Dialética, transformação e totalidade Olga de Sá Doutora em Comunicação e Semiótica e Mestre em Teoria Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Orientadora de Pós-Graduação e Pesquisadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Escher. Serpentes, xilogravura, 1969 finito está em devir. Dormita nele um não ser, que aspira como tendência a “ser, uma disjunção em busca de sua conjunção ôntica, realizada através da koinonia ou comunicação amorosa”. (cf. LOGOS, 1991, v.1, verbete dialectica). A Dialética harmoniza os contrários e torna-se a alma da Filosofia, a ciência mais alta (cf.. Sofista 253c, in LOGOS, 1991, verbete Dialectica). O mais radical pensador dialético foi Heráclito. Para ele, os seres não têm estabilidade alguma, estão em constante movimento, em perpétuo devir. Para Aristóteles, a Dialética deixa de ser a ciência suprema para ser reduzida à técnica logística, destinada a ressaltar contradições contrárias, mediante o emprego correto do mecanismo silogístico. Dialético e filósofo já não se identificam, porque o sofista é um dialético, mas não um filósofo. A única função da dialética é desbravar o campo imenso da probabilidade, para o filósofo chegar à verdade objetiva das essências. Uma proposição dialética destina-se a indagar o que todos aceitam e um problema dialético torna-se um tema de pesquisa (Tópicos, 1046, in: LOGOS, 1991, v.1, verbete Dialectica). Em seguida, a maior contribuição helênica para a Dialética veio dos estóicos, transferindo o problema da verdade, do plano objetivo para o plano subjetivo, convertendo-se na arte de fabricar sofismas. Numa Erística. A sutileza das análises linguísticas trouxe à Dialética notável refinamento. Mas em prejuízo de sua análise do ser. FILOSOFIA "Dialética do grego dialektikê (teknê) é um método de diálogo cujo foco é a contraposição e contradição de ideias que leva a outras ideias e que tem sido um tema central na filosofia ocidental e oriental desde os tempos antigos"(http://pt.wikipedia.org). A Dialética tem a ver com Dialego, que significa por de lado, escolher, joeirar, conversar. Dialektikê é a arte de discutir. Aristóteles religa sua origem a Zenão, mas outros, dado seu caráter dialogal, atribuem sua origem a Sócrates. A maiêutica socrática (arte de partejar os espíritos) consistia numa técnica de aquisição da verdade, extraída de dentro da pessoa, por meio de breves perguntas e respostas. Numa primeira abordagem, a ironia, esvaziava-se a mente do interlocutor da autosuficiência, fazendo-o cair na conta de sua ignorância, começo real da sabedoria, só acessível aos deuses. O homem só poderia ser um filósofo, (philo + sophia = amigo da sabedoria). Esvaziado de sua autosuficiência, o homem extrairia de dentro de si a verdade, maiêutica. Platão aprendeu de Sócrates este método e aplicou-o em seus Diálogos, como Dialética, isto é, disciplina suprema na conquista da verdade, arte de pensar retamente, que fundamenta a Retórica, arte de falar, usada pelos sofistas para confundir o adversário. Platão quer atingir a verdade final, na análise do ser e do não ser, que integra tudo quanto existe. Todo o ser Escher. Cavaleiros, xilogravura, 1946 ângulo 128, Jan./Mar., 2012. p. 36-43 37 FILOSOFIA Escher. Escadaria, litografia, 1951 Escher. Em cima e em baixo, litografia, 1947 38 Escher. Relatividade, xilogravura (prova de ensaio não copiada) www.fatea.br/angulo FILOSOFIA Escher. Profundidade, xilogravura, 1955 Permanece como técnica do discurso lógico até Hegel. Torna-se formalista e seca; Kant a reduz a uma lógica geral ou lógica da aparência, na Crítica da razão pura (cf. LOGOS, 1991, v.1, verbete Dialectica). Hegel imprime à Dialética um dinamismo interno desconhecido. Identificando lógica e ontologia, pensar e real, transfere à Dialética um dinamismo interno desconhecido. Identificando lógica e ontologia, pensar e real, transfere a Dialética do campo do raciocínio discursivo para o campo do ser. Dos pré-socráticos a Platão, de Plotino ao sic et non de Abelardo, sem esquecer Kant e Fichte, o ser já aparece, a espaços, como posição e negação. Mas só com Hegel, a negação se afirma, vigorosamente, como eixo, na dinâmica imanente de todo ser, procurando solucionar, com originalidade, o velho problema do uno e do múltiplo. O negativo se impõe e também é po- ângulo 128, Jan./Mar., 2012. p. 36-43 sitivo. O que se contradiz não se reduz a zero, a um nada abstrato, mas converte-se essencialmente não numa negação qualquer, mas na negação daquela coisa determinada que se dissolve. A negação encerra um conteúdo in fieri, uma potência túmida de ato, para falar em linguagem aristotélico-tomista. A negação torna-se negação da posição superada por nova negação da negação. Só nesse momento do processo dialético, o ser, íntegro e puro, se desnuda, imediatamente, afirmativo e idêntico a si mesmo. Para Hegel, pensar corresponde sempre a idealizar. Sobretudo, pensar em profundidade, fugindo às aparências, domínio das ciências empíricas. Só por este caminho atingimos a totalidade. (cf. LOGOS, 1991, v.1, verbete Dialética). Heidegger raras vezes se ocupa da questão da Dialética, mas ela está muito presente, em sua 39 obra. Bornheim lança mão de duas citações especialmente significativas. Restringimo-nos a uma delas: FILOSOFIA Em verdade, quando hoje se fala em dialética, passa-se por cima do problema dizendo que existe um materialismo dialético. Este é considerado uma cosmovisão e se o faz passar por uma ideologia. Mas com esta constatação apenas se sai do caminho da meditação, em vez de reconhecer que a dialética é hoje uma realidade mundial, talvez a única realidade mundial. A dialética, de Hegel, é um desses pensamentos que, entoados de longe, conduzem o mundo; este pensamento é igualmente poderoso, tanto quanto o materialismo dialético se torna objeto de fé como quando ele é refutado. (BORNHEIN, 1977, p. 5). Escher. Laço de Moebius II, xilogravura, 1963 40 Convém dizer que depois que descobriu a dialética hegeliana, aos 19 anos, Marx ficou para sempre marcado, a ponto de confessar, já maduro, que ela era, sem dúvida, a última palavra de toda a Filosofia. Só havia um senão: o misticismo, ou a total irrealidade ideológica, que a tornava inútil para a práxis revolucionária de transformação do mundo, em vez de se limitar a interpretá-lo. Daí o sonho de criar uma dialética materialista: rejeitar o sistema, conservando o método. O materialismo histórico propõe-se criar uma dialética rigorosa da práxis, oposta à metafísica, apta a anular todas as alienações ideológicas. Bornheim em seu livro Dialética: teoria, práxis (1977), encara a Dialética como problema ontológico, equiparando-a à Filosofia, isto é, como visão crítica e interpretativa do real. O filósofo é o homem que pergunta e de modo radical. Não pode ancorar-se em preconceitos. A pergunta volta sempre a ser pergunta, não pára diante de fórmulas consagradas e dicionarizadas. Nesse sentido, a Filosofia e, por consequência, a Dialética é sempre problema e toda solução se dobra sobre si mesma para constituir-se em novo problema. Há muitas Histórias da dialética, múltiplas definições, segundo os critérios subjetivos de cada filósofo. Seria cansativo e inútil alinhar e contrapor definições armazenadas, através dos séculos. O que nos interessa, aqui, é pensar a dialética em seu ser, sem reduzi-la a um simples instrumento, mostrar sua atualidade e torná-la mais simpática a todos. Falar em dialética num nível ontológico é situá-la no cerne mesmo da problemática do ser. A escolha da dialética como tema desta investigação não é simplesmente uma preferência pessoal. É uma necessidade de nossos dias. O problema da dialética está diante de nós, em toda a sua complexidade, com inúmeras dificuldades, a começar pela carga quase mágica que a envolve, diz Bornheim. “Realmente, a dialética apresenta-se hoje munida de um peso irracional considerável, e esconde amiúde um caráter numinoso (...)” (1977, p. 3) Bornheim, apoiando-se em um verso de Drummond sobre a linguagem, diz que a dialética parece ser uma destas palavras fecundamente plantadas em nossa época - árvore coberta de folhas, de signos, de obscuros sentimentos. Em nosso tempo, muitos pensadores dela www.fatea.br/angulo FILOSOFIA Escher. Queda de água, litografia, 1961 se ocuparam e reconheceram sua importância. Sartre, por exemplo, assevera “que o concreto é história e a ação dialética”. Em A Crítica da razão dialética reconhece que a dialética é a mais atual de todas as ideias (cf. BORNHEIM, 1977, p. 4). Metafísica e dialética se interrelacionam e isso pode esclarecer um pouco o processo da crise da Metafísica. Um texto célebre de Engels, contrapõe duas concepções da realidade, uma estática e outra dinâmica; chama de metafísica a estática, e de dialética a dinâmica. Isso deriva da maneira como Engels pensa a filosofia. A tese marxista defende a ideia de que toda a filosofia pré-marxista é idealista. Para Engels, só os antigos filósofos gregos eram dialéticos inatos, espontâneos e a dialética foi expressa, pela primeira vez, por Heráclito. Os gregos teriam conhecido uma visão dinâmica e antimetafísica da realidade. Modernamente, a dialética “é o modo de pensarmos as contradições da realidade, o modo de compreendermos a realidade como essencialmente contraditória e em permanente transformação” (KONDER, 1944, p. 8). Diferentemente, do método causal, no qual se estabelecem relações de causa e efeito, o modo dialético busca elementos conflitantes entre dois ou mais fatos para ângulo 128, Jan./Mar., 2012. p. 36-43 Escher. Torre de Babel, xilogravura, 1928 explicar uma nova situação decorrente desse conflito. “Sendo uma das disciplinas filosóficas mais velhas, em percurso multissecular acidentado, a Dialética permanece hoje mais actuante que nunca, apesar da crise da própria Filosofia.” (LOGOS, 1991, v. 1, verbete Dialéctica). Desde Hegel, se diz que os elementos do esquema básico do método dialético são a tese, a antítese e a síntese. Com o trabalho, surge a oportunidade do ser humano atuar em contraposição à natureza. Marx explorou a alienação no trabalho, revertendo a dialética hegeliana, que considerou idealista. Já dissemos que para Hegel a verdade, é o todo. Mas a verdade é sempre provisória, nunca alcança uma etapa definitiva e acabada. A teoria dialética alerta nossa atenção para as sínteses, identificando as contradições concretas e as mediações específicas que constituem o tecido de cada totalidade. A contradição é reconhecida pela dialética como princípio básico do movimento pelo qual os seres existem. Na dialética, fala-se também na fluidificação dos conceitos. A realidade sempre está assumindo novas formas e assim o conhecimento precisa ser fluido. O método dialético nos leva a rever o passado, à 41 FILOSOFIA Escher trabalhando no mural para a capela do terceiro cemitério de Utrecht luz do que está acontecendo no presente e questiona o presente, em nome do futuro, do que ainda não é. A característica principal do movimento dialético é que ele prossegue por meio de negações. Hegel sustenta que, embora alguns de nós, indivíduos inseridos na história, possam alcançar uma compreensão parcial das coisas, ‘a verdade é o Todo’ (...) Por conseguinte, pode-se dizer que a dialética visa à totalidade ou à unidade, enquanto o pensamento analítico divide em partes aquilo que aborda (BAGGINI & FOSL, 2008, p. 65). Em sentido lato, a dialética é entendida como “interação dinâmica e fecunda entre elementos opostos, quer se trate de factos ou de pensamento”. (KONDER, 1994, p. 97). Ou de objetos de arte. É o caso das obras do gravador holandês Escher, no período de 1956-1970, que Bruno Ernst, em seu notável livro O espelho mágico de M. C. Escher denomina período da aproximação ao infinito. A xilogravura a cores Limite circular III foi, segundo a própria opinião de Escher citada por Ernst, a melhor gravura deste período (1959). A última gravura de Escher, de 1969 (Serpentes) é uma aproximação ao infinito. Foram também produzidas as chamadas figuras impossíveis: a primeira é Côncavo e Convexo (1959) e a última Queda de água (1961). Sem dúvida, é uma construção matemática. Escher já não se inspira na beleza da paisagem italiana (vivia em Roma), mas tendo mudado de domicílio (Suíça, Bélgica e Holanda), começou a construir mundos impossíveis, baseado em construções intelectuais, que só podiam exprimir-se, matematicamente. Escher era inteiramente leigo em matemática e seu interesse não era científico. Na escola secundária, nunca 42 Escada acima e escada abaixo, litografia, 1960 www.fatea.br/angulo REFERÊNCIAS: BAGGINI, Julian & FOSL, Peter S. As ferramentas dos filósofos – um compêndio sobre conceitos e métodos filosóficos. São Paulo: Loyola, 2008. BORNHEIM, Gerd Alberto. Dialética: teoria, práxis; Ensaio para uma crítica da fundamentação ontológica da dialética. Porto Alegre: Globo; São Paulo: Edusp, 1977. ERNST, Bruno. O espelho mágico de M.C. Escher. Berlim: Taschen., 1991. KONDER, Leandro. O que é dialética. São Paulo: Brasiliense, 1994. CLÉMENT, Elisabeth; DEMONQUE, Chantal; HANSEN-LOVE, Laurece; KAHN, Pierre. Dicionário prático de filosofia. 1ª Ed. Lisboa: Terramar, 1997. LOGOS Enciclopédia luso-brasileira de Filosofia – Lisboa/São Paulo: Editorial Verbo, 1991. Dialética. <http://pt.wikipedia.org/wiki/Dialética>. Acessado em 25.08.2011. Escher. < http://pt.wikipedia.org/wiki/Escher> FILOSOFIA teve um suficiente, em Matemática. (cf. 1944, p. 24). “Ele não trabalhava como um matemático, antes como um habilidoso carpinteiro que, apenas com um metro articulado e um compasso, trabalha até conseguir um fim concreto” (ERNST, 1994, p. 24). Embora, Escher manifestasse não gostar de abstrações, seus mundos impossíveis sugerem uma transformação da realidade, que no mínimo, aponta para este século, senão para futuros impensáveis. Escher morreu em março de 1972 e seu trabalho continua fascinando gerações pela sua singularidade e originalidade, pelo questionamento do real. Sua obra tornou-se uma ponte simbólica entre a ciência e a arte (orbita.starmedia.com/.../Escher/Escherbiografia.htm), pois a dialética relaciona todos os seres, expande-se no eixo das contradições e dialoga com os contrários. Galeria de Arte, litografia, 1956. ângulo 128, Jan./Mar., 2012. p. 36-43 43