POLITICAS PUBLICAS COMPENSATÓRIAS: UMA DISCUSSÃO PRELIMINAR Denise Rissato1 Fernando José Martins 2 Janaína Aparecida de Mattos Almeida 3 1. INTRODUÇÃO O Estado capitalista se constitui na representação dos interesses políticos da classe dominante quando, através do aparelho ideológico, dá legitimidade aos interesses dominantes como se fossem interesses coletivos. Apesar disso, como o Estado não representa apenas os interesses da classe dominante, ele também concede, pela sua própria estrutura, a garantia de alguns interesses econômicos das classes dominadas, eventualmente contrários aos interesses econômicos das classes dominantes, mas compatíveis com os interesses políticos e com a sua dominação hegemônica (POULANTZAS, 1971, p. 11). Ainda segundo Poulantzas (1971), a garantia de interesses econômicos às classes dominadas se dá por meio da luta de classes. Em algumas situações é conveniente para a classe dominante ceder nessa correlação de forças, pois dessa maneira, desorganiza politicamente as classes dominadas e garante a hegemonia e o controle político. A partir dessa análise, observa-se que o Estado capitalista, por meio da correlação de forças, ao sacrificar os interesses econômicos concedendo política social em favor das classes dominadas, o faz como estratégia para garantir a dominação e o poder político. Nesse sentido, Saes (1998, p. 30) ressalta que o Estado capitalista pode ser qualificado como burguês na medida em que “cria as condições ideológicas necessárias à reprodução das relações de produção capitalista”, possibilitando a sua reprodução e expansão, sem a resistência sistematizada dos explorados. 1 Economista, Mestre em Economia Aplicada pela ESALQ-USP, Professora Assistente da UNIOESTECampus de Foz do Iguaçu, Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Políticas Publicas e Formação Humana – DINTER UERJ/UNIOESTE. Email: [email protected]. Fone: 45-35768100. 2 Pedagogo, Mestre em Educação pela UFPR, Doutor em Educação pela UFRGS e Professor Adjunto da UNIOESTE- Campus Foz do Iguaçu. 3 Pedagoga, Mestre em Educação pela UFPR, Professora Assistente da UNIOESTE-Campus de Foz do Iguaçu, Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana – DINTER UERJ/UNIOESTE. De acordo com Peroni (2003), após a Segunda Guerra Mundial, o Estado assumiu novas funções e obrigações em relação à implementação de políticas direcionadas ao investimento público, sobretudo, aquelas voltadas à promoção do crescimento da produção e do consumo em massa. Além disso, o Estado também passou a exercer o papel de regulador direto e indireto das questões salariais e direitos trabalhistas, se caracterizando como Estado de bem-estar social. Naturalmente, naquela situação, o Estado mantinha sua função econômica e política, no sentido de garantir a reprodução do capital. No entanto, para isso, precisava legitimar-se politicamente, o que fazia por meio de políticas sociais voltadas ao atendimento das demandas das classes sociais pobres e excluídas. As críticas a essa forma de organização e funcionamento do Estado se deram com a crise estrutural do capitalismo e a emergência de um novo padrão de acumulação capitalista caracterizado pelo acirramento da competição, pela introdução de novos padrões tecnológicos, por formas mais flexíveis de organização do trabalho, bem como pela diminuição do tempo para realização de tarefas e giro do capital. Para que essas mudanças no modelo de produção capitalista fossem incorporadas e aceitas pela sociedade, surgiu à necessidade de uma ideologia que correspondesse a tais interesses e, por isso, a partir da década de 1970, difundiu-se a idéia de que as crises estruturais não são expressões próprias do sistema capitalista, mas sim resultantes da forma como o Estado está organizado (BENKO, 1999; PERONI, 2003). A implantação das políticas de ajustes estruturais nos países periféricos teve início na década de 1980 quando, para reverter os efeitos da recessão e saldar a dívida externa, muitos países recorreram a empréstimos das agências financeiras multilaterais – Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional – e, como contrapartida, tiveram que aderir às reformas estruturais de cunho neoliberal (CHOSSUDOVSKY, 1999). Em função disso, nas décadas de 1980 e 1990, a ortodoxia neoliberal promovida pelos organismos financeiros internacionais, principalmente o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, foi assumida pelas elites políticas e econômicas dos países periféricos como a única fórmula válida para superar o déficit público e estabilizar as economias em crise. Assim, o receituário neoliberal bem como a retórica que lhe dá sustentação e legitimidade, “foi penetrando capilarmente no 2 senso comum” (GENTILI, 2002, p. 13-14), com status de acordo global, devendo, portanto, ser cumprido e não questionado. Esse conjunto de propostas e discursos, também conhecido como o Consenso de Washington, resume dez medidas de política econômica consensuais entre as agências norte-americanas e as agências internacionais localizadas na capital norteamericana. Essas medidas podem ser resumidas: disciplina fiscal com superávit primário, priorização dos gastos públicos, reforma fiscal com a ampliação da base tributária e a redução de alíquotas, liberalização do financiamento a taxa de juros de mercado, unificação da taxa de câmbio em níveis competitivos, liberalização comercial, abolição das barreiras ao investimento externo direto, privatização de empresas estatais, desregulamentação do mercado e garantia do direito de propriedade, através da melhoria do sistema judiciário (FERRAZ, PAULA e KUPFER, 2002). Vale ressaltar que a efetivação dessas reformas estruturais, iniciadas a partir dos anos 1970, provocou profundos desajustes sociais nos países periféricos, uma vez que as agências internacionais e o capital financeiro impuseram novas funções ao Estado, no sentido de restringir ao mínimo suas ações na esfera das políticas sociais, sob o argumento e a imposição deliberada de metas de superávits primários aos países pobres. Com a necessidade imperativa de controle fiscal, os “escassos recursos públicos” passaram a ser direcionados aos mais pobres e o papel do Estado, a partir de então, limitou-se a “gerir compensações”, no sentido de manter a ordem social. Diante disso, este trabalho tem como objetivo fazer uma revisão teórica sobre as políticas sociais implementadas para combater a pobreza nos países latino americanos, a partir da década 1990, incluindo algumas considerações e reflexões sobre a experiência brasileira, mais especificamente, sobre o Programa Bolsa Família. Para isso, foi realizada uma pesquisa bibliográfica de caráter exploratório baseada em uma revisão de literatura, na qual foram utilizados dados secundários e informações obtidas na legislação brasileira, em livros, teses, artigos e em sites oficiais. Este artigo, além dessa introdução, possui mais quatro seções: na segunda seção faz-se uma descrição sobre o surgimento, as características e os objetivos das políticas sociais de caráter compensatório; na terceira apresenta-se uma breve discussão sobre as políticas de transferência direta de renda implementadas para o 3 combate da pobreza na América Latina, com destaque para Programa Bolsa Família implantado no Brasil, em 2003; na quarta seção serão apresentadas algumas considerações e reflexões sobre a fragilidade e as limitações dos programas de transferência direta de renda, em especial, do PBF enquanto ferramenta política de combate às causas estruturais da pobreza e garantidora da universalização do acesso aos direitos sociais e universais e, por fim, na última seção faz-se as considerações finais. 2. Políticas Sociais Compensatórias As políticas e reformas neoliberais implementadas, a partir da década 1970, ampliaram continuamente as desigualdades sociais e as disparidades de renda dentro das nações e entre elas. Apesar disso, a realidade da pobreza mundial é dissimulada pela manipulação das estatísticas de renda divulgadas pelo Banco Mundial que utiliza “a linha de pobreza superior” que é estabelecida a uma renda per capita de US$ 1 por dia. Portanto, a população mundial que vive com renda per capita superior a US$1 por dia é considerada “não-pobre”. Sendo assim, essas estatísticas de renda servem ao útil propósito de representar a população pobre como um grupo minoritário (CHOSSUDOVSKY, 1999, p. 34-35). É para essa população que são dirigidas as políticas sociais compensatórias. Além disso, ao realizar a revisão de literatura para esta pesquisa, constatou-se que as pesquisas sociais, cada vez mais, concluem que as pobrezas não são todas iguais. Isso tem fortalecido a idéia de uma “cultura da pobreza”4 e promovido a implementação de políticas públicas de caráter compensatório (CONNELL, 2009; SEN, 2010). Falando de políticas sociais destinadas às populações pobres, vale destacar que, em 1601, foi promulgada a Lei de Amparo aos Pobres na Inglaterra que reconhecia que o Estado deveria amparar pessoas pobres com comprovada 4 É uma teoria formulada pelo antropólogo Oscar Lewis. De acordo com o autor, a vida de pobreza tende a gerar idéias culturais que promovem comportamentos e formas de pensar que a perpetuam. Esses comportamentos e experiências passadas de uma geração para outra, favorecem a adaptação dos indivíduos às circunstâncias da pobreza, reproduzindo-a. Vale ressaltar que essa teoria foi usada para explicar o baixo desenvolvimento sócio-econômico dos periféricos (AGIER, 1990; SCHERERWARREN, 2003). 4 necessidade de auxílio. No século XVIII, no auge da revolução industrial e do liberalismo clássico, diante do crescimento das demandas sociais a Lei dos Pobres foi reformulada em 1832 e 1834. Além disso, as intensas mudanças científicas e tecnológicas exigiam que as crianças fossem preparadas para trabalhar. As escolas de caridade e escolas populares atendiam as crianças pobres, com ensino prático para formação de mão-de-obra, enquanto as crianças advindas das famílias burguesas e aristocratas recebiam uma formação escolar mais longa, com o objetivo de formá-los para pensar e comandar (CONNELL, 2000; OLIVEIRA e GENNARI, 2009; MELO 2006). No século XX, os sistemas educacionais ainda eram, em sua maioria, nítida e deliberadamente estratificados por raça, gênero, classe social e divididos em escolas acadêmicas e técnicas, públicas e privadas, protestantes e católicas. Foi nesse contexto, dentro de um modelo dual e burguês de educação, no qual a escola tornou-se incapaz de atender às crianças pobres e às suas necessidades, que surgiram as políticas sociais compensatórias para suprir as deficiências de saúde, nutrição, educação e formação cultural (CONNELL, 2000). Somente depois da Segunda Guerra Mundial, como consequência de uma série de movimentos sociais pró dessegregação, da proclamação da Declaração dos Direitos Humanos (1948) e da Declaração dos Direitos da Criança (1959) pela Assembléia das Nações Unidas é que a escola tornou-se mais acessível. No entanto, no interior dessas instituições aparentemente igualitárias, crianças pobres continuaram a ter um desempenho inferior em testes e exames, ficando mais sujeitas às reprovações e à evasão escolar se comparadas com aquelas advindas das famílias de classe média e alta (CONNELL, 2000; HORTA, 1998). Connell (2000, p. 15) acrescenta que “A educação foi trazida para o contexto da assistência social através da correlação entre níveis mais baixos de educação, índices mais elevados de desemprego e salários mais baixos”. Surgiu a idéia de um “ciclo de pobreza” auto-alimentado no qual as carências vividas pelas crianças levam a um baixo rendimento escolar, ao fracasso profissional e à perpetuação da pobreza. Assim, a associação dessas políticas compensatórias à educação, passou a ser vista como um meio de romper esse ciclo auto-alimentado de pobreza. Sob essa perspectiva, as políticas passaram, então, a ser concebidas para 5 compensar as desvantagens da criança pobre. Com isso, “o fracasso do acesso igualitário à educação foi transferido das instituições para as famílias a quem elas serviam”, uma vez que passaram a ser vistas como “portadoras de um déficit” para as quais “as instituições deveriam oferecer uma compensação”. Segundo o autor, “Esta manobra protegeu as crenças convencionais sobre educação” fortemente fundadas em duas idéias: a primeira, de que as pessoas pobres são objetos dessas políticas, não autoras da transformação social e, a segunda, de que a escola tem o poder de tirar as pessoas da pobreza e da miséria (CONNELL, 2000, p. 15). Nesse sentido, Peres e Castanha (2006, p. 237) salientam que o projeto neoliberal faz o trabalhador continuar, como no liberalismo do século XVIII, acreditando em “subir na vida” pelo trabalho, pela educação e pelo esforço individual, condenando-se por estar na pobreza. A lei é igual para todos. Tem escola para todos. A justiça é imparcial. Falta perceber que a elite é que está e sempre esteve no poder de verdade e é quem decide tudo. O povo está cercado de ideologias. As leis, o salário, o excedente, a mídia, a educação, tudo pertence ao detentor do capital. Connell (2000) acrescenta que as circunstâncias do surgimento desses programas compensatórios e os ambientes políticos e sociais nos quais e pelos quais eles têm sobrevivido partem de três pressupostos: (a) que o problema é da minoria em desvantagem; (b) que o pobre é diferente da maioria em termos comportamentais e culturais; e (c) que a correção dessa desvantagem na educação é um problema técnico, que exige para a sua solução conhecimento especializado e pesquisa. A idéia de que existe apenas uma minoria em desvantagem, embutida na concepção das políticas compensatórias, se deve à chamada “linha de pobreza”, a qual se fez referência anteriormente, que representa uma linha divisória entre as pessoas em desvantagem e aquelas em situação de vantagem e que, portanto, é usada para definir o público-alvo de tais políticas (CONNELL, 2000; CHOSSUDOVSKY, 1999, p. 35). O consenso de que o pobre é diferente decorre da existência da idéia de uma “cultura de pobreza”, que responsabiliza os pobres por sua condição e que faz com que uma grande maioria deles acredite estar vivendo em uma sociedade que garante direitos e oportunidades iguais para todos e que, portanto, só depende deles mesmos mudar o próprio destino (PERES e CASTANHA, 2006). 6 Na lógica neoliberal, segundo Gentili (2002, p. 25-26), a crise educacional resume-se a um conjunto de problemas técnicos relacionados à improdutividade e à ineficiência. Para resolvê-los são consultados os “experts” em reformar o Estado e em reduzir custos, os especialistas em produtividade, eficiência e qualidade total que representam os organismos internacionais, como o Banco Mundial e a ONU (UNICEF, PNUD, OIT, UNESCO, etc). Na próxima seção, será apresentada uma breve discussão sobre as políticas de transferência direta de renda condicionada à freqüência escolar, enquanto políticas de caráter compensatório, implementadas na América Latina, com destaque para a experiência brasileira. 3. As políticas de transferência direta de renda No ano 2000, a Organização das Nações Unidas (ONU), em uma reunião conhecida como “Cúpula do Milênio da ONU”. Das discussões surgiram as Metas de Desenvolvimento do Milênio (MDMs), que constituem até hoje o eixo central de debates e investimento das Nações Unidas. Desde 2002, o sistema ONU, através de suas agências especializadas, tem feito uma verdadeira ação de persuasão para convencer governos e ONGs a adotar as MDMs como agenda de políticas públicas para as primeiras décadas do século 21. Nestas metas estão incluídas metas dirigidas a áreas sociais prioritárias. Entre elas destacam-se: erradicar a extrema pobreza e a fome; universalizar o acesso ao ensino básico; promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres; reduzir a mortalidade na infância; melhorar a saúde materna; combater o HIV/AIDS, malária e outras doenças; estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento (PNUD, 2011; CORRÊA e ALVES, 2005). Na América Latina, a maioria dos países ratificou seu compromisso com os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e implementou programas de transferências de renda, cumprindo acordos firmados com o Banco Mundial, FAO, PNUD, FMI, ou mesmo com agências de cooperação internacional ou ONGs de países desenvolvidos, tendo em vista que esta tornou-se a “política oficial” dessa agências internacionais, a partir dos anos 1990 (ALMEIDA FILHO et al, 2007). Os autores destacam que, na América Latina, 17 países implementaram políticas de transferência de renda à família em extrema pobreza/pobres, dentre os quais podem ser citados os programas: “Plan Famílias” e “Jefes y Jefas” na Argentina, 7 “PLANE” na Bolívia, “Chile Solidário” no Chile, “Familias en Acción” na Colômbia, “Solidariedad comer es primero” na República Dominicana, “Red Solidária Ajuda Nutricional Mulheres carentes com Crianças” em El Salvador; “PROLOCAL/ Bono de Desarrollo Humano” no Equador, “PRAF II” em Honduras, PATH na Jamaica, “Oportunidades” no México, “Red de Protección Social” na Nicarágua, “Juntos” no Peru, “Solidaridad RD” na República Dominicana, “PAN - Plano Alimentário Nacional” no Uruguai, “Bono de Alimentación para Trabajadores/ Bolsa Bolivariana/ Bolsa Revolucionaria/MERCAL” na Venezuela (BELIK, 2006 apud ALMEIDA FILHO et al, 2007) No Brasil, inicialmente foram criados vários programas direcionados às famílias pobres e extremamente pobres dentre os quais ganharam destaque o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (1996), o Programa Bolsa Escola (2001) e o Programa Bolsa Alimentação (2001) que eram transferências de renda condicionadas a ações da família em prol de sua educação e saúde, o Auxílio Gás (2001) e o Programa Nacional de Acesso à Alimentação - PNAA (2003), também conhecido como Cartão Alimentação que eram programas de transferência de renda não condicionada (SOARES, RIBAS e SOARES, 2009). No ano 2003, foi criado o Programa Bolsa Família (PBF), que se caracteriza como um programa de transferência direta de renda com condicionalidades e que beneficia famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza, com o objetivo de unificar a gestão e a implementação dos programas anteriormente relacionados. Desde a sua criação, o Programa Bolsa Família foi sendo, gradualmente expandido até se atingir a meta de 11 milhões de famílias beneficiadas. Com a cobertura em 11 milhões de domicílios, PBF passou a ser um dos maiores instrumentos de política social brasileira em número de beneficiários. Apesar disso, em termos orçamentários, as transferências que beneficiam cerca de um quarto das famílias brasileiras, representam menos de 1% do PIB. De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, em 2011, o PBF atende mais de 12 milhões de famílias em todo território nacional (BRASIL, 2011). A seguir serão apresentadas algumas reflexões sobre as limitações do PBF, enquanto política social de caráter compensatório. 8 4. Direitos Universais versus Políticas Compensatórias: algumas reflexões sobre o Programa Bolsa Família Em uma sociedade democrática, os direitos sociais devem ser assegurados por meio dos sistemas nacionais de proteção social. Pode-se dizer que há atualmente um relativo consenso nos estudos sobre o tema, de que o acesso aos direitos sociais é condição fundamental para a cidadania (MARIANO e CARLOTO, 2009). No Brasil, este sistema contempla proteções como previdência social, seguro desemprego, Sistema Único de Saúde, educação e a assistência social. A Constituição Federal de 1998 trouxe avanços no campo dos direitos sociais, em relação às constituições anteriores, contudo, os mecanismos declaratórios e garantidores dos direitos fundamentais e sociais ainda encontram obstáculos práticos para sua efetivação e comprometem o direito à cidadania. Existem problemas, divergências e limitações no que diz respeito ao acesso e às responsabilidades e competências do Estado, da sociedade e da família na sua efetivação e, em conseqüência disso, este conjunto de políticas atinge diferentes níveis de consolidação dos direitos sociais. Não se trata apenas da interpretação da legislação, é necessário entender a questão como uma dimensão da luta política, tendo em vista que a eficácia das normas constitucionais depende tanto dos fatores jurídicos quanto dos políticos (OLIVEIRA, 1999; MARIANO e CARLOTO, 2009). Embora os objetivos centrais de um Estado democrático, segundo Sader (2000) sejam: (a) garantir a todos os direitos básicos de cidadania; (b) regular o mercado e, (c) articular, em escala global, o processo de socialização do poder e da política, para Grynspan (2010, p.44), a democracia, muitas vezes, produz uma falsa idéia de igualdade quando, no plano político, institucionaliza os processos eleitorais por meio do voto popular mas, em outros planos de institucionalização pública, da economia e da sociedade, mantém mecanismos excludentes que entram em conflito com esta “inclusão política”. Nesse sentido, Gentili (1999, p. 117) acrescenta que apesar da democracia representar uma conquista política das maiorias, as condições em que elas se estabelecem, muitas vezes, refletem “situações estruturais de profunda derrota social”. Criaram-se as condições para o retorno a uma institucionalidade democrática controlada, “uma democracia „não-democrática‟”, na qual as demandas 9 democratizadoras no campo das políticas públicas não correspondiam à sua natureza de democracia capitalista. Ao criar o PBF, um programa de transferência direta de renda condicionada dirigido às famílias pobre e extremamente pobres, que incorporou o Bolsa Escola, o Bolsa Alimentação e o Bolsa Gás e está integrado ao Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), o governo brasileiro tinha em mente não apenas combater a pobreza extrema e a fome, mas também promover o acesso das famílias mais pobres à rede de serviços públicos, sobretudo, saúde, educação e assistência social, com o objetivo romper o círculo de transmissão da pobreza entre gerações. De acordo com Medeiros, Britto e Soares (2007), a mais conhecida condicionalidade do PBF é a de freqüência escolar das crianças e adolescentes beneficiados, em pelos menos 85% das aulas. O programa instituiu um sistema de acompanhamento que é alimentado pelos municípios e transmitido ao governo federal, a fim de que se apliquem advertências e sanções no caso de seu descumprimento. Desde a sua criação, mais de 95% daqueles que tiveram a freqüência escolar monitorada cumpriram a exigência estabelecida. No entanto, de acordo com Lavinas (2011), a pobreza só aparece como questão social mais recentemente e parece reforçar um enfoque cada vez mais distante daquele que embasou a reestruturação dos sistemas de proteção social europeus no pós-guerra, tendo em vista que o conceito de universalidade cedeu lugar a uma proteção social compensatória desarticulada e desvinculada do sistema de seguridade social como um todo. Com isso, as políticas de combate à pobreza passaram a caminhar em paralelo e sem metas definidas e a se restringir à implementação de uma rede mínima de proteção social (RMPS), cujo objetivo não é vencer a pobreza, mas assegurar um patamar mínimo de reprodução social que atenue os perversos efeitos das políticas de Estado mínimo. Jimenez e Mendes Segundo (2007) discutem a relação entre educação e pobreza, tão enfatizada nas diretrizes educacionais para o novo milênio. A análise dos documentos resultantes dos sucessivos eventos promovidos por diversas organizações internacionais com apoio do Banco Mundial demonstra que a educação é sistematicamente citada como fator por excelência de erradicação e/ou minimização da pobreza. Sob essa perspectiva, o Banco Mundial exige dos países assolados pela 10 pobreza reformas que aprofundem o projeto de mercantilização da educação e da minimização dos conteúdos do ensino em todos os níveis. Os autores concluíram que a relação traçada entre educação e pobreza traduz uma retórica mistificadora, representando um instrumento de ajuste ao projeto de reprodução do capital, diante do agravamento das dificuldades de acumulação do lucro postas pela crise estrutural contemporânea (JIMENEZ e MENDES SEGUNDO, 2007). Monnerat et al (2007) ressaltam que, se por um lado, as transferências diretas de renda condicionadas potencializam o acesso da população pobre aos serviços públicos essenciais, por outro colocam em dúvida as reais condições e a capacidade dos municípios de ofertarem o que de mais básico está previsto no elenco de direitos sociais, isto é, as os serviços de saúde e educação. Aliado a isso, Monnerat et al (2007), ao analisarem a questão da obrigatoriedade de inserção de crianças e adolescentes na escola, afirmam que punir as famílias que não cumprirem as condicionalidades é incompatível com os objetivos de promoção social do Programa. Enfatizam que o Bolsa Família apresenta inúmeras limitações e fragilidades no que diz respeito à sua capacidade de reverter causas estruturais da pobreza e, portanto, as expectativas de superação da pobreza depositadas no programa são bastante elevadas se for considerado o grau de desigualdade social existente, as inúmeras vulnerabilidades que atingem a população pobre, a debilidade do sistema de proteção social e o baixo valor do benefício. Por isso, Lavinas (2006; 2011) enfatiza que a ação governamental não pode se restringir a transferência de renda aos mais pobres e que os investimentos públicos em infra-estrutura social de educação, saneamento básico e habitação são fundamentais e indispensáveis para equacionar a questão da desigualdade social e para construir uma sociedade mais justa e igualitária. Além das condicionalidades, outro aspecto do PBF que merece destaque a questão da focalização. Com a criação do Programa Bolsa Família foram uniformizados os critérios de entrada, os valores do benefício, a agência executora e o sistema de informação. Em suma, o PBF passou a ter um mandato legal e uma estrutura operacional que lhe permite garantir uma maior focalização do benefício e um controle maior do sistema de transferências (SOARES, RIBAS e SOARES, 2009). 11 No entanto, de acordo com Mariano e Carloto (2009), a focalização e a condicionalidade são fatores que influenciam direta e negativamente o grau de efetivação dos direitos sociais, uma vez que a focalização responde aos anseios de gestão na relação entre custo e benefício (eficiência, eficácia e efetividade ocupam destaque nas orientações) e que as condicionalidades, um neologismo para obrigações, vieram para substituir a denominação de contrapartidas. Para finalizar, é preciso acrescentar que o Programa Bolsa Família não é um direito, pois diferentemente de uma aposentadoria, de um seguro-desemprego ou do pagamento de um título da dívida pública, é um programa com orçamento definido. Uma vez esgotada a dotação orçamentária, ninguém mais pode receber o benefício, pelo menos até que haja crédito orçamentário suplementar, tendo em vista que a Lei nº 10.326 de 09 de janeiro de 2004, condiciona o seu pagamento às possibilidades orçamentárias, quando estabelece em seu artigo 6º , parágrafo único que “O Poder Executivo deverá compatibilizar a quantidade de beneficiários do Programa Bolsa Família com as dotações orçamentárias existentes” (SOARES e SATYRO, 2009; BRASIL, 2004). Assim, de acordo com Soares e Sátyro (2009), apesar de existirem critérios para a concessão do benefício, estes critérios não definem apenas uma fila, mas também definem famílias como elegíveis ou não. Em outras palavras, uma família de que tem filhos e vive com renda inferior a R$ 140,00 per capita, é elegível para receber o PBF e, se não recebe, é um elegível não coberto. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao contrário do que prega o ideário neoliberal, as políticas públicas voltadas à universalização dos direitos sociais e da pessoa humana tem significativo impacto na redistribuição de renda e na redução das desigualdades sociais. Com relação ao Programa Bolsa Família, observa-se que, desde a sua criação, houve significativo ganho social, uma vez que os dados apontam que o programa tem contribuído para aumentar a freqüência escolar na escola fundamental, além de ter expandindo continuamente o número de famílias beneficiadas com uma renda adicional. No entanto, é necessário ressaltar que se, de um lado, o bolsa família contribui para reduzir uma das mazelas da educação brasileira, que é a evasão escolar, 12 por outro lado, essa política de cunho compensatório consegue apenas amenizar os conflitos entre as classes sociais. Como enfatiza Vieira (1992), a política social é a estratégia dos governos e relaciona-se diretamente com a política econômica em determinados momentos históricos. Sob essa perspectiva, é possível afirmar que as políticas sociais tem sido, frequentemente, utilizadas para amenizar os conflitos e as desigualdades sociais, por meio de programas aparentemente transformadores e emancipatórios, mas que em sua essência, não passam de um mecanismo para garantir a sobrevivência do modo de produção e manutenção das relações sociais vigentes. Além disso, é preciso considerar que o sistema de proteção social brasileiro, apesar dos avanços, ainda oferece cobertura restrita a uma parcela reduzida da população da qual, muitas vezes, as pessoas pobres são excluídas devido aos seus vínculos instáveis e precários com o mercado de trabalho, às fragilidades do sistema de proteção social e aos próprios critérios adotados no processo de focalização dessas políticas. Para finalizar, é preciso acrescentar que os programas de transferências monetárias sujeitas à comprovação de renda e direcionadas à população mais pobre revelam que o modelo de proteção social adotado no Brasil é contrário à visão universalista posta pela Constituição Federal do Brasil de 1988. Portanto, as políticas governamentais não podem se restringir a transferência de renda aos mais pobres. Os investimentos públicos em infra-estrutura social de educação, saneamento básico e habitação são fundamentais e indispensáveis para equacionar a questão da desigualdade social e para construir uma sociedade mais justa e igualitária. REFERÊNCIAS AGIER, M. O sexo da pobreza. Homens, mulheres e famílias numa “avenida” em Salvador da Bahia. Tempo Social - Rev. Sociologia. USP, S. Paulo, 2(2): 35-60, 2.sem. 1990. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/sociologia/temposocial/ site/images/stories/edicoes/v022/O_SEXO.pdf> Acessado em 12.05.2011. ALMEIDA FILHO, N. et al. Segurança alimentar: evolução conceitual e ação das políticas públicas na América Latina. In: XLV Congresso da Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural-SOBER: "Conhecimentos para Agricultura do Futuro". Londrina, 22 a 25 de julho de 2007. Disponível em: <http://www.sober.org.br/palestra/6/1138.pdf>. Acessado em: 05.05.2011. 13 BENKO, G. 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