O QUE FAZ FALTA PARA FALAR E OUVIR BEM E SABER LER E

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FALAR BEM
Alina Villalva
17.02.2003
O conceito de bem falar é um conceito vago. É vago porque remete para
outros conceitos igualmente vagos, como língua e norma; é vago porque
cruza planos, como variação e agramaticalidade; e é vago ainda porque
confunde competência com talento. Detenhamo-nos por instantes, mas
pacientemente, em cada um destes aspectos.
1. Linguagem é o nome de uma capacidade humana, de um dos órgãos do
aparelho
cognitivo,
que,
à
semelhança da cor da pele ou do
comprimento médio do fémur,
admite diversas manifestações
típicas. À luz do episódio bíblico
da Torre de Babel (Génesis, 11:19)1, a diversidade linguística poderá
ser interpretada como uma punição
divina da arrogância dos homens,
mas a história conhecida acerca da
evolução das línguas aponta antes
para a inevitabilidade dessa
desmultiplicação da capacidade de
linguagem e para a existência de
uma relação directa entre a
diversidade
linguística
e
a
fundação/aniquilação
de
nacionalidades. Com efeito, aquilo
a que, em alguns casos, se chama
língua, noutros chama-se dialecto:
nem sempre muda o conteúdo da
diferença, mas sem dúvida que
muda o seu valor político.
1
O episódio da Torre de Babel tem inspirado diversas interpretações, quer no que diz
respeito ao seu valor simbólico, quer quanto à sua real existência, localização e forma.
Também tem motivado inúmeras representações artísticas: aquela que aqui se reproduz é
uma xilogravura da autoria de M.C. Escher e data de 1928. Sobre este assunto, pode
encontrar-se informação interessante em www.towerofbabel.info.
Exemplificando. O Português e o Castelhano2 são considerados como
línguas diferentes, enquanto que o Português Europeu e o Português do
Brasil são entendidos como variedades da mesma língua3. Não existem
razões de natureza linguística que justifiquem esta categorização. A
linguística pode mostrar diferenças e semelhanças entre diferentes usos
linguísticos, mas não os quantifica nem os hierarquiza obrigatoriamente de
modo consonante com a categorização efectuada pelo real. A definição de
língua é, pois, uma definição política.4
2
Haverá talvez quem estranhe que chame Castelhano ao que quase todos chamam
Espanhol. Cabe aqui um esclarecimento. A formação política de Espanha data do final do
século XV e resultou de uma congregação de diversas nacionalidades em torno do reino
de Castela. À língua aí falada, ou seja, ao Castelhano, coube, desde esse momento, a
função de língua nacional. Do ponto de vista linguístico, chamar Espanhol ao Castelhano
é, pois incorrecto e injustificável.
3
Em www.instituto-camoes.pt/cvc/hlp encontra-se informação concisa e rigorosa acerca
do Português e da sua diversidade.
4
Um outro exemplo próximo da nossa realidade diz respeito ao Galego. Veja-se um
comentário irónico em www.udc.es/dep/lx/cac/galport/index.htm.
Igualmente política é a definição de norma. Retomemos a comparação entre
o Português e o Castelhano. Qualquer que seja a definição aceite como boa,
a norma do Português não acolhe a neutralização da distinção entre [b] e [v],
ou seja, a chamada troca do b pelo v5. Quem pronuncia bago e vago da
mesma maneira sabe que não é falante da norma do Português.
Pelo contrário, a norma do Castelhano
acolhe a neutralização destas duas
consoantes, como facilmente se constata
comparando a pronúncia de palavras
como vapor, verde, vila, voto ou vulto, na
variante ‘standard’ das duas línguas. Este
contraste resulta exclusivamente da
localização geográfica das capitais dos
dois países relativamente a uma isófona,
ou seja, uma linha de fronteira fonética,
que atravessa longitudinalmente a
Península Ibérica, colocando Lisboa e
Madrid em lados opostos.
Falar bem uma língua é, pois, uma asserção com um forte conteúdo político.
Ora o poder político não cumpre as suas obrigações neste domínio, não
discute propostas de política linguística e não permite que uma delas seja
sufragada, contrariamente ao que se passa com a política económica, a
política educativa ou a política de defesa. Aproveito para deixar claro que
por política linguística deve entender-se um quadro de referência concreto
para a resolução de questões concretas e não uma vaga conversa pomposa e
sentimental, com citações poéticas previsíveis e nulo conteúdo técnico. A
ausência de uma política linguística para o Português deixa ao sabor das
marés o que fazer com o estatuto do Português Europeu face ao Português
do Brasil e dos países africanos onde é falado, dando lugar a episódios
caricatos como o do Acordo Ortográfico que ninguém sabe em que pé está;
deixa ao critério de cada um a decisão sobre qual o Português que deve ser
ensinado nas escolas e diga como se devem acolher os empréstimos, quais as
palavras que integram o seu léxico e quais as construções que a sua
5
De acordo com a ‘Nova proposta de classificação dos dialectos Galego-Portugueses’, de
L. F. L. Cintra, publicada no Boletim de Filologia, 22, 1971, pp. 81-116, esta é uma das
características que permitem distinguir os dialectos setentrionais dos dialectos
meridionais. O mapa aqui apresentado foi adaptado por L. Segura e J. Saramago, in
‘Variedades dialectais portuguesas, publicado em Caminhos doPortuguês: Exposição
Comemorativa do Ano Europeu das Línguas [Catálogo], 2001, Biblioteca Nacional de
Lisboa. Este mapa pode ser consultado em www.instituto-camoes.pt/cvc/hlp/index.html.
gramática rejeita; e deixa entregue à sua própria sorte a comunidade
estrangeira que escolheu Portugal como país de acolhimento, mas sendo
falante de outras línguas, como o Crioulo Cabo-verdiano, o Romeno ou o
Russo, vê, por essa circunstância, acrescidos os seus problemas de
integração.
Deve, assim, concluir-se, ao encerrar este primeiro aspecto, que se o poder
político exercesse as suas competências, falar bem Português seria mais fácil
para um maior número de pessoas.
2. A segunda questão trata de encontrar um ponto de equilíbrio entre
variação e agramaticalidade. É sabido que o senso comum traça uma clara
distinção entre o dialecto prestigiado e os restantes dialectos, sendo as pistas
mais evidentes de natureza fonética. Consequentemente, a pronúncia de
Lisboa é tomada como a boa pronúncia, a pronúncia do Porto é uma questão
regional e caricaturável, a pronúncia da Madeira é quase só uma curiosidade
etnológica. Do ponto de vista linguístico, estas hierarquias e estes juízos de
valor são disparatados e infundados: não há dialectos melhores nem piores e
a diversidade linguística, à semelhança da variação animal ou vegetal, é um
bem a preservar, quer porque se trata de um direito inalienável do ser
humano ao usufruto da sua herança linguística, quer porque essa diversidade
é uma preciosa fonte de informação para a investigação e progresso do
conhecimento. A variação geográfica não pode, pois, servir de base à
formulação de juízos de gramaticalidade.
Acontece que a variação dialectal está intimamente relacionada com a
mudança linguística, ou seja, com a variação diacrónica. O Português tem 8
a 9 séculos de história e já mudou muito. Sabe-se que muito do que hoje
consideramos bom Português é o resultado da consagração de usos
agramaticais em anteriores sincronias. Para a generalidade dos falantes do
Português, o conhecimento de estádios anteriores da sua própria língua é
inexistente e por essa razão dificilmente associará alguns dos actuais erros
com mudanças em curso. É por exemplo o que se verifica quando se trata da
flexão do pretérito perfeito do indicativo. Com a segunda pessoa do plural
em vias de extinção (p.e. ledes, lestes) e a pressão paradigmática resultante
do facto de todas as formas de segunda pessoa do singular terminarem em –s
(p.e. falas, falavas, falasses, falarias, falares, etc.), surge com força
crescente a substituição da forma canónica da segunda pessoa do singular
(p.e. fizeste) pela forma terminada em –s (i.e. tu fizestes). Não há boa
consciência linguística que não assinale e critique o erro. Resta saber até
quando terá legitimidade para o fazer, caso este erro venha a ser aceite como
produto da mudança linguística.
A variação geográfica e a variação diacrónica são apenas dois dos domínios
de variação que caracterizam as línguas naturais. Há outros, mas estes
bastam para mostrar o que pretendo, ou seja, que o conceito de erro
gramatical é um conceito relativo. Não se pense, porém, que qualquer erro é
variação e que toda a variação é gramatical. Não, e é por isso mesmo que
que a estipulação de um dialecto padrão é indispensável. Se essa estipulação
é uma questão política, a descrição da sua gramática e a descrição dos tipos
de variação que essa gramática admite são atribuições dos linguistas. Os
linguistas são profissionais que o mercado de trabalho tende a desprezar,
mas se mais fossem mais vezes convidados a intervir, e em particular por
quem comercializa enunciados linguísticos, falar bem Português seria mais
fácil para um maior número de pessoas.
3. A propósito de falar bem, referi, por último, a confusão entre competência
e talento. Falar bem é um elogio geralmente aplicado a falantes com um
discurso fluente e bem programado, que podem realmente ser vistos como
falantes talentosos. Também embora toda a gente saiba correr, só alguns têm
o talento que lhes permite ser atletas de alta competição.
Haverá, talvez, razões misteriosas para que tais situações de excepção se
verifiquem, mas muito é biológico: os atletas de alta competição possuem
precisas características físicas favoráveis; os bons oradores terão
propriedades cognitivas semelhantemente propícias e adequadas.
Agora tanto num caso como noutro, o trabalho é indispensável: aos atletas, o
treino, a preparação física; aos bons conversadores, a formação e a prática.
Se o talento é exclusivo de alguns, já esta dimensão, a do trabalho é mais
generosa e está acessível a todos. Então, se nem todos podem ser falantes
talentosos, oradores brilhantes, inesquecíveis conversadores, todos podem
praticar a sua competência linguística e basear no esforço individual a
melhoria do seu uso do Português.
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