas experiências, não ocorre naturalmente na criança. Ela começa nas fases mais precoces da infância, por meio do emprego da função mais simples da palavra- a nomeação-, e o seu desenvolvimento depende das possibilidades que cada indivíduo tem (ou não) de compartilhar e elaborar em suas interações os conteúdos e as formas de organização de conceitos. (1997, p.95) É importante o papel do outro para adquirirmos conceitos e significados, assim o exemplo de outras pessoas nos proporciona aprendizado. A imitação do outro é a forma como adquirimos a aprendizagem, assim surge a linguagem pelo qual o sujeito interage com o outro, o surdo que não ouve sons, não tem como imitar o outro falando naturalmente, ele então recebe estímulos diferentes dos ouvintes. (VYGOTSKY, 2008). Lembrando que o sujeito ouvinte e o sujeito surdo têm um processo de aprendizagem da linguagem diferenciada, para o ouvinte é automático aprender com o outro por meio de treinamento, imitação e observação auditiva, já o surdo é mais visual, sendo mais trabalhoso, porém existe forma de adquirir a aprendizagem da linguagem. Para desenvolver a comunicação do surdo poder ser utilizados diversas metodologias de trabalho, sendo eles: Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), Oralismo com a Língua Portuguesa e o Bilinguismo, como veremos a seguir: 21 1.3.1 Língua Brasileira de Sinais A Língua Brasileira de Sinais, abreviada como LIBRAS, foi uma conquista dos surdos, sendo reconhecida como uma língua que possui parâmetros, regras gramaticas, assim como as outras línguas. PEREIRA (1993), num estudo sobre a sintaxe da LIBRAS declara que: É possível afirmar que a ordem dos sinais segue, na maior parte das vezes, a mesma ordem dos vocábulos do português oral, ou seja, sujeito-verbo-complemento Exemplos-PEGAR CIGARRO COLOCAR (boca) ACENDER FUMAR. Um aspecto que chamou a atenção e que de certa forma interfere na sintaxe, diz respeito ao uso simultâneo das duas mãos, sendo que cada uma para produzir um sinal, o que parece dar uma ideia de continuidade e concomitância. (Apud MOURA; LODI e HARRISON, 1997, p. 343, 344). A Língua Brasileira de Sinais deve ser respeitada como uma língua assim também como a Língua Portuguesa. O surdo na sua maioria considera a LIBRAS a língua mais compreensível para eles, pois a “fala” são as mãos e o “ouvido” são os nossos olhos, ou seja, a LIBRAS é uma língua visual, a ausência dos sons é compensada pela nossa visão. 1.3.2 Oralismo com a Língua Portuguesa O desenvolvimento da linguagem por meio do Oralismo para o surdo é possível, apesar de não ter o retorno da própria fala pela audição, o surdo pode aprender a falar por meio percepção do tato e da sensação cenestésica, sentindo vibrações nas cordas vocais e nos órgãos fonoarticulatórios. Lenzi sobre a fala do surdo defende que: (...) os surdos, como seres humanos que são, possuem, também, essa capacidade, o que explica que sua possibilidade de adquirir a língua falada em seu país. Desenvolvendo a função auditiva e dispondo dessa capacidade inata, o surdo precisa receber a linguagem de maneira natural, como acontece com a criança que ouve. (1995, p.44 apud QUADROS, 1997, p.22). O oralismo puro ou estimulação auditiva foi desenvolvido na Clark School For The Deaf, no final do século XIX, é um método atual. Para seus adeptos, a criança surda deve ser exposta à língua falada e aos sons, sempre usar aparelho de amplificação sonora, se possível, e sofrer treinamento auditivo. O trabalho começa com o treinamento de atenção para a leitura orofacial e inclui elementos sonoros isolados, combinações de sons, palavras e finalmente a fala, devendo ter continuidade em casa, através do envolvimento de toda a família. Esta participação familiar continua é uma das características do oralismo. (MOURA; LODI e HARRISON, 1997 p.337). 22 A criança surda para ser oralizada precisa do apoio da família, da sociedade, da terapia com a fonoaudióloga para desenvolver a linguagem falada. Porém: Para Skilar (op. cit., 1996), a Itália aprovou o oralismo para facilitar o projeto geral de alfabetização do país, eliminando um fator de desvio linguístico (Língua de Sinais), uma vez que eles procuravam uma unidade nacional e linguística. As ciências humanas e pedagógicas aprovaram porque o oralismo respeitava a concepção filosófica aristotélica em que o mundo de ideias, abstrações e da razão é representado pela palavra, enquanto o mundo do concreto e do material o é pelos Sinais. Outro Fator importante para Skilar foi a força do clero, que num primeiro momento rejeitou o oralismo como representante do poderio alemão, mas que depois percebeu-o como uma força importante por motivações espirituais e confessionais (e de controle). (Apud MOURA; LODI e HARRISON, 1997, p. 336). Como podemos ver o oralismo era bem valorizado, o surdo no século XIX não tinha valor, por não ter palavras para se comunicar e como forma de tentativa para inseri-lo na sociedade de alguma forma, o oralismo era um método bastante usado, a língua de sinais era ignorada. Porém muitos cleros que faziam voto de silêncio se comunicavam um com o outro, por meio de gestos, por isso apoiaram a Língua de Sinais, como uma língua natural e não amaldiçoado, também eram contra o oralismo. (MOURA; LODI e HARRISON, 1997). Segundo Moura, Lodi e Harrison, existem vários métodos de oralismo como o Método Multissensorial, o Método de linguagem por associação de elementos e o Método Unissenssorial. O Método multissensorial/unidade silábica começa com treinamento de atenção para leitura orofacial, usando sons isolados, silabicamente, palavras e depois a fala. São utilizados visão e tatos. É um dos mais usados numa abordagem oral. (MOURA; LODI e HARRISON, 1997, p. 337, 338). O Método de linguagem por associação de elementos ou método da “língua natural”, foi desenvolvido por Mildred Groht tendo como base é que a criança deve aprender por meio de atividade. O professor fala sem parar e as crianças devem fazer perguntas apenas com a fala. A autora diz que esse método é utilizado, porém algumas crianças tem um rendimento bom outras não, depende do treinamento que a criança adquire. Esse método dificulta a conversação entre surdos. É um treinamento descontextualizado, a leitura orofacial pode ser desenvolvida, mas para utilidade no dia a dia. (MOURA, LODI e HARRISON, 1997, p. 337, 338). O Método uni sensorial ou abordagem aural refere- se a um programa de reabilitação para a criança surda. A família deve ser participativa nesta abordagem que enfatiza um treinamento auditivo sem relação com uso formal de leitura orofacial. O objetivo é a 23 integração da criança mesmo surda no mundo ouvinte, “os oralistas acreditam que todas as crianças surdas têm alguma adição residual que pode ser aproveitada. É neste sentido, o de uma perda, no caso audição, que é classificado esta abordagem”, o surdo nesta abordagem não é classificado com um ser diferente ou com dificuldade, apenas tem algo que lhe falta para ser integrado na sociedade como um ser normal, e não um deficiente. (MOURA; LODI e HARRISON, 1997, p. 339). 1.3.3 Bilinguismo O bilinguismo é um conjunto de duas línguas, sendo abordado neste trabalho a Língua Portuguesa e a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), assim: O bilinguismo para surdos e seus desdobramentos político-pedagógicos, é um fato novo no cenário educacional para todos os educadores. Ele passa a fazer parte das políticas educacionais brasileiras apenas no final da década de 1990, decorrente da pressão de movimentos sociais, das contribuições de pesquisas na área da Linguística e da educação e da incorporação desses novos conhecimentos e tendências às agendas governamentais. (MOREIRA, FERNANDES, 2007, s/p) MOURA (1997) defende que o bilinguismo é educacional, portanto os professores têm o peso maior na aprendizagem da criança, pois ela observa que: Que a proposta do bilinguismo é educacional, social e cultural independentemente de maneira como concebe a segunda língua a ser adquirida pelo surdo. Assim o papel do professor, dos pedagogos e dos linguistas é muito maior que o do fonoaudiólogo. Nada impede que um fonoaudiólogo atue nos aspectos pedagógicos, educacionais, linguísticos e sociais, dentro da escola, mas o seu trabalho clinico é restrito, uma vez que o ambiente escolar é o que vai ser responsável pelo desenvolvimento global do surdo. Portanto, este trabalho deve ser realizado numa equipe que participe dos mesmos pressupostos teóricos. (MOURA; LODI e HARRISON, 1997, p. 352). O fonoaudiólogo tem um papel importante no processo de aprendizagem do surdo, porém, precisa trabalhar em conjunto com a escola e a família na proposta do bilinguismo, uma vez que são duas línguas, o surdo precisa estar sempre aprendendo com a prática da comunicação bilíngue em todos os seus espaços sociais, aproveitando a interação com o outro. Moura defende que a prática bilíngue “não pode se dar apenas clinicamente. Na verdade o fonoaudiólogo pode realizar o trabalho clínico, mas somente em conjunto com a escola” alcançará resultados. (MOURA, LODI e HARRISON, 1997, p.353). 24 2. MINHA HISTÓRIA DE SUPERAÇÃO 2.1 O dia em que minha mãe descobriu minha surdez Quando tinha pouco menos de um ano de vida minha mãe notou que não respondia aos estímulos para falar, mas por ser gêmea, acabava fazendo tudo que meu irmão fazia, como quando mandava tirar a roupa para tomar banho, meu irmão obedecia, e eu observava e fazia igual. Desta forma, minha mãe demorou a perceber que havia algo errado. Mas o que a motivou a duvidar sobre a minha audição, foi quando antes de um ano de vida meu irmão começou a balbuciar algumas palavras, eu porém apenas movia os lábios, tentando repetir tudo o que ele fazia. Copiava suas ações, mas não formava as mesmas sílabas balbuciadas por ele, e geralmente não produzia som. Certo dia chegou um senhor que vendia verdura, sempre buzinava bem alto, várias vezes ao chegar, neste dia estava de costa para o portão, e minha mãe observou que não tive reação, a não ser quando meu irmão correu para atendê-lo e levantei-me para ver o que era. Isto motivou a preocupação da minha mãe, pois eu sempre o atendia com alegria, mas desta vez nem percebi. Então ela começou a buscar ajuda, pois ainda não existia o teste da Orelhinha pela OEA. A surdez pode ser descoberta antes da criança completar um ano, segundo Launay e Borel-Maisoony (1989, p.18) precocemente, assim, “aos seis meses, torna-se possível uma espécie de diálogo: a criança repete o ruído, quando o adulto se cala, para fazê-lo repetir o som e escutá-lo novamente. Ela passa, então, a imitar realmente os sons emitidos pelo outro. ” Os pais podem observar que a criança emite os sons tentando imitar o adulto, o surdo porém não tem percepção auditiva para imitar os sons, mas pode fazer o movimento labial repetindo a ação do outro por meio do visual. Em 1992, quando nasci, não era obrigatório o Teste de Orelhinha como nos dias atuais: O Teste da Orelhinha ou Triagem Auditiva Neonatal é um exame importante para detectar se o recém-nascido tem problemas de audição. Após a sua realização é possível iniciar o diagnóstico e o tratamento das alterações auditivas precocemente. O Conselho Federal de Fonoaudiologia e outras entidades brasileiras recomendam que o exame seja realizado na maternidade, antes da alta hospitalar. O teste da orelhinha é rápido, indolor e não tem contraindicação. A Lei Federal nº 12.303/2010 tornou obrigatória e gratuita a realização do exame e espera-se que todos os hospitais e maternidades do Brasil ofereçam o teste. (BRASIL, 2014). Em caso de suspeita de perda auditiva a OEA facilita o diagnóstico precoce durante a triagem auditiva neonatal recomendada pelo Ministério da Saúde: 25 Quando detectado algum problema, o bebê é encaminhado para um serviço de diagnóstico, onde serão realizados a avaliação otorrinolaringológica e exames complementares. Nessa fase muitos bebês apresentarão audição normal e alguns terão a perda auditiva confirmada. Uma vez confirmados o tipo e o grau da perda auditiva, o bebê será encaminhado para um programa de intervenção precoce a fim de orientar a família, preparar para o uso de aparelhos de amplificação ou implante coclear e terapia fonoaudiológica. O fonoaudiólogo tem papel fundamental durante todas as fases do processo de detecção, diagnóstico e intervenção precoce nas alterações auditivas. (BRASIL, 2014). No entanto quando bebê não tive esta oportunidade, por morar no interior de São Paulo, na pequena cidade de Capivari. Onde não havia instituição de apoio ao surdo, nem comunidade surda ou um serviço de saúde direcionado à avaliação auditiva em bebês. Diante destas dificuldades fui encaminhada para o hospital universitário da UNICAMP. Na UNICAMP foram realizados avaliações médicas e o exame BERA para avaliar a perda auditiva, sendo este exame um: Exame de Potências Auditivos de Tronco Cerebral que consiste em uma avaliação moderna não invasiva, objetiva da evolução neurológica do comportamento auditivo, assim por meio de eletrodos fixados na sua cabeça em postos específicos faz-se o registro da atividade elétrica que ocorre no sistema auditivo, da orelha interna até o córtex cerebral, em respostas a estímulos acústicos. (MUNHÓZ et al 2000 apud BOMFIM, 2011, p29.). Embora já desconfiasse que algo estivesse errado comigo, foi um grande susto para minha mãe. Relata ela que sentiu um misto de todos os sentimentos que o ser humano pode provar. Entre os quais o medo do desconhecido e a insegurança em ser capaz de suprir as minhas necessidades, porém não perdeu o amor e a fé. Após a realização do exame com o resultado positivo do diagnóstico, minha mãe foi encaminhada para a APASCAMP (Associação de Pais e Amigos do Surdo de Campinas), segundo o próprio site explica: Fundada em Campinas aos 8 de Junho de 1986, a APASCAMP começou com um grupo de pais de deficientes auditivos. Todos eles frequentavam o Centro de pesquisa e Reabilitação Gabriel Porto (CEPRE), onde buscavam terapias para seus filhos. Algumas Famílias carentes, sem condições de adquirir aparelhos auditivos, chamaram a atenção de outros pais que resolveram se mobilizar numa campanha junto às empresas representantes de Aparelhos de Amplificação Sonora (AAS), conseguindo diversas doações. (APASCAMP, 2014, s/p). Fui acompanhada na APASCAMP por algum tempo, e permaneci em acompanhamento médico na UNICAMP até os nove anos. Neste período minha mãe relata que conheceu muitas crianças surdas com comportamento agitado que a deixaram assustada e com receio de que eu também não conseguisse me comunicar e ficasse como elas. 26 Conforme Holzheim (1997, p 421), “o atraso no diagnóstico resulta em frustação, estresse e sentimento de impotência familiar, além de privar a criança de receber os benefícios da estimulação auditiva, fala e linguagem e do uso precoce do aparelho auditivo”, porém, “Os profissionais na área médica reconhecem a importância da detecção e assistência precoce dos problemas auditivos, mas infelizmente ainda hoje há um grande atraso na identificação de muitas crianças surdas. ” (p. 421). Por isso, a importância de os pais levarem seus filhos para exame auditivo ainda bebê, considerando que o diagnóstico precoce favorece a prevenção de problemas e diminuem os atrasos de linguagem. Assim, quanto mais cedo se dá a descoberta da surdez, os pais poderão ser orientados por profissionais a trabalhar com a surdez com a perspectiva de uma linguagem mais desenvolvida. Em contra partida, quando mais tardio a descoberta, mais a criança será atrasada para desenvolver a linguagem, podendo levar a frustação e decepção. 2.2 Perdas de audição ao decorrer da minha vida. Antes dos nove anos de idade eu usava aparelho auditivo no lado direito, por falta de condição financeira para comprar dois aparelhos, portanto fiz uso apenas unilateral. Com nove anos de idade após alta da fonoterapia, retornei ao consultório da fonoaudióloga para avaliação auditiva com queixa de que o aparelho havia se quebrado. Durante as avaliações foi verificado que havia perdido a audição na orelha melhor, que apresentava diagnóstico de Perda Auditiva Neurossensorial Severa, ficando este com Perda Neurossensorial Profunda. Lembro-me de que comecei a sentir grande desconforto a sons intensos. Assim, antes não usava aparelho no ouvido direito pela qual tinha maior perda e desconforto, sendo neste momento necessário mudar o uso do aparelho da orelha esquerda para a orelha direita, por ser a melhor opção. Almeida (1997) defende a importância de usar o aparelho auditivo, em pessoas que possuem algum tipo de deficiência: Podemos citar os indivíduos portadores de perdas auditivas profundas, para os quais o uso de amplificação pode facilitar a leitura orofacial, complementando a informação auditiva e auxiliando o indivíduo a monitorar e controlar a sua própria voz, além de possibilitar a detecção dos sons ambientais de alerta e defesa contra o perigo. (ALMEIDA, 1997 p. 464). 27 Segundo os autores Bevilacqua, Costa Filho e Martinho (2004), o implante coclear hoje está mais sofisticado e é recomendável para sujeitos surdos com perdas profundas, eles defendem que: Com os avanços tecnológicos das últimas décadas, o implante coclear (IC) ou ouvido biônico, um dispositivo eletrônico de sofisticada tecnologia, capaz de substituir o órgão sensorial da audição deixou de ser um instrumento apenas de investigação cientifica, tornando-se atualmente, um efetivo recurso clinico, suficientemente hábil para melhorar a qualidade de vida de indivíduos portadores de deficiência auditiva neurossensorial bilateral de graus severos e profundos. (BEVILACQUA; COSTA FILHO e MARTINHO, 2004, p. 751). Fui encaminhada para avaliação complementar no Hospital Universitário da Unicamp e posteriormente para Bauru no Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC/Centrinho) da Universidade de São Paulo (USP), a fim de verificar a possibilidade de receber um Implante Coclear por meio de cirurgia. No entanto, não foi recomendado pelos especialistas destas duas instituições devido aos riscos de rejeição ao implante. Tanto a fono, como minha mãe, estavam temerosas pela perda da fala aprendida, porém mantive minha comunicação como antes com apresentável aumento de desenvolvimento nesse aspecto. Os especialistas ficaram admirados com a qualidade da minha fala diante do meu diagnóstico. Durante o processo de avaliação na tentativa de saber a causa da perda súbita do resíduo auditivo da OD e procurar uma solução, infelizmente não houve resposta após vários exames clínicos, então trocaram o uso do aparelho auditivo do lado direito para o lado esquerdo. Hoje com 21 anos de idade, utilizo o aparelho auditivo do lado esquerdo, no lado direito não faço uso devido ao incomodo que sinto, pois tenho a impressão que minha cabeça vai “explodir de dor”. Desta forma pretendo, usá-lo apenas no lado esquerdo que é o lado que me adapto melhor e ouço tranquilamente. Quando uso aparelho auditivo ouço muitas coisas, não posso avaliar se ouço tudo ou pouco, pois de fato nunca ouvi como um ouvinte normal. Mesmo com uso de aparelho percebi que nem tudo ouço, como as folhas se batendo ao vento, os pássaros cantando, as conversas paralelas ao meu lado, e alguns sons que ouço muitas vezes não os reconheço como uma torneira pingando na pia. Existem muitas causas para perda de surdez: doenças como meningite, rubéola, uso constante de fone de ouvido, trabalhar em ambientes ruidosos. No meu caso, a causa da minha perda auditiva nunca foi identificada, apenas é confirmada a ser uma perda congênita. Segundo minha mãe, a gravidez transcorreu sem anormalidade, tudo estava adequado, durante o parto ou logo após não houve complicações. Devido ser gêmea, meus pais demoraram a perceber que eu era surda. Somente 28 descobriram quando já tinha próximo a um ano de idade. Somente ficou claro que a perda auditiva era congênita, pois não tive nenhuma doença após o nascimento que justificasse este diagnóstico e que piorou com o passar do tempo. 2.3 O primeiro passo... Minha mãe no início teve muitas dificuldades em lidar com o próprio sentimento ao saber da minha surdez. Naquele momento o sentimento que a dominava era o desejo de que eu pudesse me comunicar, entender o mundo ao meu redor e ser entendida evitando segregação e sofrimento. Foi importante procurar meios para que eu pudesse falar, então o primeiro esforço para o desenvolvimento da fala, foi procurar um caminho, só encontrando alguma ajuda na cidade de Campinas. Durante esta procura ela conheceu a biografia de Helen Keller, que era surda e cega e com mínimos recursos. No início do século XIX tornou-se uma celebridade americana segundo seu relato. Minha mãe falava: “eu me animei e vi que poderia ter um resultado positivo embora ainda não soubesse por onde começar, pois percebi que foi possível a tão grande e tão admirável superação com ela, eu também poderia lutar e ter êxito com minha filha, não medi esforços e comecei a difícil tarefa em busca da oralização”. (INFORMAÇÃO ORAL). Imagem 2 - Hellen Keller 7 7 Imagem 2 - Disponível em http://www.sayingsplus.com/helen-keller-quotes.html. Acesso em 07/03/14. 29 Hellen Keller foi uma mulher nascida em Alabama, nos Estados Unidos, ficou cega e surda, devido uma doença na infância. Estudou Filosofia aos 24 anos, se tornou escritora, socialista e conferencista. Era proficiente, além do inglês, no francês, no alemão e no latim. (BAGGINS, 1912). Conhecer sua história fez com que minha mãe buscasse insistentemente uma oportunidade para eu aprender a falar, desenvolvendo assim a oralização. A oralização é uma forma falada, por meio da via oral surge uma comunicação, mas para que seja oralizado, desde criança precisa estar desenvolvendo a fala, no caso do ouvinte é natural, ou seja, é automática, a criança vai aprendendo repetindo até desenvolver uma fala mais articulada. (MOURA, 1997). Durante a procura e de alguns esforços em vão, segundo minha mãe fui levada a uma fonoaudióloga por um ano e não tive nenhum progresso, ela sentiu-se frustrada por não ver resultado positivo, não tenho lembranças desta fonoaudióloga. Certo dia, fomos ao otorrinolaringologista por uma infecção no ouvido, e este especialista fez uma crítica de que meus pais não estavam buscando ajuda pra mim e que precisava de fonoterapia, minha mãe chateada relatou que estava em acompanhamento fonoterápico há mais de um ano, assim ele sugeriu que mudássemos de fonoterapeuta. A terapia fonoaudióloga centrada na família propõe uma parceria ao longo de todo o processo de intervenção. A participação familiar tem sido valorizada por autores como Sanders (1980), Boothoyd (1982), Luterman (1984), Atkins (1992), Buscaglia (1993) e Clark (1994) que enfatizam a importância deste envolvimento como elemento fundamental no trabalho de habilitação da criança surda. (Apud HOLZHEIM, 1997, p. 415). É importante o papel da família como vimos, mas também é de extrema importância o envolvimento do fonoaudiólogo, pois “Qualquer atitude terapêutica só poderá ser desenvolvida com eficiência se o fonoaudiólogo tiver a capacidade de trabalhar junto ao caso sob uma perspectiva mais ampla” (HOLZHEIN, 1997, p. 429). Desta forma, minha mãe procurou outro profissional. Após a primeira consulta com a nova fonoaudióloga minha mãe me relatou que foi muito difícil admitir que, com todo amor que ela dedicava estava fazendo errado, pois segundo a fonoaudióloga ela me protegia muito, evitando assim meu desenvolvimento. No relato da fonoaudióloga deixa claro que orientou minha mãe desde o primeiro contato da importância de dar mais espaço para eu me desenvolver e apresentou a proposta de trabalho que envolvia somente a oralização, uma vez que tinha o diagnóstico de perda severa em uma das orelhas. 30 Como citado no capítulo anterior a proposta que foi feita pela fonoaudióloga é o método de oralização, apesar de haver outras propostas para o surdo adquirir a linguagem. Skilar (1996) esclarece que a oralização era o método mais usado e valorizado na época, portanto os fonoaudiólogos na sua formação adquiriram essa proposta fundamental para seus trabalhos clínicos com os pacientes. Até os quatro anos e meio eu apenas conseguia me comunicar com a minha mãe, onde usávamos sinais e gestos caseiros. No retorno a consulta fonoaudiológica após a avaliação já foi possível produzir diversos fonemas. A proposta foi de fazer fonoterapia duas vezes por semana onde minha mãe foi orientada a intensificar os exercícios em casa. Mas como minha família não tinha condições financeiras, muitas vezes só era possível ir à consulta uma vez, e às vezes de 15 em 15 dias. Durante o trabalho da fonoaudióloga e do esforço da minha mãe em casa nos treinos diários, obtive um resultado além das expectativas da família. A avaliação da fonoaudióloga verificou que somente apresentava a fase de lalação, com balbucios vocálicos, que parecia ser a tentativa de pronunciar o fonema /p/. Desde o primeiro encontro foi trabalhado a pronuncia dos fonemas utilizando o método de treinamento de fala da pesquisadora Borel Maisonny, onde os fonemas são desenhados pelo movimento do corpo, auxiliando a criança a perceber o movimento dos órgãos fonoarticulatórios. Já neste encontro deu se a aprendizagem da pronúncia dos fonemas /a/, /e/, /i/, /o/, /u/ e /p/. Minha mãe foi orientada a continuar o trabalho em casa a fim de reforçar o aprendizado. A cada retorno aprendia um ou dois fonemas novos, assim em no máximo um ano já pronunciava todos os fonemas, foi também trabalhado em paralelo a aquisição da fala, a leitura orofacial e o conhecimento das letras, tanto na escrita como na leitura, bem como o significado do novo vocabulário. Desta forma, foi sugerido a minha mãe que todo treinamento fosse realizado utilizando todas as formas de linguagem possíveis para auxiliar na fixação do aprendizado e na minha comunicação. Sendo utilizado o estimulo a fala, - A percepção visual e tátil-cinestésica (percepção do próprio corpo), - A leitura Labial (orofacial), - A leitura da letra, - A escrita da letra. 31 Cada fonema aprendido era acompanhado da letra e de imagens de objetos que em seu nome continha o fonema associado à letra aprendida. Dificuldades que surgiram a princípio, como perceber e pronunciar os fonemas que possuem o mesmo ponto articulatório, e principalmente para diferenciar os fonemas surdos dos fonemas sonoros sem o apoio auditivo, com p/b/m (bilabiais) ou f/v (surdo sonoro). Minha mãe passou a dedicar todo o tempo possível para estimular e ensinar-me a linguagem, incluindo também minha família neste processo para o auxílio do meu desenvolvimento. Os exercícios foram intensificados e ela passou a fazer com que todos aproveitassem qualquer situação para me estimular a falar. Segundo a fonoaudióloga, como sequência ao trabalho foi necessário estimular a compreensão do significado concreto de cada palavra que era pronunciada, lida ou escrita. Assim diversas dificuldades foram surgindo, uma vez que o Português utiliza algumas palavras com diversos significados, dependendo do contexto em que está inserida. Com o tempo fui adquirindo novo vocabulário a cada dia de treinamento e aprendizado. Minha mãe ficou responsável por trabalhar a fixação e a significação, assim, fez uso do processo social para facilitar. O espaço escolar também auxiliou-me no processo de amadurecimento e de aprendizado. Fiquei em acompanhamento fonoterápico dos quatro aos nove anos de idade. Bonfim ao citar Vygotsky, fala sobre a importância da interação com o meio: A interação do sujeito com o meio no qual será inserido, possibilitará ao mesmo, as trocas de informações e vivências de cada sujeito já inserido no mesmo ambiente e, consequentemente, o sujeito no processo de aprendizado e construção da linguagem conquistará com maior sucesso o objetivo que almeja alcançar. Essa interação se dá com o contato entre os envolvidos ao longo do processo de desenvolvimento da linguagem, o que de fato difere do sujeito surdo que, sem o estímulo auditivo e sem a mediação necessária baseada no aspecto visual e gestual, com certeza não desenvolverá sua linguagem e consequentemente não poderá se inserir na sociedade de forma adequada, mas os métodos usados de maneira correta proporcionarão o desenvolvimento da língua de sinais ou da fala do sujeito não ouvinte, ao longo do desenvolvimento desse processo. (2011 p. 16 e 17) É perceptível que nossa aprendizagem, sabedoria e pensamento vêm a partir de trocas que fazemos com o outro, dificilmente inventamos algo, portanto a nossa linguagem, o nosso vocabulário, vem da cultura em que vivenciamos. Cada palavra é um novo significado, para o surdo, é difícil associar apenas a palavra com a fala sem o significado, então ele deve associar a palavra com a imagem e assim surgir o significado para o surdo. 32 2.4 Parceria da família com a escola... Com indicação da fonoaudióloga, fui matriculada na escola infantil, aos quatro anos, sendo necessário procurar uma escola particular, pois na época a idade de início escolar na rede pública era de seis anos. A escola adventista recebeu-me sem nenhuma objeção. Porém o ano transcorreu sem nenhum progresso, eu não conseguia interagir e a escola não tinha conhecimento de como proceder no meu caso. No segundo ano foi mais tranquilo, pois já estava adaptada e segura, mas a fala ainda era bastante restrita. A pré-escola na rede pública recebia alunos a partir de seis anos de idade, foi quando passei a frequentar uma escola pública. Minha mãe foi bem recebida pela professora C que se prontificou a me receber, porém informou à mãe que não tinha nenhum conhecimento sobre a deficiência auditiva, mas a tranquilizou mostrando seu interesse em fazer o melhor. Este ano marcou o início da minha superação. A professora C dedicou-se de uma forma tão intensa que foi fundamental para o meu progresso. Nesta fase a fonoaudióloga intensificou a terapia introduzindo conceitos de leitura e escrita associados à fala para que assim possibilitasse manter o interesse nos conteúdos ministrados e manter meu desempenho igual ao da sala. A fonoaudióloga orientou aos professores como lidar com o processo de aquisição de fala e como estes poderia auxiliar o trabalho fonoterapêutico. No trabalho escolar, orientou os educadores que sempre que possível fizessem uso do método de trabalho da fala Borel Maisonny como apoio na percepção da leitura e da escrita. Orientou também sobre a minha posição para sentar na sala de aula, observando o resíduo auditivo da melhor orelha. Salientou a importância do professor sempre falar de frente pra mim, uma vez que estava aprendendo a leitura labial. Explicou a importância de trazer os conteúdos curriculares sempre de forma mais concreta possível, uma vez que o surdo tem dificuldade para compreender a informação subjetiva. Minha mãe sempre fez trabalho de fixação e compreensão dos conteúdos ministrados também na escola. Em casa foi escrito o nome de todos os móveis e objetos da casa colados nos mesmos. Então antes dos colegas de sala de aula eu já havia aprendido todo alfabeto e formava sílabas, sendo que algumas palavras usadas no cotidiano já havia memorizado, sempre associando os grafemas aos fonemas. Na escola a professora C trabalhou em sala de aula com a técnica usada pela fonoaudióloga. Toda aprendizagem desenvolvida sempre foi por meio de jogos e brincadeiras, observando a importância do lúdico na aprendizagem da criança. Algumas situações de aprendizado foram difíceis e até certo ponto engraçadas, por 33 exemplo, eu tinha aprendido as cores na escola e em casa minha mãe passou a ensinar os nomes das flores, ensinou sobre a flor “Rosa Amarela” e a mostrou. Eu sabia o que era uma flor, e facilmente compreendi o que era uma flor amarela. Ao me ensinar sobre a rosa criou confusão, pois não compreendia porque não era simplesmente flor, gerando com isto um longo exercício que durou meses. A “rosa” era uma cor pra mim, assim como o amarelo, mas eu não tinha entendido que as cores também poderiam ser nome de objetos ou de pessoas. Então minha mãe usou todas as formas possíveis para que eu pudesse entender, exemplificou diferentes significados de algumas palavras dependendo de seu uso, então me mostrou uma amiga que se chamava Rosa e também outra que se chamava Margarida, deixando claro que suas amigas tinham os nomes iguais aos das flores, depois ela pegou as flores e me mostrou que estas também podiam ter nomes diferentes. Assim, comecei a olhar numa outra perspectiva para os meus colegas de escola, percebi que muitos deles tinham nomes iguais aos de objetos ou algo, alguns colegas que tinham sobrenomes como Leite, Costa, Cremonese, e aceitei desta forma que podia existir nomes iguais aos objetos ou plantas. Este processo levou três meses para eu compreender. Outros conteúdos também foram de difíceis compreensão e aceitação como é o caso do meu sobrenome, Pires que demorou uns nove meses para eu aceitar que era igual ao prato pequeno que ficava embaixo da xícara. A maior preocupação dela era que eu me fizesse entender, pois no processo da comunicação oral pode acontecer a supressão de palavras, por isto é de extrema importância ter um conhecimento do vocabulário e da contextualização. No caso dos deficientes auditivos é muito maior a dificuldade, por isto a preocupação para que eu tivesse um vocabulário mais ampliado e dar-me condições de expressar, ela passou a fazer exercícios práticos sugeridos pela fonoaudióloga e alguns criados por ela própria para que eu tivesse melhor entendimento da construção de frases para expressar o pensamento e o diálogo. Na aquisição de novas palavras em meu vocabulário, era necessário a construção de conceitos objetivos, que me fizessem sentido. Portanto, palavras simples para o ouvinte como aprender o que é água, para que eu entendesse foi necessário mostrar que tem muitas formas de água, então minha mãe colocou sobre a mesa: gelo, água quente, água fria, morna, suja, limpa, vapor, água da chuva, do rio, porque eu precisava saber que toda palavra que fosse dizer, não podia ir sozinho. Foi assim que compreendi formar pequenas frases, pois uma palavra precisa de outra para compor a fala, a escrita e a leitura. Desta forma foi com o ovo, que foi necessário conhecer ovo frito, ovo cru, ovo da galinha, ovo da pata, ovo da lagartixa, omelete, ovo cozido, ovo de codorna e tudo mais que ela conseguiu encontrar em recortes e 34 reportagens. O mais difícil foi que eu tive que comer ovos a semana inteira. E ainda muitas outras palavras necessitaram desta construção gradativa de conceito. Saindo da imitação para a compreensão do significado da mesma. 2.5 Experiências de aprendizado no Ensino Fundamental I Do Ensino Fundamental I tenho poucas recordações em relação a minha construção de conhecimento, pois esta época eu não tinha preocupação em relação com dificuldade com o conteúdo. No entanto, minha professora na primeira série relatou oralmente que eu sempre tive o desempenho na aprendizagem um pouco à frente dos colegas da sala de aula. Não apresentava grandes dificuldades, aprendia com facilidade, tinha bom comportamento, era disciplinada, e sempre ajudava os meus colegas a ler, escrever e a entender a matéria passada pela professora. Na segunda série tive um pouco de dificuldade no processo de aprendizado, pois a professora, segundo relatos de minha mãe, não apresentava o mesmo interesse em meu processo de inclusão, o que me deixou um pouco deslocada na sala de aula. Tive a mesma professora na terceira série e na quarta série a pedido da própria professora, que se ofereceu para continuar a trabalhar comigo, não tive problemas nesta etapa. Devido à perda auditiva na orelha direita os fonoaudiólogos da CEDALVI (Centro de Atendimento aos Distúrbios da Audição, Linguagem e Visão) de Bauru encaminharam uma carta especificamente para a minha professora, orientando-a que me colocasse sentada na primeira fileira preferencialmente no meio. Também foi instruída a sempre falar de frente para mim, com articulação orofacial bem elaborada para que pudesse compreender a leitura labial. Apesar de que minha fonoaudióloga sempre instruiu os professores desde o ensino infantil, esses mesmos profissionais reforçaram a importância da instrução, nesta época tinha entre 8 a 9 anos. 2.6 Experiências de aprendizagem no Ensino Fundamental II No ensino fundamental II meus professores eram esclarecidos sobre minha limitação para a comunicação, onde deveriam me sentar na sala de aula, bem como a necessidade de falar sempre olhando para frente, nunca dando as costas para mim. 35 No meu primeiro dia de aula estava animada com a nova escola, mas estranhei o fato de não ter mais apenas um professor e sim vários, ficando com medo da confusão. Eu não entendia porque toda hora tinha que pegar meu material e mudar de sala, ficava sempre seguindo meus colegas para não me perder. E assim, demorei duas semanas para compreender que essa troca de sala era uma troca de disciplina e encontrava o professor da disciplina em cada sala que entrava. Pouco tempo depois houve nova mudança no remanejamento escolar e agora estando eu pronta para ir para a nova sala, vi que meus colegas continuaram sentados e percebi depois de dois dias, que não eram mais os alunos que trocavam a sala e sim o professor, o que neste caso se tornou mais fácil para mim. No processo de aprendizagem eu tinha as mesmas dificuldades que meus colegas, obtendo um melhor desempenho em matemática e um pouco mais de dificuldade em português, nas demais disciplinas sempre acompanhei bem e os professores não tinham essa preocupação em manter a atenção voltada só para mim devido minha “deficiência”, pelo contrário, sempre ajudava meus colegas na atividade quando surgia dúvida, os professores me tratavam de igual para igual, como se eu não tivesse nenhuma dificuldade. Porém quando não entendia a matéria, por conta da minha timidez, eu esperava terminar a explicação e passar a atividade, me sentava ou ficava ao lado do professor e colocava o caderno sobre a mesa, pedia para me explicar a matéria novamente, quando entendia voltava ao meu lugar e continuava a atividade, quando não entendia pedia para ele explicar novamente quantas vezes fossem necessárias para eu entender, depois ajudava os meus colegas. Nunca fui reprovada na escola e sempre fui uma aluna muito esforçada segundo meus professores e tive ótimo rendimento, mesmo a despeito de minhas limitações na comunicação. 2.7 No Ensino Médio Meu primeiro ano no ensino médio, com aumento de disciplina, tive professores novos que não me conhecia, nesta época já tinha uma linguagem mais desenvolvida e elaborada e podia me comunicar com facilidade. Sempre que chegavam esses mesmos professores novos, me deparava com esses relatos. Segundo Professor I: “Surda? Onde? Me parece tão normal, não percebi que você é surda, foi bom você falar, vou ficar de frente sempre pra você, qualquer coisa você me dá um toque”. Professor II relatando para Mãe em uma reunião de pais: “Sua filha é uma excelente aluna, não tem muitas dificuldades na minha matéria, aliás, 36 é a melhor da classe na disciplina de matemática, não falta, não deixa de fazer tarefas, porém conversa bastante com os colegas”. Fui sempre uma aluna dedicada e alcançava bom rendimento nas avaliações, mesmo tendo que me apoiar sempre na leitura labial, as vezes dificultada pela posição do professor ao ministrar aulas de costas para mim. Assim, posso dizer que relacionado ao conteúdo tive dificuldades semelhantes às das minhas colegas, sendo as disciplinas mais difíceis a meu ver Química e Biologia, por falta de associação de teoria com a prática ou por meio de demonstração. Estudava no período matutino no primeiro ano de ensino médio, aos 16 anos, estando no segundo ano comecei a trabalhar em uma tecelagem, sendo esta uma multinacional, onde permaneço até o momento. Devido ao trabalho passei a estudar no período noturno, por falta de costume com a rotina de trabalho e estudo, tive um rebaixamento na nota, era de nota 9 e 8, caiu para 7, 6 e 5, voltei a melhorar minhas notas no terceiro ano de ensino médio, já acostumada com a rotina. Ainda no ensino médio fiz a opção por fazer Pedagogia influencida por minha fonoaudióloga que mostrou a importância de ter surdos atuando nos espaços educacionais, sendo exemplo pra outros surdos, com minhas conquistas, e influenciando ouvintes a valorizar o surdo, independente de sua perda auditiva. Como aprendi LIBRAS desde a adolescência, quero contribuir no processo de inclusão ensinando outros educadores a lidar com a comunicação de surdos que não são oralizados como eu. 2.8 Ensino Superior Uma professora do ensino superior entrevistada relatou: “Hoje a Marília é minha aluna no curso superior de Pedagogia e também faz uso de prótese auditiva como apoio a leitura labial. Marilia é uma boa aluna, com rendimento muito bom em todas as disciplinas”. Mesmo com uso de prótese ainda hoje necessito da leitura labial, pois nunca fiz uso apoio na comunicação por meio do interprete de LIBRAS, mas sempre foi necessário lembrar os professores da minha condição de surda, e durante a projeção de filmes colocar legenda nos mesmos, bem como evitar comentar os filmes no ambiente escuro. Durante o curso superior passei por alguns momentos de maior rebaixamento em minha audição devido crises de sinusite, afetando também a orelha média, causando inflamação na orelha média (otite), chegando a durar três meses, período em que ficava sem ouvir, não 37 conseguindo manter minha atenção na aula, porque uso a audição junto com o apoio labial para aprender a matéria e prestar atenção no professor. Infelizmente houve queda em meu rendimento, mas ainda assim estou concluindo o curso de Pedagogia. Muitas vezes somente a leitura labial traz confusão, pois alguns professores falam rápido demais, outros não articulam bem os fonemas, o que torna difícil quando tento compreender o que o professor está dizendo só visualmente, uma vez que alguns fonemas têm o mesmo ponto de articulação, como “l”, “t”, “d” e “n” que são articulados com o contato da língua com o palato, ou labiodental como “s” e “z”, e assim por diante. Desta forma, existem frases que posso entender de uma forma errada, mas é compreensível segundo o contexto, uma vez que há palavras que se articulam da mesma forma e são diferentes como “vaca” e “faca”. Estas dificuldades não impediram de chegar a conclusão do curso, e de aprender novos conceitos, conteúdos, e de continuar sonhando em me especializar cada vez mais, esperando fazer o mestrado e doutorado, podendo por meio de pesquisas contribuir mais para a sociedade. 38 CONSIDERAÇÕES FINAIS Esse trabalho de conclusão de curso apresentou um relato em forma de Memorial Autobiográfico da minha história, sendo um momento em que aprendi muito e fiz importantes descobertas sobre minha trajetória na visão de outros sujeitos com que tive o prazer de conviver. Assim creio que meu Memorial Autobiográfico pode contribuir para o conhecimento tanto de quem o escreve, como para quem irá ler esta trajetória de vida e comparar com o que estudiosos retratam sobre o tema estudado, neste caso a surdez. O objetivo desta pesquisa buscou responder a questão principal: Pode o surdo oralizado, tendo a língua portuguesa como a primeira língua, ter maior chance de concluir o ensino superior na atual realidade da educação brasileira? Sabendo que existem diferentes graus de perda auditiva, como leve, moderada, severa e profunda, e quanto maior o rebaixamento auditivo maior a dificuldade exposta ao sujeito no processo de construção de linguagem, necessitando da intervenção da família, da fonoterapeuta e da escola. O principal instrumento de trabalho para estimular o desenvolvimento da linguagem do surdo usado no século XX foi a oralização, mesmo não sendo o mais efetivo, pois há outros métodos como o bilinguismo e a Língua de Sinais que são mais facilmente aproveitados pelos surdos de perda auditiva severa e profunda. Eu sou oralizada e tenho a Língua Portuguesa como a minha primeira língua, aprendi Libras somente após ser oralizada sendo esta a minha segunda língua, da qual apenas faço o uso com outros surdos. Por não ser fácil ao surdo o aprendizado do Português tive que me empenhar para entender o significado das palavras e da construção das frases, sempre estudei na sala regular sem apoio de interprete de Libras, apenas com uso de aparelho de amplificação auditiva e apoio de leitura orofacial. Cheguei até o ensino superior e muitas das minhas amigas surdas não conseguiram prosseguir em seus estudos. Há possibilidade de afirmar que minha experiência com o oralismo demonstrou que o fato de ter a Língua Portuguesa como primeira língua foi um facilitador ao processo de inclusão, pois ainda hoje é difícil o processo de inclusão de surdos usuários da LIBRAS no universo escolar. Desta forma, é possível afirmar que um surdo oralizado com o português como a primeira língua tem maior chance de acesso e de concluir o ensino superior que o sujeito 39 surdo que utiliza apenas da LIBRAS. Assim o ideal é que o surdo tivesse a possibilidade de cursar o curso superior com apoio de interprete de LIBRAS. Percebi ao decorrer da pesquisa, que para a sociedade, um surdo é um problema, mas para o surdo será que a surdez é mesmo um problema? Creio que o desenvolvimento da linguagem é essencial para obter uma educação de qualidade, mas a sociedade não tem o conhecimento para adaptar-se a comunicação com o surdo. Ainda concluo que diante de todo o desenvolvimento do trabalho, da minha história de vida, cada obstáculo superado, cada luta, a minha própria superação e o sucesso de toda minha família me torna uma VENCEDORA! Assim posso fazer minhas as palavras de Mahatma Gandhi: “Nas grandes batalhas da vida, o primeiro passo para a vitória é o desejo de vencer‟. 40 REFERÊNCIAS ALMEIDA, Katia de. O processo de Seleção e Adaptação de Aparelho de Amplificação Sonora. In.: LOPES FILHO, Otacílio de C.(Org.) Tratado de Fonoaudiologia. São Paulo: Roca, 1997. APASCAMP. O nascimento de uma ideia <http://apascamp.org.br/quemsomos.htm>. Acesso em 06/03/14. Disponível em: BAGGINS, Brian. How I Became a Socialist. Helen Keller Reference Archive. The New York Call, November 3, 1912. Disponível em: <http://www.marxists.org/reference/archive/keller-helen/works/1910s/12_11_03.htm>. In.: Tradução disponível em: <http://livrepensamento.com/2013/08/01/helen-keller-da-prisao-dosilencio-a-emancipacao-proletaria/>. Acesso em 07/03/14. BEVILACQUA, Maria Cecília; COSTA FILHO, Orozimbo Alves; MARTINHO, Ana Claudia de Freitas. Implante Coclear. In FERREIRA, Léslie P.; BEFI-LOPES, Débora M.; LIMONGI, Suelly Cecília Olivan. 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