O acesso à língua padrão e suas implicações no século XXI

Propaganda
Página 1 de 5
imprimir
voltar
O ACESSO À LÍNGUA PADRÃO E SUAS IMPLICAÇÕES NO SÉCULO XXI
Norma Soeli R. Menezes
IEL / UNICAMP
Um dos reflexos do desenvolvimento econômico e sociocultural do Brasil, no final do século
XX e início do século XXI, é o aumento da competição e da concorrência dentro e fora das empresas
privadas ou públicas. Ser bom já não basta. Quem quer evoluir na carreira que abraçou precisa ser, no
mínimo, ótimo. Nesta busca incessante pela excelência, os brasileiros descobriram que falar e
escrever bem o português é uma obrigação.
Segundo Duarte:
O papel da língua padrão nas sociedades humanas contemporâneas faz dela um instrumento essencial da
cidadania: o cidadão precisa de a dominar para se informar, para estudar, para desempenhar actividades
profissionais que exigem qualificação científica ou técnica diferenciada, para aceder a produtos
culturais, para se comportar apropriadamente nas situações institucionais em que é chamado a interagir e
a exprimir-se por escrito.(DUARTE, 1997, p.5)
Há nesse ponto um equívoco da sociedade em geral que precisa ser explicitado: a crença de
que os lingüistas defendem o uso indiscriminado do dialeto não-padrão. Necessário se faz esclarecer
que os lingüistas defendem o respeito por qualquer dialeto independentemente do seu prestígio
sociopolítico. O interesse dos lingüistas por um dialeto é o do pesquisador/cientista. Não cabe a eles
nenhum julgamento de valor.
Às vezes, revistas de circulação nacional publicam reportagens em que professores de
português, autores de gramáticas condenam os lingüistas por estimularem o uso indiscriminado do
dialeto não-padrão. O que temos, na verdade, são publicações de vários lingüistas defendendo o
ensino do dialeto padrão nas escolas. Vejamos, por exemplo, o que diz Possenti:
O objetivo da escola é ensinar o português padrão, ou, talvez mais exatamente criar condições para que
ele seja aprendido. Qualquer outra hipótese é um equívoco político e pedagógico 1. (POSSENTI, 1996,
p.17). (Grifo nosso)
E acrescenta
A tese de que não se deve ensinar ou exigir o domínio do dialeto padrão dos alunos que conhecem e
usam dialetos não-padrão baseia-se em parte no preconceito segundo o qual seria difícil aprender o
padrão. Isto é falso, tanto do ponto de vista da capacidade dos falantes quanto do grau de complexidade
de um dialeto padrão. As razões pelas quais não se aprende, ou se aprende mas não se usa um dialeto
padrão, são de outra ordem, e tem a ver em grande parte com os valores sociais dominantes e um pouco
com estratégias escolares discutíveis.
E Duarte resume:
É [...] objetivo central da disciplina de língua materna levar todos os alunos a aceder e a dominar o
Português padrão. (DUARTE, 1997, p.5)
Assim, parece ser ponto pacífico entre os estudiosos – sejam eles lingüistas, gramáticos ou
professores – que o domínio da língua padrão e, por conseguinte, a capacidade de expressar-se com
clareza e correção – linguagem oral ou escrita – são qualidades necessárias para se almejar o
progresso profissional, para defender seus ideais na sociedade, para “ler o mundo”, para decodificá-lo,
enfim para ser cidadão.
Antes, porém, de nos tornarmos defensores tirânicos do ensino monolítico do dialeto padrão,
estigmatizando qualquer outra norma, e, antes mesmo que elejamos a escola como
[...] espaço institucional privilegiado de parametrização social, que tradicionalmente se confiou o papel
de guardiã da norma regrada e valorizada, daquele bom uso que tem o poder de qualificar o usuário para
file://C:\Users\Usuario\Desktop\ano5n5\data\articles\Norma Soeli R. Menezes.htm
07/01/2011
Página 2 de 5
a obtenção de passaportes sociais, e, portanto, para o trânsito ascendente nos diversos estratos (Neves,
2003, p 44),
necessário se faz esclarecer que o padrão não é único, imutável e rígido como uma rocha, pois mesmo
as rochas mais duras podem ser fragmentadas ou transmutadas em belíssimas esculturas.
Muitas vezes se aponta um uso como parâmetro a ser seguido, por ser ele corrente entre os
escritores – geralmente os clássicos – da língua, incorrendo-se no risco de ignorar a variabilidade,
bem como a própria evolução inexorável das línguas em geral. Não são poucos os exemplos que
podem ser extraídos das gramáticas normativas como modelo de correção a ser seguido e que não
encontram guarida entre os clássicos.
Em seu Dicionário de Verbos e Regimes, Fernandes (1982) registra o verbo obedecer – aliás,
como fazem todos os gramáticos normativistas – como transitivo indireto, regendo complemento
ligado a ele obrigatoriamente por intermédio da preposição a e tendo, portanto, o lhe como pronome
complemento. Atesta Fernandes, porém, que
Não obstante condenado por alguns autores de boa nota2 , é comum encontrar-se nos clássicos antigos o
verbo OBEDECER construído com objeto direto: “Tudo o que o senhor tem falado faremos e
OBEDECEREMOS. (Almeida, Êxodo, 24,7.) “Nem a Deus se podem perguntar os porquês:
OBEDECÊ-LOS sim, muda e cegamente.” (Vieira, Sermões, I 257). (FERNANDES, 1982, p.436).
(Grifo nosso)
Outras vezes, mesmo um determinado uso se insinuando nos textos de escritores modernos
consagrados, comportam-se certos gramáticos normativistas como verdadeiros juízes do saber e de
um padrão que já não encontra ressonância na modernidade, e o condenam sem qualquer razão
inteligível, como o faz Cegalla
Popularmente, usa-se este verbo em todas as pessoas com as acepções de ter dificuldade, demorar,
tardar: custa a crer, custas a entender, ele custou a chegar, custamos a acreditar, custais a acreditar ...
custei a entender, etc., formas estas ainda não sancionadas pelos gramáticos3, embora já apadrinhadas
pelos escritores modernos4: “custei a acreditar que fosse goiana. (Orígenes Lessa). (CEGALLA, 1988,
p.414). ( Grifos nosso)
Observe-se que Cegalla usa, sem nenhum constrangimento, expressões bastante “fortes” ou,
poderíamos mesmo afirmar, pejorativas.
Fica aqui uma questão bastante controversa: O que daria legitimidade e/ou prestígio a
determinados usos? É possível estabelecer fronteiras entre ambos?
Segundo Neves (2003), apelar para a autoridade e antiguidade de grandes escritores não
assegura a legitimidade nem o prestígio de certos usos, uma vez que se encontrarão sempre outros
bons escritores que não adotam os mesmos parâmetros; isso, portanto, dificulta o estabelecimento de
fronteiras exatas entre legitimidade e prestígio. Neves conclui, então, que:
O simples reconhecimento dessa dificuldade – e a conseqüente relativização do valor propriamente
lingüístico de uma norma prescritivista – já seria um grande avanço, e a própria proposição da norma de
prestígio já se formularia mais como uma orientação para a adequação sociocultural de uso do que como
uma receita de “legitimidade” e de “pureza” lingüística de determinadas construções. Essas construções,
na verdade, em geral se erigiriam em modelo porque socioculturalmente representam o uso de uma elite
intelectual do momento, e não porque são as “legítimas” e “puras” construções da língua portuguesa,
qualidades difíceis de verificar, na quase totalidade dos casos. (NEVES, 2003, p.46)
Por outro lado, porém, há certos usos legitimados pela “elite intelectual” como formas
estigmatizadas da linguagem oral e/ou escrita. Muitos são os exemplos extraídos das redações de
vestibulandos, ou dos textos produzidos pelos alunos que se submetem ao ENEM (Exame Nacional
do Ensino Médio), que são notadamente formas estigmatizadas, rotulando negativamente aqueles que
as produziram e atravancando – na grande maioria das vezes – o seu avanço profissional e social.
Alguns exemplos extraídos do vestibular da UFBa, 1989
1. “O coração desse paiz – Brasil – leva no seu interior o antagonismo de um povo. A beleza
e a alegria é uma visão do lado pitoresco; A fome e a miséria, o lado medíocre da vida”.
file://C:\Users\Usuario\Desktop\ano5n5\data\articles\Norma Soeli R. Menezes.htm
07/01/2011
Página 3 de 5
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
“A sociedade tem que olhar para o seu rabo e não para o do sotos”.
“Está visando melhorias sociais e prometendo comprilas”.
“... é dificio encontra um emprego, já pensor aqueles que nunca estudaram?”
“A política brasileira está sendo um dos assuntos mas comentados, debatidos pelos jornais
não só pelos atuais acontecimentos como também os que estão a previr.”
“ O nosso futebol está em crise por que os nossos governantes está fazendo dele uma
verdadeira putaria.”
“A sociedade inalfabeta...”
“... promeças oltras de um dia as coisas possam melhorarem se possível para melhor.”
“Estamos prôximos das eleiçõis
É preciso deixar claro que esses alunos cursaram, no mínimo, onze anos de ensino formal.
A revista TUDO publicou uma matéria intitulada “O valor do bom português”, em que se lê:
O problema muitas vezes aparece na forma de uma simples brincadeira, como ocorreu recentemente no
programa Big Brother Brasil, da Rede Globo. Em uma conversa ao vivo com os competidores..., o
apresentador Pedro Bial fez uma pergunta aparentemente inofensiva ao grandalhão da turma, o
dançarino e vendedor de coco Kleber: “No seu modo de vista, Kleber, como estão as coisas ai dentro?”
O participante não percebeu, mas naquele momento estava sendo motivo de chacota para outros
moradores da casa e para boa parte dos telespectadores. A razão era a expressão “modo de vista”, ela é
considerada errada5 pela norma culta da língua portuguesa. Bial sabe disso, imitou-o de propósito para
rir e provocar risos. (PAPAROUNIS, 2002, p.32)
É para rir e provocar risos que Jô Soares, em seu programa de entrevistas exibido também pela
Rede Globo, recita entre risos “sacudidos” as chamadas “pérolas” que lhe são enviadas por
professores, revelando em rede nacional as mazelas de seus – nossos – alunos cuja única culpa é
serem alunos desses professores que não se conscientizaram de que as mazelas dos mesmos são
nossas mazelas, que o seu fracasso é o fracasso da educação brasileira. Pedro Bial e Jô Soares fazem
parte de uma elite intelectual, e os nossos alunos...?
Não é preciso um exame acurado da sociedade contemporânea para inferir que o mercado de
trabalho mudou, e também a forma como a sociedade vê determinados temas. Sendo assim, o ensino
também precisava se atualizar; o MEC, então, cria em 1997 os Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN), visando ajudar o professor a ampliar os horizontes de seus alunos, preparando-os para um
mundo cada vez mais competitivo e plural.
Os PCN apresentam idéias de como trazer esse mundo novo para as aulas. E, no que concerne
ao domínio da língua, não basta saber falar e escrever, é preciso dominar para participar da vida do
bairro, da cidade e do país. Pelo uso da linguagem, escolhendo as palavras certas para cada tipo de
discurso, as pessoas se comunicam trocando opiniões, têm acesso às informações, protestam e fazem
cultura. Em outras palavras, tornam-se cidadãs.
Para atingir esses ideais, é preciso que os conteúdos de Língua Portuguesa, no ensino
fundamental sejam selecionados em função do desenvolvimento dessas habilidades e organizados em
torno de dois eixos básicos: O uso da língua oral e escrita e a análise e reflexão sobre a língua.
O Bloco de conteúdos língua escrita: usos e formas subdivide-se em “Prática de leitura” e “Prática de
produção de texto”, que por sua vez, se desdobra, em aspectos discursivos e aspectos notacionais.
(BRASIL, 1997, p.44)
Necessário também se faz seqüenciar e organizar esses conteúdos em função do eixo – USO
REFLEXÃO USO – que pressupõe um tratamento cíclico, uma vez que,
de modo geral, os mesmos conteúdos aparecem ao longo de toda a escolaridade, variando apenas o grau
de aprofundamento e sistematização. (BRASIL, 1997, p. 44)
Nos PCN o professor encontrará ainda considerações acerca do tratamento didático dos
conteúdos bem como um detalhamento de todo o processo ensino/aprendizagem para cada ciclo.
Trata-se, sem dúvida, de um trabalho muito bem elaborado.
O desafio a ser vencido é o de implantá-lo em todo o território nacional, diante das
dificuldades por que passa a educação no Brasil. A figura primordial desse processo carece de
formação adequada especialmente porque deparará, no exercício do magistério, com grande
diversidade de contextos culturais, públicos heterogêneos e condições – muitas vezes – críticas de
trabalho.
file://C:\Users\Usuario\Desktop\ano5n5\data\articles\Norma Soeli R. Menezes.htm
07/01/2011
Página 4 de 5
Apesar de todos os entraves, não podemos permitir que os nossos alunos – cidadãos
brasileiros – continuem sendo ridicularizados por fornecerem “pérolas” a programas de televisão, não
podemos aceitar passivamente que as portas do “mundo letrado” lhes sejam fechadas. O professor
deve, portanto, fazer desse desafio não uma luta pessoal, pois é uma luta de todos, mas uma batalha a
ser vencida no dia-a-dia com estratégias que se lhe afigurem acertadas para conduzi-los à vitória
contra o “analfabetismo funcional”.
Por fim, não nos esqueçamos de que o fracasso do ofício do mestre, segundo Arroyo reflete o
fracasso da nossa cultura:
[...] reflete que à nossa infância, adolescência e juventude não está sendo roubado e negado apenas o
direito de conhecer a leitura e a escrita, as contas, o saber científico e tecnológico [...] está sendo roubada a
vontade de saber, de experimentar, de ser alguém. [...] Está sendo destruído o sentido do nosso ofício.
(ARROYO, 2000, apud, Mattos & Mattos, 2001 p. 73).
file://C:\Users\Usuario\Desktop\ano5n5\data\articles\Norma Soeli R. Menezes.htm
07/01/2011
Página 5 de 5
REFERÊNCIAS
ARROYO, M.G. O Ofício de mestre: imagens e auto-imagens. Petrópolis: Vozes, 2000. (In.:
Presença Pedagógica, 2001, p.73)
BRASIL. Ministério da Educação, Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros curriculares
nacionais: língua portuguesa. – Brasília, 1997. 144 p.
CEGALLA, Domingos P. Novíssima gramática da língua portuguesa. São Paulo: Nacional, 1987.
DUARTE, Inês. Algumas boas razões para ensinar gramática. In: ENCONTRO DE
PROFESSORES DE PORTUGUÊS: A LÍNGUA MÃE E A PAIXÃO DE APRENDER,
HOMENAGEM A EUGÊNIO DE ANDRADE, 2., Porto, Portugal, 1997, Xerocopiado.
FERNANDES, Francisco. Dicionário de verbos e regimes. Rio de Janeiro: Globo, 1982.
GNERRE, Maurizio. Linguagens escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
KLEIMAN, Angela B. Concepções da escrita na escola e formação do professor. In: VALENTE,
André (Org.). Aulas de português: perspectivas inovadoras. Petrópolis: Vozes, 1999, p.67-82.
MATTOS, Andréa M. de A., MATTOS, Claudia M. de A. O trabalho docente: reflexões sobre a
profissão professor. Presença Pedagógica, Belo Horizonte, V. 7, n.41, p.69-73, 2001.
NEVES, Maria Helena de M. Que gramática ensinar na escola? São Paulo: Contexto, 2003.
POSSENTE, Sirio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas, SP: ABL:Mercado de
Letras, 1996, (Coleção Leituras no Brasil).
TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática: ensino plural. São Paulo: Cortez, 2003.
PAPAROUNIS, Demetrius. O valor do bom português. Tudo: Revista Semanal Informativa, São
Paulo, p. 32-37, 22 de mar.2002
file://C:\Users\Usuario\Desktop\ano5n5\data\articles\Norma Soeli R. Menezes.htm
07/01/2011
Download