O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA

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O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA PERSPECTIVA DA REPERSONALIZAÇÃO DO DIREITO
O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA
PERSPECTIVA DA REPERSONALIZAÇÃO DO DIREITO
Valcir Schmitt1
RESUMO
Este estudo traz como contribuição teórica a sistematização do princípio
da dignidade humana, por meio de uma releitura de seu conceito, a
partir da perspectiva da repersonalização do direito. É uma pesquisa
bibliográfica do tipo exploratória, baseada na produção de conhecimento.
Na concepção atual, o princípio da dignidade humana indica uma espécie
de marco constitucional unificador para todos os direitos fundamentais. Os
principais objetivos que movem o Estado contemporâneo são a proteção
e o desenvolvimento da personalidade humana, cenário em que, pela
repersonalização dos direitos, a dignidade da pessoa deixa de ser um
direito individual para se tornar o fundamento de todos os direitos que se
concedem ao ser humano.
Palavras-chave: Dignidade Humana. Repersonalização.
1 INTRODUÇÃO
A sociedade contemporânea vive novos tempos. As mudanças,
visíveis em todas as esferas das relações humanas, são tão aceleradas que
fica difícil acompanhar na vida diária, mais ainda pelo direito que surge
para regular situações pré-existentes. Por isso, até as formas de se estudar o
direito precisaram ser revistas. O processo de elaboração legislativa também
vem sofrendo transformações, ao invés de textos pretensamente completos
e fechados, surgem normas abertas e flexíveis. Para tanto, recentes estudos
tem professado uma repersonalização do direito, colocando o ser humano
no centro das questões e dos direitos2.
1 Doutor em Direito pela Universidade del Museo Social Argentino (UMSA, 2015. Área
de concentração: Constitucional-Previdenciário). Buenos Aires, Argentina.
2 CAPPELARI, Récio Eduardo. Os novos danos à pessoa: na perspectiva da
repersonalização do direito. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2011. p. 47.
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Ao invés de adaptar o indivíduo ao rol taxativo de direitos expressos
em textos normativos, optou-se pela primazia da dignidade da pessoa
humana. Dessa forma, o direito passa a ser concebido enquanto protetor
da pessoa, tanto na esfera pública quanto privada, permitindo uma
interpretação bastante flexível, para que ao final a dignidade humana não
fique desprotegida. O processo de repersonalização do direito passou a
traduzir que, para este, a pessoa vale pelo que é não pelo que tem. Não se
pode olvidar que até bem pouco tempo prevalecia o direito à propriedade
em detrimento do próprio ser humano.
No Brasil, essa mudança aconteceu, em termos normativos e de
modo mais amplo e significativo, com o advento da Constituição Federal
de 1988, que em seu artigo 1º, inciso III, tratou de consagrar o princípio
da dignidade da pessoa humana como um dos pilares fundamentais da
República brasileira, o que traz especial relevância ao presente estudo:
Artigo 1º: A República Federativa do Brasil, formada
pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático
de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania;
II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político3.
Tal perspectiva tem trazido à tona importantes investigações que
abordam situações que só se encontram presentes na sociedade atual,
sendo inclusive objeto de estudo no direito securitário e também da própria
previdência pública e privada em geral.
Nesta linha, a dignidade da pessoa, na Constituição Federal de 1988,
3 BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de
outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/
Constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 05 jun. 2013.
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passou a gozar de grande primazia, tanto no campo jurídico, onde pretende
demonstrar a superioridade hierárquica que a norma maior atribui aos
direitos atinentes, quanto em relação a quaisquer outros direitos.
Neste breve estudo, primeiramente delineia-se a pessoa humana, bem
como as formas como esta tem sido valorada juridicamente, apresentando,
evolução também histórica e filosófica. Priorizam-se, nos primeiros dois
capítulos, a demonstração da pessoa humana mediante uma perspectiva
civil-constitucional, assim como as vantagens advindas da tutela expressa
da Lei Maior.
Finalmente, abre-se um capítulo específico sobre a dignidade da
pessoa humana, tratando-se de determinar o conteúdo e o alcance deste
relevante valor-conceito, inclusive trazendo ao debate perspectivas de
diversos autores sobre o assunto.
Na conclusão, aborda-se o princípio da dignidade da pessoa humana
e seus novos conceitos, comparando a importância que cada direito dá
ao mesmo tema, trazendo ao debate as conseqüência que advirão desta
perspectiva, bem como da possível anomalia jurídica que poderá advir
da sua desconsideração, ou mesmo da subestimação da importância da
presença do princípio nas normas jurídicas e no direito, como ciência.
2 A PESSOA HUMANA
O termo “pessoa” tem sua origem na expressão latina persona,
originária do vocábulo “pessoal”, que significava “máscara”, usada pelos
artistas nas representações teatrais. Na interpretação laica, “pessoa” é o ser
humano em suas relações com o mundo ou com ele próprio. No aspecto
filosófico, pessoa é o indivíduo dotado de natureza racional. Na acepção
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jurídica, pessoa é todo o ser enquanto sujeito de direitos4.
Para a doutrina tradicional, segundo constatações de Maria Helena
Diniz , “’pessoa’ é o ente físico ou coletivo suscetível de direitos e
5
obrigações, sendo sinônimo de sujeito de direito”. Continua discorrendo
sobre o tema, dispondo que “sujeito de direito”, “é o sujeito de um dever
jurídico, de uma pretensão ou titularidade jurídica, que é o poder de fazer
valer, através de uma ação, o não-cumprimento do dever jurídico, ou
melhor, o poder de intervir na produção da decisão judicial”.
Na teoria tradicional, o conceito de sujeito jurídico é identificado
com o conceito de pessoa, vale dizer, “pessoa é o homem enquanto
sujeito de direitos e deveres”. Porém, dado que, não só o ser humano, mas
também outras entidades como certas comunidades, associações, Estados,
são apresentadas como pessoas pelo direito (pessoas jurídicas), definese o conceito de pessoa como “portador” de direitos e deveres jurídicos.
Destarte, podem funcionar como portador de tais direitos e deveres não só
o indivíduo, como também estas outras entidades6.
A teoria pura do direito de Hans Kelsen define pessoa como “a
personificação de um complexo de normas jurídicas” ao reduzir o dever
e o direito subjetivo “à norma jurídica que liga uma sanção a determinada
conduta de um indivíduo e ao tornar a execução de sanção dependente de
uma ação judicial a tal fim dirigida”, de modo a reconduzir o direito em
sentido subjetivo ao direito objetivo. 7
Para Hans Kelsen o conceito de sujeito de direito não é necessário
para a descrição do direito. Segundo ele, a pessoa, física ou jurídica, que
4 FARIA, Anacleto de Oliveira. Instituições de direito. 5. ed. São Paulo: Revista dos
tribunais, 1980. p. 113.
5 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: História geral do direito. 9. ed.
v. 1. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 81.
6 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. 6. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 120.
7 KELSEN, Hans. Idem, ibidem, p. 120-134.
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tem direitos e deveres, consiste em um complexo desses direitos e deveres,
cuja unidade é expressa no conceito de pessoa. A pessoa, portanto, não é o
indivíduo ou uma comunidade de pessoas, mas a unidade personificada das
normas jurídicas que lhe impõem deveres e lhe conferem direitos. Assim,
a pessoa é uma construção da ciência do direito ligada à personalidade,
adquirindo aptidão para contrair direitos e obrigações. No entanto, hoje já
se percebe que a pessoa não depende da ciência do direito como queria a
corrente kelseniana.
Para ser pessoa, basta que o ser humano exista em sua unidade e
concreticidade. Os direitos da personalidade são os direitos comuns da
existência, porque “são simples permissões dadas pela norma jurídica,
a cada pessoa, de defender um bem que a natureza lhe deu, de maneira
primordial e direta”8. Tendo como base as origens romanas, Anacleto de
Oliveira Faria9 concebe que o conceito de ”pessoa”, em face do direito, é
“extra-humano” e “infra-humano”. Segundo ele:
É extra-humano porque abrange não somente o ser
humano como determinadas entidades que também
são sujeitos de direitos. Por isso, as pessoas, sob o ângulo jurídico, dividem-se em duas categorias fundamentais: pessoas físicas e pessoas jurídicas. Por outro
lado, é infra-humano, tendo em vista que nem sempre
todo ser humano foi considerado pessoa.
Para os romanos, pessoa e ser humano são conceitos diversos.
Somente o ser humano que reúne certos requisitos é pessoa, ou seja,
pessoa é o ser humano acompanhado de atributos (sujeito de direitos
e obrigações)10.
8 DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 83.
9 FARIA, Anacleto de Oliveira. Op. cit., p. 113.
10 CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito romano. Rio de Janeiro: Forense, 1993. p.
84-85.
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Porém, na atualidade essas restrições se chocam com o
desenvolvimento da civilização e, em especial, da consideração de que
todo ser humano traz consigo, inata, a personalidade. Portanto, “pessoa”
e “personalidade” não são palavras sinônimas. Personalidade é a aptidão
para ser sujeito de direitos e obrigações11.
O sujeito de direitos é a pessoa de forma que ser sujeito de direitos,
é ser pessoa. Tratam-se, dessa forma, de conceitos equivalentes, uma vez
que personalidade vem a ser a aptidão para ser pessoa12. A consideração
da pessoa como unidade individual, corresponde à mesma determinação
conceitual do termo como agente moral, sujeito de direitos civis e políticos
ou membro de um grupo social. O ser humano é “pessoa” porque, nos
papéis que desempenha, é essencialmente definido por suas relações com
os outros.
Apesar das controvérsias quando da conceituação doutrinária de
pessoa e personalidade, existem direitos que visam proteger as integridades:
física, intelectual e moral da pessoa, direitos estes que surgem no mesmo
instante em que a pessoa, ou seja, no momento em que se adquire a
personalidade civil, passando a ser pessoa e a ter, com isso, existência
jurídica. Tratam-se dos direitos da personalidade13.
No direito privado brasileiro, de acordo com a disposição do artigo
1º do Código Civil de 200214, “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na
ordem civil”. Por sua vez, o artigo 2º do mesmo diploma civil determina
que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas
11 DINIZ, Gustavo Saad. Direito das fundações privadas. Porto Alegre: Síntese, 2003. p.
135.
12 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p.
762.
13 GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri. Dicionário técnico-jurídico. 2. ed. São Paulo:
Rideel, 1999. p. 438-439.
14 BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 05 jun.
2013.
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a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”15.
Os direitos da personalidade decorrem da aquisição da personalidade
civil, são direitos da pessoa. Mas, essa afirmativa não basta para conceituar
os direitos da personalidade, já que todos os direitos são da pessoa, eis que
somente a pessoa, física ou jurídica, pode ser sujeito de direitos.
Os chamados “direitos da personalidade”, para a doutrina brasileira,
são direitos imanentes à pessoa, consistem em direitos que têm por
objeto “emanações da personalidade”. Portanto, consideram-se como
da personalidade os direitos reconhecidos à pessoa humana tomada em
si mesma e em suas projeções na sociedade, previstos no ordenamento
jurídico exatamente para a defesa de valores inatos no ser humano, como
a vida, a higidez física, a intimidade, a honra, a intelectualidade e outros
tantos16.
Na definição de Maria Helena Diniz17, os direitos da personalidade
são os direitos subjetivos da pessoa de defender o que lhe é próprio, ou
seja, a identidade, a liberdade, a sociabilidade, a reputação, a honra, dentre
outros.
Hoje a pessoa humana deve ser definida como algo integral,
composta de corpo físico e psíquico e o direito precisa abarcar esse conceito,
ampliando seu espectro de proteção sobre os direitos da pessoa, tutelando
não apenas “o ser biológico dotado de autoconsciência, mas também a
pessoa em potencial (nascituro, embriões); a pessoa em sua integridade
física e psíquica; e a pessoa enquanto corpo humano indisponível”. Esse
é o tratamento adequado que o direito deve dar à pessoa humana, vale
dizer, tratar o ser humano “o mais breve e integralmente como pessoa,
conferindo-lhe a proteção necessária que a dignidade decorrente de sua
15 CRETELLA JÚNIOR, José. Op. cit., p. 83.
16 DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 83.
17 DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 83.
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condição com ser único, irrepetível exige”18.
A pessoa humana é o centro do sistema jurídico e é assim que
deve ser tratada, pois é por causa dele que existem as leis e tem deveres
e obrigações e, simultaneamente, direitos e bens. A personalidade é o
conjunto de poderes de ação do ser humano; é um atributo genérico do ser
humano para adquirir direitos e contrair obrigações, portanto não é direito,
mas um atributo do ser humano.
2 NOVOS PERFIS PARA O DIREITO PRIVADO
Nos tempos atuais, a tendência dos ordenamentos jurídicos,
direciona-se ao reconhecimento do ser humano como o centro e o fim do
direito, como se extrai, no Brasil, da adoção do princípio da dignidade
da pessoa humana, fundada no valor básico do Estado Democrático de
Direito, consolidado por meio da Constituição Federal de 1988.
O direito civil brasileiro decorrente do Código Civil de 1916,
inspirado em boa parte no Código de Napoleão de 21 de março de
1804, foi considerado, por longo período, a norma máxima dos direitos,
contemporâneo de uma sociedade agro-patriarcal cuja supremacia estava
no caráter claramente egocêntrico e patrimonial19.
O Código Civil de 1916 se preocupava, basicamente, com as
relações patrimoniais regidas pelo princípio da autonomia da vontade.
Porém, depois de grandes revoluções e movimentos sociais, a humanidade
18 BARBOSA, Emerson Silva. O conceito de homem, pessoa e ser humano sob as
perspectivas da Antropologia Filosófica e do Direito. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande,
90, de 01 de julho de 2011. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/
index.php?n_link=revista_artigos_leitura &artigo _id=9837>. Acesso em: 05 jun. 2013.
p. 1.
19 ALVES, Jones Figueiredo; DELGADO, Mário Luiz. Novo Código Civil: Lei nº 10.406,
de 10 de janeiro de 2002, confrontado com o Código Civil de 1916. São Paulo: Ed.
Método, 2002. p. 4.
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passou por um período de instabilidade, forçando a intervenção dos
Estados na economia e nas relações privadas. O princípio da autonomia
da vontade foi o primeiro a ser afetado, levando o direito civil a perder o
caráter individualista e volver-se mais à proteção do indivíduo integrado
na sociedade.
Para tanto, o direito civil abandona o excessivo rigorismo formal, o
espírito dogmático-formalista, o seu caráter individualista-patrimonialista
(fundamentos do Código Civil de 1916), “para assumir uma plenitude éticojurídica de ordenamento, pós-positivista, capaz de ditar novas concepções
afeitas ao direito compreensivo que emana dos princípios da socialidade”,
da eticidade e da operabilidade (Código Civil de 2002), ou seja, passa
a ter como “fulcro fundamental o valor da pessoa humana, repleto de
dispositivos que cogitam pela justiça do caso concreto, com emprego de
equidade, na prevalência de valores ético”, sobrepondo a pessoa humana
ao patrimônio20.
Esse processo foi acontecendo de forma gradativa no sistema
brasileiro, tendo como seu ápice na Constituição Federal de 1988,
cujas atenções voltaram-se para a pessoa em si mesma, à tutela de sua
personalidade, de sua dignidade como ser humano, na medida em que
consagra a dignidade humana como seu valor fundamental21. Para tanto,
esta mesma Constituição passou a disciplinar também matéria de direito
privado, antes de competência exclusiva do Código Civil de 1916, haja
vista que além de estabelecer a dignidade da pessoa humana como um dos
cinco fundamentos da República Federativa do Brasil, traz preceitos que
resguardam diversas relações de direito privado.
20 Idem, p. 4.
21 MELLO, Cleyson de Moraes. A hermenêutica filosófica e a tutela da dignidade da
pessoa humana. In: Revista Legis Augustus - Revista Jurídica, v. 03, nº 01, p. 5-15. Rio
de Janeiro: UNISUAM, set. 2010.
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Se antes havia disjunção, hoje se busca uma unidade hermenêutica,
tendo a Constituição Federal de 1988 como fundamento conformador da
elaboração e aplicação da legislação civil. Com efeito, “a mudança de
atitude é substancial: deve o jurista interpretar o Código Civil segundo a
Constituição e não a Constituição, segundo o Código, como ocorria com
freqüência (e ainda ocorre)”22.
Ocorre uma verdadeira transformação do direito civil, que agora
deve ser interpretado segundo a Constituição Federal de 1988 e não o
contrário como, grosso modo, acontecia, eis que nenhum ramo do direito
era mais distante do direito constitucional do que o direito civil, que em
contraposição à “constituição política”, era cogitado como “constituição
do indivíduo”23.
Da “humanização” da Constituição Federal de 1988, que redundou
na supremacia do ser humano social em detrimento da individualização
exacerbada e da extremada importância patrimonial do direito privado,
aflorou a expressão “constitucionalização do direito civil”.
Esse processo é chamado por Carmem Lucia Silveira Ramos24 de
“despatrimonialização do direito civil”, por não significar a exclusão do
conteúdo patrimonial do direito civil, mas a funcionalização do próprio
sistema econômico diversificando sua valoração qualitativa, no sentido
de direcioná-lo para produzir, respeitando a dignidade da pessoa humana,
conforme está expresso na Constituição Federal de 1988.
É sob esses argumentos que se levanta a bandeira da
“constitucionalização dos direitos”. Portanto, “a constitucionalização é o
22 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do direito civil. In: Jus Navigandi, ano
03, nº 33. Teresina, jul. 1999. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.
asp?id=507>. Acesso em: 12 mar. 2012. p. 1.
23 Idem, p. 1.
24 RAMOS, Carmem Lucia Silveira. A constitucionalização do direito privado e a
sociedade sem fronteiras. In: FACHIN, Luiz Edson. Repensando fundamentos do direito
civil contemporâneo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 16.
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processo de elevação ao plano constitucional dos princípios fundamentais
do direito civil, que passam a condicionar a observância pelos cidadãos, e
a aplicação pelos tribunais, da legislação infraconstitucional”25.
Esse processo de constitucionalização do direito civil aliado ao
conjunto de microssistemas jurídicos, sela, inegavelmente, os novos perfis
para o direito privado.
3 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
O reconhecimento da dignidade humana é algo recente na história
da humanidade, embora sua ideia tenha origem na filosofia grega. Embora
precedentes históricos demonstrem que nem sempre a dignidade da pessoa
humana foi respeitada ou mesmo protegida pela lei e pelos costumes, a
filosofia ocidental sempre se preocupou com esse assunto26.
De fato, as civilizações antigas não conheceram, na prática, os
direitos dos indivíduos, mas apesar disso viviam relativamente bem27.
Ademais, isso não impediu que seus filósofos construíssem verdadeiras
bases de liberdades fundamentais por meio do desenvolvimento doutrinário
sobre o direito natural. Mesmo assim, não conseguiu evoluir ao ponto de
transformar seus postulados em correspondentes princípios de organização
política, notadamente porque faltou a noção plena da dignidade e do valor
da pessoa humana, que só veio a ser desenvolvida com o cristianismo28:
25 LÔBO, Op. cit., p. 1.
26 TAIAR, Rogério. A dignidade da pessoa humana e o direito penal: a tutela penal dos
direitos fundamentais. São Paulo: SRS Editora, 2008. p. 62.
27 “A escravidão, naturalmente aceita pelos gregos e romanos, implicava no confisco do
estado de liberdade do indivíduo, sendo qualificada como a capitis deminutio máxima”
(TAIAR, Rogério. Op. cit., p. 64-65).
28 “Coube ao pensamento cristão, assentado na fraternidade, modificar a mentalidade
vigente em direção a igualdade dos homens. Essa tarefa, que se iniciou ainda no ocaso
do Império Romano, com a proibição de crueldades aos escravos, decretada pelo
Imperador Constantino, prosseguiu com o ressurgimento da escravidão, ensejado pelas
navegações, de sorte que recebeu censura do Papa Paulo III, através da bula Sublimis
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[...] o reconhecimento dos direitos do ser humano
aconteceu em solo cristão. O fator primordial que,
em evolução lenta, porém segura, levou à eclosão das
modernas declarações dos direitos, foi o cristianismo
com sua concepção transcendental da dignidade humana. Esta noção cristã do ser humano descerra um
panorama velado para a antiguidade. Constitui, entretanto, a grande mola que acionou toda a evolução jurídica no sentido de uma centralização sempre maior
em torno do ser humano, reconhecido em seu valor
inalienável de pessoa29.
Na esfera jurídica, porém, o processo de reconhecimento da
dignidade humana, plasmada em declarações ou constituições escritas, foi
acompanhado desde 1770 pelo raciocínio filosófico. Por isso que:
[...] é significativa a menção ao pensamento de Emmanuel Kant que, indubitavelmente, vai ter uma contribuição generosa ao entendimento do conceito de
vida humana. É que, enquanto política, jurídica e economicamente trabalhava-se o campo das liberdades
humanas, por outra parte, filosoficamente, Emmanuel
Kant abria o espaço ao entendimento do indivíduo
como ser dotado de dignidade, o que gerou, quanto
aos raciocínios sobre a liberdade, uma revolução no
pensar sobre a razão da vida humana30.
Neste contexto, o indivíduo como possuidor de “dignidade”
passou a ser entendido como “alheio às coisas”, tendo em vista que
“não deriva de uma especial dimensão (indivisibilidade, racionalidade
e livre arbítrio) senão que se desprende de uma consideração ética”.
“Pessoa humana” é aquele ser que tem um fim em si mesmo, e que,
Deus, de 1537, somente extinguindo-se com o triunfo dos movimentos abolicionistas do
século XIX” (TAIAR, Op. cit., p. 65).
29 SODER, José. Direitos do homem. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1960. p.
27.
30 ALARCÓN, Pietro de Jesús Lora. Patrimônio genético humano: e sua proteção na
Constituição Federal de 1988. São Paulo: Método, 2004. p. 71.
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precisamente por isto, possui dignidade, o que o diferencia das
“coisas”, que têm um fim fora de si, que servem como meros meios
para fins alheios e, portanto, tem preço31.
O que se tem para destacar sobre a efetivação da dignidade
humana no percurso histórico desde a Antiguidade Clássica até a Idade
Contemporânea, é que o princípio do ser humano foi mais exceção que
regra.
Conforme Rogério Taiar32, desde a escravidão, vigente nas
civilizações orientais, clássicas e européias, até as arbitrariedades da
Inquisição, a discriminação social foi notória e naturalmente aceita pelos
filósofos. Aristóteles (384-322 a.C.) e Santo Agostinho (354-430 d.C.),
cada qual a seu tempo, se haviam debruçado sobre a diferenciação entre
objetos, animais e pessoas. Mas deve-se a Emmanuel Kant (1724-1804),
por meio dos seus estudos sobre as possibilidades do conhecimento, uma
das contribuições mais importantes para a noção de dignidade humana.
Na época, e a referência é ao século XVIII, apesar de alguns
documentos normativos33 já reconhecerem a dignidade humana e pregarem
a existência dos direitos fundamentais, como a liberdade e igualdade, sob
influência de teóricos iluministas como Thomas Hobbes, John Locke,
Jean-Jacques Rousseau e Emmanuel Kant, na prática, esses direitos
funcionavam apenas em favor dos reis e aristocratas.
Esse quadro levou à Revolução Francesa de 1789 que aboliu a
servidão e os direitos feudais e proclamou os princípios universais de
liberdade, igualdade e fraternidade. Posteriormente a afirmação dos direitos
31 Idem, p. 73.
32 TAIAR, Op. cit., p. 64.
33 Por exemplo: a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia em 1776 e a Declaração
da Independência dos Estados Unidos em 1776, que somadas ao êxito da Revolução
Liberal na França, em 1789, fizeram nascer a Declaração de Direitos do Homem e do
Cidadão em 1789. Essas declarações de direitos, em conjunto, declararam a dignidade
humana e plantaram a semente dos direitos fundamentais.
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fundamentais veio se completando, até com o término da Segunda Guerra
Mundial34 (1939-1945), especialmente em decorrência das barbáries
do Holocausto e do extermínio de pessoas indesejáveis aos nazistas, é
que houve de fato uma conscientização generalizada que redundou na
proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e
proclamada pela Resolução nº 217 (III) da Assembléia Geral das Nações
Unidas em 10 de dezembro de 1948, e assinada pelo Brasil na mesma data,
que acabou reconhecendo a dignidade como inerente a todos os membros
da família humana e como fundamento da liberdade, da justiça e da paz no
mundo35.
Na interpretação de Noelle Lenoir e Bertrand Mathieu36 acerca do
preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, “os
direitos humanos são a expressão direta da dignidade da pessoa humana,
a obrigação dos Estados de assegurarem o respeito que decorre do próprio
reconhecimento dessa dignidade”.
Também segundo Flavia Piovesan37, a Declaração Universal dos
34 “Com os horrores perpetrados durante a Segunda Guerra Mundial, o pensamento
Kantiano ressurge com extrema vitalidade, uma vez que se verificou, na prática,
quais são as conseqüências da utilização do ser humano como meio de realização de
interesses, sejam políticos, sejam econômicos. Desta forma, o princípio da dignidade
da pessoa humana foi positivado na maioria das Constituições do pós-guerra, bem
como na Declaração Universal das Nações Unidas de 1948” (BERNARDO, Wesley
de Oliveira Louzada. Princípio da dignidade da pessoa humana e o novo direito civil:
breves reflexões. In: Revista da Faculdade de Direito de Campos, ano VII, nº 8, p. 229267. Campos dos Goytacazes/RJ, jun., 2006. p. 234).
35 “Preâmbulo: considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os
membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da
liberdade, da justiça e da paz no mundo. Considerando que o desprezo e o desrespeito
pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da
Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade
de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade
foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum. Considerando essencial
que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem
não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão. [...]”
(Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948).
36 Noelle Lenoir e Bertrand Mathieu apud TAIAR, Op. cit., p. 61-62.
37 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos, o princípio da dignidade humana e a Constituição
brasileira de 1988. In: Revista dos Tribunais, v. 833, ano 94, p. 41-53, São Paulo: RT,
2005. p. 43.
150
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 9, n. 9, p. 137-166, 2015
O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA PERSPECTIVA DA REPERSONALIZAÇÃO DO DIREITO
Direitos Humanos de 1948 “ao introduzir a concepção contemporânea de
direitos humanos, acolhe a dignidade humana como valor a iluminar o
universo de direitos”. Prossegue explicando que:
A condição humana é requisito único e exclusivo,
reitere-se, para a titularidade de direitos. Isto porque todo ser humano tem uma dignidade que Ihe é
inerente, sendo incondicionada, não dependendo de
qualquer outro critério, senão ser humano. O valor
da dignidade humana se projeta, assim, por todo o
sistema internacional de proteção. Todos os tratados
internacionais, ainda que assumam a roupagem do
positivismo jurídico, incorporam o valor da dignidade humana.
Começa, assim, a empreitada da constitucionalização dos
direitos humanos. As constituições escritas atuais já trazem em seus
textos a disciplina de direitos fundamentais e de valores que devem
nortear não apenas a atuação do Estado, mas também assegurar a
proteção dos indivíduos, sendo que no Brasil, a consagração do
direito à dignidade humana se deu pela Constituição Federal de 1988.
Atualmente, os ordenamentos jurídicos, via de regra, tem sido
pautados pelo reconhecimento do ser humano como o centro e o fim do
direito. Essa tendência, foi reforçada depois das barbáries cometidas na
Segunda Guerra Mundial, principalmente no Holocausto e encontrase permeada pela adoção da dignidade da pessoa humana como valor
supremo do Estado Democrático de Direito, conforme nos ensina George
Marmelstein.38
38 MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. São Paulo: Ed. Atlas,
2011, p. 13.
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 9, n. 9, p. 137-166, 2015
151
O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA PERSPECTIVA DA REPERSONALIZAÇÃO DO DIREITO
4 DIGNIDADE HUMANA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE
1988
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 figura como o marco do
processo de democratização do Estado brasileiro, porque consolida, em
termos normativos, a interrupção do regime militar instalado em 1964, que
é extremamente autoritário, quando o país foi controlado politicamente
pelos militares. A demarcação jurídica da transição do regime militar e seu
autoritarismo para um regime democrático é verificada pela ampliação dos
direitos e garantias fundamentais, como principal destaque para o respeito
à dignidade humana39.
No texto constitucional brasileiro em vigor, o princípio da dignidade
humana é tratado, de um lado como fundamento da República Federativa
do Brasil (artigo 1º, inciso III40) e de outro como princípio fundamental de
garantia de direitos humanos (artigo 5º - dos direitos e deveres individuais
e coletivos). Associada à solidariedade social (artigo 3º, inciso I41) à
igualdade material (artigo 3º, inciso III42), a dignidade da pessoa humana
passou a figurar, no texto constitucional, como “verdadeira cláusula geral,
apta a tutelar todas as situações envolvendo violações à pessoa, ainda que
não previstas taxativamente”43. No mesmo sentido:
39 COELHO, Atahualpa Fidel Pérez Blanchet. Confluência axiológica do princípio da
dignidade da pessoa humana por meio do direito constitucional internacional. PUCRS,
Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional. In: Biblioteca digital
jurídica do Superior Tribunal de Justiça - BDJur, publicado em 2005. Disponível em:
<http://bdjur.stj.gov.br>. Acesso em 29 abr. 2010. p. 6-7.
40 “Artigo 1º: a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático
de Direito e tem como fundamentos: [...]; III - a dignidade da pessoa humana; [...]”
(Constituição Federal de 1988).
41 “Artigo 3º: constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I construir uma sociedade livre, justa e solidária; [...]” (Constituição Federal de 1988).
42 “Artigo 3º: constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
[...]; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais; [...]” (Constituição Federal de 1988).
43 BERNARDO, Wesley de Oliveira Louzada. Op. cit., p. 241.
152
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 9, n. 9, p. 137-166, 2015
O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA PERSPECTIVA DA REPERSONALIZAÇÃO DO DIREITO
Com efeito, a escolha da dignidade da pessoa humana
como fundamento da República, associada ao objetivo fundamental de erradicação da pobreza e da marginalização, e de redução das desigualdades sociais,
juntamente com a previsão do parágrafo 2º, do artigo
5º44, no sentido da não exclusão de quaisquer direitos
e garantias, mesmo que não expressos, desde que decorrentes dos princípios adotados pelo texto maior,
configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela
e promoção da pessoa humana, tomada como valor
máximo pelo ordenamento45.
Aqui se verifica com mais clareza a opção do Constituinte de
1988 de erigir a dignidade da pessoa humana à condição de princípio
fundamental, outorgando-lhe precedência em face de outros princípios
constitucionais. Com efeito, no caso de colisão de princípios, o princípio
da dignidade da pessoa humana “não estará sujeito a ceder em face de
outros princípios constitucionais”. Mesmo não havendo hierarquia entre os
princípios constitucionais, o que implica na necessidade de ponderação a
fim de compatibilizá-los ao fato concreto, sem a necessidade de se eliminar
nenhum deles, “o princípio da dignidade da pessoa humana não cederá
em face de qualquer outro, funcionando, ao contrário, como critério de
solução do conflito entre princípios”, ou seja, “a solução se dará em favor
do princípio que melhor se compatibilize com a dignidade da pessoa
humana”46.
Assim, independentemente da existência ou não de tipificação
expressa, em todos os setores da vida humana, quando se verifica agressão
à dignidade da pessoa humana, tal fato deve ser objeto de reparação, que
44 “Artigo 5º: [...]. Parágrafo 2º: os direitos e garantias expressos nesta Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (Constituição Federal
de 1988).
45 Gustavo Tepedino apud BERNARDO, Wesley de Oliveira Louzada. Op. cit., p. 242243.
46 BERNARDO, loc. cit., p. 242-244.
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153
O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA PERSPECTIVA DA REPERSONALIZAÇÃO DO DIREITO
seja direta, por meio da cessação do comportamento; ou indireta, através
da aplicação de sanção normalmente pecuniária47.
Pelo princípio da dignidade da pessoa humana, a “pessoa” é colocada
como o fim último da sociedade. De acordo com José Afonso da Silva, a
dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de
todos os direitos fundamentais do ser humano, desde o direito à vida48.
Nesse sentido assim se expressa Edilsom Pereira de Farias49:
O principio fundamental da dignidade da pessoa humana cumpre um relevante papel na arquitetura constitucional: o de fonte jurídico-positiva dos direitos
fundamentais. Aquele princípio é o valor que dá unidade e coerência ao conjunto dos direitos fundamentais. Desta arte, o extenso rol de direitos e garantias
fundamentais consagrados pelo titulo II, da Constituição Federal de 1988 traduz uma especificação e
densificação do princípio fundamental da dignidade
da pessoa humana (artigo 1º, inciso III50).
A proteção da dignidade da pessoa humana foi erigida pela
Constituição Federal de 1988, como princípio estruturante do atual Estado
brasileiro.
Neste sentido de que o Estado Constitucional brasileiro, de aspiração
social e democrática, deve ser materialmente realizado sob o princípio da
dignidade da pessoa humana, Ingo Wolfgang Sarlet51 afirma que:
47 Idem, p. 244.
48 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 18. ed. São Paulo:
Malheiros, 2000. p. 109.
49 Edilsom Pereira de Farias apud TAIAR, Op. cit., p.73.
50 “Artigo 1º: a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático
de Direito e tem como fundamentos: [...]; III - a dignidade da pessoa humana; [...]”
(Constituição Federal de 1988).
51 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na
Constituição Federal de 1988.9. ed., rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2012. p. 71-72.
154
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O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA PERSPECTIVA DA REPERSONALIZAÇÃO DO DIREITO
Num primeiro momento – convém frisá-lo -, a qualificação da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental traduz a certeza de que o artigo
1º, inciso III, de nossa Lei Fundamental, não contém
apenas (embora também e acima de tudo) uma declaração de conteúdo ético e moral, mas que constitui
norma jurídica-positiva dotada, em sua plenitude, de
status constitucional formal e material e, como tal,
inequivocamente carregado de eficácia, alcançando,
portanto – tal como sinalou Benda - a condição de
valor jurídico fundamental da comunidade.52 Importa
considerar, nesse contexto, que, na sua qualidade de
principio fundamental, a dignidade humana constitui
- de acordo com a preciosa lição de Judith Martins-Costa, autêntico “valor fonte que anima e justifica
a própria existência de um ordenamento jurídico”,53
razão pela qual, para muitos, se justifica plenamente
sua caracterização como principio constitucional de
maior hierarquia axiológico-valorativa.54
Desse modo, a defesa da dignidade da pessoa humana, caracterizada
como princípio político-constitucional, ultrapassa as generalidades teóricas
e projeta-se sobre o campo de concretização dos direitos.
O princípio da dignidade humana, na concepção atual, designa uma
referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais.
Seu conceito obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu
amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer idéia do ser
humano, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa
dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos
sociais, ou invocá-la para construir “teoria do núcleo da personalidade”
52 Cf. E Benda, in: Handbuch des Verfassungsrechts, Vol.I, p. 164, lição esta que – embora
voltada ao art. 1º da Lei Fundamental da Alemanha – revela-se perfeitamente compatível
com a posição outorgada pelo nosso Constituinte de 1988 ao princípio da dignidade da
pessoa humana. In: SARLET, Idem, p. 71-72.
53 Cf. J. Martins-Costa, “As interfaces entre o Direito e a Bioética”, in: Clotet (Org.),
Bioética, p. 75. In SARLET, ibidem, p. 71-72.
54 Cf. K. Stern, Staatsrecht III/1, p. 23, sem que aqui se vá explorar a controvérsia em
torno da relação entre o valor da vida humana e a dignidade da pessoa, já que não faltam
os que sustentam a prevalência da primeira. In: SARLET, ibidem, 71-72.
Rev. Estudos Legislativos, Porto Alegre, ano 9, n. 9, p. 137-166, 2015
155
O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA PERSPECTIVA DA REPERSONALIZAÇÃO DO DIREITO
individual, ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência
humana55.
De esse pensar decorre que a ordem econômica há de ter por fim
assegurar a todos existência digna (artigo 170, da Constituição Federal de
1988), a ordem social visará a realização da justiça social (artigo 193), a
educação, o desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da
cidadania (artigo 205), entre outros, “não como meros enunciados formais,
mas como indicadores do conteúdo normativo eficaz da dignidade da
pessoa humana”56.
No cenário brasileiro atual, na opinião formada por Claudio José
Amaral Bahia e Wilson Kobayashi57:
Uma das grandes preocupações em relação à necessidade de efetivação da dignidade da pessoa humana e,
conseqüentemente, da concretização do princípio da
igualdade no seio social, diz respeito às minorias, as
quais, seja em razão de apresentarem comportamento diferenciado daquele normalmente experimentado
por uma determinada comunidade, seja em razão de
não ostentarem as mesmas características físicas e
psíquicas verificadas na maioria dos indivíduos, sofrem os mais diversos tipos de discriminação e de exclusão, sendo, inclusive, expungidas injustamente do
benefício resultante do exercício de direitos que, ao
menos em tese, se mostram pertencentes a qualquer
cidadão.
Ao admitir que a Constituição da República Federativa do Brasil de
1988 tem como fundamento a dignidade da pessoa humana, o Constituinte
de 1988 quis dizer que “toda a atividade estatal deve estar direcionada ao
55 SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 109.
56 Idem, p. 108.
57 BAHIA, Claudio José Amaral; KOBAYASHI, Wilson. Os direitos da pessoa portadora
de deficiência e a necessidade de cumprimento de pena em regime prisional. p.35-62. In:
ARAUJO, Luiz Alberto David (Coord). Direito da pessoa portadora de deficiência: uma
tarefa a ser completada. Baury: EDITE, 2003. p. 45.
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O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA PERSPECTIVA DA REPERSONALIZAÇÃO DO DIREITO
bem coletivo”, isto é, “o Estado deve servir as pessoas e não as pessoas
servirem o Estado. Esta é a premissa fundamental de qualquer Estado
Constitucional”58.
Ao elevar a “pessoa” ao status de “valor supremo da democracia”,
passou a exigir que todo e qualquer estatuto jurídico deve assegurar
a dignidade da pessoa humana “já que, este é um princípio absoluto,
embasador de todos os direitos fundamentais”, do que se infere que:
[...] a interferência do princípio se espraia em diversos pontos do ordenamento jurídico, sendo na reverência da igualdade entre os homens; no impedimento
à consideração do ser humano como objeto; na limitação ]44da autonomia de vontade, entre outros59.
A proteção e o desenvolvimento da personalidade humana são
hoje os princiapais objetivos do Estado. É desse modo que o princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana, eleito e consagrado
como norteador de todo o sistema jurpidico, passou a servir também de
fundamento aos direitos que dizem respeito às relações familiares, o que
implicou na consolidação efetiva da valorização do indivíduo enquanto
membro de uma instituição familiar, que deve ter sua individualidade e
suas necessidades básicas respeitadas.
A pessoa humana, colocada no centro protetivo do sistema jurídico
brasileiro, encontra no seio familiar a base adequada para o seu pleno
desenvolvimento. De fato, a Constituição Federal de 1988 menciona a
palavra “dignidade” em cinco ocasiões:
58 GARCIA, Edinês Maria Sormani; CARDOSO, Carla Roberta Fontes. A proteção da
pessoa portadora de deficiência e seu fundamento no princípio da dignidade humana.
p.151-172. In: ARAUJO, Luiz Alberto David (Coord). Direito da pessoa portadora de
deficiência: uma tarefa a ser completada. Baury: EDITE, 2003. p. 156.
59 Idem, p. 156.
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O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA PERSPECTIVA DA REPERSONALIZAÇÃO DO DIREITO
a) no artigo 1º, inciso III, quando afirma que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e
tem como fundamentos, além da soberania, da cidadania, dos
valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e do pluralismo
político, “a dignidade da pessoa humana”;
b) a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência
digna, conforme os ditames da justiça social (artigo 170);
c) no parágrafo 7º, do artigo 226, segundo o qual, “fundado nos
princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade
responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal”,
ficando ao encargo do Estado “propiciar recursos educacionais
e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”;
d) o artigo 227, que afirma como dever da família, da sociedade e
do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade, diversos direitos, dentre eles à dignidade;
e) o artigo 230, impondo á família, à sociedade e ao Estado “o
dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e
garantindo-lhes o direito à vida”.
Atualmente as relações familiares funcionam em torno da realização
da dignidade de seus membros. O direito de família, sem dúvidas, é o mais
humano dos ramos jurídicos. Em suma, “a dignidade humana é o mais
universal dos princípios”, dando origem a todos os demais, tais como os
princípios da liberdade, da autonomia privada, da cidadania, da igualdade
158
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O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA PERSPECTIVA DA REPERSONALIZAÇÃO DO DIREITO
e da solidariedade. É este princípio que “faz da família um dos mais
protegidos patrimônios capazes de serem construídos”60.
Espera-se, desse modo, que a família seja o meio pelo qual o ser
humano alcance a dignidade humana que tem direito, porque “a dignidade
da pessoa humana encontra na família o solo apropriado para florescer”61.
O princípio da dignidade da pessoa humana estende seu conteúdo
valorativo sobre todos os princípios constitucionais, inclusive sobre os
princípios do direto de família, como se vê neste texto, que é dedicado à
análise do princípio constitucional da dignidade humana, com o intuito de
defender, ao final, que a sua aplicabilidade está positivada e é de extrema
importância para a formação de uma sociedade mais justa e humana.
5 CONCLUSÃO
A expressão “dignidade humana” significa que todo ser humano,
apenas pela sua condição, é merecedor de algo, vale dizer, a dignidade é
uma condição inerente à humanidade, que diferencia e hierarquiza o ser
humano sobre qualquer outro ser da natureza, que serve de fonte aos seus
direitos fundamentais e faz com que o ser humano não possa ser considerado
como algo, mas como alguém. Quer dizer que todo ser humano é pessoa e,
em decorrência, é um fim em si mesmo e não um simples meio para atingir
outros fins.
A constitucionalização da dignidade humana é algo recente na história
humana, porém o despertar para sua conscientização vem acontecendo
desde muito tempo. O que acontece na atualidade é o reconhecimento dos
direitos já constitucionalizados há décadas, como acontece, por exemplo,
60 DIAS, Maria Berenice. Direito das famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT,
2008. p. 59.
61 Idem, p. 59.
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O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA PERSPECTIVA DA REPERSONALIZAÇÃO DO DIREITO
no Brasil, onde a dignidade humana figura como um dos fundamentos da
República Federativa do Brasil desde 1988, reconhecendo no indivíduo
o objetivo primeiro e principal da ordem jurídica, e apenas nos últimos
anos é que sua efetivação prática vem adquirindo certa visibilidade. O
resultado dessa mudança social é demonstrado pela constitucionalização e
humanização dos direitos e pela primazia dada pelos textos constitucionais
às normas abertas, vale dizer, aos princípios.
O princípio da dignidade humana traduz a aversão constitucional às
práticas, tanto dos poderes públicos quanto de particulares, que pretendam
expor os seres humanos em posição desigual perante seus pares; não
considerá-los como pessoas; diminuí-los à categoria de meras coisas ou a
abstraí-los dos meios imperativos à sua mantença e sustentação.
Com efeito, a dignidade humana é um dos elementos imprescindíveis
de atuação do Estado, ou seja, nenhuma atividade do Estado pode afrontar
a dignidade humana sob pena de ser considerada inconstitucional.
Porém, ressalte-se que considerar a pessoa humana como fim em si
mesma e postular que o Estado deve servi-la não conduz a uma concepção
individualista da dignidade da pessoa humana, ou seja, não é verdade que
num conflito deva prevalecer sempre os direitos do cidadão. O que se quer
pontuar é que pela atual concepção personalista da dignidade humana,
procura-se compatibilizar os valores individuais e coletivos. Com efeito,
não existe, a princípio, uma preponderância, quer seja do indivíduo ou do
todo. A solução dever ser buscada em cada caso, podendo pender tanto para
a compatibilização quanto para a preponderância de um ou outro valor62.
O princípio da dignidade humana, na concepção atual, designa uma
referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais.
Seu conceito obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu
62 TAIAR, Op. cit., p. 71.
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O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA PERSPECTIVA DA REPERSONALIZAÇÃO DO DIREITO
amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer idéia do ser
humano, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa
dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos
sociais, ou invocá-la para construir “teoria do núcleo da personalidade”
individual, ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência
humana63.
A proteção e o desenvolvimento da personalidade humana são hoje
os principais objetivos do Estado. A dignidade humana não é um direito do
ser humano, mas o fundamento de todos os direitos que se concedem ao
ser humano, que, cada vez mais, retoma o seu lugar no universo, qual seja:
ser o centro e o objeto das questões jurídicas. Disto decorre, um maior
valorização da pessoa humana, trazendo, com isso, grande relevância a
dignidade deste ser.
O princípio da dignidade na perspectiva da repersonalização do
direito considera a dignidade humana como algo natural de todos os
indivíduos, e em virtude disso é que se encarrega de destacar que sua
finalidade é exaltar a dignidade da pessoa, reconhecendo-a como algo
próprio e natural do ser humano, e não como um direito outorgado pelo
Estado.
O reconhecimento e a proteção da dignidade da pessoa é hoje um
fenômeno mundialmente aceito, compelindo aos Estados a reconhecer dita
dignidade natural em suas regulações. Mais uma vez destacamos que este
estudo trata da dignidade humana na perspectiva repersonalizadora, cujos
ventos vem soprando favoravelmente no Brasil, especialmente após a
Constituição de 1988, assim como dos direitos decorrentes deste princípio
sob estes novos olhares.
Hoje, inegavelmente, a dignidade da pessoa humana funciona como
63 SILVA, Op. cit., p. 109.
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O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA PERSPECTIVA DA REPERSONALIZAÇÃO DO DIREITO
elemento impulsionador do desenvolvimento de todos os direitos. Em
essência, a dignidade da pessoa humana constitui o eixo central sobre o
qual gira a organização dos direitos fundamentais da ordem constitucional.
PRINCIPLE OF HUMAN DIGNITY FROM THE PERSPECTIVE
OF REPERSONALIZATION OF LAW
ABSTRACT
This study brings as theoretical contribution to the systematization of the
principle of human dignity, by means of a reinterpretation of its concept,
from the perspective of repersonalization of law. It is a bibliographic
search of exploratory, based on the production of knowledge. The current
design, the principle of human dignity indicates a kind of constitutional
march unifier for all fundamental rights. The main goals that move the
contemporary State are the protection and development of the human
personality, scenario in which, by repersonalization of rights, the dignity
of the person ceases to be an individual right to become the foundation of
all the rights that are granted to the human being.
Keywords: Human Dignity. Repersonalization.
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