Descartes e Sartre

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Descartes e Sartre: reflexões acerca da liberdade
Roberta do Carmo*
Resumo
Compreender e descobrir o mundo é criar o próprio mundo, lançar seus fundamentos, a partir
de uma liberdade que é menos poder e mais vontade. É com essa ideia que Sartre inicia seu
texto A Liberdade Cartesiana, de 1947, afirmando que uma coisa é experienciar a liberdade
pelo meio da ação e outra é experiênciá-la no ato de compreender e descobrir. É dessa última
experiência que se pode dizer que Descartes delineia toda sua filosofia do cogito, a partir da
ideia de um pensamento autônomo que não é livre para fazer o que quer, mas que possui
como característica de sua estrutura a liberdade de fundar o próprio mundo. Trata-se de
entender o live-arbítrio enquanto exercício de um pensamento independente, não enquanto tão
somente a produção de um ato criador. Para Sartre, é desse pensamento que a filosofia
francesa se alimenta há três séculos, de modo a assimilar a liberdade ao ato de julgar. Diante
da ideia cartesiana de liberdade enquanto pensamento autônomo, Sartre se pergunta: não seria
paradoxal falar em uma autonomia humana e ao mesmo tempo projetar a liberdade em Deus?
Pretendemos traçar uma trajetória de exposição que possa indicar, através da reflexão que tem
como ponto de partida o texto A liberdade cartesiana, como a liberdade atrelada à ideia de
Deus em Descartes dá lugar a uma liberdade incondicional do homem no pensamento ateu de
Sartre.
Palavras-chave: Descartes. Sartre. Liberdade. Subjetividade. Deus
*
Mestranda em Filosofia - UFSCar
Anais do Seminário dos Estudantes de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar
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Compreender e descobrir o mundo é criar o próprio mundo, lançar seus fundamentos,
a partir de uma liberdade que é menos poder e mais vontade. É com essa ideia que Sartre
inicia seu texto A Liberdade Cartesiana, de 1947, afirmando: “uma coisa é experienciar que
se é livre no plano da ação, do empreendimento social ou político, da criação nas artes, e outra
é experiência-lo no ato de compreender e descobrir” (SARTRE, 2005, p. 285). É dessa última
experiência que se pode dizer que Descartes delineia toda sua filosofia do cogito, a partir da
ideia de um pensamento autônomo que não é livre para fazer o que quer, mas que possui
como característica de sua estrutura a liberdade de fundar o próprio mundo. Trata-se de
entender o live-arbítrio enquanto exercício de um pensamento independente, não enquanto tão
somente a produção de um ato criador. Para Sartre, é desse pensamento que a filosofia
francesa se alimenta há três séculos, de modo que seus filósofos “acabam por assimilar a
liberdade ao ato de julgar” (SARTRE, 2005, p.285).
O Discurso do Método de Descartes, publicado em 1637 e considerado como texto
inaugural da filosofia moderna, destaca a razão enquanto sinônimo desse pensamento
independente. Trata-se de um movimento que busca romper com os dogmatismos da filosofia
escolástica e do senso comum, propondo um empreendimento que aponta para a subjetividade
do sujeito. É dentro de si próprio que o filósofo irá em busca das verdades: “a pluralidade das
vozes não é uma prova que valha para as verdades um pouco difíceis de descobrir, porque é
bem mais provável que um homem sozinho as encontre do que um povo inteiro”
(DESCARTES, 2011, p. 52). Através de uma dúvida radical, capaz de colocar como incerta
qualquer existência exterior ao sujeito, Descartes coloca tão somente enquanto inquestionável
o próprio sujeito que duvida:
Considerando que os mesmos pensamentos que temos acordados também
podem nos ocorrer quando dormimos sem que haja então nenhum que seja
verdadeiro, resolvi fingir que todas as coisas que alguma vez me haviam
entrado no espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus
sonhos. Mas logo notei que, quando quis assim pensar que tudo era falso, era
preciso necessariamente que eu, que o pensava, fosse alguma coisa. E,
observando que esta verdade parte do que é comum a todos os homens,
possibilitando a unificação dos conhecimentos pelo viés das certezas
racionais. Destaca-se a importância especial dada à matemática, que, penso,
logo existo, era tão firme e tão segura que as mais extravagantes suposições
dos céticos eram incapazes de abalar, julguei que podia admiti-la sem
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escrúpulo como o primeiro princípio da filosofia que eu buscava.
(DESCARTES, 2011, p. 70)
A razão enquanto capaz de ser a base segura de um novo pensamento, já que para
Descartes ela se apresenta enquanto fundamental e inquestionável instrumento de
conhecimento e organização do mundo. É assim que se torna possível a confecção do método
cartesiano, que deixa em suspenso qualquer entendimento prévio do mundo para abrir lugar a
uma nova compreensão da realidade, calcada na dúvida universalizada e na crença
inquestionável na razão. Abre-se um imenso espaço de liberdade ao pensamento humano
dentro de uma época marcada pelo dogmatismo religioso. Mas, se a base do pensamento
cartesiano é o cogito, este só é assegurado enquanto capaz de atingir a verdade através da
garantia de Deus. Mantém-se, portanto, a crença no divino como fundamento absoluto da
objetividade, substância infinita e perfeita capaz de assegurar a existência do mundo e a nossa
própria existência: “as coisas que concebemos de maneira muito clara e distinta são todas
verdadeiras, só é seguro porque Deus é ou existe, e porque ele é um ser perfeito, e porque
tudo que está em nós vem dele” (DESCARTES, 2011, p. 76). Ainda que as ideias venham do
homem, em uma liberdade de entendimento assegurada pela razão, Descartes destaca que
apenas Deus pode assegurar que elas possuam um fundamento de verdade.
Embora a ideia de Deus esteja presente no pensamento cartesiano, sua filosofia
estaria, segundo Sartre, antecipando a noção heideggeriana de mundo. Ainda que diante de
uma realidade que aparece a todo tempo ser fixa, de uma matemática que é vontade divina e
de uma nascente ciência com caráter de dogma, Descartes já se apresenta impelido a exercer
livremente seu pensamento autônomo, sua ação criadora que é fundar a verdade e,
consequentemente, seu próprio mundo. Surge a ideia de total responsabilidade intelectual: “o
homem é o ser pelo qual a verdade aparece no mundo: sua tarefa consiste em se engajar
totalmente para que a ordem natural dos existentes se torne uma ordem das verdades”
(SARTRE, 2005, p.287). Responsabilidade que é também um sentir solitário diante de sua
fatal condição: se Heidegger posteriormente decretaria que é impossível que alguém morra
em seu lugar, Descartes já pressentia o fardo que é a impossibilidade de que alguém pudesse
pensar por ele. Liberdade que não é qualidade entre outras, mas que é constitutiva do próprio
homem: “Heidegger disse: ninguém pode morrer por mim. Mas antes dele, Descartes:
ninguém pode compreender por mim. Por fim, é preciso dizer sim ou não – e decidir sozinho
acerca do verdadeiro para todo o Universo” (SARTRE, 2005, p. 288).
Afirmar que todo homem possui igual autonomia de pensamento significa para Sartre
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lançar o gérmen da democracia e do humanismo em meio a um mundo ainda sob a custódia
dos rígidos dogmas religiosos. É antever a luz natural do ser, que convida o homem a se
posicionar dizendo sim a tudo que está dado, trazendo a verdade ao mundo por um chamado
que não precisa ser sobrenatural e divino como queria a época de Descartes. Um dizer ‘sim’
que advém da liberdade da recusa, do poder humano de trazer ao mundo o nada enquanto
exerce o ato fundante de duvidar: “é recusando até o ponto de não mais podermos recusar que
somos livres. De modo que a dúvida metódica se torna o ato livre por excelência” (SARTRE,
2005, p. 294). ‘Duvido, logo existo’ enquanto variação possível para a célebre frase ‘Penso,
logo existo’. Duvidar é instaurar o nada, e é a partir desse nada que o homem se vê livre para
aderir à verdade, ou negá-la. Ou como prefere concluir Descartes, que acaba por não levar até
o fim as ideias que ele mesmo antevê, duvidar é estar diante do próprio livre-arbítrio, que abre
ao homem a possibilidade de optar pela recusa ou não de Deus, cabendo a este a criação livre
de tudo que é dado pronto ao homem. Assim, o que no início era liberdade humana passa a ser
no fim um pálido reflexo da liberdade divina, assegurado pelo fato de termos sido criados à
imagem e semelhança de Deus.
Diante do exposto, Sartre se pergunta: por que Descartes não levou até o fim sua
teoria? Teria mesmo desejado, ao término de suas meditações, encerrar a liberdade humana
tão somente no exercício do livre-arbítrio, cabendo a Deus a liberdade genuinamente criadora,
fundante do mundo e da verdade? Não lhe parece definitivamente assim. Para o filósofo, a
saída pelo viés religioso de Descartes, depois de afirmar sua própria autonomia com o cogito
e desejar a criação de um método fundante para a ciência, caracteriza-se enquanto algo de
suspeito e paradoxal. Ao mesmo tempo que o homem compreende, duvida e forma o mundo,
este mundo já se apresenta enquanto sistema rigoroso de ideias criado por Deus. É assim que
Sartre conclui que, na verdade, Descartes não queria sua própria conclusão: “é que Descartes,
homem de ciência dogmática e bom cristão se deixa esmagar pela ordem preestabelecida das
verdades eternas e pelo sistema eterno dos valores criados por Deus” (SARTRE, 2005, p.
297). A liberdade que antevê no homem é por fim característica de Deus:
Uma vez que Descartes nos adverte que a liberdade de Deus não é mais
inteira que a do homem e a que uma é à imagem da outra, dispomos de um
novo meio de investigação para determinar mais exatamente as exigências
que ele trazia dentro de si e que os postulados filosóficos não lhe permitiram
fazer. Se ele concebeu a realidade divina como inteiramente semelhante à
sua própria liberdade, é portanto de sua própria liberdade, tal como seria
concebido sem os entraves do catolicismo e do dogmatismo, que fala quando
descreve a liberdade de Deus. Há aí um evidente fenômeno de sublimação e
transposição. (SARTRE, 2005, p. 297-298)
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Diante da conclusão a respeito das escolhas de Descartes, Sartre se posiciona
enquanto admirador, não enquanto censor. Ele coloca que, ainda que submetido às influências
de sua época, o pensamento cartesiano possui um grande poder de afirmação humana, capaz
de lançar bases para uma democracia a partir da ideia de autonomia da consciência, além de
influenciar todo o pensamento filosófico que lhe seguiria: “pouco nos importa que ele tenha
hipostasiado em Deus essa liberdade original [...] resta que um formidável poder de afirmação
divino e humano percorre e sustenta seu universo” (SARTRE, 2005, p. 300). Para Sartre, o
tempo encarrega-se de restituir ao homem a liberdade que temporariamente foi sublimada em
Deus. Se Descartes, em seu texto Meditações, direcionado à intelectualidade da sua época,
apresenta a prova racional de Deus e conclui: “é preciso reconhecer a imperfeição e a
fraqueza de nossa natureza” (DESCARTES, 1983, p. 142), para Sartre:
Seriam necessários dois séculos de crise – crise da Fé, crise da Ciência –
para que o homem recuperasse essa liberdade criadora que Descartes
colocou em Deus e para que enfim se vislumbrasse esta verdade, base
essencial do humanismo: o homem é o ser cujo surgimento faz que o mundo
exista. (SARTRE, 2005, p. 300)
Volta-se, assim, à característica fundamental da filosofia de Descartes, já colocada
por Sartre no princípio de suas reflexões em A Liberdade Cartesiana: a capacidade de formar
o mundo, a partir da ideia de autonomia de pensamento e pela pretensão de criar as bases de
um método capaz de desvelar a verdade pela ciência. Independente das escolhas religiosas de
Descartes, o impacto de seu pensamento nos aponta para a discussão em torno de mundo e da
liberdade humana. Reflexões que são muito caras à filosofia de Sartre, que toma como base a
Fenomenologia de Husserl, através de seu conceito de intencionalidade, e a Ontologia de
Heidegger, através de seu conceito de mundo, para aprofundar questões que já se encontram
embrionárias na filosofia cartesiana. Cabe a nós buscar, a partir de agora, alguns importantes
pontos de encontro e de diferença entre a filosofia de Descartes e a de Sartre, no que se refere
ao entendimento do homem e do mundo.
O conceito de intencionalidade, desenvolvido por Husserl e tomado por Sartre como
um dos principais pilares de seu pensamento, refere-se à tentativa de superar a dicotomia
cartesiana entre mundo e sujeito, colocando-os em relação. As vivências do mundo, segundo
Husserl, dão-se na e pela consciência, o que nos leva a concluir que toda consciência é sempre
consciência de algo. Sujeito e mundo deixam de ser aspectos distintos e independentes de uma
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realidade dualística, dando lugar à ideia de fenômeno, capaz de uni-los e explica-los em uma
única realidade indissociável. Tal pensamento se apresenta dentro do que Husserl denomina
como Fenomenologia, delineada nos meados do século XX e marco na filosofia
contemporânea, dado que se coloca enquanto crítica de uma razão lógica, prática e valorativa,
tão comumente presente em sua época. Ao se propor um encontro das coisas em si mesmas,
trava-se uma ciência do ver, enquanto “ausência de pressupostos e absoluta evidência
reflexiva sobre si mesma" (HUSSERL, 2006, p. 144). Assim, rompe-se com a ideia de ego
enquanto algo inato e dado previamente ao mundo, para colocar uma consciência que sempre
é consciência de alguma coisa, existindo tão somente em relação: “ser, é manifestar-se no
mundo, é partir de um nada de mundo e da consciência para de repente se manifestarconsciência-no-mundo” (SARTRE, 2005, p. 106).
A Ontologia de Heidegger, desenvolvida em sua obra Ser e Tempo de 1927, elege
como instrumento de trabalho a Fenomenologia. É de Husserl o mote que Heidegger destaca:
“para as coisas elas mesmas”, dentro de um olhar que assimila a ideia de intencionalidade.
Mas se é clara a influência husserliana, Heidegger desenvolve seu próprio conceito de
Fenomenologia, enquanto ciência dos entes que parte da hermenêutica do Dasein. Trata-se de
uma analítica da existência, de um interpretar e um perguntar filosófico que se debruça neste
ente dado como privilegiado: o ser-aí, o Dasein, nós, seres que possuem em seu ser a
possibilidade de questionar o ser. Heidegger considera que toda a tradição metafísica
ocidental acaba por esquecer o ser ao torna-lo ente, ou seja, ao tentar coloca-lo enquanto
objeto passível de análises e estudos diretos. Na verdade, o ser apenas poderia ser desvelado,
e nunca completamente revelado, “em sua mediana cotidianidade” (HEIDEGGER, 2012, p.
73), através da análise do ente que se coloca enquanto ente-do-interior-do-mundo. O modo de
ser do Dasein se diferencia dos outros entes porque este pertence ao mundo, o constitui, e não
apenas está nele como algo subsistente. Não há Dasein antes para depois haver o mundo,
assim como não é possível pensar o mundo que já não seja desvelado pelo Dasein.
Percebe-se, portanto, que as bases sobre as quais Sartre funda seu pensamento já
partem de uma compreensão de consciência distinta do cogito cartesiano. O sujeito deixa de
estar separado do mundo pelo pensamento, já que pensar e viver transformam-se em um
mesmo e único ato, formador de mundo e de si próprio. Não há conceitos estanques entre
matéria, pensamento e mundo, há apenas relação. Mas dada essa diferença de compreensão do
cogito, capaz de distanciar os pensamentos de Sartre e Descartes, é preciso destacar o que
novamente os aproxima: a consciência humana enquanto ponto de partida para ambos
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filósofos. Se no pensamento cartesiano há a ideia de um cogito intelectualizado, puramente
racional, Sartre, através da ideia de mundo, “consegue atribuir ao cogito uma dimensão
existencial que não se encontra em Descartes” (BORNHEIM, 2007, p. 19). Tal dimensão se
manifesta enquanto consciência que apresenta um cogito pré-reflexivo, a todo tempo em
relação com o mundo, a todo tempo sustentando a possibilidade da existência de um cogito
reflexivo. A percepção enquanto consciência, que, ao mesmo passo, é consciência de
percepção. Em outras palavras, toda existência consciente existe como consciência de existir.
Observa-se, assim, a preeminência absoluta da existência:
Há, portanto, um ponto de partida que é a consciência. Mas a consciência
não é fechada em si própria, visto que o homem é ser-no-mundo; e o ser-nomundo não encontra o seu fundamento na reflexividade ou na res cogitans, já
que ele se estabelece num plano pré-reflexivo. (BORNHEIM, 2007, p. 19).
Partindo dessa nova concepção de cogito, Sartre apresenta, em 1943, sua ontologia O
Ser e o Nada, buscando delinear o que seria essa consciência, esse ser que se faz tão diferente
dos demais seres existentes. Se ao restante de todos esses outros seres é reservada a plena
positividade, o pleno coincidir consigo mesmo, ao homem há a falta de plenitude, a
instauração do nada, o ato de negar: “a aparição do homem no meio do ser que o ‘o investe’
faz com que se descubra um mundo. Mas o momento essencial e primordial dessa aparição é a
negação” (SARTRE, 2005, p. 67). É pelo homem que o nada vem ao mundo e, com ele, o
próprio sentido do mundo. Infere-se daí o conceito de liberdade tal como era entendido por
Sartre, enquanto parte da constituição humana, já que ao homem é reservado uma existência
livre de uma essência fixa, um ato de negar que é típico de uma consciência que instaura o
nada onde antes havia apenas positividade. Liberdade que se toma consciência na angústia, já
que “a angústia é o modo de ser da liberdade como consciência de ser” (SARTRE, 2005, p.
72). Sem fugas, o homem se descobre inteiramente livre, exceto para negar a sua própria
liberdade.
Se há angústia, para Sartre, há também fuga. O homem a todo tempo se vê impelido
a representar, a exercer papéis capazes de forjarem uma impressão de positividade, de plena
coincidência consigo mesmo. Tentativa de antemão frustrada, já que não é possível escapar da
consciência de que se foge: “fujo para ignorar, mas não posso ignorar que fujo, e a fuga da
angústia não passa de um modo de tomar consciência da angústia” (SARTRE, 2005, p. 89).
Tal ato de fuga que Sartre denomina má-fé, representações sociais em que parece que a cada
um é dado assumir marionetes, em que o garçom deve se fazer garçom, em que o médico deve
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assumir posturas de médico. Dado ao homem ser algo com o qual nunca consegue realmente
coincidir, abre-se o paradoxo fundamental de sua condição: nunca consegue ser plenamente
algo, mas é de sua natureza sempre buscar ser. Garçom jamais será garçom assim como um
tinteiro é um tinteiro, e a liberdade humana demonstra sua face de angústia, sua raiz geradora
que é o nada: “a vastidão da vida é a vastidão do nada, e a existência queda-se perpetuamente
ébria de uma ausência que não consegue preencher o homem; o homem está condenado a
representar e o teatro é eterno.” (BORNHEIM, 2007, p. 50).
Diante dessas reflexões, Sartre busca delinear a realidade humana a partir do
conceito de para-si, consciência que se experimenta em relação a si própria e que se opõe ao
em-si. Vazio, a todo tempo voltado para fora, o para-si se revela imerso no conceito de
intencionalidade, enquanto consciência espontânea, criadora, “clara como um grande vento,
não há nada nela, salvo um movimento para fugir de si, um deslizamento para fora de si”
(SARTRE, 2005, p. 106). Movimento que, ao mesmo passo, é também presença a si,
“equilíbrio perpetuamente instável entre a identidade enquanto coesão absoluta, sem traço de
diversidade, e a unidade enquanto síntese de uma multiplicidade” (SARTRE, 2005, p.125).
Portanto, ao contrário do em-si, que seria tudo que é pleno de si mesmo, o para-si seria uma
descompressão de ser, uma fissura no coração do ser em que o nada se instaura, abrindo
espaço para o que é negação, criação e busca de si próprio. Negação que é também dúvida, tal
como já anteriormente apontado por Descartes. Sem poder coincidir consigo mesmo, sem
essência prévia à existência, o para-si “é um ser para o qual, em seu ser, está em questão o seu
ser” (SARTRE, 2013, p. 122). Não há a garantia de um Deus, de uma essência previamente
determinada, estando o para-si lançado ao mundo sem poder ser fundamento de sua própria
condição, mas apenas tão somente de seu próprio nada:
Vou emergindo sozinho, e, na angústia frente ao projeto único e inicial que
constitui meu ser, todas as barreiras, todos os parapeitos desabam,
nadificados pela consciência de minha liberdade: não tenho nem posso ter
qualquer valor a recorrer contra o fato de que sou eu quem mantém os
valores no ser; nada pode me proteger de mim mesmo; separado do mundo e
de minha essência por esse nada que sou, tenho de realizar o sentido do
mundo e de minha essência: eu decido, sozinho, injustificável e sem
desculpas. (SARTRE, 2005, p. 84)
Trata-se de um olhar à existência humana que não lhe poupa de sua facticidade, de
sua gratuidade total em relação à sua própria existência, de sua injustificabilidade. Deus não é
mais a causa e nem a justificativa, cabendo ao para-si criar o mundo e fazer com que o valor
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apareça nele. Sendo a realidade humana a fundadora do nada, a que coloca no mundo a ideia
de falta, “é consciência infeliz, sem qualquer possibilidade de superar o estado de
infelicidade” (SARTRE, 2013, p. 141), já que lhe falta ontologicamente o si e
existencialmente lhe falta a perfeita realização de seus projetos. Assim, a liberdade aparece
como constituinte da própria estrutura ontológica do para-si, condenando o homem a ser livre,
já que ele é responsável por si mesmo e pelo mundo. Na total impossibilidade do para-si
coincidir consigo próprio, percebe-se que o conceito sartriano de liberdade dialoga com a
liberdade cartesiana: não se refere à ação, à plena execução dos projetos desejados, mas antes
se detém ao sentido fundador, à plena liberdade de lançar ao mundo as suas próprias bases e
estruturas.
Percebe-se, assim, que a liberdade atribuída por Descartes a Deus pesa, no
pensamento ateu de Sartre, nos ombros do próprio homem. Trata-se de uma época que já não
mais acredita na infalibilidade da ciência e critica duramente a pretensão metafísica fundada
em Deus. Trata-se de uma época em que Descartes seria impelido levar até o fim, como
gostaria Sartre, seu pensamento acerca da autonomia da consciência e de sua plena liberdade.
É a partir dessas reflexões que podemos melhor compreender, assim como pontuado
anteriormente, a fala de Sartre diante do Deus cartesiano: é sublimação, transposição. Parecenos que talvez Deus tenha sido a tentativa de fuga diante da angústia da liberdade, legítima e
própria de um ser que é ao mesmo tempo crença e consciência de crença, lançado ao mundo e
ao mesmo tempo responsável por este mesmo mundo. Talvez fuga de uma época, um legítimo
e compreensível ato de má-fé sartriano: “entendamos bem que não se trata de uma decisão
reflexiva e voluntária, e sim de uma determinação espontânea de nosso ser. Fazemo-nos de
má-fé como quem adormece e somos de má-fé como quem sonha” (SARTRE, 2013, p. 116).
A ontologia O Ser e o Nada nos parece, assim, dar um passo importante nesse angustiante e
libertador despertar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BORNHEIM, Gerd Alberto. Sartre: metafísica e existencialismo. São Paulo: Perspectiva,
2007.
DESCARTES, René. Discurso do Método. Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM,
2011.
________________. Meditações. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. Coleção Os
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Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução de Fausto Castilho. Campinas, SP: Editora da
Unicamp; Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2012.
HUSSERL, Edmund. Ideias para uma Fenomenologia pura e para uma filosofia
fenomenológica: introdução geral à fenomenologia pura. Tradução de Márcio Suzuki. São
Paulo: Ideias & Letras, 2006.
SARTRE, Jean Paul. Uma ideia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: A
Intencionalidade. Tradução de Leon Lopes. Revista Veredas Favip, Caruaru, v. 2, n. 01, p.
102-107, jan-jun 2005.
_________________. O Ser e o Nada. Tradução de Paulo Perdigão. Petrópolis, RJ: Vozes,
2013.
_________________. Situações I – Críticas Literárias. Tradução de Cristina Prado. São
Paulo: Cosac Naify, 2005.
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