Centro Universitário Franciscano do Paraná Instituto de Filosofia São Boaventura Revista Filosófica São Boaventura, v.1, n.1, p.1-106 Curitiba, jul./dez. 2008 Copyright © 2008 by autores Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Centro Universitário Franciscano do Paraná Instituto de Filosofia Boaventura Instituto mantido pela Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus (AFESBJ) Reitor Frei Nelson José Hillesheim Pró-reitor acadêmico André Luis Gontijo Resende Pró-reitor administrativo Paulo Arns da Cunha Diretor do IFSB Ms. Vicente Keller Editores Dr. Vagner Sassi e Dr. Enio Paulo Giachini Comissão Editorial Dr. Roberto H. Pich Ms. Vicente Keller Dr. Jaime Spengler Dr. João Mannes Dr. Marcelo Perine Conselho Editorial Dr. Osmar Ponchirolli Dr. Mauro Simões Dr. Antônio Joaquim Pinto Dr. Écio Elvis Pizzeta Dr. Leonardo Mees Ms. Solange Aparecida de Campos Costa Dr. Renato Kirchner Revisão Comissão editorial Projeto Gráfico e Diagramação Maria Laura Zocolotti Ana Rita Barzick Nogueira Capa Roland Cirilo Catalogação na fonte Revista filosófica São Boaventura/Centro Universitário Franciscano do Paraná. Instituto de Filosofia São Boaventura. v.1, n.1, julho/dezembro 2008- . Curitiba: Centro Universitário Franciscano do Paraná, 2008v. 23cm Semestral 1. Filosofia - Periódicos. I. Centro Universitário Franciscano do Paraná. Instituto de Filosofia São Boaventura. CDD - 105 R. 24 de Maio, 135 | 80230-080 | Curitiba-PR e-mail: [email protected] SUMÁRIO SU MMARY SUMMARY To Study, Philosophy? Hermógenes Harada 1 Estudar, Filosofia? Hermógenes Harada 1 Filosofia e Pensamento Vagner Sassi 13 Philosophy and Thought Vagner Sassi 13 Pascal: Apologia em Fragmentos Jaime Spengler 27 Pascal: Apology In Fragments Jaime Spengler 27 Uma Reflexão Antropológica da Violência a Partir das Atividades Liberativas da Filosofia de Schopenhauer 37 Osmar Ponchirolli An Anthopological Reflection about Violence Stemming from the Liberative Activities of Schopenhauer’s Philosophy Osmar Ponchirolli Reflexões sobre a Obra de Arte - uma análise do texto “A Origem da Obra de Arte” de Martin Heidegger Solange Aparecida de Campos Costa Reflections about the Work of art - an analysis of the text “The Origins of the Works of Art” by Martin Heidegger 47 Solange Aparecida de Campos Costa 47 37 Trabalho e si mesmo. Reflexões a partir de Heinrich Rombach Enio Paulo Giachini 59 Work and yourself. Reflections stemming from Heinrich Rombach Enio Paulo Giachini 59 A Ética Kantiana e o Primado da Autonomia Ítalo Kiyomi Ishikawa 69 Kantiana Ethics and the Prioryty of Autonomy Ítalo Kiyomi Ishikawa 69 Utilitarismo Negativo Leonardo A. dos Reis T. dos Santos 83 Negative Utilitarism Leonardo A. dos Reis T. dos Santos 83 Os Dois Infinitos Blaise Pascal 99 The Two Infinites Blaise Pascal 99 Editorial Um rápido olhar pela história da filosofia mostra que uma das características mais marcantes do ser humano se faz presente em todos os momentos. A inquietação, a insatisfação pelas explicações apresentadas a determinados fatos e fenômenos, a busca por esclarecimentos a situações novas que se apresentam, a reflexão contínua e continuada sobre avanços científicos são características que acompanham o ser humano em todos os momentos. Basta lembrar a admiração e a estupefação dos primeiros filósofos diante da multiplicidade e diversidade dos fenômenos naturais; o “conhece-te a ti mesmo” exposto aos visitantes do Templo de Delfos; o “sei que nada sei”, pensamento favorito de Sócrates ao abordar seus oponentes e, muitos deles, futuros discípulos; a inquietação expressa por Santo Agostinho em sua busca pela verdade (“minha alma não descansará enquanto não repousar em ti, Senhor”); a contrariedade e contraditoriedade de Hegel (“naquilo com que um espírito se satisfaz, mede-se a grandeza de sua perda”). A Revista Filosófica São Boaventura se propõe ser um canal para a expressão desta inquietação, da reflexão contínua e continuada, da manifestação de novas respostas a problemas antigos que se punham e continuam a se apresentar ao ser humano. O objetivo da revista é ser um ponto de apoio para o pensar e um canal de divulgação e incentivo à produção científica. Enquanto ponto de apoio, acolhe contribuições relevantes da área de filosofia, de vertentes diversa=s, tanto endógenas quanto exógenas. Enquanto canal, busca o diálogo entre autores e leitores sobre diversos temas pertinentes à área de filosofia. Significa dizer que seu campo de abrangência é o estudo e a produção filosóficos de maneira bastante ampla, mesmo estando focada no nível de graduação. Aceita artigos de professores, pesquisadores, estudantes e amantes da filosofia. Na verdade, trata-se de mais um canal do Curso de Filosofia do Instituto de Filosofia São Boaventura e da Unifae - Centro Universitário Franciscano do Paraná. É mais um desafio a seus professores e alunos para exercitarem o diálogo e a reflexão, tanto interna quanto externamente, com seus pares. Neste primeiro número encontram-se artigos assinados sobretudo por autores vinculados ao Instituto de Filosofia São Boaventura e ao seu curso de Filosofia. São contribuições, no dizer deles próprios, que pretendem: “tematizar o filosofar, o lado esotérico da filosofia, como sendo busca do fundo o mais fundo, para além ou aquém de todas as posições e suposições das filosofias, como vislumbre de uma aberta, qual uma racha mal percebida à raiz do ser de todas as coisas, envolta numa intensa nuvem do não saber”; “apontar para a necessidade de se ultrapassar a abordagem metafísico-categorial da linguagem em favor de um falar originário e de uma escuta não-objetivante”; “oferecer indicações sobre a gênese da obra “Pensamentos”, buscando uma compreensão em torno do que seja uma apologia, e no caso Apologia do Cristianismo; por fim propor considerações em torno das características daquele gênero literário denominado ‘fragmento’”; “verificar a importância da concepção filosófica de Schopenhauer como fundamento antropológico do fenômeno da violência”; “possibilitar uma discussão inicial sobre o tema que permita o estudo acadêmico da estética ou filosofia da arte”; “refletir sobre algumas indicações de H. Rombach relacionadas com o tema do trabalho e suas implicações”; “apresentar a ética de Kant e ressaltar seus princípios metafísicos, assim como, demonstrar os fundamentos racionais do Direito e do Estado”; “defender a coerência da proposta com o pensamento de Popper e com uma crítica à epistemologia milleana, possibilitando uma aproximação do utilitarismo com a moral comum e combatendo os possíveis efeitos perversos de uma política direcionada para o incremento do bem-estar”. Finalmente, este primeiro número encerra com a tradução de alguns fragmentos extraídos do livro Pensamentos ensamentos, de Blaise Pascal. O desafio está lançado a professores, pesquisadores, estudantes e amantes da filosofia. Nos próximos números, o seu artigo poderá ser publicado aqui. Prof. Vicente Keller Diretor do Instituto de Filosofia São Boaventura Coordenador do Curso de Filosofia da FAE Centro Universitário Estudar Estudar,, Filosofia? To Study Study,, Philosophy? Hermógenes Harada* Resumo Filosofia se apresenta como saber constituído, institucionalizado do ensino, aprendizagem e pesquisa. Nesse saber, são imensas e extensas as exigências requeridas para se ter qualificação e excelência do saber competente. A esse aspecto podemos chamar de aspecto exotérico da filosofia, o seu lado virado para fora, para o público. No estudo, a saber, no empenho e desempenho do labutar na filosofia, há também um aspecto virado para o seu interior, para o âmago do seu ser, o aspecto que pode ser denominado como esotérico. É o seu lado virado para dentro, para o seu ser próprio, para sua essência. Essa ambigüidade da filosofia se formula numa definição da filosofia que diz: filosofia é filosofar. O artigo tenta tematizar o filosofar, o lado esotérico da filosofia, como sendo busca do fundo o mais fundo, para além ou aquém de todas as posições e suposições das filosofias, como vislumbre de uma aberta, qual uma racha mal percebida à raiz do ser de todas as coisas, envolta numa intensa nuvem do não saber. Palavras-chave: estudar; filosofia; exotérico; esotérico; estudo. * Filósofo e pesquisador do Instituto de Filosofia São Boaventura (IFSB). Philosophy presents itself as established knowledge, institutionalized in education, learning and research. Within this knowledge, there are great demands to acquire qualification and excellence of competent knowledge. This aspect can be called exoteric knowledge of philosophy, its outside aspects, turned to the public. In this study, in an effort to work philosophy, there is also an aspect turned inside to the core of itself, this aspect may be called exoteric. Its the part turned inside, to its own being, to its own essence. This ambiguity of philosophy is formulated in a definition of philosophy that states that: philosophy is to exercise philosophy. This article aims to make a theme out of exercising philosophy, the exoteric side of philosophy, seeking the deepest of deepest, beyond all other stances and suppositions of other philosophies, as a glimpse of an open, unnoticeable fissure at the root of all things, enveloped by a large cloud of not-knowing. Key W ords Words ords: to study; philosophy; exoteric; esoteric; study. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.1-11, jul./dez. 2008 1 artigos Abstract Introdução Filosofia é uma interrogação? Ou a interrogação vale sobre o estudo? Supondose que seja sobre ambos, devemos saber o que é filosofia e o que é estudo. Mas, se estudar filosofia não é propriamente saber sobre o que é, mas filosofar1, então esse filosofar não mais seria saber sobre filosofia nem sobre estudo, mas apenas questão2. Na questão interrogar não é para responder e resolver um problema, mas abrir-se à disposição da jovialidade incondicional da busca. Filosofia nos é dada como disciplina escolar. Ao lado das outras disciplinas da aprendizagem e do ensino. Como ciência. Como mundividência. Muitas vezes, como conjunto de doutrinas ideológicas. Como informações culturais e métodos, normas, como coleção de ensinamentos profundos da vida e da história, como sabedoria. Como matérias de estudo, com provas e notas de aprovação ou reprovação. Com “ranking” do saber acadêmico, como promoção de graduação, pós-graduação, mestrado, doutorado, pósdoutorado, no empenho e desempenho do trabalho intelectual. E como qualquer outra matéria de estudo escolar, a filosofia está sujeita a variegadas e diferentes apreciações dos que a estudam. Mas, usualmente, a filosofia como mundividência, ciência, ideologia, cultura, sabedoria, disciplina de ensino e aprendizagem escolar, de grau superior, seja o que for e como for, é considerada como uma das manifestações e expressões do espírito humano, do espírito europeu-ocidental. Filosofia, porém, não é boa para indicar a profissão de uma pessoa, a não ser como professor de filosofia. Soa estranho chamar alguém de filósofo, como se costuma classificar, chamando alguém de engenheiro, mecânico, lixeiro, advogado, operário, médico, historiador. Filósofo soa, assim, não como alguém que tem uma função social, um status, uma tarefa ou trabalho bem definido, mas como alguém solitário, todo próprio, digamos particular e singular, algo diferente, de alguma forma afim com excêntrico, alienado, excepcional, estranho, sábio quem sabe, de vez em quando até santo, mas em todo o caso não oficial, não comum, e sempre como privativo, próprio, singular. Nesse sentido, se, em vez de dizer, filósofo é aquele que estudou filosofia, é a pessoa que é formada na especialização “filosofia”, se disser é aquele que filosofa, pensa, matuta, “crania”, a gente se sente melhor, mais familiarizado com a qualificação. Mas pensar, matutar, “craniar” não é de toda gente, de todo mundo? O que há de especial no filosofar? O que quer dizer a famosa expressão: filosofia é filosofar? 1 Filosofia é filosofar. Cf. HEIDEGGER, Martin. Os conceitos fundamentais da metafisica metafisica. Mundo-finitude-solidão. Tradução de: Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p.5. 2 Questão vem do verbo latino quaerere (quaero, quaesivi, quaestum ou quaesitum, quaerere) que significa buscar, procurar. 2 HARADA, Hermógenes. Estudar filosofia? Filosofia é filosofar Formalmente a formulação filosofia é filosofar quer dizer: o substantivo filosofia tem como substância ser um verbo. Filosofia não é isso ou aquilo, não é algo ali préjacente, dado de antemão, mas uma ação bem “encorpada”, um verbo. Mas não um verbo, uma ação que ocorre, mas sim o ter que ser, o ter que se perfazer. Nesse sentido filosofia é só em filosofando. Ser filosofia é: ser como em sendo. Filosofia como filosofar está responsabilizada, é responsável de cabo a rabo, em todas as articulações e fibras de sua estruturação, no seu método e no seu modo de ser e não ser, na sua gênese, no seu crescimento e na sua consumação: em, por e para ser (verbo) ela mesma, em sendo. Ser assim não é sujeito, não é agente, não é um quê, que age, que tem a ação, mas é o próprio, em sendo, o pura, plena e totalmente inteiriço “verbo”, ser. Em assim sendo, ser é pura ação, anterior à atividade e passividade, um ato, “em si”, a partir de si, nele mesmo, de todo e plenamente próprio, ele mesmo, na soltura, na autonomia da autoidentidade. É, pois, ser ab-soluto. Esse caráter de ser ab-soluta liberdade de si, da pura ação se diz em latim studium, e em grego scholé3, que se diz em português estudo, 3 Scholé, em latim schola, em português escola significa ócio, repouso, tempo livre, de lazer. Ócio, aqui, porém, não quer dizer dolce far niente. Antes indica um modo de ser e de agir, uma modalidade de trabalho todo próprio, caracterizado como labor livre, gratuito, assumido cordialmente por causa dele mesmo, e por isso, isento de remuneração seja ela prêmio ou castigo, por ele ser querido voluntariamente, como realização da vocação de uma pessoa. Por isso scholé significava estar livre dos negócios (=ne ou non+otium = negotium = trabalho forçado do escravo ou empregado); atividade da formação de ensino e aprendizagem escolar, conferência, diálogo, conversação erudita e filosófica (Cf. MENGE, Hermann. Langenscheidts Grosswörterbuch Griechsch Griechsch. Teil 1 Griechisch-deutsch. Editora Langenscheidt, Berlim/Munique/Zurique, 1970, p. 670. Essa compreensão do trabalho livre é a mesma das assim chamadas profissões liberais. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.3-11, jul./dez. 2008 3 artigos empenho e desempenho, o zelo. Esse caráter típico de ser próprio se chama hermético. Enquanto propriedade de ser, na ab-solutidade, na ab-soltura da liberdade de autonomia, absoluto não significa propriamente fixidez da imutabilidade; nem hermético trancamento e fechamento; mas pelo contrário franca abertura na imensidão, profundidade e criatividade da jovialidade de ser, no seu perfazer-se, no seu consumar-se per-feito. Em vez de na sua consumação perfeita podemos também dizer na sua bom-dade. Quando em português dizemos “bom!” significamos um ente, um em sendo que está no ponto, ou melhor, no seu ponto. No ponto aqui quer dizer no seu próprio, na sua. Para indicar esse “na sua”, “no seu próprio” apertamos de leve a ponta, o lóbulo da orelha, lá onde se é cheio, redondo, pleno, solto, digamos na sua “identidade”, na sua coerência, na sua auto-adesão. Ser assim solto na coerência, como uma gota de água, redondinha, tinindo na sua contenção plena é ser no acima insinuado sentido verbal da bom-dade. Quando a filosofia é filosofar, na sua caracterização de ser ela mesma, de estar na sua, “em casa”, no tinir da sua coerência, i. é, na sua scholé (leia-se: em casa na escola), para quem não consegue “ver” o ser como verbo, mas apenas como “substância” deslocada no seu sentido do ser para uma coisa-bloqueada como algo, a tênue vibração do tinir da contenção da bom-dade perfeita, o ponto nevrálgico da plenitude consumada de ser não é percebida, como também não se percebe a dinâmica da densidade de ser de uma turbina em plena rotação a não ser como estaticamente parada; e a soltura absoluta da autonomia da identidade é vista como fechamento, trancamento, como superfície dura de um espaço ou de uma coisa hermeticamente fechada. A filosofia enquanto filosofar sofre da ambigüidade da “hermeticidade” acima mencionada, deslocada da sua dinâmica interna, quando vista de fora. É nesse sentido que se costuma dizer que a filosofia é hermética. Ou dito de outro modo, numa constatação banal: Filosofia é dura, difícil de estudar, pois, a partir de fora, não há nenhuma entrada de acesso. O hermético da filosofia Tentemos verificar esse pretenso fechamento da filosofia para dentro dela mesma, mencionando algumas de suas características, destacadas por Heinrich Rombach, quando analisa o modo de ser da filosofia Moderna no seu livro Substanz System, Struktur 4 . 1. Filosofia como filosofar é autoconstituição. Como tal ela não recebe nenhuma causação, ordenação, nenhum apoio ou subsídio de fora. Enquanto tal não há da parte de fora nenhum ponto de referência que nos possibilite ou facilite entrar nela. Não resta, pois, a não ser entrar em contato direto, corpo a corpo com ela, a partir dela e nela mesma; ou deixar que ela fale, dite a sua lei. Por isso: “ela pode ser definida como o pensar que se coloca a si mesmo sobre si mesmo e empreende tomar todas as suas soluções e fundamentações, de si mesmo, e todo o empréstimo de outras fontes, sejam elas experiência, autoridade, revelação, é rejeitado; e isto, não porque elas lhe pareçam incredíveis, mas porque elas estão sob as leis de um outro âmbito. Não somente é rejeitada a condução, mas também todo e qualquer conteúdo de pensamento de fora”. Aqui não se trata de reação de movimento de emancipação contra autoridade, seja ela qual for e donde vier, mas da precisão de uma busca, na qual se procura manter a coerência e limpidez do ser próprio de cada dimensão. 2. Porque a filosofia como filosofar cria o seu médium próprio, vive, se move e é nele e a partir dele, não se acha mais na ordenação do mundo que lhe é dado 4 O que segue é resumo e citação da exposição de Rombach das páginas mencionadas abaixo. As citações estão em itálico. Cf. ROMBACH, Heinrich. Substanz, System, Struktur Struktur. Die Ontologie des Funktionalismus und der philosophische Substância, sistema, estrutura Hintergrund der modernen Wissenschaft (Substância, estrutura. A ontologia do funcionalismo e o fundo de trás da ciência moderna) Freiburg/Munique: Verlag Karl Alber, 1965. p.349-354. 4 HARADA, Hermógenes. Estudar filosofia? fora da sua autoconstituição. “Assim a filosofia não assume nenhuma posição visível e distinta em referência à sociedade do seu tempo”. Assim, ela não possui nenhuma familiaridade e credibilidade simples no meio da sociedade, não lhe é acessível de imediato, não encontra receptividade junto dos seus contemporâneos. Nesse sentido “ela não mais fala para fora, mas fala ainda apenas para si mesma; ela é coisa de especialista para especialista. Ao filósofo não mais lhe interessa ocupar uma posição educativa no todo do seu mundo circundante, ou demonstrar através da forma de sua existência a forma a mais sublime e excelente da existência humana, mas ele se retrai, se torna invisível para a sociedade e não possui nenhum característico que tivesse para com o povo a significação e importância de um perfil exemplar do humano numa configuração prenhe de significação. Assim, o filósofo parece qualquer um, age como todo mundo, e não faz da sua filosofia um objeto doutrinário transmissível”. Isto quer dizer: ele não possui nenhuma posição oficial, não é da oficialidade, não é clérigo nem público. O filósofo não é aquele que é chamado para uma tarefa humanitária pela vocação, o político, o educador, professor, alguém como teólogo, juiz ou médico. Ele in-porta apenas a si mesmo, por e para si, e vive no seu pensamento como o eremita na sua cela. 4. A filosofia como filosofar não ocupa nem assume um determinado lugar descritível e visível dentro do mundo espiritual. Pois, ela implica, contém em si todo o mundo do espírito, ou melhor, ele é todo o mundo do espírito. E assim, “ela agora somente pode apelar a isso que surgir nela mesma e é nela pensado. Ela é pensar sem pré-suposição. Ela não pode tomar da outra forma nem axiomas, nem princípios, nem verdades primeiras, nem os dados, mas deve tudo pro-duzir, gerar de si mesma. Agora sim, somente agora, a filosofia se torna ‘fundante’, ‘fundamental’ de modo que ela tem que fundamentar tudo que ela usa como meios do pensar nela mesma”. Desse modo, a filosofia é acossada em direção ao fundo e à fundamentação do fundo, de tal modo que, uma vez a caminho, não lhe resta mais nenhuma outra orientação a não ser a ausculta e sondagem do abismo insondável e sem fundo da possibilidade de ser. Assim, não se pensa em expandir, estender a extensão do saber, não se está mais na tarefa do pensar enciclopédico, da vasta erudição, mas toda a Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.5-11, jul./dez. 2008 5 artigos 3. Já que a filosofia como filosofar está de pé somente sobre si mesma, e fala somente por e para si, para as décadas e os séculos futuros ela fica fora das escolas. “Todos os pensadores decisivos da nova filosofia, Descartes, Hobbes, Arnauld, Pascal, Espinosa, Locke, Leibniz e Hume são mestres não funcionários e não possuem nenhuma conexão digna de menção com a universidade. Eles trabalham e pensam como pessoas privativas e se relacionam com os colegas somente na forma privativa. A universidade e os estudos gerais permanecem, por longo tempo, intocados por esse pensar”. tarefa consiste em se concentrar na questão do início, do toque de origem e retorno a ela na busca do outro início. “Não mais os summa, não mais um speculum universale é a tarefa, a missão da filosofia; não o processamento e a propagação do saber ‘substancialista’ sobre mundo e vida podem ser para ela tarefa, mas apenas ainda a questão de fundo da sua própria facticidade”. Essa concentração na questão do início faz surgir diferenciados e variegados estilos nas manifestações literárias na causa da filosofia. Temos assim, por ex., tratados, ensaios, discursos, correspondências, fragmentos, anotações, diários etc., que por sua vez mais do que estilos, gêneros ou obras literárias, são vestígios do pensar como caminhos, sendas, trilhas que acenam. Não visam, pois, o quantum do saber, o seu resultado, mas somente se trata do toque do início, do retorno ao início de fundamentações. O como dos diálogos entre filosofias não é mais o de confronto argumentativo de pressuposições, usadas na fundamentação das teses principais de cada filosofia. As pré-suposições são mantidas intactas, intocadas, ou até compreendidas da melhor maneira possível dentro da lógica do todo da colocação. No entanto, o todo da colocação de cada filosofia em contacto mútuo entre si sofre uma espécie de escavação de sapa, na qual a posição de fundo do todo de cada colocação é interrogado no seu ser e este, no sentido do ser, subsumido operativamente por cada uma dessas filosofias em “confronto”, ao “construir” o conjunto visível exotérico da sua aparição. Aqui no “confronto” não estão em jogo posições particulares dentro do todo da colocação, mas sim o toque inicial da abordagem do todo da colocação. “Confira-se nessa perspectiva a controvérsia, p. ex., de um Locke contra Descartes, então de novo de um Leibniz contra Locke, de um Kant contra Leibniz etc.” Aqui cada oponente se conserva mutuamente protegido nas suas afirmações internas, esotéricas. Mas ao mesmo tempo, cada uma das abordagens do todo de colocação de cada oponente é colocada em questão, i. é, na busca, como ainda uma posição, portanto, não suficientemente no fundo, onde se possa vislumbrar um abismo sem fundo do pensar de origem. 5. “Na medida em que a filosofia não mais é mantida, determinada e esclarecida através e por meio de um mundo do ser e do sentido do ser extrafilosóficos, ela deve não somente pensar ela mesma, mas também deve determinar todas as suas particularidades e posições fundamentais. Por isso, ela começa cada vez com uma autocolocação, auto-exame e autoconsideração. Antes de adentrar os problemas intrafilosóficos, o pensador deve clarear antes de tudo e como tal o seu conceito de filosofia. Cada filosofia tem como seu primeiro e fundamental tema a possibilidade do próprio filosofar ele mesmo. Com isso, cada uma filosofia se torna a filosofia. Ela se torna uma nova fundação do filosofar como tal e deve tudo pensar novo de novo no seu reino”. Isso faz com que o pensador 6 HARADA, Hermógenes. Estudar filosofia? seja considerado como isolado e apenas ligado na referência ao seu próprio espírito. Assim começa cada qual, consigo mesmo. Aqui, cada qual é descobridor do campo o mais próprio da filosofia. Cada pensador se compreende uma nova erupção, uma nova eclosão, uma retomada, como o início de toda uma época do pensar e não apenas como uma nova tese dentro de uma moldura que permanece igual, do filosofar como tal. “Somente agora o pensar se torna num modo destacado historial. Filosofia se torna epocal. Ela se adentra cada vez de tal maneira na História, que com ela (filosofia) inicia um novo tempo. Cada filosofia se compreende como a incisão epocal entre as eras do universo temporal”. Assim, a interpretação dos outros filósofos se torna volta às e retomada das pressuposições como sondagem e ausculta do que elas ocultam da possibilidade de ser. Nenhuma filosofia pode se estabelecer, sem dar ao mesmo tempo a sua própria apresentação e exposição da história da filosofia. A história da filosofia não é mais apresentação das diferentes opiniões sobre as mesmas perguntas, mas é entendida agora como uma história da questão do sentido do ser que contém cada vez diferentes possibilidades fundamentais da compreensão do mundo, homem e Deus, que projeta, nessas possibilidades, diferentes perguntas e modos de perguntar. 6. Do que até agora dissemos, a filosofia como filosofar se assenta sobre e em si mesma e não é propriamente uma forma específica de espírito como tal. Assim, ela possui uma impostação e implicância toda própria, totalmente irredutível para com a sua tarefa. Ela é um modo de pensar que difere totalmente do modo de pensar do usual cotidiano, quer na ciência, quer na vida. Por isso a filosofia é difícil para a gente. Ela se torna assim inacessível e des-natural, artificial para quem se acha fora dela. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.7-11, jul./dez. 2008 7 artigos Nessa perspectiva, “não existe uma base comum para discussão direta entre as filosofias. Com a criação nova do conceito de filosofia surge também cada vez uma nova, própria e i-repetível terminologia do pensar. Essa “terminologia”, quiçá, esclarece esse pensar em si, mas não o deixa mais se referir a outro pensar e a teses em outro pensar. Cada filosofia deve ser concebida a partir da sua própria terminologia, e por isso mesmo suas enunciações não podem ser ditas para fora dela, portanto não mais no sentido usual como “diálogo” entre os filósofos. Os pensadores se isolam na absoluta solidão do seu mundo conceptual cada vez seu. Todas as categorias como essência, substância, ser, verdade, pensar, fundo e fundamento, causa, matéria, forma, assumem diferentes significações, sim até conteúdos contrários, na medida em que se atêm a diferentes círculos de pensamento”. Diante disso, não se pode mais falar na filosofia de “Introdução geral da filosofia”, já que cada filosofia por e para si mesma é introdução, o adentrar-se no filosofar. Esse resumo da exposição, muito mais detalhada, das características da filosofia como filosofar, feita por Rombach, pode nos induzir a tirarmos conclusões precipitadas. Falemos, pois, brevemente apenas sobre uma dessas conclusões equivocadas que mais ocorrem, desviando-nos de um questionamento adequado da questão. Evitando uma conclusão apressada A acima mencionada conclusão precipitada em questão consiste em tirarmos de tudo quanto dissemos até aqui, caracterizando o modo de ser próprio da filosofia como filosofar, a conclusão de que tal estudar filosofia é um puro fechamento para dentro do solipsismo subjetivo-existencialista. Admitindo a possibilidade de tal conclusão, sem entrar no questionamento das pressuposições ali pré-jacentes não analisadas, queremos aqui apenas apontar um item que poderia insinuar uma conclusão diferente, conclusão que, longe de ser uma solução, é antes uma questão mais exigente. O termo hermético, como já foi mencionado bem no início, conota fechamento, trancamento completo para dentro de si. Nos supermercados encontramos e compramos à beça produtos alimentícios embalados e fechados em sacos de plástico resistente, de cujo interior se retirou de todo o ar, de modo que os alimentos estão totalmente blindados contra o contato com o ar exterior. É esse tipo de fechamento que nos vem à mente de imediato, quando ouvimos ou lemos a palavra “hermético”. Assim, para nós hoje, o adjetivo “hermético” se refere de imediato ao fechamento, é relativo ao fato de se estar trancado por e para dentro. No entanto, “hermético” contém o nome Hermes, um dos deuses principais e mais influentes da mitologia grega. O que tem deus Hermes a ver com trancamento por e para dentro, com o fechado hermeticamente? Talvez, segundo Aurélio, porque “hermético” significa também “encimado por um Hermes”. Hermes ou herma é um bloco quadriláteroquadrangular de pedra, cuja parte de cima é um busto esculpido de Hermes, em que o peito, as costas e os ombros são cortados por planos verticais, formando a parte inferior do bloco a modo de um pedestal quadrangular; ou é um meio-busto esculpido ou estátua de Hermes aplicada a um plinto. Essa peça quadrilátero quadrangular de pedra, quando era usada para tampar um espaço aberto, o fechava de tal modo que de fora, ali nada mais entrava. Daí, num sentido figurado, algo cuja compreensão nos é fechada, inacessível ou muito difícil e obscura, é qualificado de hermético. Mas a referência do “hermético” ao fechamento pode ter uma acepção mais profunda do que o simples fato de uma abertura ser fechada com um plinto encimado por um busto de Hermes. É o que se insinua na ligação que a palavra “hermética” tem para com “ciência” oculta de mutação e transmutação das forças elementares das profundezas da matéria, da alquimia. “Hermético” agora se refere diretamente ao deus Hermes, enquanto relacionado com as forças ocultas das profundezas obscuras da matéria. A referência da palavra “hermético” ao fechamento não poderia vir da sua direta referência ao deus Hermes? Deus 8 HARADA, Hermógenes. Estudar filosofia? Hermes, no seu modo de ser, nas suas propriedades, não nos poderia levar a uma interpretação da filosofia como filosofar, e que na exposição acima do item “O hermético da filosofia” parecia se caracterizar como hermeticamente fechada em, por e para dentro do solipsismo subjetivo-existencialista? A filosofia como filosofar está fechada com o deus Hermes 5 Desmitologizar aqui não significa desmascarar o mito de suas interpretações defasadas e supersticiosas, não objetivas factuais, mas sim desbloquear o mito de amarras de perspectivas a ele inadequadas, para deixá-lo ser ele mesmo na sua liberdade própria. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.9-11, jul./dez. 2008 9 artigos Fechar em português pode significar trancar, cerrar, tapar a abertura etc. Mas pode também em tudo isso significar concluir, levar ao cabo, consumar, perfazer. Nesse sentido é que dizemos: fechei um negócio, fechei um contrato. E no Brasil a expressão fechar com pode significar estar a favor ou ao lado de; concordar com. Não é assim que na mesma direção vai também a acepção da expressão: estou contigo e não abro? Fechamento hermético da filosofia como filosofar não poderia significar então que a filosofia esteja declarando a deus Hermes: Estou contigo e não abro? Ou melhor, que a filosofia no seu filosofar não é outra coisa do que ser simplesmente, totalmente inserção no “estar na sua” da divindade de Hermes, no entusiasmo de Hermes? Em que consiste o estar “na sua”, no próprio divino de Hermes, no seu entusiasmo? Hermes é deus, uma divindade. E deus na sua divindade é representação da excelência do ser, concentrada num ente, i. é, em um “em sendo”. Essa concentração na “mitologia” é entendida muitas vezes como personificação, subjetivação ou hipostatização, gramaticalmente substantivação do adjetivo ou verbo, de tal sorte que o Hermes deus se transforma num sujeito-pessoa, num substantivo que indica um algo substancial, um quê ocorrente em si, que por sua vez possui qualidades ocorrentes e acrescentadas a ele como seus atributos e ações. Se “des-mitologizamos”5 o mito dos deuses gregos dessa personificação e os consideramos na dinâmica do seu ser próprio como divindade, como o divino, então “deus” ou “divindade” como excelência do ser, concentrada num ente, i. é, em um “em sendo”, não deve mais ser entendida como fixação num ponto como centro, mas como onipresença cujo centro está cada vez em toda parte, sem ocupar lugar, mas cada vez em cada momento de todo o “em sendo”, como plenitude, como alegria, como vitalidade de ser. O quê, aqui qualificado como concentração do ser, não é um quê-ponto, um núcleo subjacente a propriedades e atuações, mas vigência qual difusão a modo de claridade ou afinação. A modo de claridade ou afinação é tal que instante, momento, vigência ali é cada vez instante do instante, momento do momento, vigência da vigência em crescimento e decrescimento da densidade de liberação da auto-identidade de cada “em sendo”. Esse modo de ser da vigência, do momento, do instante “difusão” no crescimento e decrescimento da liberação da autoidentidade é insinuado pelas expressões afins entre si como: o próprio, na sua, cada vez seu e expressa a excelência de ser que personificada e qualificada em suas diversificadas aparições recebe o nome de deus, deuses ou o divino. Hermes, diferindo do seu irmão Apolo, que é deus do sol meridiano, deus da luz do dia, é deus da luz sombreada do lusco-fusco do despertar da manhã; e é deus da luz sombria da noite, das trevas incandescentes. O seu elemento, a sua ambiência familiar, o seu “em casa” é vigência das forças ocultas das profundezas do mistério do ser, do abismo insondável e inesgotável das possibilidades de ser. Ele é assim o mensageiro, o arauto dos enigmas dos deuses, é condutor das almas para dentro do desconhecido, inesperado e inaudito do mistério da origem e do seu toque. O seu reinado começa a se sentir em casa lá onde todas as nossas possibilidades do ser e pensar aparentemente estabelecidas sobre certeza do saber, exatidão do cálculo e controle, sobre firmeza do querer do poder, colocadas, padronizadas e classificadas, nas suas posições e pressuposições afundam nas nuvens do não saber, do não poder, do não ser, impulsionadas na paixão da busca hermética do sentido do ser. O fechamento hermético! O que, à primeira vista, sob a luz gélida e neutra e ao mesmo tempo tórrida e causticante da interpelação produtiva do auto-asseguramento de um cientificismo objetivante exacerbado, aparece como fechamento em, por e para dentro do solipsismo subjetivo-existencialista da filosofia como filosofar, não seria antes tentação e tentativa de uma boa aventurança, na busca da disposição, da prontidão atenta da espera do inesperado, trabalhada, renovada, buscada tenazmente sempre de novo pela existência “acadêmica” que de todo fecha com a paixão de Hermes e não abre? Mas, e a filosofia institucionalizada no ensino e na aprendizagem escolar, com todas as suas exigências formais e de conteúdo, monitoradas pela sociedade acadêmico-científica? Nelas e através delas, assumir o empenho e desempenho de nos exercitarmos em infindas tentativas de resolver os problemas e as dificuldades provenientes de suas determinadas posições e pressuposições; e nessas tentativas aguçar, ampliar, questionar a precisão e a cordialidade da busca na mira da única questão do fundo de todas as pressuposições, para dentro do abismo hermético de uma espera, inteiramente nova e jovial, da possibilidade do ser, isso seja talvez a tarefa hodierna do estudo da filosofia. Conclusão O estudo? A filosofia? Filosofia é filosofar? O que vale, porém, em tudo isso, é não esquecer o aceno da recordação, a mais necessária dos tempos de urgência: “Pois odeia O deus sensato Crescimento intempestivo” (HÖLDERLIN, Do motivo dos Titãs. IV, 218)6. 6 Cf. HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica metafísica. Apresentação e tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987. p.227. 10 HARADA, Hermógenes. Estudar filosofia? Referências HEIDEGGER, Martin. Os conceitos fundamentais da metafísica metafísica: mundo – finitude – solidão. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica metafísica. Apresentação e tradução de: Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987. griechisch: griechisch-deustsch. MENGE, Hermann. Langenscheidts grosswörterbuch griechisch Berlin: Langenscheidt, 1970. v.1. artigos ROMBACK, Heinrich. Substanz, system, struktur struktur: die ontology des Funkionalismus und der philosophische Hintergrund der modern Wissenschaft. Freiburg: K. Albert, 1965. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.11-11, jul./dez. 2008 11 Filosofia e PPensamento ensamento Philosophy and Thought Vagner Sassi* Resumo Partindo do desafio lançado pelos membros da Escola de Kyoto, a saber, estabelecer as condições de possibilidade de um diálogo entre o pensamento tradicional japonês e a filosofia ocidental, o presente artigo, atento às considerações de Martin Heidegger acerca da diferença entre filosofia e pensamento, aponta para a necessidade de se ultrapassar a abordagem metafísico-categorial da linguagem em favor de um falar originário e de uma escuta não-objetivante. Palavras-chave alavras-chave: fenomenologia; superação da metafísica; linguagem; pensamento originário. Abstract Starting from the challenge issued by the Kyoto School, which was, to establish the conditions to allow a dialog between Japanese traditional thinking and western philosophy, this article, taking into account the considerations of Martin Heidegger about the differences between philosophy and thought, points to the necessity to go beyond the metaphysical-categorical language in favor of a language originating from a non-objective listening. Key W ords Words ords: phenomenology; overcoming metaphysics; language; original thinking. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.13-25, jul./dez. 2008 artigos * Mestre e doutor em filosofia pela PUC-RS e licenciado em pedagogia pela PUC-PR, é professor na FAE Centro Universitário Franciscano, lecionando as disciplinas de história da filosofia antiga, ética e ética e responsabilidade social. 13 O presente texto procura desenvolver algumas observações acerca da distinção entre filosofia e pensamento a partir de um diálogo entre Ocidente e Oriente. Sem qualquer pretensão sistemática, ele segue a modo dos treinos que perfazem uma arte marcial japonesa e igualmente descarta qualquer pretensão propriamente erudita. Em sua limitação, pouco ou nada sabe, de modo que não tem muito a acrescentar. Isso porque o que move o presente texto é mais a jovialidade da experiência do que a vontade de saber. Se ele afirma algo de algo, o faz atento a uma antiga palavra de que “pouco saber, mas muita jovialidade é dada a mortais” (HÖLDERLIN). De fato, a curiosidade de explicações jamais conduz a uma questão de pensamento. Cumpre, portanto, permanecer na questão e assim abrir-se à possibilidade de um diálogo. Sabe-se que a Escola de Kyoto, fundada por Kitaro Nishida (1879-1945) em fins do século XIX, marca o começo da “filosofia japonesa”, compreendida como diálogo entre o pensamento tradicional japonês e a filosofia ocidental. Cumpre aqui, porém, dar um passo atrás no sentido de questionar a possibilidade tanto de uma filosofia japonesa como de uma relação entre filosofia e pensamento. Tal passo é importante, uma vez que tanto no senso comum como em meios ditos científicos vai-se muito depressa ao se falar de uma “filosofia japonesa”, expressão essa que dá muito que pensar. A bem da verdade, o próprio conceito do que seja propriamente filosofia se presta hoje a não pouca discussão. Nos meios acadêmicos, a filosofia é geralmente tida como um valor, a saber, uma manifestação do espírito e um produto cultural. Com isso se quer dizer que ela já está aí como algo, do qual alguém pode se servir, se apropriar e, quiçá, aprender e ensinar. Nesse sentido não há problema algum em se falar de uma “filosofia japonesa”, nem de uma culinária, literatura ou arquitetura japonesas. Contudo, uma tal abordagem da filosofia enquanto produto à disposição em um mercado cultural de consumo desvirtua a questão pelo que seja a filosofia, uma vez que, ainda que útil, nada tem de filosófica. Seu único interesse é o da aquisição, controle e manipulação, em razão do que ela objetifica e instrumentaliza. Em outras palavras, já não se move no âmbito próprio da filosofia, mas sempre fora e em torno dela. Como, então, é possível entrar na própria filosofia a fim de compreendê-la a partir dela mesma? Ao discorrer sobre Que é isto – a filosofia?, Martin Heidegger toma disto que se tem imediatamente diante de si quando se pronuncia a própria palavra filosofia. Se escutarmos a palavra filosofia em sua origem, então ela soa philosophía. A palavra filosofia fala agora através do grego. A palavra grega é, enquanto palavra grega, um caminho. A palavra grega philosophía é um caminho sobre o qual nós estamos a caminho (HEIDEGGER, 1979b, p.14). A própria filosofia carrega consigo os ocidentais que a partir dela falam, a saber, a existência grega enquanto ocidental-européia. Por essa razão, 14 SASSI, Vagner. Filosofia e pensamento Isto pressuposto, levanta-se uma primeira questão: se a filosofia, como a própria palavra grega o diz, determina a linha-mestra da história ocidental-européia, a saber, de uma determinada experiência do mundo e do ser, e se o Japão como tal surgiu de uma determinada experiência de pensamento radicalmente distinta da ocidental-européia, é possível se falar propriamente de uma “filosofia japonesa”? Mantendo essa questão, cumpre, todavia, levantar uma outra, que decorre dessa primeira, sem, contudo, ser menos pertinente à presente investigação. Isso porque “não apenas aquilo que está em questão, a filosofia, é grego em sua origem, mas também a maneira como perguntamos, e mesmo a nossa maneira atual de questionar, ainda é grega” (HEIDEGGER, 1979b, p.16). Esse modo de questionar e de pensar que foi desenvolvido por Sócrates, Platão e Aristóteles pergunta pelo que algo é, como a questão da essência, a saber, uma pergunta metafísica. De fato, a metafísica como experiência do pensamento que deve, para investigar o ser, ir além do ente, aponta para o traço característico da filosofia desde os gregos até a modernidade. Entre seus aspectos constitutivos destacam-se dois, a saber, a apreensão conceitual (lógica, racional) do Ser e a cisão do real em mundo sensível e supra-sensível. Só que a metafísica não é a única experiência do pensamento e, quiçá, nem a originária. Cumpre reconhecer que, radicalmente diferentes da experiência metafísica, existem outras experiências do pensamento. Nelas, a unidade é tomada como totalidade, impossível de ser representada e, por conseguinte, apreendida pelos conceitos e categorias da metafísica. Tais são, por exemplo, o mito, a mística, a poesia, a arte e o próprio pensamento. Nisso, levanta-se uma segunda questão, a saber, se a filosofia é essencialmente metafísica e se a aparelhagem (instrumentos, linguagem etc.) da metafísica se mostra incapaz de apreender outras experiências do pensamento na sua diferença, isto é, sem reduzi-las a uma mera referência de si própria, é possível falar propriamente de uma relação entre filosofia e as demais experiências do pensamento não-metafísicas? Essas duas questões devem acompanhar a presente investigação. Elas estão no fundamento do que chamamos Escola de Kyoto, a saber, a primeira escola de filosofia constituída no Japão, porque no início de um diálogo que se procurou estabelecer entre Oriente (pensamento tradicional japonês) e Ocidente (filosofia). O fio condutor que aqui se apresenta é a recepção do pensamento de Martin Heidegger pelos membros da Escola de Kyoto. É importante atentar aqui para o sentido dessa recepção, que não se compreende como síntese, isto é, como um movimento uniformizador destinado a diminuir, e quiçá eliminar as diferenças, mas sim como encontro que possibilita um diálogo. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.15-25, jul./dez. 2008 15 artigos a frase: a filosofia é grega em sua essência, não diz outra coisa que: o Ocidente e a Europa, e somente eles, são, na marcha mais íntima de sua história, originariamente filosóficos. E isso é atestado pelo surto e domínio das ciências (HEIDEGGER, 1979b, p.15). No início do século XX, vários professores da Universidade de Kyoto freqüentaram as preleções de Heidegger, dentre os quais podemos destacar Kuki Shuzo (1888-1941) e Hajime Tanabe (1885-1962). Esse diálogo foi mantido também posteriormente em encontros com Keiji Nishitani (1900-1990), que ouviu preleções sobre Nietzsche, Tezuka Tomio (1903-1983), professor de literatura alemã em Tókio, e Kôichi Tsujimura. Desde as apostilas do curso Expressão e manifestação, ministrado em 1920, todos os textos foram levados para a Universidade de Kyoto e amplamente discutidos. Assim o foi com a conferência O que é Metafísica?, ministrada em 1929 e traduzida para o japonês já no ano seguinte. Enquanto esta foi prontamente compreendida no Japão, já na Europa ela prestou-se a grandes equívocos de interpretação niilista. Contudo, esse interesse dos professores japoneses encontrou também reciprocidade. Por sua vez, Heidegger era leitor de Lao-Tsé e dos trabalhos de Daisetz Teitaro Suzuki sobre o zen-budismo. Nos anos de 1945-46, ele tentou traduzir partes de Tao Te King e na sua conferência A essência da linguagem, pronunciada em 1957, faz diversas referências ao pensamento japonês. Escreve Heidegger: A palavra-guia do pensamento poético de Lao-Tsé é tao e significa propriamente caminho. Porque se costuma representar sem dificuldade o caminho, atribuindolhe o sentido exterior de trecho de ligação entre dois lugares, muitos consideram nossa palavra caminho inadequada para nomear o que diz tao. Prefere-se traduzir tao por razão, espírito, raison, sentido, logos (HEIDEGGER, 2003, p.155). E continua: O tao poderia ser, no entanto, o caminho que tudo en-caminha, aquele caminho somente a partir do qual se pode pensar o que essência, razão, espírito, sentido, logos dizem propriamente, ou seja, a partir do seu vigor próprio. Talvez na palavra caminho, tao, se resguarde o mistério de todos os mistérios da saga pensante do dizer, ao menos quando deixamos esses nomes retornarem para o que neles se mantém impronunciado (HEIDEGGER, 2003, p.156). Assim, o pensamento japonês aparece afinado com a busca zur Sache selbst da fenomenologia. Essa afinação está na origem da recíproca recepção que aparece no diálogo entre Ocidente e Oriente empreendido pela fenomenologia no Ocidente e pela Escola de Kyoto no Oriente. Origem que contém em si um caminho de encontro, semelhante ao que se esboça na seguinte narrativa zen-budista. Pintada pela primeira vez na China por um aluno do mestre Lin-chi (em japonês: Rinzai, morto em 866) no tempo de Sung, a narrativa diz do caminho percorrido por um praticante do zen que procura e encontra, para então viver de acordo com sua verdadeira natureza. Esse itinerário aparece na estória de um vaqueiro que sai a procura de um touro que se perdeu (e do qual se perdeu) e o encontra. Embora existam diversas versões, juntamente com respectivas interpretações e comentários, podemos, resumidamente, identificar os seguintes passos: procurando o touro, encontrando as pegadas, primeiro vislumbre do touro, agarrando o touro, 16 SASSI, Vagner. Filosofia e pensamento domando o touro, indo para casa montado no touro, esquecendo o touro, esquecendo a si mesmo, retornando à fonte, entrando no mercado para ajudar os outros. Em vista da presente investigação, cumpre abordar brevemente aqui apenas alguns desses passos. Para tanto, recorre-se à versão do mestre zen chinês K‘uo-an Chihyuan, que teve seus versos traduzidos por D. T. Suzuki (In: SCOTT, 2000, p.153ss). Sozinho na imensidão, perdido na selva, o rapaz está buscando, buscando! As águas transbordantes, as montanhas longínquas e o caminho sem fim; Exausto e em desespero, ele não sabe para onde ir, Ele só escuta as cigarras vespertinas cantando nas árvores. De modo análogo, todos já fizemos a experiência de sair à procura de algo que julgamos haver perdido. Tal perda, contudo, não significa propriamente privação. Se estivéssemos completamente alienados, não teríamos sequer por que (motivos) nem por onde (vestígios) começar a procurar. Isso porque a possibilidade da busca está justamente em que de antemão já se deu um encontro, e este perdura como possibilidade. O caminho sempre já nos é dado. Isso, contudo, não nos isenta de ter que percorrêlo. O caminho se faz ao caminhar. Ainda que o touro nunca se separe do vaqueiro, isso não impede que este se separe daquele e, nesse extravio, o coloque como objeto de sua busca. Um objeto atrás do qual ele deve sair à procura como a um perdido e o encontrar como um achado. Um objeto que precisa ser conquistado. Com a energia deste ser total, o rapaz, finalmente, segurou o touro; Porém, tanto sua vontade é selvagem quanto ingovernável é o seu poder! Às vezes, anda empertigado num platô. Que vemos? Perde-se novamente na bruma impenetrável do desfiladeiro da montanha. Montado no animal, ele finalmente está de volta para casa. Onde o touro não está mais; o homem está sentado sozinho, serenamente. Apesar do sol vermelho alto no céu, ele ainda está calmo, sonhando, Sob um telhado coberto de palha repousam, imóveis, o chicote e a corda. Uma vez em casa, não há mais o que procurar. Assim, o touro desaparece enquanto objeto de uma busca, e o vaqueiro se vê sozinho. Tal solidão, contudo, não significa Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.17-25, jul./dez. 2008 17 artigos Dá-se um longo percurso onde, depois de seguidas as pegadas, o vaqueiro agarra e domina o touro, a saber, o objeto de sua busca. Toda conquista requer força e energia haja vista que ambos, touro e vaqueiro, precisam ser domados. É difícil manter o touro sob controle quando este sente saudades do campo selvagem. Ao vaqueiro, é difícil manter-se sob controle, quando desejos e dúvidas o dividem. Por isso a necessidade da ciência e do exercício, bem como do empenho e da disciplina que perduram até o momento em que o objeto da busca é conquistado, a saber, dominado e controlado. Após travar dura luta, o vaqueiro vence e, de posse do touro, volta para casa. Ele colhe, por assim dizer, o resultado de um aprendizado. Saber é poder! Agora sim o vaqueiro sabe! propriamente ausência. O touro está presente, bem como o chicote e a corda. Essa presença, contudo, dá-se não mais a modo de objetificação. O próprio vaqueiro não mais se vê como sujeito-agente de uma busca, uma entidade separada e existente em si. Tudo está vazio – o chicote, a corda, o homem e o touro: Quem poderá pesquisar a vastidão do universo? Sobre a fornalha ardendo em chamas, nem um floco de neve pode cair: Quando este estado de coisas é obtido, manifesto é o espírito do antigo mestre. Onde toda distinção é posta de lado e vige a serenidade (Gelassenheit), aí tudo é. Enquanto transformamos tudo e a nós mesmos em objetos de busca, amor, crença ou uso, nunca vemos a nós mesmos e às coisas, mas tão-somente representações para nós. Com ciência e filosofia não há bois, nem homens, nem coisa alguma. Por isso o convite da fenomenologia de Heidegger de retorno zur Sache selbst. Retornar às coisas elas mesmas e deixá-las ser é o modo de quem está em casa. Quando o vaqueiro está em casa, o boi não está mais. Ele próprio não está mais. “Tudo está vazio – o chicote, a corda, o homem e o touro”. E nesse vazio é que eles aparecem como são, é que eles se mostram a si mesmos de imediato e não mais mediatizados por algo que não eles, isto é, representados. Com o peito nu e os pés descalços, chega ao mercado; Todo sujo de lama e cinza, com que alegria sorri! Não precisa dos poderes milagrosos dos deuses, Tudo em que ele toca... Vejam! As árvores mortas estão florindo. O vaqueiro está em toda parte em casa. Uno com todas as coisas, sereno e impassível, ele nada sabe e nada pode. O peito nu e os pés descalços dizem do vazio perfeito. E nós, filhos da ciência e da filosofia, que tanto sabemos e podemos, quando estamos em casa? Onde ao homem moderno é dado, hoje, morar? Escreve Heidegger: Ao perguntarmos pela morada do homem moderno em nossa época, perguntamos: Há ainda um brilhar da natureza? Há ainda um aparecer? O brilhar da natureza está obstruído e o seu aparecer lhe é vedado – enquanto vivemos numa época em que o que é presente só é presente na forma do que a maquinação humana produz e encomenda. O homem de hoje pensa que se faz a si mesmo e às coisas à sua volta (HEIDEGGER, 2000, p.716). E continua: É assim que acontece: o homem moderno não pode ver e muito menos perguntar onde mora; se lhe retrai aquilo a que está exposto; mais ainda: nem lhe é possível fazer a experiência desse retraimento. Ele não pode pensar nem perguntar se talvez esse retraimento da paragem da sua morada não efetua algo em que a ele, ao ser humano, algo superior está retido – essa retenção não sendo um nada vazio, mas a única realidade de todo fazer e empreender pretensamente realista (HEIDEGGER, 2000, p.717). 18 SASSI, Vagner. Filosofia e pensamento De fato, todo agir e não agir na modernidade ocidental-européia é caracterizado por uma relação fundamentalmente metafísico-objetivante do homem consigo mesmo e com o todo do mundo. Essa determinada experiência do mundo e do ser, que se estende desde os gregos (filosofia) até a modernidade (ciência e técnica) vige, hoje, por toda parte, atingindo não somente a Europa e os Estados Unidos, mas também a China e o Japão. Mas, uma vez afirmado que o Japão como tal surgiu de uma determinada experiência do pensamento radicalmente distinta da ocidental-européia, não se incorre agora numa contradição? Necessariamente não, porque nada impede que, não obstante sua origem, o mundo japonês tenha sido aprisionado pela objetividade metafísica e sua superfície ter se tornado igualmente européia e americana. Junta-se a isso a impressão, não isenta de um certo espanto, de que, nos dias de hoje, a maquinação humana mediante o desenvolvimento científico e tecnológico tenha atingido seu ápice com maior rapidez justamente no Japão moderno. E que o auge das possibilidades do Ocidente se dê propriamente em terras orientais, isso não deixa de ser algo paradoxal. Com o intuito de apreender o caráter paradoxal dessa imagem, a saber, de um Japão moderno à imagem e semelhança da Europa, e deixar aparecer o contraste deste com uma abordagem livre da objetividade metafísica, cumpre prestar ouvidos a um texto publicado por Fernando Pessoa em 1914, na revista O Raio, e que traz como título Crônica Decorativa (PESSOA, 1986, vol. II. Prosa). Antes de se abordar propriamente o texto, cumpre atentar para o modo como nós próprios nos colocamos ao fazê-lo. Nesse sentido, se partimos da consideração de que Fernando Pessoa é poeta, isso implica que somente quando lido poeticamente é que seu pensamento se torna acessível. Porque singular, a existência poética é radicalmente diversa da existência científica ou filosófica. O que significa propriamente esse ver, para o qual não basta não ser cego? O que vemos nós que não sejam objetos ou idéias? Nem filósofo nem cientista, quem é, então, o poeta? Nem objeto de pesquisa nem produto abstrato, o que é, então, a poesia? Como havemos nós de penetrar, pois, no espaço que é o próprio da poesia e da arte? Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.19-25, jul./dez. 2008 19 artigos Não basta abrir a janela Para ver os campos e o rio. Não é bastante não ser cego Para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma. Com filosofia não há árvores: há idéias apenas. Há só cada um de nós, como uma cave. Há só uma janela fechada, e todo mundo lá fora; E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse, Que nunca é o que se vê quando se abre a janela (PESSOA, 1978, p.169). Mas só tal como o próprio poeta se torna senhor e servo da poesia, a saber, por uma luta, é que ganhamos, para além do poema existente, o espaço da poesia. A luta pela poesia no poema é a luta contra nós próprios, na medida em que, na trivialidade quotidiana do ser-aí, estamos expulsos da poesia, estamos sentados na praia cegos, coxos e surdos e não vemos nem ouvimos nem sentimos a ondulação do mar (HEIDEGGER, 1979a, p.30). A experiência de ver, ouvir e sentir a ondulação do mar só nos é dada quando nos decidimos a sair da praia, deixar de ficar somente à margem, e entrar no mar. De modo análogo, o texto do poeta Fernando Pessoa só pode ser apreendido se o lemos a partir da disposição que lhe é própria, a saber, o seu humor. Ele não é um tratado filosófico mas, antes, um simples poema. Ouçamos, pois, o texto. A circunstância humana de eu ter amigos fez com que me acontecesse vir a conhecer o Dr. Boro, professor da Universidade de Tóquio. Surpreendeu-me a realidade quase evidente da sua presença. Nunca supus que um professor da Universidade de Tóquio fosse uma criatura, ou sequer cousa, real. E continua: O Dr. Boro – sinto que me custa doutorá-lo – pareceu-me escandalosamente humano e parecido com gente. Trajava à européia e, como qualquer mero professor existente da Universidade de Lisboa, tinha o casaco por escovar. Ainda assim, por delicadeza, dei-me por ciente, durante duas horas, da sua presença próxima. Ao receber a visita de um professor japonês, o poeta se surpreende. Mas que surpresa pode haver num evento tão corriqueiro como a visita de um professor? Sua surpresa tem origem no estranhamento quando da constatação da realidade quase evidente da presença do japonês. Que um japonês seja algo, uma coisa, gente, é motivo de estranhamento para o poeta. Isso não porque japoneses não tenham existência, mas porque a exposição exacerbada da realidade, a saber, o privilégio de seu aparecimento enquanto presença coisal, física e real, é uma modalidade da existência típica do Ocidente, nunca do Oriente. A existência japonesa privilegia a exposição velada e o retraimento, o que é atestado tanto nas artes como nos costumes orientais. Mas o professor Boro é sólido, tem sombra – várias vezes fiz com que o meu olhar o verificasse – e além de falar e falar inglês, coloca idéias e noções compreensíveis dentro das suas palavras. A circunstância de que as suas idéias não comportam nem novidade nem relevo apenas o aproxima dos professores europeus, pavorosamente europeus, que conheço. E continua: Além disso, o professor Boro tem movimento, desloca-se, não sei como, de um lado para o outro, o que, feito perante quem sempre teve o Japão por uma nação de quadro, parada e apenas real sobre transparência de louça, é requintadamente ordinário e desiludidor. 20 SASSI, Vagner. Filosofia e pensamento Fica patente a decepção de Fernando Pessoa com o alto grau de europeização do Prof. Boro e com “a construção de um Japão à imagem e semelhança da Europa, desta triste Europa tão excessivamente real”. Mas, não seriam essa decepção e estranhamento frutos de um preconceito por parte do poeta? Não estaria ele preso a uma idéia por demais romântica do espírito japonês e, a partir da mesma, julgando? É possível que não. Pois, se atentarmos, como exposto anteriormente, que a fala do poeta é poética, isto é, diferente de uma fala judicativa e crítica, o texto de Fernando Pessoa não faz julgamento algum. Antes ele fala de uma admiração e de uma surpresa! Suas considerações são artísticas, não antropológicas ou sociológicas. O texto refere-se à existência mesma e não a uma avaliação sobre ela. Com seu olhar de artista, o poeta admira no Dr. Boro como a não-existência própria do pensamento e da existência japonesa sucumbe perante a existência evidente e metafísica-objetificante do Ocidente. Globalizado, todo o mundo é então uniformizado e padronizado. Elimina-se, assim, qualquer possibilidade de se estabelecer diferenças ou mesmo distâncias. O resto da minha vida, doravante, será escrupulosamente dedicado a esquecer o Prof. Boro e que ele – impronunciável absurdo! – se sentou na cadeira que está agora, na realidade de madeira defronte de mim. Um japonês verdadeiro aqui, a falar comigo, a dizer-me cousas que nem mesmo eram falsas ou contraditórias: não! Ele chama-se José e é de Lisboa. Falo simbolicamente, é claro. Porque ele pode chamar-se Macwhisky e ser de Inverness. O que ele não era decerto era japonês, real, e possível visitante de Lisboa. Isso nunca. Se não no Dr. Boro, que solapa a diferença, onde podemos encontrar o próprio da existência japonesa? O que, para nós ocidentais, há de real no Japão? Escreve o poeta: O acesso ao Japão e o pensamento japonês implica, pois, na guarda da distância e da diferença, na consideração do Japão como de algo que está sempre longe de nós. Mas essa distância, bem como essa diferença, não se refere aqui a conceitos espaçotemporais. Não se trata de geografia ou de história. O acesso ao lugar e o modo de ser propriamente japonês nunca se dá a modo metafísico, a saber, em termos de ciência e de filosofia. Mas, então, como havemos de fazer se desde o seu início nos compreendemos como filosofia e ciência? E se é assim, “que não se pode lá ir, nem eles podem vir até nós”, é possível falar propriamente de um encontro entre Ocidente e Oriente? Tal questão diz justamente da aporia em que reside o “como” de todo encontro radical, isto é, que desce às raízes das próprias possibilidades de pensar um encontro do Ocidente com o pensamento japonês, o que é justamente a temática e o interesse da presente investigação. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.21-25, jul./dez. 2008 21 artigos A primeira cousa real que há no Japão é o facto de ele estar sempre longe de nós, estejamos nós onde estivermos. Não se pode lá ir, nem eles podem vir até nós. Concedo, se me forçarem a isso, que existam um Tóquio e um Iokoama. Mas isso não é no Japão, é apenas no Extremo Oriente. Que havemos, pois, de fazer? Antes ainda: há o que se fazer? Não seria mais sensato, então, ao invés de nos precipitarmos em logo fazer algo atropelando-nos a nós mesmos, nos dispormos a nada fazer? Mas há de se compreender esse “nada” de modo a não cairmos nem num niilismo absurdo nem numa passividade estéril, ambos ressentidos e incapazes de qualquer criatividade? Em outras palavras: em que consiste a virtude do nada fazer? Não consiste ela justamente na capacidade de simplesmente esperar? Mas esperar o quê, se nada se sabe? Esperar o inesperado! Porque assim diz, ainda na aurora do Ocidente, o pensador Heráclito de Éfeso: “Se não se espera, não se encontra o inesperado, sendo sem caminho de encontro nem vias de acesso” (OS PENSADORES ORIGINÁRIOS, 1991, Fragmento 18, p.63). Talvez a meditação deste fragmento de Heráclito nos possa orientar. Isso porque ele fala de uma espera paciente, quase que diríamos: oriental. Uma espera que, já de início, logra nossa ânsia ocidental de avanço apressado e controle, de progresso e desenvolvimento. Uma espera que nada faz porque nada sabe de antemão, mas tãosomente concentra-se em escutar, ponderar, retornar zur Sache selbst! Essa atitude de esperar o inesperado é a marca característica do pensamento de Martin Heidegger, haja visto que ele se interessou pelo Japão sem nunca perder a idéia da distância do Japão. Assim, é nítida a evidência de que “o Japão está sempre longe de nós, estejamos nós onde estivermos” e por isso mesmo “sem caminho de encontro nem vias de acesso”. Essa distância originária, contudo, permanece velada ao Ocidente determinado pela ciência e pela técnica. Todo distanciamento no tempo e todo afastamento no espaço estão encolhendo. O homem está superando as longitudes mais afastadas no menos espaço de tempo. E, no entanto, a supressão apressada de todo distanciamento não lhe traz proximidade. O que acontece quando, na supressão dos grandes distanciamentos, tudo se torna igualmente próximo igualmente distante? O que é esta igualdade em que tudo não fica nem distante nem próximo, como se fosse sem distância? (HEIDEGGER, 2001, p.143) Essa constatação de que tudo está recolhido à monotonia e uniformidade do que não tem distância, Fernando Pessoa já a havia percebido quando na visita do Prof. Boro. Quando tudo se dispõe em intervalos calculados e justamente em virtude da calculação ilimitada de tudo, a falta de distância se espraia e isso sob a forma de uma recusa da proximidade de uma vizinhança dos campos do mundo. Na falta de distância, tudo se torna in-diferente em conseqüência da vontade de asseguramento e apoderamento uniforme e calculador da totalidade da terra. Todas as referências entre todas as coisas se convertem na ausência calculável de distância. Isso constitui a desertificação do en-contro face a face dos quatro campos de mundo, a recusa da proximidade (HEIDEGGER, 2003, p.168). Nos dias de hoje, a falta de distância se espraia e faz com que não só o Prof. Boro, mas todo o Japão se torne por demais próximo. Não se guardando a diferença, reina a 22 SASSI, Vagner. Filosofia e pensamento indiferença que aniquila qualquer possibilidade de diálogo e que desertifica qualquer possibilidade de um encontro face a face. Nesse sentido, Heidegger é o pensador ocidental que toma a sério a advertência de Nietzsche no fim da metafísica: “O deserto cresce. Mas ai daquele que semeia desertos”. A filosofia começou na Grécia e, embora não tenha começado como metafísica, se configurou como metafísica, esquecida de sua origem. Assim, a luz que luziu na origem é ocultada no esquecimento do Ser. Esquecida da sua origem, a filosofia caminha para seu fim enquanto metafísica na teoria nietzscheana da vontade de poder: o domínio da técnica mediante a objetivação científica do mundo. Técnica é vontade de asseguramento e apoderamento uniforme e calculador da totalidade da terra que tudo objetiva. Assim, para nossos hábitos representacionais, circunstanciados em toda parte pelo cálculo técnico-científico, o objeto do conhecimento pertence ao método. O método científico segue a degradação e aberração mais extrema do que seja um caminho (HEIDEGGER, 2003, p.154). Nesse contexto, como, então, há ainda de se falar propriamente em caminho? Dando um passo atrás, zur Sache selbst! É aí que se apresenta a possibilidade de um pensamento que não é mais metafísico, mas sim um pensar e falar não objetivante. Escreve Heidegger: Enquanto co-respondência, o pensamento do ser é uma causa muito errante e assim muito indigente. O pensamento talvez seja um caminho inevitável, que não pretende elevar-se a uma via de salvação nem trazer uma nova sabedoria. O caminho é, quanto muito, um caminho pelo campo, que não apenas fala de renúncia mas que já renunciou à pretensão de uma doutrina autorizada ou de uma produção cultural válida ou ainda à pretensão de um grande feito do espírito (HEIDEGGER, 2001, p.162). E continua: Pensamento, caminho e caminho do pensamento se mostram necessariamente apenas num falar não objetivante. Nisso a importância de se colocar a questão pela linguagem. O que significa propriamente falar? Segundo a tradição ocidental, a determinação da essência do homem diz que o homem é aquele vivente que tem a fala (zoon logon echon), expressão grega posteriormente traduzida por animal rationale. Logo, na questão da linguagem decidese, por assim dizer, a questão pela existência do homem e sua determinação. O que acontece quando, na definição ocidental do homem, se traduz o lógos grego por ratio, razão (lógica)? Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.23-25, jul./dez. 2008 23 artigos Tudo repousa no passo atrás (Schritt zurück), ele mesmo muito errante, em direção ao pensamento, que cuida da virada do esquecimento do ser, a qual se prenuncia no destino do ser. O passo atrás, que se dá a partir do pensamento representador da metafísica, não rejeita esse pensamento, mas entreabre a distância, que dá lugar ao apelo da verdade do ser, na qual se coloca e acontece o co-responder (HEIDEGGER, 2001, p.163). Já mencionamos anteriormente que a palavra-guia do Oriente, segundo Lao-Tsé, é tao (em japonês: do), que significa propriamente caminho. Mas o Ocidente insiste em traduzir tao por razão, assim como insiste em traduzir lógos também por razão. Colocase, pois, a questão: qual o sentido e o alcance dessa insistência? Ela corresponde à essência do que se nomeia propriamente por linguagem? Em 1959, Heidegger publicou A caminho da linguagem. Esta obra traz um texto nomeado De uma conversa sobre a linguagem entre um japonês e um perguntador, onde se investiga a possibilidade de se fazer uma experiência pensante com a linguagem, bem como de um diálogo com o Oriente. O diálogo foi escrito por ocasião de uma visita do Prof. Tezuka Tomio. Diz Heidegger: Não vejo se o que eu tento pensar como essência da linguagem satisfaz também a essência da linguagem oriental. Igualmente ainda não vejo se o que na verdade seria o começo pode chegar a uma experiência pensante de um vigor de linguagem capaz de garantir, tanto ao dizer ocidental-europeu quanto ao dizer asiático-oriental, a possibilidade de uma conversa, que pudesse jorrar de uma única fonte (HEIDEGGER, 2003, p.77). Ao que completa o Prof. Tezuka: “Mas que se mantivesse oculta a ambos os mundos”. Esse começo a que se refere diz da proveniência que é sempre por-vir. Proveniência e por-vir se evocam mutuamente: tal o modo originário do caminho do pensamento. Pois, “no pensamento, o que permanece é o caminho. E os caminhos do pensamento guardam consigo o mistério de podermos caminhá-los para frente e para trás, trazem até o mistério de o caminho para trás nos levar para frente” (HEIDEGGER, 2003, p.81). Não é difícil perceber que tais considerações soam incompreensíveis, e até irracionais, a ouvidos lógico-técnico-científicos. Mas esse modo que deixa indeterminado justamente aquilo a que se visa, e até mesmo o deixa recolhido no indeterminável, é o que justamente possibilita o êxito de toda conversa entre pensadores. Ele evoca a espera do inesperado que se mostra não no fim, mas tão-somente ao longo da caminhada. Nesse sentido, certa ocasião, escreveu um mestre zen: A montanha azul é o pai da nuvem branca. A nuvem branca é o filho da montanha azul. O dia todo eles dependem um do outro, sem que um seja dependente do outro. A nuvem branca é sempre a nuvem branca. A montanha azul é sempre a montanha azul (SUZUKI, 1994, p.29). 24 SASSI, Vagner. Filosofia e pensamento Referências ANAXIMANDRO; PARMÊNIDES; HERÁCLITO. Os pensadores originários originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Petrópolis: Vozes, 1991. HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem linguagem. Tradução de: Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2003. HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências conferências. Tradução de: Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel e Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2001. HEIDEGGER, Martin. Hinos de Hölderlin Hölderlin: Germânia e o Reno. Tradução de: Lumir Nahodil. Lisboa: Instituto Piaget, 1979a. HEIDEGGER, Martin. Que é isto, a filosofia? In: Conferências e escritos filosóficos filosóficos. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979b. HEIDEGGER, Martin. Reden und andere Zeugnisse eines Lebensweges Lebensweges. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 2000. Gesamtausgabe Band 16. PESSOA, Fernando. Obra poética e em prosa prosa. Antonio Quadros (Org.). Porto: Lello e Irmão Editoras, 1986. PESSOA, Fernando. Poemas oemas. Seleção de Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978. Zen Tradução de: Maria Alda Xavier SCOTT, David e DOUBLEDAY, Tony. O livro de ouro do Zen. Leôncio. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000. artigos SUZUKI, Shunryu. Mente zen, mente de principiante principiante. Tradução de: Odete Lara. São Paulo: Palas Athena, 1994. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.25-25, jul./dez. 2008 25 Pascal: Apol ogia em FFragmentos ragmentos Apologia Pascal: Apol ogy In FFragments ragments Apology Jaime Spengler* Resumo Pascal é autor que encanta e desafia. Encanta pela beleza de alguns de seus textos; as Provinciais, por exemplo, são marcadas pelo belo estilo e pela ironia; alguns de seus Pensamentos são conhecidos e citados a memória. Desafia, pois, a forma escolhida para expressar muitas de suas intuições, a forma do fragmento. Além do mais, esses fragmentos foram forjados em vista de um projeto maior: uma apologia do cristianismo. Nosso objetivo aqui é realizar uma apresentação da pessoa de Blaise Pascal; buscar compreender o que seja a apologia; lançar algumas indicações para uma possível inauguração de leitura dos Pensamentos. Palavras-chave alavras-chave: apologia; fragmento; pensamento; Pascal. Abstract Pascal is an author that dazzles and challenges. Dazzles for the beauty of some of his texts; the Provincials, for example, are noticeable for its beautiful style and irony; some of his Pensées are known and cited by memory. The challenge comes from the way chosen to express many of his intuitions that of fragments. Besides that, these fragments were forged seeking a greater project: an Apology to Christianity. Our objective here is to present Blaise Pascal; seek to comprehend what is the apology; to offer indications for a possible inauguration for the reading of Thoughts. artigos Key W ords Words ords: apology; fragments; thought; Pascal. * Professor do curso de Filosofia da FAE - Centro Universitário Franciscano. [email protected]. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.27-36, jul./dez. 2008 27 Pascal (1623-1662), pensador francês, se tornou célebre especialmente por sua obra intitulada “Pensamentos”, publicada depois de sua morte. Desde sua publicação, essa obra gozou de grande prestígio. Ela é fruto de um projeto maior, ou seja, apresentar uma “apologia do cristianismo”. O que temos hoje sob o titulo de “Pensamentos” é, na verdade, uma coleção de fragmentos elaborados e conservados pelo próprio Pascal, e que seriam usados na construção dessa projetada obra maior, jamais levada a termo. Inaugurar uma leitura dessa obra nem sempre é tarefa fácil. O desafio nasce das características da obra, e daquele preconceito difuso de que Pascal seria um escritor religioso e não propriamente filósofo. Por isso, nosso objetivo aqui é antes de tudo propor algumas – poucas – indicações para quem se dispõe a penetrar na obra pascaliana. Pretendemos, antes de tudo, oferecer algumas indicações sobre a gênese da obra “Pensamentos”; em seguida procuraremos buscar uma compreensão em torno do que seja uma apologia, e no nosso caso apologia do cristianismo; por fim propomos algumas considerações em torno das características daquele gênero literário denominado “fragmento”. Sabemos que Pascal se dedicou por longo tempo à construção de uma apologia do cristianismo; por quanto tempo exatamente, é impossível determinar. Sabe-se também que muitos dos fragmentos foram escritos pelo próprio Pascal; outros foram por ele ditados. Quando morreu, Pascal deixou a apologia no estado de um conjunto de fragmentos recolhidos, em parte, em maços. A primeira coisa que se fez então, segundo Etienne Pèrier, foi copiá-los como estavam. Em 1670 surgiu a primeira edição dos Pensamentos, denominada até hoje como “Edição de Port-Royal”, seguindo as propostas de um grupo de pessoas designadas para tal fim. Para este grupo de estudiosos, era necessário evitar o reacender das disputas teológicas a que a paz da Igreja pusera fim em 1668. Por isso, a obra não podia apresentar acenos de jansenismo que pudessem ser relacionados aos contatos de Pascal com PortRoyal. Esse grupo não hesitou em suprimir um ou outro fragmento, ou trecho de fragmento, do manuscrito e modificar outros de forma a dar ao texto maior formalidade e não deixando suspeitas de heterodoxia. Em 1776, Condorcet publicou uma nova edição dos Pensamentos, pondo em relevo os argumentos da impotência da razão, da incerteza necessária da religião, das dificuldades das profecias e milagres. Surgiu assim um Pascal cético que se impôs por aproximadamente cem anos à imaginação dos românticos e do racionalismo de cunho positivista. Em 1842 Victor Cousin se ocupou da necessidade de reler os manuscritos dos Pensamentos que jaziam na Biblioteca Real de Paris. Nasceu assim a edição de Prosper Faugère (1844). A partir de então foram introduzidas melhorias ao texto das novas edições, fruto de estudos críticos e filológicos realizados sobre os manuscritos. Em 1897 surgiu a clássica edição de L. Brunschvicg dos “Pensamentos e Opúsculos”1, seguida da publicação dos Pensamentos em três volumes com amplas notas 1 PASCAL, B. Pensées et opuscules (Paris, 1897; última edição, Paris, 1976). 28 SPENGLER, Jaime. Pascal: apologia em fragmentos e comentários críticos, oferecendo assim ao público a possibilidade de ler “todo o Pascal e somente Pascal”. Esta edição foi seguida por outras também importantes tais como Chevalier2 (Paris, 1925, 1936, 1949), Stewart (Londres, 1950), Guersant (Paris, 1954), Mesnard (Paris, 1964). Ao longo destes dois últimos séculos, esta obra de Pascal continuou a suscitar interesse, admiração, respeito; e isto com uma perseverança que nada desanima a decifrar o sentido dessa obra; de fato, de uma parte têm-se os conceitos filosóficos e teológicos, da outra, a forma estilística e figurativa permeada de um profundo sentimento religioso, que fazem da mesma uma obra-prima da literatura francesa e por que não dizer ocidental?! Encontra-se nesta obra uma feliz harmonia entre conteúdo e forma do pensamento. O conteúdo agarrou o autor de tal modo que a forma dada torna-se a única possível para descrever a verdade3. A força de expressão e a profundidade intelectual acompanhadas de um desejo de perfeição concedem a esta obra um tom de genialidade; ela reflete um mundo repleto de vigor e de profundidade extraordinária, demonstrando que a qualidade de uma obra não se deixa medir tanto pelo desenvolvimento ordenado de sua temática, quanto pela profundidade e força intuitiva que revela4. II 2 PASCAL, B. Oeuvres complétes (Paris, 1925; última edição, Paris, 1954). Quanto a questão da tradução para o português, seguimos a tradução de Sérgio Milliet: PASCAL, B. Pensamentos. São Paulo, 1973. 3 ROMBACH, H. Substanz, System, Struktur II. Freiburg/München, 1966. p.197. 4 RUIZ, F. ‘Reflexiones en torno a Pascal’. Augustinus 27-28 (1962). p.416. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.29-36, jul./dez. 2008 29 artigos Quando ouvimos falar de “apologia do cristianismo”, quase que instintivamente nos vem à mente a representação de uma defesa apaixonada ou de uma justificativa do cristianismo. Tal representação tem sua razão de ser e sua verdade. Certamente o momento histórico vivido pelo próprio Pascal se prestava a esse tipo de empenho. Entretanto, é possível entrever na expressão “apologia” uma latência toda própria, e que, talvez, escape ao nosso modo, às vezes, apressado de avaliar um autor ou uma determinada obra. Até porque, não raramente, os dados da historiografia e mesmo do academicismo acabam por rotular ou classificar a partir de considerações apressadas a produção filosófica. Não é nossa intenção entrar aqui nessa polêmica. Interessa-nos, sim, oferecer alguns elementos – poucos –, para uma leitura, talvez mais vigorosa dos Pensamentos de Pascal. O termo “apologia” é encontrado já na grecidade antiga. O lexema “apolog-” indica uma relação com o dizer, com a palavra, com a razão. A palavra grega que subjaz a esse lexema é “lógos”; “lógos” é um substantivo relacionado ao verbo “legein”, que significa “palavra”, “discurso”, “linguagem”, “razão”; o verbo significa “ler”, “dizer”, “anunciar”, “declarar”, como também “juntar”, “ajuntar”, “colher”, “escolher”. Já o prefixo “apo” é na verdade uma preposição, cujo significado é “de”, “vindo de”, “a partir de”, “a causa de”. Usualmente se interpreta a expressão “apologia” como defesa, elogio, justificação, enaltecimento. O termo indicaria uma relação fundamental com o dizer e com a causa em razão da qual a palavra é proferida5. A partir dessa ilustração do termo, podemos compreender o empreendimento de Pascal, isto é, uma apologia do Cristianismo, como esforço enorme para defender o cristianismo ou justificar o cristianismo diante de “ameaças” exteriores, que na aurora da modernidade estariam começando a se tornar mais intensas. Assim, Pascal teria decidido empenhar toda a sua genialidade na construção de uma obra que pudesse de algum modo servir de defesa ao cristianismo. Certamente tal compreensão da apologia não está errada; ela certamente tem sua valência. No entanto, seria conveniente buscar sondar uma possibilidade mais ampla de compreender não só o que justificaria uma obra apologética – como pode ser visto o empreendimento de Pascal –, mas também sondar a compreensão, talvez, aí latente do próprio Cristianismo. Pascal foi homem de uma experiência fundamental capaz de fazer saltar todos os sistemas. Essa experiência, ele a viveu na aurora da modernidade, a partir da qual o ser humano passa a ser visto e compreendido como estando situado diante do infinitamente grande, sem ponto de referência algum. Ao mesmo tempo, esse mesmo ser humano, começa a perceber a possibilidade de construir um saber a partir de si mesmo, apoiado na força da razão calculadora e sobre a base do experimento. Pascal se deixa conduzir pelas interrogações desse novo horizonte, pelas exigências dessa nova época, assume os desafios que as “razões sólidas” (fr. 259) do existir humano impõem àqueles que são “homens do futuro”6. Pascal empreendeu um caminho por meio do qual estava convencido ser possível à modernidade ver as infinitas possibilidades que se lhe estavam sendo abertas, e ao mesmo tempo, revelar ao sujeito pensante sua identidade profunda. Em seu caminho não procurou certezas baratas. Como homem de ciência que era, estava fascinado pelas inúmeras possibilidades que essa ofereciam. Ao mesmo tempo, porém, foi capaz de perceber a impotência da razão científica diante da necessidade de superar a compreensão vigente das contradições presentes no ser humano. Certamente, o olhar humano tem um alcance relativo. De fato, “quantos astros as lunetas nos descobriram, que não existiam para os filósofos de outrora” (fr. 266). Assim, o que o ser humano pode perceber desse “mundo visível é apenas um traço perceptível na amplidão da natureza, que nem sequer nos é dado conhecer mesmo de um modo vago. [...] Esta é uma esfera infinita, cujo centro se encontra em toda parte e cuja circunferência não se acha em nenhuma” (fr. 72). Por isso, o ser humano de todos os tempos é convidado a “considerar o que é, diante do que existe; [...] que, da pequena cela onde se acha preso, 5 fundamental Petrópolis: Vozes – Aparecida: Santuário, 1994. p.84. BOSETTI, E. Apologia. In. Dicionário de teologia fundamental. 6 Cf. LECCLERC, E. Pascal ascal. Immensitá e finitudine dell´uomo. Milão: S. Paolo, 1996. p.10. 30 SPENGLER, Jaime. Pascal: apologia em fragmentos Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.31-36, jul./dez. 2008 31 artigos isto é, do universo, aprenda a avaliar em seu valor exato a terra, os reinos, as cidades e ele próprio” (fr. 72). Também o tempo convida o ser humano a considerar sua condição: “Quando penso na pequena duração da minha vida, absorvida na eternidade anterior e na eternidade posterior, no pequeno espaço que ocupo, e mesmo que vejo, fundido na imensidade dos espaços que ignoro e que me ignoram, aterro-me e assombro-me...” (fr. 205). Tanto o infinitamente grande, quanto o infinitamente pequeno representam, segundo Pascal, um convite para o ser humano refletir sobre sua condição. Tanto um aspecto, quanto outro do universo apontam para o fato de que este se situa muito além de sua capacidade intelectiva. Daí a necessidade de um horizonte característico a partir do qual o ser humano possa realizar uma experiência originária do conhecer. A esse horizonte Pascal denomina coração, o qual possui uma gama de significações, que vibra em diversas dimensões da existência humana; o próprio termo coração possui uma caracterização originária em aberta polêmica diante do mero racionalismo filosófico. O coração é, segundo a perspectiva pascaliana, fonte real de conhecimento. A idéia essencial que a temática do coração inspira é aquela de um referencial a partir do qual os diversos aspectos que tocam o espaço de decisões estão unidos. O coração indica uma dimensão da vida, onde nada permanece verdadeiramente oculto, mas também não cai sob o domínio público. As razões do coração e o coração da razão, como empenho demonstrativo das possibilidades últimas da razão, representam o impulso do sentido, método e objetivo da “apologia do cristianismo”. Poder-se-ia, portanto, afirmar que o projeto da “apologia” adquire vitalidade a partir de um estudo detalhado do coração humano, como possibilidade de abertura a uma compreensão autêntica e vigorosa do ser homem, da sua dignidade e possibilidades, pois é o coração que possibilita ao ser humano perscrutar sua origem (cf. fr. 278). Assim sendo, o projeto da “apologia” não seria aquele de construir uma defesa apaixonada do cristianismo compreendido como sistema de dogmas, crenças e ritos, mas esforço por trazer à fala a condição do ser humano diante dos “espaços infinitos”, e por mostrar “quanta aparência há de que existe outra coisa além do que vejo” [vemos] (cf. fr. 693). O cristianismo que Pascal pretende apresentar nada tem a ver com o movimento histórico, com implicações políticas, sociais e culturais; trata-se, sim, da apresentação de uma existência na fé, referida a Cristo e compreendida a partir da possibilidade de participação naquilo que ele tem de mais característico, capaz de orientar o ser humano de todos os tempos na tarefa de assumir as próprias contradições. E a característica do cristianismo se expressa no mistério da cruz e do Crucificado (cf. fr. 826). Nesta perspectiva, o projeto da apologia ganha novo vigor. Esse projeto consistiria em buscar uma fenda, uma brecha por onde possa, talvez, ser aberta – e mostrada – uma dimensão que desperte o ser humano para o frescor de uma visão originária do todo. A cruz e o Crucificado seriam essa brecha, essa fenda a partir donde é possível forjar um novo modo de existir para quem se “percebe limitado em tudo... incapaz de saber com segurança e de ignorar totalmente” (cf. fr. 72), mas destinado a construir a si mesmo como sujeito. Pascal cultivou um relacionamento todo próprio com essa realidade denominada fé cristã, cristianismo, pois, segundo ele, por meio de Jesus Cristo é possível conhecer não só o mistério de Deus, mas também aquele do ser humano (cf. fr. 548). Este relacionamento não foi certamente fruto de uma decisão da própria subjetividade, mas expressão de algo que o tocou, que o tomou por inteiro, e ao qual ele somente poderia corresponder. A isto denominamos “experiência”, isto é, um modo característico de o ser humano existir enquanto humano. Nisto consiste a história desse homem, o horizonte, a dimensão a partir do qual tudo adquire sentido próprio; esse horizonte determina seu relacionamento com toda a realidade existente. III Pascal nos legou alguns fragmentos que seriam usados na obra a ser levada a termo, denominada “apologia”. Estes fragmentos passaram por várias tentativas de ordenamento7; cada uma delas orientada por uma perspectiva pré-definida. No entanto, ao que tudo indica, nenhuma dessas edições conseguiu encontrar um fio condutor que satisfizesse plenamente os estudiosos de Pascal. A característica dessa obra, expressa como fragmentos, apresenta não poucas dificuldades e, portanto, desafios para quem se decide a pensar o pensamento de Pascal. O próprio termo “fragmento” já traz em si um problema, remetendo para algo de fragmentário, quebrado, fraturado. Com isso pode-se facilmente pensar que, por não possuirmos o todo da obra, mas somente fragmentos, se tornaria impossível realizar um estudo sério, aprofundado, amplo da obra pascaliana. Possuímos fragmentos, mas não conhecemos sua unidade. Diante desse fato, somos tentados a pensar que se possuíssemos a obra denominada “apologia” na sua integralidade e unidade, seriam mais fáceis e claras, a leitura, reflexão e possível interpretação da obra; poderíamos com maior facilidade e tranqüilidade seguir o pensamento do pensador Pascal. Será que essa impressão é verdadeira? Será mesmo que, se possuíssemos a obra na sua unidade e integralidade, tal trabalho seria realmente facilitado? Será que tal impressão não traz em seu bojo um equivoco? Se assim o for, então precisamos trazer à fala a característica dessa obra e ao mesmo tempo o equívoco latente na impressão acima expressa. Antes de tudo, precisamos compreender a característica desse “gênero literário” fragmento. O fragmento pode ser visto como uma proposição incisiva, simples ou composta, podendo também ser em si uma composição breve e conclusa. Este gênero literário, e também filosófico, se contrapõe à construção demonstrativa, caracterizada 7 As mais conhecidas são: a Edição de Port-Royal (1670), Condorcet (1776), Prosper Faugère (1844), Brunschvicg (1897), Chevalier (1925, 1936, 1949), Stewart (1950), Guersant (1954), Mesnard (1964). 32 SPENGLER, Jaime. Pascal: apologia em fragmentos pelos princípios da continuidade e sistematização8. O fragmento, como também o aforismo, apresenta de forma concisa o resultado de observações e reflexões pessoais; carrega em si uma grande potência de expressão, exprimindo um pensamento rico e conciso. A concisão e riqueza são, geralmente, as razões principais da dificuldade de leitura desse gênero. Os Pensamentos de Pascal foram concebidos dentro de um horizonte maior. Verdade é que o que chegou até nós permaneceu na forma de fragmentos devido aos limites impostos pela vida mesma de Pascal. Isto não representa um acaso, pois doença e morte são parte integrantes do de-correr da vida mesma. Os fragmentos, portanto, representam um caminho; é possível colher a sua intensidade filosófica e vital, lançandose na sua reflexão e seguindo a não simples dinâmica da origem dos mesmos9, como fruto de um intenso itinerário existencial. À base dos fragmentos está “uma pintura do homem como ele é; eles não são fragmentos desligados, mas formam um conjunto unitário e orgânico em torno ao tema do indivíduo e de Deus”10. Dilthey descreve muito bem o significado deste gênero literário e filosófico: “Nas obras dos poetas, nas reflexões sobre a vida expostas por grandes pensadores como Sêneca, Marco Aurélio, Agostinho, Maquiavel, Montaigne ou Pascal está contida uma compreensão do homem, da sua inteira efetualidade, uma compreensão no tocante à qual qualquer psicologia explicativa não consegue aproximar-se. Mas em toda esta literatura de reflexões que quereria recolher a plena efetualidade do homem, se nota até agora, ao lado da superioridade de conteúdo, a incapacidade de exposição sistemática. Sentimo-nos impressionados pelas singulares reflexões até o mais íntimo do coração! Parece abrir-se nessas, a profundidade da vida mesma!11“ Pascal conduz sua reflexão de forma crítica. De um lado, apresenta, de forma contundente, os aspectos “negativos” da condição existencial do homem. Do outro, os aspectos positivos ou a sua dignidade. Nessa dinâmica reflexiva, mesmo a aparente desorganização dos Pensées – obra pensada em voz alta, mas que não chegou a alcançar a sistematização almejada12 – oferece a possibilidade de, por meio de diferentes conexões, encontrar, implícita ou explicitamente, um sentido indicado. A obra Fragmentos adquire, É interessante notar o que Pascal afirma no fragmento 71/373 a respeito da sistematização ou ordem para tentar iluminar a difícil questão da ordem dos fragmentos: “Escreverei aqui meus pensamentos sem ordem, não talvez em uma confusão sem objetivo: esta é a verdadeira ordem, que marcará sempre meu fim pela própria desordem. Daria excessiva importância a meu assunto se o tratasse com ordem, porquanto quero mostrar que é incapaz de ordem”. E continua Pascal no fragmento 70/61: “De bom grado teria seguido esse discurso de ordem da seguinte maneira: para mostrar a vaidade de todo gênero de condições, mostrar a das vidas comuns e depois a das vidas filosóficas pirrônicas, estóicas; mas não conservaria a ordem. Sei um pouco de que se trata e quão pouca gente a entende...” 9 ROMBACH, H. Substanz, System, Struktur Struktur, id. p.197. 10 ascal SCIACCA, M. PPascal ascal. Milão: Marzorati Editore, 1962. p.118. 11 DILTHEY, W. Per la fondazione delle scienze dello Spirito Spirito. Milão: Franco Angeli, 1985. p.363-364. 12 ALONSO A. M., ‘El estilo de Pascal’. Augustinus 27-28 (1962), p.376. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.33-36, jul./dez. 2008 artigos 8 33 então, um vigor único, difícil, talvez, de ser alcançado num primeiro contato13. Daí, a necessidade de um manuseio intenso e constante da obra, em vista de uma frutuosa leitura. Tal exigência contradiz, talvez, um modo difuso de pensar a obra chamada “Pensamentos”. E porque não possuímos a obra sistematicamente organizada, o autor é, talvez, visto como alguém obscuro. Mas será que esta característica de obscuridade não seria antes um rótulo imposto pela “publicidade”, e que impede perceber o que é claro? Mas com o que foi dito até aqui, ainda não esclarecemos o que seja a característica do fragmento. Em abordando essa marca dos escritos de Pascal, talvez fosse interessante recordar o fato de ele ter passado por uma “noite de fogo”14. O que foi essa experiência? Certamente não foi algo de pouca valia. Trata-se, sim, de algo que o traspassou, que o marcou decidida e profundamente; marcou-o com e como fogo. E isso Pascal guardou 13 Esta dificuldade de leitura que caracteriza uma obra como os Pensées de Pascal é característica de obras que possuem o estilo de fragmentos ou aforismos. O fragmento (pensamento) ou o aforismo apresenta de forma concisa o resultado de observações e reflexões pessoais; carrega em si uma grande potência de expressão, exprimindo um pensamento rico e conciso. A concisão e riqueza são, geralmente, as razões principais da dificuldade de uma obra composta de aforismos ou fragmentos. Poderíamos ainda caracterizar o aforismo como sendo mais completo que um fragmento, embora a delimitação entre um e outro represente uma tarefa de difícil realização. 14 Trata-se de uma experiência vivida por Pascal na noite de 23 de novembro de 1654. A síntese desse fato, Pascal carregou por escrito consigo, costurada no interior de seu casaco, e que só veio a público depois de sua morte. A síntese escrita desse fato recebeu o título de memorial; diz o texto: FEU. «DIEU d’Abraham, DIEU d’Isaac, DIEU de Jacob» non des philosophes et des savants. Certitude. Certitude. Sentiment. Joie. Paix. DIEU de Jésus-Christ. Deum meum et Deum vestrum. «Ton DIEU sera mon Dieu.» Oubli du monde et de tout, hormis DIEU. Il ne se trouve que par les voies enseignées dans l’Évangile. Grandeur de l’âme humaine. «Père juste, le monde ne t’a point connu, mais je t’ai connu.» Joie, joie, joie, pleurs de joie. Je m’en suis séparé: Dereliquerunt me fontem aquae vivae. «Mon Dieu, me quitterez-vous?» Que je n’en sois pas séparé éternellement. «Cette est la vie éternelle, qu’ils te connaissent seul vrai Dieu, et celui que tu as envoyé, Jésus-Christ.» Jésus-Christ. Jésus-Christ. Je m’en suis séparé; je l’ai fui, renoncé, crucifié. Que je n’en sois jamais séparé. Il ne se conserve que par les voies enseignées dans l’Évangile: Renonciation totale et douce. Soumission totale à Jésus-Christ et à mon directeur. Éternellement en joie pour un jour d’exercice sur la terre. Non obliviscar sermones tuos. Amen. 34 SPENGLER, Jaime. Pascal: apologia em fragmentos 15 HEIDEGGER, M. Heráclito Heráclito. Rio do Janeiro: Relume Dumará, 2000. p.46. 16 LECLERC, E. Pascal ascal: immensità e finitudine dell’uomo. Milano: S. Paolo, 1996. p.81-82. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.35-36, jul./dez. 2008 artigos para si, distante de olhares indiscretos. Porque dessa atitude? Não sabemos! No entanto, podemos supor que ele quisesse, assim agindo, resguardar a própria experiência do olhar curioso. Tal experiência indicaria que o olhar público não se inclina, e nem mesmo está interessado na possibilidade de perceber o que se mostra num olhar para além; tal possibilidade significaria reconhecer o valor da «fantasia» e da invenção. Além disso, o olhar público não está preparado para a possibilidade de manifestação do discreto, do modesto, do simples, do pouco evidente. E o pouco evidente ao olhar público, só pode ser dito fragmentariamente; ou ainda, por ser a experiência da noite de fogo algo que tocou Blaise no seu âmago, tornou-se isso para ele algo de essencial; e o essencial exclui ou releva o que permanece no nível do entendimento comum. Por isso, os fragmentos deixados por Pascal não são algo sem sentido, vago ou obscuro; são, antes, expressão de algo que ultrapassa o plano do entendimento comum; que está para além do que já é sempre «longe demais» para o «homem racional»15. Qualquer esforço para tentar ler essa obra de Pascal há de levar em consideração essa característica. O que Pascal nos legou são muito mais que “simples” fragmentos sem uma aparente unidade. Trata-se, na verdade, sim de fragmentos; mas de fragmentos escritos por alguém marcado pelo fogo – e, portanto, são palavras de fogo; são palavras de alguém que se via diante de uma “Presença” viva e abrazadora, na presença de uma “Pessoa”16. Por isso, a reflexão em torno dos mesmos é algo de desafiador, senão perigoso, pois um passo em falso e tudo pode se tornar sem sentido. É, talvez, a partir dessa característica da obra, que se mantém aquela tendência a considerar Pascal mais como um pensador religioso do que propriamente como filósofo. Por outro lado, poder-se-ia também dizer que somente o trabalho dedicado do pensamento por sondar a experiência do essencial, subsumido pelas palavras que compõem os fragmentos, será capaz de trazer à fala o que o autor dos mesmos nos legou. Assim sendo, a busca de uma possível ordem dos fragmentos e que ocupou críticos ao longo de muitos anos, se mostra uma obra que, certamente, pode ser relegada a um segundo plano – senão desnecessária, supérflua. Assim, essa obra de Pascal, na sua característica, estaria apontando para algo muito simples. Cada fragmento é expressão do todo em vista do qual a obra foi concebida. O fato de não possuirmos muitos elementos a respeito da pretendida estrutura da obra projetada, o contexto a partir do qual cada fragmento foi forjado, a intenção do autor no momento em que ia pondo um e outro fragmento no papel, a possível ordem dos fragmentos não são determinantes para a compreensão dos mesmos. Fundamental nesse empreendimento é, no esforço por ler esses fragmentos, auscultar o sentido do todo pelo qual cada um foi concebido, foi pensado. Assim, cada fragmento, longo ou curto, bem articulado ou não gramaticalmente, passível de ser aproximado de outro ou não, torna-se possibilidade à disposição do leitor de todos os tempos, para buscar, sondar a compreensão daquilo que estava orientando Pascal na constituição daquilo que denominou “apologia do cristianismo”. 35 Referências ALONSO, A. M. El estilo Pascal. Augustinus Augustinus, n. 27-28, 1962. BOSETTI, A. Apologia. Dicionário de teologia fundamental fundamental. Petrópolis: Vozes; Aparecida: Santuário, 1997. DILTHEY, W. Per la fondazione delle scienze dello spirito spirito. Milano: F. Angeli, 1985. HEIDEGGER, M. Heráclito. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. LECLERC, E. Pascal ascal: immensità e finitudine dell’uomo. Milano: S. Paolo, 1996. PASCAL, B. Pensamentos ensamentos. Tradução de: Sérgio Milliet. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1973. PASCAL, B. Pensées et opuscules opuscules. Paris: Hachette, 1976. ROMBACK, H. 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Utilizaram-se a análise de conteúdo e a análise documental. A violência vem ocupando um grande espaço na literatura nos últimos anos. Como resposta ao fenômeno da violência, surgem no cenário político propostas que privilegiam o endurecimento das políticas de combate à criminalidade, reformas no sistema penitenciário e reestruturação policial, com o objetivo de controlar e reduzir a violência. Tem-se a necessidade de buscar o fundamento da violência com base na filosofia. Neste sentido, procura-se analisar a violência a partir da contribuição da antropologia filosófica de Schopenhauer, do mundo como vontade e representação. Palavras-chave alavras-chave: violência; o mundo como vontade e representação; arte; compaixão; justiça. * Filósofo, teólogo, especialista em didática do ensino superior, licenciatura plena em história, psicologia, sociologia, mestre e doutor pela UFSC. Professor adjunto do curso de filosofia da FAE - Centro Universitário Franciscano e professor pesquisador do programa de mestrado em organizações e desenvolvimento da FAE. The main objective of this article is to verify the importance of the philosophical conception of Schopenhauer as a anthropological basis of the phenomenon of violence. The method used in this research was the review of bibliography, utilizing multiple sources of evidence. The data was extracted after extensive bibliographical review. Data analysis was undertaken in a descriptive-interpretative manner. Content analyzes and analyzes of documents were employed. Violence has occupied a large chunk of the literature recently. As a response to the phenomenon of violence, it has emerged in the political arena proposals to harden the policies to fight crime, reforms in the jail system, and restructuring of the police, all seeking to control and reduce violence. There is the need to seek the fundamentals of violence stemming from philosophy. In this manner, we seek to analyze violence starting from the contribution of Schopenhauer’s philosophical anthropology of the world as will and representation. Key W ords Words ords: violence; the world as will and representation; art; compassion; justice. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.37-45, jul./dez. 2008 37 artigos Abstract Introdução O presente artigo tem como base a obra principal do filósofo Arthur Schopenhauer, O mundo como vontade e representação, que contém a síntese de todo o seu pensamento, e dele tenta-se destacar os elementos antropológicos com o intuito de elucidar a compreensão filosófica da violência. Os diversos tipos de violência intrigam a sociedade e têm despertado na comunidade em geral, especialmente acadêmica, a procura por explicações para a violência de uma maneira geral, na tentativa de instrumentalizar educadores, familiares e demais agentes na sua interpretação e prevenção. Os índices de atos infracionais apresentam um crescente alarmante e uma mudança de paradigma no modus operandi das infrações; outrora se registravam atos contra o patrimônio, hoje se registram atos contra a vida. A filosofia de Schopenhauer servirá de base teórica para iluminar esta reflexão sobre a violência. O ponto de partida da filosofia de Schopenhauer é a distinção kantiana entre fenômeno e noumeno, mas ele descreve esta distinção em sentido diverso do genuinamente kantiano. Para Kant, o fenômeno é a realidade, a única possível para o conhecimento humano, e o noumeno o limite intrínseco deste conhecimento. Para Schopenhauer, o fenômeno é aparência, ilusão, sonho, e o noumeno é a realidade que se oculta atrás do sonho e da ilusão. Kant considerava inacessível o noumeno, e Schopenhauer (1974, p.213) descobre esta via de acesso: [...] não saímos do conhecimento objetivo da representação, nem podemos passar do fenômeno, nos encontramos reduzidos ao aspecto exterior das coisas, sem poder penetrá-las para ver o que são em si mesmas. Até aqui, de acordo com Kant, porém a partir deste ponto coloco como contrapeso esta outra verdade: que não somos unicamente sujeitos do conhecer, senão também objetos, coisas em si, e que, em conseqüência, para penetrar na essência própria e imanente das coisas, nas quais são podemos chegar desde fora, se abre uma via que parte do interior [...]. Com Kant, Schopenhauer afirma que a intuição nos proporciona um conhecimento dos fenômenos, mas vai mais além, dizendo que isto se aplica a todos os conhecimentos, menos ao do nosso próprio querer, que não é intuitivo nem vazio, mas é mais real do que qualquer outro. Na realidade, o nosso querer é o único dado que não se dá na representação e é também a única forma de compreender a interioridade de qualquer outro fato. Partindo de fora, não se pode chegar à interioridade, à essência das coisas. De qualquer maneira que nos atenhamos a elas, obteremos apenas imagens e nomes. Só partindo daquilo que conhecemos imediatamente, ou seja, de nós mesmos, podemos conhecer as outras coisas. Seria impossível encontrar a significação do mundo que é nossa representação do sujeito cognocente em qualquer outra coisa, se o homem fosse puro sujeito do conhecimento. Ele, porém, também tem suas raízes neste mundo, aí se 38 PONCHIROLLI, Osmar. Uma reflexão antropológica da violência... encontra como indivíduo, e seu conhecimento, condição e apoio do mundo como representação, tem o seu corpo como condição de sua intuição do mundo. Para Schopenhauer (1974, p.214), é o nosso querer o único “Datum” de validade que pode esclarecer todas as coisas e nos conduzir à verdade. Nem mesmo este conhecimento interior de nossa própria vontade nos permite o conhecimento propriamente dito da coisa em si, porque ele não é imediato. A vontade necessita, para suas relações com o mundo exterior, do corpo e com ele a inteligência que a vontade cria. Por meio dela, se reconhece como tal vontade em sua consciência íntima. Mesmo neste conhecimento interior, a coisa em si, ainda que despojada em parte de seus véus, não se apresenta totalmente nua. O artigo estrutura-se em quatro itens. Uma introdução, onde se justifica a temática deste artigo. O segundo item está relacionado ao conceito de vontade, onde se busca compreender a violência a partir da concepção de vontade de Schopenhauer. No terceiro busca-se uma colocação antropológica, e por último as considerações finais. O item a seguir abordará a concepção de vontade a partir do pensamento de Schopenhauer. A violência apresenta-se como impulso cego e irresistível que se objetiva no fenômeno. Sempre que um ato voluntário sai das profundezas obscuras de nosso interior, penetrando na consciência do sujeito que conhece, o que surge é a coisa em si, que não está submetida ao tempo. O ato voluntário nada mais é que a manifestação mais imediata e visível da coisa em si. Daí se deduz que, se todos os demais fenômenos pudessem ser conhecidos tão intimamente como o nosso ato voluntário, os reconheceríamos como idênticos àquilo que em nós é a vontade. Schopenhauer (1974, p.215) afirma que “este é o sentido de minha doutrina, quando digo que a essência de todas as coisas é a vontade e a chamo de coisa em si”. Para Mira y Lopes (1972), não é somente nos fenômenos semelhantes em tudo aos do próprio homem que se encontra esta mesma vontade como essência íntima. Uma reflexão mais demorada levará a reconhecer que a universalidade dos fenômenos, apesar das variadas representações, tem uma só essência, a mesma que só o homem conhece intimamente, imediatamente e melhor do que qualquer outra coisa. Aquela que, enfim, em sua mais aparente manifestação traz o nome de vontade. Esta vontade está presente na força que faz medrar a planta, cristalizar o mineral e que dirige a agulha imantada para o norte. Encontrar-se-á também nas afinidades eletivas dos corpos e até na gravidade que age. A própria explicação fisiológica do ciclo vital do ser em toda a sua extensão, por mais completa que seja dada, não poderá abalar este fato certo: que a vida e todo o seu desenvolvimento é igualmente um fenômeno da vontade. Vontade que, considerada puramente em si, é um impulso inconsciente, cego, Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.39-45, jul./dez. 2008 39 artigos 1 A vontade irresistível. Assim a vemos nos seres inorgânicos e vegetais, em suas leis; na própria vida vegetativa do homem. No homem, pela incorporação do mundo da representação, a vontade adquire a consciência do seu querer e daquilo que quer, que nada mais é que este mundo, a vida tal como se nos apresenta. O que a verdade quer é sempre a vida, dizer vontade de viver é dizer vontade. Todo o universo é uma manifestação dessa vontade, não causa dos fenômenos, mas objetivação de si mesma. Partindo da observação dos fenômenos em geral, Schopenhauer (1974) analisa as teorias físico-biológicas existentes e afirma que, apesar de tudo, a natureza íntima do fenômeno e sua multiplicidade permanecem sempre inexplicáveis. A vontade é um impulso cego e irresistível que se objetiva no fenômeno. A vontade, como coisa em si, é onipotente e tudo pode. Ela é livre. O mundo, com toda a multiplicidade de suas partes e de suas figuras, é o fenômeno, a objetividade de um único querer viver. A vontade de viver é eterna, pois está fora do tempo e é no homem que ela adquire consciência. A atividade é essencial na vontade que nunca deixa de querer. A vontade se objetiva pluralmente nas coisas e no tempo, sem que por isso perca a sua indivisibilidade. A diferença entre as coisas do espaço só está em sua objetivação (grau). Cada grau de objetivação da vontade contende com outro na matéria, no espaço e no tempo, implicando, por isso, luta, batalha e, alternadamente, vitória. A vontade está toda tanto numa pedra como num vegetal ou no homem, de tal maneira que, se pudéssemos destruí-la numa pequena partícula de poeira, destruiríamos o mundo. No próximo ponto procura-se, a partir de Schopenhauer, fazer uma reflexão antropológica com o objetivo de demonstrar que é também no homem que a vontade alcança a sua maior individuação. 2 TTentativa entativa de uma colocação antropológica Schopenhauer repete que o seu sistema explica o mundo pelo homem e não o homem pelo mundo e neste sentido ele mesmo chama seu sistema de um macroantropismo, pois coloca o centro do universo na consciência do homem. O homem, como todos os outros fenômenos da matéria viva ou bruta, é vontade e representação e no seu extrato mais profundo se apreende como vontade de viver. Porque a vontade é a “coisa em si”, o conteúdo interior, a essência do mundo e o mundo visível é o fenômeno, o espelho da vontade, a vida acompanhará inseparavelmente a vontade; onde há vontade, há vida. Schopenhauer diz ser um pleonasmo “vontade de viver”. A vontade de viver tem assegurada para si a vida. Continuando, afirma que o sujeito é o suporte do mundo, a condição constante sempre subentendida de tudo o que é perceptível, de todo objeto, porque tudo quanto existe, existe para um sujeito. O mundo é minha representação, um princípio evidente para Schopenhauer. Todo homem é este sujeito, mas somente enquanto conhece e não enquanto é objeto de conhecimento. Seu próprio corpo é objeto. Deste ponto de vista ele é igualmente representação, porque, 40 PONCHIROLLI, Osmar. Uma reflexão antropológica da violência... Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.41-45, jul./dez. 2008 41 artigos o corpo é um objeto entre os objetos submetidos às leis dos objetos, portanto submetidos às formas de todo o conhecimento que são: tempo e espaço. A vontade é aquilo que conhecemos imediatamente. A ação do corpo é o ato da vontade objetivada e ambos são uma só e mesma coisa, que nos vêm de sua maneira diferente, de uma vez imediatamente e outra pela intuição e conhecimento. É no homem também que a vontade alcança a sua maior individuação, devido a um sem-número de personalidades, e é nele que ela se apreende como vontade de viver. A vida está presa ao querer viver e, enquanto este existir no homem, ele não deverá se inquietar com sua vida e com sua morte. Segundo Schopenhauer (1974, p.501), a vontade de viver tem sempre assegurada a vida, e enquanto ela nos alentar não devemos nos preocupar por nossa existência, nem mesmo ante o espetáculo da morte. Vemos o indivíduo nascer e morrer, mas o indivíduo não é mais que o fenômeno. Só existe pelo conhecimento submetido ao princípio de razão que é o princípio de individuação, por isso o indivíduo recebe a vida como um presente. Sai do nada, sofre logo pela morte a perda do dom da vida e volta ao nada de onde saiu. O nascimento e a morte, por pertencerem ao fenômeno da vontade e, por conseguinte, à vida, não atingem a vontade em nada nem atingem o sujeito do conhecimento. É atributo essencial da vida aparecer em criaturas individuais, manifestando fugazmente no tempo o que em si não conhece tempo e deve precisamente manifestarse sob esta forma, a fim de poder objetivar sua verdadeira natureza. O nascer e o morrer são pólos do fenômeno total da vida. Para Schopenhauer (1974), a mais sábia de todas as mitologias, a indiana, expressa este mesmo pensamento dando por atributo a Siva, o deus da destruição e da morte, o colar de caveiras e, ao mesmo tempo, o Lingan, símbolos da geração e da morte que se compensam reciprocamente. A morte de um indivíduo não afeta a natureza, que nada mais é que a realização da vontade de viver. Sendo o homem a própria natureza em seu supremo grau de consciência de si, e sendo a natureza vontade de viver objetivada, nada mais natural que o homem se console com sua própria morte e a dos seus, lançando olhos para a vida imortal da natureza que é ele mesmo. A forma do fenômeno da vontade é tempo, espaço e causalidade. A forma do tempo é sempre o presente e não o futuro ou o passado. Estes só existem pela abstração, pelo encadeamento do conhecimento submetido ao princípio de razão. Só o presente é propriedade de toda a vida, propriedade segura, e nada, jamais, pode arrebatá-lo. Para Schopenhauer (1974), o próprio passado, mesmo o mais próximo, o dia que acaba de escoar-se, não é mais do que um inútil sonho e outra coisa não é o passado de outros milhões de seres. Eu sou definitivamente dono do presente que me acompanhará por toda uma eternidade como minha sombra; por isso não me espanta nem pergunto de onde procede este presente e por que precisamente neste instante. Só a manifestação individual da vontade é que começa e acaba, mas isto não a afeta, já que ela é eterna. A vontade em si e o sujeito puro do conhecimento existem fora do tempo e não conhecem nem a permanência, nem a destruição. Por isso, o egoísmo do indivíduo não pode valer-se disto para apagar sua sede de imortalidade, pois não pode alimentar a certeza que depois de sua morte o mundo continuará existindo (SCHOPENHAUER, 1974, p.509). O homem só enquanto fenômeno difere dos outros objetos, mas também é vontade que se manifesta em tudo. A morte faz desvanecer a ilusão de que sua consciência é distinta da consciência universal, e nesta não há destruição, nisto consiste sua eternidade. Todas as ações do homem são a manifestação reiterada do caráter inteligível, apenas ligeiramente modificada em sua forma. A indução resultante da soma dessas ações é o caráter empírico. O caráter adquirido, que vem juntar-se depois ao inteligível e ao empírico, se forma na medida em que se vive em contato com o mundo, através do conhecimento claro e abstrato do próprio caráter empírico. Quando elogiamos ou censuramos alguém devido ao seu caráter, estamos nos referindo ao caráter adquirido. Se poderia pensar que, sendo o caráter empírico, enquanto fenômeno do inteligível, é invariável e conseqüente consigo mesmo. Como todo fenômeno natural, também o homem deveria aparecer sempre igual a si mesmo e não ter necessidade de formar artificialmente seu caráter por força de experiência e reflexão. Não é isto, porém, o que sucede. O homem, ainda que sempre permaneça idêntico, nem sempre se entende a si mesmo. Muitas vezes ele se desconhece até que alcance certo grau de conhecimento. Querer e ambicionar são a essência do homem. Querer significa desejar, e o desejo implica a ausência daquilo que se deseja. Desejo é privação, deficiência, indigência e, conseqüentemente, dor. A vida parece lançada num esforço incessante de afastar a dor, esforço que se mostra vão no preciso momento em que chega ao seu termo. Com a satisfação do desejo e da necessidade surge um novo desejo e uma nova necessidade. A satisfação jamais será definitiva e positiva. O prazer é a cessação da dor e tem, portanto, um caráter negativo e transitório. Na falta de objetos a desejar, quando uma satisfação facilmente chega, apodera-se do homem um vazio espantoso, o tédio, que ainda é mais insuportável que a dor. Quando satisfizer todas as suas aspirações, sente um vazio aterrador, o tédio, quer dizer, em outros termos, que a existência se converte numa carga insuportável. A vida oscila, como um pêndulo, constantemente entre dor e tédio, que são, na realidade, seus elementos constitutivos (SCHOPENHAUER, 1974, p.511). A vida de todo homem é uma história de todos. De forma geral, cada existência é uma série contínua de desgraças, que cada um tenta ocultar da melhor maneira possível, por que sabe que os outros não se interessam ou lastimam, mas, ao contrário, geralmente sentem satisfação ante o relato das dores das quais estão livres naquele momento. Se fizéssemos com que o mais obstinado dos otimistas visitasse hospitais, lazarentos, cárceres, senzalas, câmaras de tortura, campos de batalha; se o fizéssemos penetrar em todos os sombrios redutos de miséria, acabaria por entender qual a natureza deste mundo (SCHOPENHAUER, 1974, p.555). 42 PONCHIROLLI, Osmar. Uma reflexão antropológica da violência... Para Schopenhauer (1974), a história é um manifestar-se da incansável vontade de viver, que repete sempre a mesma tragédia ou comédia, ainda que mudem os personagens. A negação da vontade de viver sobrevém quando o conhecimento aniquila a vontade, porque então os fenômenos da percepção não agem mais como estímulos sobre a vontade; pelo contrário, na concepção das idéias que refletem a essência do mundo, encontra um calmante, um aquietador, que a serena e a impulsiona a anular-se a si mesma, espontaneamente. Isto acontece apenas através de outras atividades próprias do homem, que são gradativamente liberativas: a arte, a justiça e a compaixão. No último capítulo busca-se, como conclusão, explicitar essas atividades liberativas como forma de entender a violência, tendo como base a antropologia filosófica de Schopenhauer, apontando-as como vias de suspensão da violência. A partir do pensamento filosófico de Schopenhauer, pode-se apontar, mesmo que precariamente, algumas vias para a suspensão da violência. Num primeiro momento, temos a contemplação artística. A contemplação desinteressada das idéias seria um ato de intuição artística e permitiria a contemplação da vontade em si mesma, o que, por sua vez, conduziria ao domínio da própria vontade. Na arte, a relação entre vontade e a representação inverte-se, a inteligência passa à posição superior e assiste à história de sua própria vontade; em outros termos, a inteligência deixa de ser atriz para ser espectadora. A atividade artística revelaria as idéias eternas através de diversos graus, passando sucessivamente pela arquitetura, escultura, pintura, poesia lírica, poesia trágica e finalmente pela música. Em Schopenhauer, pela primeira vez na história da filosofia, a música ocupa o primeiro lugar entre todas as artes. Liberta de toda a referência específica aos diversos objetos da vontade, a música poderia exprimir a vontade em sua essência geral e indiferenciada, constituindo um meio capaz de propor a libertação do homem, face aos diferentes aspectos assumidos pela vontade, dentre os quais a violência. Constitui o elemento do artista, o lado puramente cognoscível do mundo e a reprodução do mesmo numa arte. O artista é cativado pela contemplação do espetáculo da vontade em sua objetivação. O homem comum é capaz de elevar-se à contemplação, ainda que sem gênio, caso contrário ele não apreciaria as obras de arte. A diferença que existe entre ele e o homem de gênio é que o segundo, possuindo em grau muito maior esta capacidade de contemplação, consegue reproduzir, numa obra arbitrária, o assim conhecido, reprodução que é a obra de arte. Para Schopenhauer (1980, p.23), é a arte, a obra do gênio. Enquanto para o homem comum sua faculdade de conhecer é a lanterna que ilumina seu caminho, para o homem de gênio é o sol que revela o mundo. A música, que às vezes eleva nosso espírito a tal altura que parece nos transportar a outros mundos, nada mais faz do que alargar nossa vontade de viver. A música vai além das idéias, é completamente independente do mundo fenomenal. A música fala do ser. Ela é uma objetivação, uma cópia tão imediata de toda a vontade Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.43-45, jul./dez. 2008 43 artigos Considerações Finais como é o mundo, como o são as próprias idéias. Cultivar a arte é uma forma de entender a superação da violência. Necessita-se da arte para consolidar o processo de humanização do homem. Mais importante que prevenir a violência é entendê-la filosoficamente. Fica o desafio para as políticas públicas na contemporaneidade de investir nas artes como forma de tornar o homem mais humano, mais próximo de si. A supressão da violência pode se tornar realidade a partir de uma educação integral do ser humano, onde a arte não é ignorada. A injustiça é a condição da vontade de viver, dividida e discordante, que existe no diversos indivíduos. Para ela, só existe um remédio: o conhecimento da vontade como unidade fundamental em todos os seres e, conseqüentemente, o reconhecimento dos outros, por sua vez, como sujeitos. O homem mau não é apenas o que atormenta, mas é também o atormentado. O que faz com que ele se sinta separado dos outros ou da dor nada mais é que o produto de um sonho ilusório. É a obscura consciência da unidade da vontade, que existe em todos os homens, o que provoca o aparecimento do remorso e da angústia junto com a maldade. Toda maldade é injustiça, é o desconhecimento dessa unidade. Toda bondade é justiça, é conhecimento da vontade una, da ilusória multiplicidade resultante do princípio da individuação. A justiça é o primeiro grau de reconhecimento. Em relação à violência, observamse diversas crises na sociedade: crise na família, crise na relação de gênero, crise urbana, crise dos direitos humanos, crise social e crise na justiça criminal. Porém, a maior crise, é a crise da falta de conhecimento da vontade como unidade fundamental em todos os seres e, conseqüentemente, do reconhecimento dos outros, por sua vez, como sujeitos. O resgate de uma teoria da justiça na contemporaneidade é essencial para uma séria discussão sobre a violência na contemporaneidade. Outra via de superação da violência é o amor. O amor, cuja origem está no conhecimento, e que vai além do princípio de individuação, conduz à redenção, ao abandono completo da vontade de viver, ou seja, de toda volição em geral. O que nos leva a realizar boas ações e obras de caridade é o conhecimento da dor alheia, nascido de nossa própria experiência e considerado como nosso. Por isso, o amor puro (caritas) é por natureza piedade e é indiferente qual a dor que mitiga, já que entendemos como dor toda necessidade ou aspiração não satisfeita. Todo verdadeiro amor é piedade e todo amor que não é piedade é egoísmo. A compaixão é o sentimento ético fundamental. Sem ética, a sociedade continua mergulhada na violência. Entender a violência é entender o significado da ética para a humanidade. O pensamento de Schopenhauer se apresenta como um grande sistema metafísico. A intenção do artigo foi fazer uma aproximação da obra O mundo como vontade de representação e propor uma reflexão antropológica da violência a partir das atividades liberativas. Esta reflexão, embora precária, constitui-se num projeto aberto para novas reflexões. Portanto, o entendimento das atividades liberativas, apresentadas por Schopenhauer, é uma das formas de suspensão da violência, tendo como base a antropologia filosófica. 44 PONCHIROLLI, Osmar. Uma reflexão antropológica da violência... Referências ABBAGNANO, Nicola. Storia della filosofia filosofia. Tradução de: Armando da Silva Carvalho. Lisboa: Editorial Presença, 1980. men Tradução de: Vivente Felix de Queiroz. São Paulo: CASSIRER, Ernest. An essay on men. Mestre Jou, 1982. crime Nova York: The National Criminal Justice DONZINGER, S. (ed.). The real war on crime. Commission, 1996. GURR, T. R. Violence in american: the history of crime (violence, cooperation, peace). Series, v.I. Newbury Park: Sage Publications, 1989. 2v. International Series MANN, Tomas. O pensamento vivo de Schopenhauer Schopenhauer. São Paulo: Martins, 1980. MARIAS, Julian, La Filosofia en sus textos textos. Barcelona: Labor, 1960. SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação representação. Tradução de: Eduardo Ovejero y Maury. Buenos Aires: El Ateneo, 1980. artigos SCHOPENHAUER, Arthur. Obras completas completas. Tradução Port. de: Wolgang Leo Maar. São Paulo: Abril, 1974. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.45-45, jul./dez. 2008 45 Reflexões sobre a Obra de Arte - uma análise do texto ““A A Origem da Obra de Arte” de Martin Heidegger Reflections about the W ork of Work art - an analysis of the text “The Origins of the W orks of Art” by Works Martin Heidegger Solange Aparecida de Campos Costa* Resumo Esse artigo examina a questão da proveniência da arte, tendo por base o texto de Heidegger: “A origem da obra de arte”. Essa abordagem reflete os questionamentos que norteiam a disciplina de filosofia da arte, ou seja, o que o texto pretende é tratar de questões fundamentais sobre o nascimento da obra de arte e de como a filosofia se coloca no horizonte dessa experiência. O objetivo das questões tratadas neste artigo é possibilitar uma discussão inicial sobre o tema que permita o estudo acadêmico da estética ou filosofia da arte. Palavras-chave alavras-chave: obra de arte; origem; mundo; terra; verdade. Abstract This article investigates the issue of the origins of art, having as a basis the text by Heidegger: “The origins of the works of art”. This investigation reflects the questionings that guide Philosophy of Art, in other words, the text aims to deal with fundamental issues about the birth of the work of art and how philosophy is placed in the horizon of this experience. The objectives of the questions addressed in this article is to allow for a initial discussion about this theme that is conducive of the academic study of aesthetics or the philosophy of art. Key W ords Words ords: work of art; origin; world; Earth; truth. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.47-57, jul./dez. 2008 artigos * Graduação em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (1999) e Mestrado em Letras pela Universidade Federal do Paraná (2007). Trabalha na área da educação desde 1998 e no ensino Superior desde 2002. Atualmente é professora titular do curso de filosofia da FAE - Centro Universitário Franciscano e do Instituto Radial de Ensino e Pesquisa. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Filosofia Alemã. 47 Primeiras questões Este artigo emerge da tentativa de indagar sobre o que ocorre no processo de criação para que a obra de arte surja. Para tanto, recorreu-se à análise de A origem da obra de arte, de Martin Heidegger. As questões que se pretendem desenvolver são: como nasce e para que aponta a arte? O que se mostra através da arte? Qual a relação da vida e da obra de arte? Por que é fundamental para o homem se indagar sobre isso? Para pôr-se no horizonte de tais questões far-se-á o seguinte percurso: - A obra e a origem: Como nasce a obra de arte? A primeira questão ao abordar a obra é a pergunta pelo seu fundamento: o que faz a obra ser obra? Ou seja, indaga-se pela sua proveniência, por aquilo que torna a obra tal como ela é. Assim, a discussão sobre a obra de arte deve fundar-se na pergunta pela origem. Para entender o que emerge no ato de procriação artística é necessário antes revelar o que fornece à obra o seu caráter de obra, abordar em que medida a origem está vinculada à obra, e como esta pode manifestá-la. - Obra de arte e realidade. Mundo e terra: O que se mostra através da arte? Tendo anteriormente perguntado pela origem, isto é, desvelado o cerne da obra, pode-se então investigar para o que a obra de arte aponta. Portanto buscar-se-á inquirir, neste item, sobre o que visa a obra de arte, examinando a relação entre o que ela manifesta e a realidade – o que a obra de arte permite revelar, e qual a relação entre o que ela revela e a efetividade. A partir dessas questões, descobre-se que a obra abre um mundo e produz terra. Nesse ponto será trabalhado em que sentido aparecem mundo e terra na obra e qual a sua relação com o acontecer do real. Obra de arte: desocultação e ocultação: A obra indica, manifesta algo que não está imediatamente visível. Ela é via de acesso para a desocultação de mundo e terra. Nessa tarefa de desvelamento ela também assume a ocultação como necessária à própria existência. Como ocorre a desocultação, por que a arte assume essa tarefa, e de que forma ela também pode ser ocultação são as principais questões a serem trabalhadas nesse tópico. Faz-se necessário explicitar, ainda, que este artigo não pretende responder completamente todas as questões propostas, mas apontar a relevância de se trabalhar com tais questões. O esforço é por tornar inteligível a indispensável tarefa de pensar a arte. A indagação fundamental que deriva de todas as questões acima propostas e, portanto, permeia este artigo enquanto reflexão sobre a obra é: se a obra de arte mostra algo que tem vínculo com a realidade e, assim, de certa forma, chama a atenção para a essência do real; como acontece a manifestação desta pela obra; e por que este é um modo privilegiado de sua aparição. - 48 COSTA, Solange A. de Campos. Reflexões sobre a obra de arte... A obra de arte e a origem 1 Lembremos o pensamento platônico. Nos diálogos, todas as indagações procuram a essência. Busca-se a virtude, a coragem, o belo em si mesmos, e não suas características. A pergunta platônica aspira a desvelar a origem, a promover a revelação do ser sendo, que garante a identidade das coisas. Tenta ver o que é a virtude que está na atitude virtuosa, mas que não se limita a apenas uma propriedade. A ação virtuosa só é possível porque se determina desde a virtude como essência. Exemplifiquemos: No diálogo Teeteto, Sócrates pergunta a Teeteto o que é conhecimento (146 c), e este lhe responde que o conhecimento é a geometria, o artesanato e todas as demais artes. Essas artes têm como origem o conhecimento; no entanto, não são o conhecimento em si mesmo. O conhecimento perpassa cada uma delas, mas não podemos limitá-lo a uma arte. De outro modo: é pelo conhecimento que o sapateiro faz os sapatos, mas o conhecimento não está somente no fazer sapatos do sapateiro, nem na capacidade de cálculo do geômetra, e por isso dizer que o conhecimento se resume a essas artes não responde a pergunta. As artes são modos que o conhecimento toma para se manifestar, vias de acesso para sua presença, mas não são o conhecimento enquanto tal. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.49-57, jul./dez. 2008 49 artigos Para alcançar o que a obra de arte é, ou seja, o que acontece na obra, um caminho fundamental baseia-se na pergunta pela origem. Ao indagar-se pela obra, em verdade, busca-se sua origem, ou seja, o que garante à obra sua existência enquanto tal. Entretanto, origem não é aqui tomada como ponto de partida, como início que permanece em um passado longínquo, mas como fundamento, aquilo que fornece às coisas sua identidade, a unidade essencial que impulsiona sua existência. Quando dizemos que a janela é, a origem da janela constitui-se como o “é”, o que a torna janela e não outra coisa. Assim, assegura-se por ela a identidade da coisa consigo mesma. Essa unidade que revela à coisa sua força própria, Heidegger denomina essência. “Origem significa aqui aquilo a partir do qual e através do qual uma coisa é o que é, e como é. Ao que uma coisa é como é, chamamos a sua essência. A origem de algo é a proveniência da sua essência” (HEIDEGGER, 1999, p.11). A essência é o instante que inaugura a abertura da realidade e que a permeia. A unidade fundamental do existente (origem), a essência como movimento de virà-existência, os gregos denominavam hypokeímenon. O hypokeímenon enquanto totalidade se resguarda, não aparece completamente, mas é o alicerce de todo o aparecer, é a essência que projeta o que se mostra na realidade. Portanto, ele se faz como o ser da coisa, a ação de ser e vir-a-ser o que se é. No entanto, o que aparece é desde o já revelado e conhecido, o hypokeímenon só é acessível pelo seu aparecimento em um ente determinado. A origem só se mostra nas coisas, ou seja, embora o fundamento em sua totalidade que permite essa revelação nos escape, sua presença se faz visível1. O ser do ente, o hypokeímenon, foi traduzido pelos romanos por subjectum. A partir dessa tradução, o modo de compreensão grego se perdeu. Entende-se, a partir de então, substância como algo velado por detrás das aparências. A tarefa do homem, dentro dessa compreensão, seria atingir a substância; ele alcançaria o auge da sua existência encontrando o substrato sobre o qual repousa toda a realidade. A essência, assim, se torna o objetivo, a meta a ser atingida pelo homem e não mais a origem que projeta e governa a realidade. Por esse caminho, abandonamos a experiência grega da essência como origem. Uma outra compreensão distorcida da origem é a que a define como um princípio gerador limitado ao tempo. Desse modo, afirma-se que ela é semente originária, causa que principia um processo e não mais se vincula a ele. No entanto, faz-se necessário perceber que, a origem não está apenas no início, mas em todo o acontecer da obra, ela não é algo que já se perdeu em um começo preso ao pretérito, mas o acontecer que salva a obra do esquecimento (que é a verdadeira perda). A origem constitui-se como o movimento que torna a obra obra. “A pergunta pela origem da obra de arte indaga a sua proveniência essencial” (HEIDEGGER, 1999, p.11). A essência da obra de arte se mostra no ser obra da obra, ou seja, pelo movimento através do qual ela se torna obra de arte. A arte é a origem da obra e do artista, por meio dela eles afirmam sua existência. Dessa forma, é pela arte que artista e obra tornam-se possíveis. A arte traça, então, o vínculo entre artista e obra; só na presença da arte é que a obra se manifesta, só sendo tomado pela arte é que o artista cria. Deparamo-nos, agora, com um paradoxo: perguntamos pela obra desde a sua origem (essência) e chegamos à arte, que, por sua vez, só se manifesta na obra pois a obra é a efetivação da arte. Achamo-nos em um círculo: de um lado parte-se da obra e chega-se à arte, de outro, indaga-se pela arte e volta-se para a obra. Para não utilizarmos esse círculo como pretexto para encerrarmos nossa reflexão, ao contrário, lancemo-nos totalmente para o interior dessas questões; assim é possível conquistar o movimento do círculo escavando a relação entre obra e arte, de forma a continuar o caminho para a obra. Para isso faz-se necessário perguntar o que a obra nos revela a partir da origem e, qual o vínculo entre a essência da obra e o real. Obra de arte e realidade: mundo e terra A pergunta pela origem da obra, feita no intuito de encontrar a sua essência, o que garante à obra a existência enquanto tal se revela no acesso à arte, logo, a arte se mostrou como núcleo originário da obra. Ambas mantêm entre si um vínculo fundamental, mas esse vínculo por si só não nos permite sua compreensão. Para buscar um entendimento da obra, é preciso antes pôr-nos no horizonte do seu caminho, ou seja, embrenhar-nos na via de acesso pela qual ela se mostra. Assim sendo, a primeira indagação a se fazer é a seguinte: através do que a obra se patenteia para nós? Pela realidade, ou seja, é no movimento de vir-à-luz, de existir, ao qual todos pertencemos, que a arte se manifesta. Cabe-nos, então, a tarefa de buscar a compreensão da obra a partir de suas relações com a realidade. E assim, ao mesmo tempo, poderemos avistar a sua essência. O caminho da pergunta pela origem da obra converte-se na indagação pelo aparecer da obra na realidade. Tendo em vista que a obra se insere no âmbito do real, se funda nele, perguntemos primeiramente o que ela expõe no seu aparecer. O que os quadros, a poesia, a escultura, enquanto obras de arte querem mostrar? O que há neles para que os designemos por obras? Para pôr-nos no sentido da indagação, será útil pensarmos a partir de uma obra propriamente dita. 50 COSTA, Solange A. de Campos. Reflexões sobre a obra de arte... 2 Nietzsche, na obra O nascimento da tragédia, ao abordar a lírica grega, afirma que ela é poesia na medida em que não parte de um subjetivismo, ou seja, a lírica grega não trata do indivíduo, enquanto sujeito singular, mas toca o núcleo que torna possível toda e qualquer individualidade, isto é, a essência enquanto fundamento do aparecer, unidade que reúne os indivíduos. O poeta lança mão de sua individualidade para imergir no ser, fazendo de si caminho e meio para atingir o “verdadeiramente existente (Seiende)”. O poeta lírico é poeta porque através dele a essência, o ser sendo, se patenteia. Esse núcleo que o artista deixa aflorar através da obra (neste caso a poesia lírica), Nietzsche chama de Ichheit (eudade). “O gênio lírico precisa dizer ‘eu’: só que essa ‘eudade’ não é a mesma que a do homem empírico real, desperto, mas sim a única ‘eudade’ verdadeiramente existente e eterna, em repouso no fundo das coisas, mediante cujas imagens refletidas o gênio lírico penetra com o olhar até o cerne do ser” (NIETZSCHE, 1992, p. 45). Da mesma forma que Nietzsche ao tratar da lírica grega, Heidegger apresenta uma compreensão de arte que transcende o objeto e o indivíduo, aliás é a própria arte que fundamenta a existência deles. A arte atinge a “essência geral das coisas” que é o que permite o nascimento do indivíduo, do “ente singular”. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.51-57, jul./dez. 2008 51 artigos Concorda-se que a obra nos remete a algo, nos oferece algo. Esse “algo” é a própria realidade, pois a obra se faz como abertura para que a realidade se evidencie. Esse “mostrar” ultrapassa o modo corriqueiro de observar o real, como algo parado e estático, inserindose no próprio movimento de acontecer do real. Heidegger, para mostrar a obra como abertura para a realidade, se utiliza do exemplo de um quadro de Van Gogh que permite ver os sapatos de uma camponesa. Empreguemos o mesmo exemplo; o quadro de Van Gogh como obra não é tão-somente o artefato, ou o adorno, que se pendura na parede (se bem que pode ser tomado, por um longo tempo, sendo isso o que não desmerece nem apaga seu caráter de obra – na medida em que o instrumento é um dos modos possíveis como a obra pode aparecer, mas não aponta para a obra enquanto tal – nem é este modo que nos propomos a investigar, perguntando pelo que faz a obra ser obra). O quadro de Van Gogh, ao mostrar os sapatos da camponesa, torna visível o mundo da camponesa. Aqueles sapatos gastos presentes no quadro trazem consigo a presença da própria lavoura, do peso do trabalho árduo, da manhã que se inicia no caminho para o campo, do suor da lida, do sol quente no verão, do inverno rigoroso etc. Pelo quadro que exibe apenas um par de sapatos velhos faz-se conhecer todo o mundo ao qual ele pertence. A obra constitui-se como abertura para o ente, como janela que deixa ver o que na cotidianidade se vela. O par de sapatos contido na obra torna patente o lugar de onde ele recebe sua existência, e esse lugar só é visível pela obra. No entanto, se o par de sapatos se referir apenas a um objeto individual, se ele aparecer somente como aquele par de sapatos dado, então, o quadro abandonará o seu caráter de obra, pois não abrirá para nada além do instrumento. Ele só se constitui enquanto obra pelo abrir-se da essência do ser-sapato, que remete ao mundo da camponesa. “Na obra, não é de uma reprodução do ente singular, que cada vez está aí presente, que se trata, mas sim da reprodução da essência geral das coisas” (HEIDEGGER, 1999, p.28)2. Essa abertura que a obra propicia é o lugar próprio da revelação do ente. Utilizemos outro exemplo heideggeriano que comprova a afirmação acima, tornando nítida também a obra enquanto abertura para a realidade: o templo grego. Segundo Heidegger, os gregos não viam o templo como obra de arte, o viam como presença do Sagrado, como lugar da divindade que os governava e fortificava. Através do templo, eles se viam a si mesmos, porque ali existia um sentido próprio que lhes falava. O templo, no seu estar ali, trazia consigo o deus. Assim, ele é obra na medida em que revela através de si um sentido historial (geschichtlich), desde sua origem: o lugar do sagrado3. Por expor ao homem a presença do deus e tornar visível (a si mesmo) o seu lugar, o templo se faz obra e, no seu fazer-se obra ilumina tudo que congrega o seu existir (isto é, mundo). Assim o templo deixa ver o vento que passa por suas colunas, dá dimensão às colunas que o circunda e faz aparecer toda a paisagem que o cerca e a que pertence. O templo enquanto obra não está, portanto, somente na figura arquitetônica que lhe dá contorno, mas no mundo que o rodeia e que através dele se exibe. Assim, ele não se resume ao amontoado de pedras que o compõe; antes utiliza a pedra para se erguer e como tal faz a pedra ser pedra. O templo, ao mesmo tempo em que torna visível o emergir do mundo que o cerca, conferindo-lhe sentido (a presença do sagrado), também oferece ao homem o seu lugar. O mundo aberto pela obra mostra ao homem sua tarefa. Isto é, assim como o templo faz ver o azul do céu, a montanha, o vento, e traz consigo o advento do deus, ele também concede ao homem a descoberta do seu próprio. Portanto, o templo como obra permite ao homem ver a realidade e reconhecer o seu lugar próprio na essência do real. “O templo no seu estar-aí (dastehen) concede primeiro às coisas o seu rosto e aos homens a vista de si mesmos” (HEIDEGGER, 1999, p.33). O fazer vir à luz próprio da obra de arte é um modo de ser da physis, e o que assim aparece é o mundo. A terra dá-se como lugar (khóra) que abriga o que a obra ilumina. A obra, quer como o quadro da camponesa, quer como templo grego, evidencia um mundo e o depõe sobre a terra. Mundo e terra abrem e resguardam o ser-obra da obra. Mas antes de abordar o que mundo e terra expõem, busquemos qual o sentido deles na constituição da obra de arte. A obra instala um mundo, isto é, ela faz-se como clareira aberta para o advento do ente. Então, o mundo não é um objeto que pode ser tomado a priori, mas se realiza, somente, no caminho pelo qual os entes se desvelam, ele se constitui na ação de tornar visíveis os entes. A obra consagra um mundo, isto é, põe a tarefa do homem em seu horizonte, o defronta com seu destino. E, no erigir um mundo, ela mostra ao homem as coisas em sua gênese própria. Desse modo, o mundo oferece ao homem a abertura do ente, isto é, a possibilidade de ser si mesmo, de pôr-se a caminho do próprio, da origem. Nesse caminho as coisas aparecem desde uma abertura do fundamento. Por exemplo: no quadro dos sapatos da camponesa, o mundo é o que o sapato permite ver, mas não se resume ao sapato, 3 Da mesma forma que o templo é o lugar onde o deus advém, as estátuas dos deuses não apenas lembram o divino, mas o manifestam. Não são meras representações erigidas com o intuito de lembrá-los, mas são a sua própria existência. A estátua evoca o deus à presença; nela o deus advém. Semelhantemente, o mito não se constitui como simples história, uma fábula cristalizada no tempo, mas torna vivenciável o que conta. Quando conta-se um mito, no dizer se erige, renasce o que se está falando, isto é, no aberto da arte advém o que ela indica pela reprodução do seu surgimento. 52 COSTA, Solange A. de Campos. Reflexões sobre a obra de arte... 4 A questão da relação entre terra e mundo converte-se na pergunta fundamental da filosofia, a da diferença ontológica (ser e ente) que aparece em Heidegger de forma especial em Ser e tempo. A história da filosofia se debruça sobre essa relação, pois ela promove a realidade. Em Nietzsche, em O nascimento da tragédia, a “diferença ontológica” aparece no vínculo entre impulso apolíneo e dionisíaco, é da relação conflituosa essencial entre eles que a realidade vem à luz. Na verdade, pode-se observar que, tanto como mundo e terra, o apolíneo e o dionisíaco não falam de duas coisas completamente diversas, mas advêm de uma unidade; o apolíneo só é no e pelo dionisíaco. Assim como o ser só aparece no e pelo ente. “Todo ente é no ser” (HEIDEGGER, 1979, p.17). Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.53-57, jul./dez. 2008 53 artigos embora garanta a ele seu lugar enquanto tal; o trabalho na lavoura, o suor do cansaço, o caminho para o campo... é o mundo que os sapatos fazem visível. No entanto esse mundo não é algo pronto para o qual a obra aponta, mas é somente com o erigir-se dele que a obra faz ver os sapatos da camponesa no mundo da camponesa. Logo, a obra mostra o trabalho da camponesa em seu acontecer, junto com seu cansaço, com o sol quente, com a paisagem que a cerca. Ao erigir-se a obra, tudo o que faz parte do mundo no qual os sapatos da camponesa têm sentido aparece desde o seu movimento próprio de vir à luz. Em outros termos, a obra instala um mundo; ou seja, no quadro a tinta é cor, no templo a pedra se “pedrifica”, na poesia a palavra conquista o dizer. O mundo é assim aquilo que deixa sobressair a vocação para a qual se destina cada coisa na sua existência. “Mundo nunca é um objeto, que está ante nós e que pode ser intuído. O mundo é o sempre inobjetal a que estamos submetidos enquanto os caminhos de nascimento e da morte, da benção e da maldição nos tiverem lançados no Ser” (HEIDEGGER, 1999, p.35). Ao mesmo tempo em que a obra instala um mundo como via de acesso para o ente, apontando o destino de cada coisa, ela resguarda o seu caráter de obra. O templo, na abertura de um mundo deixa a pedra ser pedra, o quadro deixa a cor colorir, mas a obra não se limita nem à cor, nem à pedra: ela se guarda na terra. Enquanto a obra funda a possibilidade de deixar-ser através do mundo, ela também recolhe a obra da matéria e a abriga na terra. Portanto, a terra se constitui como plena possibilidade do ente, como lugar do ente na totalidade. Assim, a terra resguarda a totalidade do ser-obra da obra. Ela se faz como aquele limite que não se ultrapassa, o que não aparece; a terra constitui o mistério do ente na totalidade que permanece imperscrutável. Por exemplo: observando o sol, sente-se o calor que ele produz, vê-se a claridade que dele emana; sabe-se que ele ilumina, mas o “iluminar” não se faz apreensível, continua impenetrável repousando num mistério. Esse fechar-se, ocultar-se, é próprio da terra, na medida em que ela resguarda a totalidade do ente deixando aparecer no aberto do mundo o ente como algo determinado4. O resguardar próprio da terra não é uma privação, ou seja, a terra não oculta algo que pode vir a ser desvendado, mas deixa o mundo ser num modo de ser posto pelo recolhimento. Assim, o fechar-se da terra é um modo de proporcionar um caráter sempre renovado da obra, e sempre de novo fazer renascer o mundo. Ao produzir terra, a obra deixa algo ser para o recolhimento de todas as suas possibilidades. Assim, a obra, na terra, mantém o que se presentifica com a própria ocultação, ao modo do recolhimento – o sol continua a iluminar, ainda que esse iluminar não se torne apreensível, pois o iluminar só é possível no seu retirar-se à compreensão. Afirmou-se anteriormente que mundo e terra se originam, de um modo privilegiado, na obra de arte. A obra instala um mundo, que, ao mesmo tempo em que resguarda, produz terra. Como essa relação ocorre? Como o abrir-se de um mundo se vincula com o recolhimento que a terra promove? Esses dois modos de ser da obra não se destroem pela sua oposição aparente? Ainda que mundo e terra mantenham uma oposição fundamental, um como abertura, a outra como recolhimento, é essa contraposição que garante a sua existência recíproca. Mundo e terra são diferentes, mas se mantêm pela harmonia que criam em obra. São opostos que guardam um vínculo originário. Assim sendo, essa relação advém de um combate, pois um almeja sobrepujar o outro; o mundo como pura abertura não admite a terra, embora tenha as raízes nela. A terra deseja fechar em si também o aberto do mundo. Ambas sustentam o conflito que instiga a origem da obra. Há que se considerar que um embate nem sempre acarreta um aniquilamento destruidor, o seu resultado nem sempre são danos, pois dele pode emergir algo novo e do confronto de forças antagônicas pode proceder algo criador. Neste caso, da luta entre mundo e terra provém a força da auto-afirmação de cada um, dando vazão à obra de arte. Mundo e terra conservam uma ligação necessária, pois pelo duelo que devém da sua relação, um leva o outro a conquistar a força da sua autenticidade, isto é, no embate um impele o outro a ser si mesmo, a ultrapassar tudo que impede a obtenção do seu próprio. Ver-se-á que são os momentos de tensões que revelam com mais intensidade a essência; no calor da disputa, afirmamse a origem e o caráter próprio de cada um. Deste modo, terra e mundo, um se funda no e pelo outro, e deste mútuo fundar-se advém a obra. A obra, ao instalar um mundo e produzir terra, faz nascer o confronto entre eles; é ela que instaura esse entrave e nele vige a essência da obra. “O ser-obra da obra consiste no disputar do combate entre mundo e terra. [...] Na intimidade do combate é que a quietação da obra, em si mesma repousando, tem a sua essência” (HEIDEGGER, 1999, p.39). Abordamos até o momento o fundamento ontológico da obra, o combate entre mundo e terra. Antes dissemos que a obra aponta para algo, fazendo ver a realidade. Para isso, utilizamos os exemplos do quadro de Van Gogh e do templo grego; contudo, o sentido da obra como abertura e deixar-ser não ficou completamente claro, pois é necessário referir-se à obra também como um modo de desvelamento da verdade. Obra de arte: ocultação e desocultação Partindo do fundamento da obra, isto é, da relação entre mundo e terra, em que medida a obra pode expor a verdade? Em outros termos: Pensada a partir de seu fundamento ontológico (combate entre mundo e terra), em que sentido é possível dizer que a obra de arte é verdadeira? A verdade aparece aqui no sentido da essência, ou seja, a verdade do ente pertence ao ser, aquele “é” que o sustenta. Então, a verdade se constitui como núcleo essencial a partir do qual o ente é; nela se determina a possibilidade do real. “Em que consiste a essência essencial de algo? Provavelmente consiste naquilo que o ente é na verdade. A essência verdadeira de uma coisa define-se a partir de seu ser verdadeiro, a partir da verdade do respectivo ente” (HEIDEGGER, 1999, p.40). 54 COSTA, Solange A. de Campos. Reflexões sobre a obra de arte... Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.55-57, jul./dez. 2008 55 artigos Ao dispor-se no aberto, a obra de arte faz visível a origem, ou seja, a essência do seu existir. Ela deixa ver a origem. No entanto, nesse mesmo processo, a obra torna patente o ente enquanto mistério, isto é, ao mesmo tempo em que a obra assume a tarefa de desocultação, ela traz à tona a ocultação do ente. Nesse sentido a verdade se mostra como a exposição do ente no aberto, através do seu velamento e desvelamento. Portanto, o velamento do ente é um modo de ser da verdade. O ente na sua totalidade é ser, que só se faz visível através de uma forma determinada. Assim, o ser só se revela no ente, que, por sua vez, é ao mesmo tempo encobrimento. “O desvelamento do ente enquanto tal é, ao mesmo tempo e em si mesmo, a dissimulação do ente em sua totalidade” (HEIDEGGER, 1999, p.143). O ente só é ente na medida em que se expõe na clareira e, ao mesmo tempo, se vela, recusa um aparecimento total, vigora como mistério. Toda sua possibilidade pertence ao prestar-se ao recolhimento. É preciso perceber, portanto, que a ocultação do ente não se constitui como uma falta ou uma impossibilidade, ao contrário – a ocultação não é o oposto –, mas um modo da própria efetivação da verdade. Esse encobrimento do ente é não-verdade, mas não como algo que se contrapõe à verdade, não se faz como falso, mas como aquilo que se realiza ao modo do mistério. Todo o movimento do real está desde o início lançado nessa dupla possibilidade do ente. Com isso, faz-se necessário compreender que o homem está desde sempre dentro desse movimento de ocultação e desocultação da verdade, aliás sua própria existência advém dessa relação. Cabe ao homem, portanto, a tarefa de assumir a verdade do ente, de compreender o mistério como possibilidade necessária, como caminho para a ação de ser. Assim, a forma como o ente advém na clareira, quer velando-se, quer desvelando-se, faz ver o ente enquanto tal. “A clareira em que o ente assoma é em si simultaneamente ocultação” (HEIDEGGER, 1999, p.42). O ente só é acessível neste jogo no qual não há escassez ou privação, mas apenas a manifestação da verdade (que pode ser sob a face da nãoverdade – a não-verdade é a verdade existindo desde outra forma de ser). Ao ocultar-se, o ente também se presentifica pelo movimento que garante existência à realidade na qual ele emerge. Por conseguinte, seu aparecimento dá-se constantemente, aliás toda manifestação da realidade é um modo como o ente advém na clareira. No entanto, assumir o destino do homem como possibilidade de ser no encoberto causa espanto. Entregar-se a essa tarefa requer esforço. Por isso, fazem-se necessárias a arte e a filosofia como modos de aparecimento da verdade, que chamam o homem à sua tarefa, desvelam sua origem, impõem-lhe seu destino. Assim sendo, a obra de arte é um modo de como o ente advém na clareira; ela aponta o aparecer do ente. Retomemos as questões anteriores: como o ente se expõe no aberto? O que constitui o aberto? O aberto é a clareira criada pelo embate fundamental entre mundo e terra. Essa disputa ocorre permanentemente; é ela que dispõe a realidade. Essa relação de combate entre mundo e terra põe em movimento a vida como enraizamento ontológico da finitude. Então, através da clareira, a verdade do ente se patenteia como desocultação e ocultação, como desvelamento e velamento. A verdade se expõe (dispõe) ao homem de alguns modos especiais como, por exemplo, pela filosofia e a arte. O confronto entre mundo e terra faz emergir a realidade, o seu embate coloca o mundo em movimento, abrindo o ente na clareira e, do aberto disposto pelo entrave fundamental entre mundo e terra, advém a verdade (enquanto aparecimento e encobrimento). Um modo pelo qual a verdade surge na clareira é a arte. A terra só irrompe através do mundo, o mundo só se funda na terra, na medida em que a verdade acontece como combate original entre clareira e ocultação. Mas como é que a verdade acontece? Respondemos: acontece em raros modos essenciais. Um dos modos como a verdade acontece é o ser-obra da obra. Ao instituir um mundo e produzir terra, a obra é o travar desse combate no qual se disputa a desocultação do ente na sua totalidade, a verdade (HEIDEGGER, 1999, p.44). A arte se constitui, então, como um modo pelo qual a verdade surge, ou seja, a verdade toma a arte como meio de instauração de si. Assim, a origem da obra, a sua essência, é a revelação da verdade. Em outros termos; a arte é um modo de ser desde a clareira que mostra a verdade do ente no seu movimento de ser, emerge como uma forma que o advento da verdade assume. Ela faz-se como caminho que promove a abertura do ente em sua totalidade, possibilitando um acesso especial, privilegiado, para a existência fática. Por ser um modo privilegiado de pôr o homem em relação com a verdade da origem, mostra-se imprescindível buscar compreender a arte no seu acontecer. Esse artigo buscou dispor aqui as questões relevantes que emergem ao se abordar esse tema. No entanto, não objetivava solucionar inteiramente todas elas, mas indicar a importância de sua abordagem e estudo. 56 COSTA, Solange A. de Campos. Reflexões sobre a obra de arte... Referências CORVEZ, M. La philosophie de Heidegger. Paris: PUF, 1961. HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Lisboa: Edições 70, 1999. HEIDEGGER, Martin. Arte y poesia. El Origen de la Obra de Arte. Trad. Samuel Ramos. México: Fondo de Cultura Económica, 1985. HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos. Tradução de: Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979. Coleção Os Pensadores. HEIDEGGER, Martin. Heráclito. Trad. Márcia de Sá Cavalcante Schuback. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998. HEIDEGGER, Martin. Que é isto – a filosofia? 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Trabalho, para ele, não é uma mera atividade humana como meio de produção e sustento, mas um processo de confronto com as possibilidades exteriores de um si-mesmo; essas possibilidades dizem respeito a cada um, representam o aguilhão de embate e a chance de autoconcreção. Trabalho estrutural visa sempre melhoramento do todo, elevação do si mesmo. Só nessa concretização é possível dar-se autêntica alegria, que ele chama de êxtase. Trabalho, enquanto estrutural, é um processo de constante libertação, irrupção para novas possibilidades. Palavras-chave alavras-chave: trabalho; melhoramento; liberdade; êxtase; concreção; si-mesmo; estrutura. . Abstract Key W ords Words ords: work; improvement; freedom; ecstasy; own-self. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.59-68, jul./dez. 2008 59 artigos * Mestrado e doutoramento em filosofia pelo IFCS-UFRJ. Filósofo e pesquisador do Instituto de Filosofia São Boaventura (IFSB) e do Instituto Franciscano de Antropologia e Humanidades (IFAN). This article aims to reflect upon some indications of H. Rombach related with work themes and its implications. Work, for Rombach, is not a mere human activity as a means of production and survival, but a confrontational process with the exterior possibilities of a human being; and these possibilities are related to each individual, they represent the battle and the possibilities of self-realization. Structural works always seek the improvement of the whole, self-elevation. Only in this concretization it is possible to have true happiness, that the author calls ecstasy. Work, while structural, is a process of continuous liberation, movement towards new possibilities. Introdução Concebe-se, de pronto, trabalho como processo de produção e transformação de bens. Trabalho é meio para a produção. O trabalho resulta em produtos. Assim é concebido em nosso mundo usual. Sua importância e o interesse nele estão focados num de seus elementos, no produto. “Aquilo que visas como fim em tua obra, isso é a obra.” E uma vez que o interesse está fixo ali, o trabalho é ainda apenas tolerado como um mal necessário em vista de um bem necessário. O trabalho é assim comércio de troca. Todo o esforço da técnica moderna em buscar substituir o empenho do trabalho humano por máquinas, mesmo sob a fachada de “melhoramento” das condições gerais de vida, não passa de uma corporificação dessa tolerância. A tolerância do trabalho se torna máquina. Hoje, quando tentamos argumentar contra essa concepção, dizendo que o trabalho humano implica igualmente um “trabalhar-se”, parece não fazermos outra coisa que incluir mais um produto na lista dos bens gerados pelo trabalho: a idéia de pessoa humana perfeita. Vamos sondar essas nossas idéias usuais em confronto com algumas indicações de pensamento de Rombach (Strukturontologie. Eine Phänomenologie der Freiheit. Freiburg/ Munique: Karl Alber, 1971, p.245-262). Rombach diz que “o fenômeno do trabalho é o projeto de exterioridade da estrutura”1. Definição estranha. Vamos ficar de olho, sondando a ver se surpreendemos a direção de indicação dessas palavras: exterioridade, estrutura, trabalho. De outro lugar, ele apresenta um outro indicativo do mesmo: “Trabalho significa que uma multiplicidade de significações é trazida para o nexo de uma sucessão, e quiçá de tal modo que o processo se estabelece e se firma em seu próprio desempenho”. Logo, o “produto” do trabalho não passa de um dos membros dessa corrente sucessória, visto que o produto dos produtos é a estrutura ou o próprio processo do trabalho. Todos os produtos e todos os momentos do trabalho são apenas intermediários, em vista do próprio desempenho da estrutura. O desempenho dos momentos do trabalho é a exterioridade da estrutura. Se bem compreendemos o texto, a exterioridade tem a ver com condições prévias do trabalho. Exterior, porque não é interior. Há portanto um interior e um exterior da estrutura. A estrutura projeta-se para um exterior, como que para reunir as condições de sua própria existência. Reunir essas condições possibilita seu existir. Seu existir é o subsumir (Aufarbeitung) essas condições de existência. O exterior é o estranho. O interior é o “intranho”. Não há intranho sem embate e sub-com-sumação do estranho. Mas o que se constitui em estranho para a estrutura e tarefa do trabalho, e que pertence ao “intranho”, possui sua estranheza do dado prévio, que deve ser transformado em dado próprio, 1 Uma estrutura pode manifestar-se como um estado, uma pessoa, uma comunidade, uma ciência ou seja o que for. É tudo que se organiza com vida própria e pode desenvolver um processo de melhoramento. Na definição de Rombach, “estrutura caracteriza-se pela autogênese, pela auto-edificação, que possui sua irrupção, sua auto-estruturação exstática, seu ponto alto e seu declínio. Chamamos a esse processo de ‘vida’, não é porém só a forma de acontecimento dos elt als lebendige Struktur ‘seres vivos’, mas o ‘ente’ no seu todo” (ROMBACH, H. Die W Welt Struktur. Probleme und Lösungen der Strukturontologie. Freiburg in Breisgrau: Rombach Verlag, 2003, p.16). 60 GIACHINI, Enio Paulo. Trabalho e si mesmo. Reflexões a partir de Heinrich Rombach apropriado. É desse modo que se dá existência: Estrutura que se projeta para exterioridade de suas condições prévias, subsume-as, delas se apropria. O universo do estranho ao si mesmo provoca a esse para um labor de apropriação. Não é um processo que se dá de modo direto e imediato, mas um processo de aproximação, que tem seu tempo próprio. No sermão 9, de Sermões alemães de Mestre Eckhart, tiramos um exemplo que nos pode ajudar a visualizar esse embate-trabalho. De igual modo, como quando o fogo quer tomar a madeira e ser por sua vez tomado pela madeira, encontra primeiro a madeira como o que não lhe [ao fogo] é igual. Por isso, é preciso tempo. O fogo começa por aquecer e fazer arder <a madeira>, fazendo-a depois fumegar e estalar, porque esta lhe <a madeira ao fogo> é desigual; e então, quanto mais quente se tornar a madeira, tanto mais silenciosa e calma ela se torna, e quanto mais se tornar igual ao fogo, tanto mais se torna pacífica, até tornar-se toda e inteira fogo. Se o fogo deve assumir em si a madeira, então toda desigualdade deve ser expulsa2. 2 MESTRE ECKHART. Sermões alemães alemães. Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006. v. 1. Sermão 11, p.98. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.61-68, jul./dez. 2008 61 artigos Apropriação se dá quando a madeira se “tornar toda e inteira fogo”. O exercício do empenho com a exterioridade busca desinstalar a estranheza e deixar se instaurar a igualdade onde antes não havia. Trata-se de um processo que implica “trabalho”. Não é um desempenho que vai por si e espontaneamente. Há um encontro e embate com o desigual. Não há fogo sem madeira; todavia são desiguais. O trabalho exerce um processo de transformação da própria estrutura. Implica Aufarbeitung (trabalho de acolhimento, subsunção), Einarbeitung (trabalho de ruminação e incorporação, apropriação) Ausarbeitung (trabalho de esgotamento, de levar até o fim, toda multiplicidade significativa da estrutura) e Umarbeitung (trabalho de trans-formação). No caso do fogo: aquecer, fazer arder, fazer fumegar, estalar... Significa um verdadeiro agir artesanal. O embate corpo-a-corpo com a exterioridade, com as condições prévias, implica o auto-exercício daquele que executa o trabalho. Há implicações de toda ordem que aos poucos, com o desenrolar-se do embate, vão ganhando o direcionamento próprio da convocação do trabalho: o adestramento dos movimentos elementares, a disponibilização e cordialização do ânimo, o afinamento do tato e do tino na escuta da convocação da tarefa, o exercício da paciência e fortalecimento da espera, o experimentar a alegria etc. O estranho não está fora do movimento do trabalho, mas está dentro do círculo de seu a-fazer. É um trabalho de limpidificação exterior e interior, de justo harmonizar interior e exterior. Tratase de um real processo de aprendizagem. Muitos processos de ida e volta são necessários até que aos poucos a madeira/matéria começa a se tornar mais quente, mais silenciosa e calma, tornando-se por fim em fogo (fogo/madeira, madeira/fogo). “É quando a estrutura acolhe internamente o que lhe é estranho e até o faz como o seu mais próprio”. Ao acolher totalmente a madeira, tanto fogo quanto madeira já não são fogo e madeira nem madeira e fogo mas um entre-fogo-madeira. Essa consumação de uma apropriação não esgota seu a-fazer nessa batalha, pois exterior e interior se encobrem e se ocultam novamente para dentro de seu próprio mistério, remetendo o si mesmo novamente ao estranhamento e à tarefa de re-criação. Esse embate é próprio de todo e qualquer trabalho, de toda e qualquer profissão. É o processo por excelência da arte. Mas talvez arte seja o modus faciendi de todo e qualquer fazer. Arte é por excelência o movimento da estrutura e é o núcleo de toda profissão autêntica. Segundo Rombach, aqui há níveis de pego (Ausgriff) da estrutura. Essa apropriação e interpretação feita pela estrutura não é “livre”, mas obedece a condições prévias. Quer dizer que uma estrutura é finita e limitada. Quem se organiza como estrutura não escolhe por si suas condições prévias. Todavia, essa finitude não é uma restrição mas um dom, no sentido de prender a um condicionamento, justo para dar condições de progredir. O condicionamento é a própria possibilidade de avanço e se faz presente do começo ao fim do processo. A gravidade nos prende ao chão, mas é isso que nos possibilita caminhar. Não há fogo sem material, como não há profissão sem desempenho. O grave da finitude e do limite das condições enfrentadas pelo trabalho do dia-adia carrega uma sombra de vislumbre da finitude e limite extremo, a morte. Rombach afirma que “a estrutura humana só pode ser considerada como alcançada com sucesso, quando ruminou (integrando) a morte, a qual lança suas sombras em todos os nossos dias como o ‘grave do trabalho’”. Poderíamos dizer que todo empenho acertado de superação do limite imposto pelas condições estranhas da estrutura, ou seja, todo trabalho é superação da morte. Como se dizia acima, reunir as condições da estrutura possibilita existência. Viver é integrar a morte. Trabalho e melhoramento O trabalho consolida a existência da estrutura. Ele visa a “melhora, melhoramento (Meliorisation). Melhoramento é o sentido fundamental do acontecer”. Será que podemos dizer: todo acontecer, enquanto é acontecer, é um direcionamento em vista de melhora? O acontecer é um melhorando? Do contrário não há acontecimento. Será esse o sentido da parábola dos talentos, do Evangelho? Os talentos nos são dados sob responsabilidade, a cada um diversamente, de modo único e intransferível. O trabalho promove a melhora. Ao estabilizar-se, o processo de melhora dos talentos nada acontece, acontece o nada, se instaura a Unfuge, o desajuste, a piora, a decadência. Nesse sentido nada é bom, e tudo precisa tornar-se melhor. O avançar torna-se um imperativo, mas não como um adiante e adiante insensato. Se o movimento se estabiliza, há um pioramento (Pejorisation), aquilo que foi alcançado se desfaz, sofre um enrijecimento e se torna o contrário de si mesmo. O adiante e adiante desatinado é sempre unilinear, chapado e raso. No sentido da estrutura, o avanço implica muitas vezes um recuo, a retomada, a reelaboração, o redirecionamento, até porque adiante e acima não tem caráter temporal e espacial, 62 GIACHINI, Enio Paulo. Trabalho e si mesmo. Reflexões a partir de Heinrich Rombach quantitativo, mas estrutural. Poderíamos dizer, é aprofundamento e ampliação da sintonia da própria estrutura. Quanto mais Aufarbeitung (trabalho de acolhimento, subsunção), Einarbeitung (trabalho de ruminação e incorporação, apropriação) Ausarbeitung (trabalho de esgotamento, de levar até o fim, toda multiplicidade significativa da estrutura) e Umarbeitung (trabalho de trans-formação), mais elevação, ou seja, mais interioridade, maior intensificação da vida própria da estrutura. Rombach afirma: “Melhoramento é elevação. Um acontecimento se modifica logo em acontecimento estrutural quando se encontra uma possibilidade de elevação”. Elevação é um verdadeiro achado (Findung) um achado originário, uma invenção (Erfindung) da estrutura por si mesma. Achado, invenção, descoberta, carregam o encanto da surpresa, do novo inusitado, mas de algum modo aguardado. É o próprio empuxo velado do trabalho da estrutura. Esse processo de melhorização que se dá na elevação é o movimento estruturante característico dos sermões eckhartianos. Sempre que fala de elevar-se acima de tempo e de lugar, Eckhart está falando desse movimento. Não é um processo de elevação dentro de uma ordenação sistemática pré-estabelecida, em graus e degraus, até alcançar o último e sumo ente. Nos faz desconfiar ser um processo imanente à experiência humana de superação e elevação, a cada vez total, pois também aqui mora o divino. Vejamos: “Coloca-te no portal!” Os membros de quem ali se encontra estão coordenados. Essa palavra quer dizer que a parte suprema da alma deve estar erguida, firmemente disposta. Tudo o que está ordenado deve ordenar-se sob o que está acima de si... Por isso a alma deve recolher-se e elevar-se e ser um espírito3. Os membros estarem coordenados, a alma estar erguida, sob o que está acima de si... o fluxo do acontecer, enquanto acontecer, é essa elevação. O que não alcança esse elevar-se não acontece, des-acontece, é nada. Se nos elevarmos acima de todas as coisas e tudo que está em nós for também elevado, nada então nos oprime. O que está abaixo de mim não me oprime. Se eu buscasse puramente só a Deus, a modo de nada haver acima de mim a não ser Deus, nada então me seria pesado e eu não me perturbaria tão rápido. Santo Agostinho diz: Senhor, quando me volto para ti, me é retirado todo peso, sofrimento e tribulação. Quando damos um passo para além do tempo e das coisas temporais, somos livres e alegres todo o tempo, e assim se dá a “plenitude do tempo”4. No começo, falávamos de trabalho como meio de produção. Afazer árduo e trabalhoso, pesado e difícil. É o trabalho em vista de... um bem; este em vista de... outra coisa... numa remissão sem con-tenção, sem con-tentamento. É quando trabalho e êxtase parecem ser contrários. 3 MESTRE ECKHART. Op. cit., sermão 19, p.133. 4 MESTRE ECKHART. Op. cit., sermão 11, p.98. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.63-68, jul./dez. 2008 63 artigos Trabalho e êxtase “O homem ama tanto trabalhar bem como mal... e até acredito que a primeira maneira lhe é muito mais agradável, como é mais em conformidade com sua natureza... E, no entanto, quanto mais feliz seria a humanidade se o trabalho em vez de ser castigo fosse a finalidade!”5. Adentrar um trabalho exige preparação, ordenar os membros a uma elevação. Adentrando num trabalho, seja físico ou espiritual, esse desenvolve uma dinâmica que nos toma e nos carrega. “Ele desenrola garras e passos, ‘leva consigo’ o factível; assim ‘flui’ e avança ‘alegremente’”. Os antigos usavam o termo “complacência” para caracterizar o que Rombach chama de êxtase. O êx êxtase, estar fora, além, traz referência ao dar-se de um evento que empurra o sistema de condições prévias para uma nova luz, para uma nova configuração. Visto de fora, esse processo só pode ser caracterizado negativamente como não não-estático, além-do-estacionário. Esse novo satisfaz porque vê a si mesmo reafirmado fora do estático, além numa reverberação. O trabalho dimensiona o aspecto de sentido da realidade, traz sentido, vivifica o real. É só depois disso que ele cria os meios para “viver”. Com isso se dá uma composição de interior e exterior; o interior se abre ao estranhamento das condições que o invocam, adota, elabora, se apropria, e solta novamente essas condições, ou antes, esse “exterior” se ausenta novamente, de volta, para dentro do estranho. Assim prossegue o movimento de familiarização-estranhamento, dimensionados numa disposição de sentido. O marceneiro que prepara a madeira para confeccionar um utensílio se vê às voltas sempre de novo com o material indeterminado da madeira para novas elaborações. Junto com “a madeira vêm todos os condicionamentos do selvagem, tosco e sem forma – material. Reerguer a si mesmo para a dinâmica e disposição para esse afazer, ordenando todo seu ser para isso, pertence também ao movimento de retomada do estranho. Ver-se às voltas sempre de novo é o aguilhão de pertença a esse estranhamento. Perfaz o sentido de mundo do marceneiro. Quando esse trabalho não é acolhimento mas desprezo do exterior, o estranhamento se torna alienação, e o si mesmo, o interior, torna-se o “exterior do exterior”. Rombach parece estar descrevendo aqui algo decisivo para o mundo do trabalho. Quando o trabalho atinge a sua vocação verdadeira, atina e acerta com seu destino e lhe corresponde, se dá uma disposição e composição entre si mesmo-estranhamento que sempre de novo renova e reafirma a si mesmo. O trabalho alimenta a si mesmo da alegria da reafirmação. Ele faz sentido. Caso contrário, o si mesmo se vê impelido a recolocar-se na fuga de ser apenas o “exterior do exterior”, é uma reconvocação para uma re-escuta e recolocação do si mesmo. 5 RODIN, A. A arte arte. Diálogos com Paul Gsell. São Paulo: Chrayon, p.78. 64 GIACHINI, Enio Paulo. Trabalho e si mesmo. Reflexões a partir de Heinrich Rombach Trabalho e totalidade Nesse sentido, todo e qualquer trabalho, profissão tem sua razão de ser. Prestar contas corresponde a essa escuta. Não há exteriormente um trabalho mais nobre que outro. Ou, melhor dizendo, trabalho não se refere mais a um tipo de atividade mas a um modo de ser dentro de uma atividade, um modo de perfazer a atividade. Todos os demais qualificativos do trabalho, como útil, produtivo, inútil, improdutivo estão colocados numa interpretação que coloca como o determinante do trabalho um elemento do mesmo, o produto. Mas como medir a fecundidade do trabalho? “Tomado fenomenologicamente, trabalho consiste também na rentabilidade dos mais extremados âmbitos exteriores e da auto-relação com os mesmos.” Assim, o mínimo feito está aberto e em sintonia com o todo. Na medida em que se dá abertura, estranhamento e elevação, a existência experimenta a vitalidade de si mesma. É a dinâmica do pouco, passo a passo, vagaroso, que recoloca todo feito na dinâmica do afazer. É quando pela atividade e atuação uma existência cresce em intensidade da própria vida e não em quantificação do saber e do poder. Assim, o trabalho tem sua própria dinâmica de repercussão, rentabilidade e produtividade. É a própria estrutura que remete sua auto-realização para seus âmbitos de convivência, e na medida de sua autenticidade essa reverberação se torna inteira em todos os níveis e direcionamentos que lhe dizem respeito. O processo de tornar-se inteiro é experimentado cada vez como libertação. Segundo Rombach, liberdade não é um estado, mas uma “categoria de passagem”. O que significa, liberdade só existe como libertação, “emancipação”. Como no processo de melhoramento, ao estabilizar-se, a liberdade decai e torna-se em aprisionamento. Voltada para o futuro, a estrutura, o si mesmo só experimenta liberdade no movimento de irrupção. Seu confronto e embate com as condições exteriores invoca e convoca para a consumação do novo, “topar com novas possibilidades”. Repercute aqui o que se dizia antes a respeito de trabalho e totalidade. “O descobrimento de um novo futuro é sempre o descobrimento de um novo passado”. A descoberta de novas condições externas está pari passu com a descoberta de nova interioridade. O que significa que não se dá um abandono do passado ou das condições antigas do si mesmo mas uma retomada pela elevação. A vida do passado não é um depósito já estacionado e pronto, ido. É sempre a bagagem do si mesmo na direção de reinventar a própria vida, reinventar a si mesmo. É o que se diz no texto com o conceito de coerência. “A liberdade está ligada à condição da coerência”. Não se dá uma libertação, por saltos, por sobre, passando ao largo da própria história. Mas como libertação das potencialidades da história própria. A liberdade persiste na sondagem e aproveitamento das possibilidades de melhoramento. Os caminhos humanos, por mais difíceis, jamais estão fechados. Vida é a possibilitação do aberto. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.65-68, jul./dez. 2008 65 artigos Trabalho e liberdade Seja qual for o conteúdo emprestado a essas possibilidades, a esperança que cada pessoa encontra em sua vida denuncia essa possibilidade para o aberto e novo. Denuncia igualmente uma identidade com esse novo, visto que a esperança sempre vem acompanhada de alegria. Esse movimento coerente não pode ser, não é privilégio de alguns, de um grupo, de uma facção. Enquanto coerente, seu direcionamento visa o todo, seja de um indivíduo, de um grupo ou de uma sociedade. O movimento de libertação é igualmente movimento de totalização, inteirização. Trabalho e concretização Nessa dinâmica de melhoramento e alavancamento ou elevação do todo do si mesmo, na busca de inteirização, é im-portante o processo de correção. Melhoramento só surge através de redirecionamento, reorientação. Está implícita aqui e assumida a possibilidade do erro. “Os erros possuem um caráter indicativo, são chances de experiência, e na realização das possibilidades de experiência, sua função é transformada por assim dizer em positiva.” Não é possível aplicar uma “moral” ao si mesmo, à estrutura, que provenha de fora. A moralidade do si mesmo é a busca da concreção, concretização. Orientação, medida, comparação, autocorreção redirecionamento devem provir sempre de uma escuta do si mesmo. Mas como evitar que aqui não se dê uma confirmação do subjetivismo, intimismo, um fazer o que bem se entende, o que dá na telha? Se não há padrão de medida exterior...? O conceito de coerência implica novamente essa dificuldade ainda mais desafiadora de atinar para a convocação e o movimento de concreção do si mesmo. Esse deve ser sempre um movimento de totalidade, uma libertação da e rumo à totalidade, a inteireza. Levar à efetivação o projeto da própria existência. É precisamente por isso que se torna em autêntico movimento de libertação do subjetivismo. O subjetivismo não é superado pela adoção de conceitos, idéias, ideais mais elevados, da sociedade, da religião, da filosofia..., mas pela concreção do si mesmo. É só essa que pode abrir para o novo, para o futuro de novas possibilidades e possibilidades novas. A título de conclusão desse apanhado de idéias/indicações, essa estória melhor ilustra o pouco que se quis dizer. Todos os títulos/conceitos/indícios mal elaborados acima, aparecem melhor trabalhados abaixo. Destrinchando um boi O cozinheiro do Príncipe Wen Hui estava destrinchando um boi. Lá se foi uma pata; pronto, um quarto dianteiro. Ele apertou com um dos joelhos, o boi partiu-se em pedaços. Com um sussurro, a machadinha murmurou como um vento suave. Ritmo! Tempo! Como uma dança sagrada, como “a floresta de arbustos”. Como antigas harmonias! 66 GIACHINI, Enio Paulo. Trabalho e si mesmo. Reflexões a partir de Heinrich Rombach ”Bom trabalho”!, exclamou o Príncipe. ”Seu método é sem falhas”! ”Método?”, disse-lhe o cozinheiro, afastando a sua machadinha. ”O que eu sigo é o Tao, acima de todos os métodos! Quando primeiro comecei a destrinchar bois, via diante de mim o boi inteiro. Tudo num único bloco. ”Depois de três anos, nunca mais vi este bloco. Via as suas distinções. ”Mas, agora, nada vejo com os olhos. Todo o meu ser apreende. Meus sentidos são preguiçosos. O espírito livre para operar sem planos segue o seu próprio instinto, Guiado pela linha natural, pela secreta abertura, pelo espaço oculto. Minha machadinha descobre seu caminho. Não corto nenhuma articulação, não esfacelo nenhum osso. ”Todo bom cozinheiro precisa de um novo facão, uma vez por ano – ele corta. Todo cozinheiro medíocre precisa de um novo cada mês – ele estraçalha! ”Eu uso a mesma machadinha há dezenove anos. Cortou mil bois. Sua lâmina é tão fina como se fosse afiada há pouco. ”Não há espaços nas articulações; A lâmina é fina e afiada: Quando sua espessura encontra aquele espaço, Lá você encontrará todo o espaço de que precisava! Ela corta como uma brisa! Por isso tenho esta machadinha há 19 anos, como se fora afiada há pouco! ”Realmente, há, às vezes, duras articulações. Vejo-as aparecendo, vou devagar, olho de perto, Seguro a machadinha atrás, quase não movo a lâmina, e, vapt! A parte cai como um pedaço de terra. ”Então retiro a lâmina, fico de pé, imóvel, E deixo que a alegria do trabalho penetre. Limpo a lâmina e ponho-a de lado”. Disse o Príncipe Wan Hui: 6 artigos ”É isso mesmo! Meu cozinheiro ensinou-me como devo viver a minha própria vida!”.6 MERTON, T. A via de Chuang Tzu Tzu. 8.ed. Petrópolis: Vozes, 1996. p.62-64. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.67-68, jul./dez. 2008 67 Referências ECKHART, Mestre. Sermões alemães alemães. Tradução e introdução de: Enio Paulo Giachini. Bragança Paulista: EDUSF; Petrópolis: Vozes, 2006. MERTON, T. A via de Chuang Tzu Tzu. 8.ed. Petrópolis: Vozes, 1986. RODIN, A. A arte arte: dialogos com Paul Gsell. São Paulo: Chrayon [s.d.] ROMBACK, H. Substanz, system, struktur struktur: die Ontologie des Funktionalismus und der philosophische Hintergrund der modernen Wissenschaft. Freiburg: K. Albert, 1965. 68 GIACHINI, Enio Paulo. Trabalho e si mesmo. Reflexões a partir de Heinrich Rombach A Ética Kantiana e o Primado da Autonomia Kantiana Ethics and the Prioryty of Autonomy Ítalo Kiyomi Ishikawa* Resumo No presente artigo tem-se por objetivo apresentar a ética de Kant e ressaltar seus princípios metafísicos, e visa-se demonstrar, também, os fundamentos racionais do Direito e do Estado. A ética deontológica de Kant estabelece o princípio formal do imperativo categórico, este somente é possível através da autonomia da vontade humana, que é transcendentalmente livre, capaz de determinar a si mesma. A moral cristã, através de sua progressão ininterrupta a um reino inteligível, é validada pelo projeto kantiano, pois ambos os sistemas constituem éticas do merecimento, uma vez que o sujeito moral merece ser feliz, embora a ética não seja uma doutrina da felicidade. O Direito e o Estado possuem um fundamento metafísico, a idéia universal e necessária de proteção e garantia das liberdades individuais. A ética de Kant culmina na necessidade de paz universal entre as nações, na formação de uma federação internacional; tal aspiração pela paz constitui uma exigência moral da razão. Palavras-chave alavras-chave: Immanuel Kant; autonomia; liberdade; esclarecimento; direito; estado; paz. * Licenciado em filosofia pela FAE Centro Universitário Franciscano, aluno de pós-graduação em fundamentos de ética pela PUC-PR. O presente artigo foi elaborado originalmente a partir trabalho de conclusão de curso apresentado à então Faculdade de Filosofia São Boaventura da FAE - Centro Universitário Franciscano. e-mail: [email protected]; í[email protected] The present article seeks to present Kant’s ethics and to highlight its metaphysical principles, and seeks to demonstrate also the rational fundamentals of Law and State. The Deontological ethics of Kant established the formal principal of categorical imperative, this is only possible through the autonomy of the human will, which is transcendentally free, capable of self determination. The Christian morals, through continuous progression to and intelligible kingdom, is validated by the kantian project, because both systems make up ethics of deserving, because the moral subject deserves to be happy, although the ethics is not one of ultimate happiness. The Law and the State have metaphysical fundamentals, the universal and necessary idea of protection and guarantee of individual liberties. Kant’s ethics culminate with the need for universal peace among nations in the formulation of international federation, this aspiration for peace make up a moral pre-requisit of reason. Key W ords Words ords: Immanuel Kant; autonomy; freedom; enlightenment; right, state, peace. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.69-81, jul./dez. 2008 69 artigos -resumo de monografia Abstract Introdução A construção da filosofia transcendental de Immanuel Kant erigiu uma ética fundada no valor da liberdade da vontade humana. O homem é capaz de dar a si mesmo suas próprias leis, e a moralidade é conferida pela universalização racional da máxima da ação. Agir moralmente é um dever dado universal e necessariamente pela razão. No projeto filosófico de Kant a moral cristã é validada: Deus, imortalidade da alma e liberdade, embora não possam ser conhecidos teoricamente, são assumidos como exigências racionais da ética. A deontologia da ética kantiana a exime de contemplar a felicidade como finalidade da ação moral, a ética é antes um merecer ser feliz. O Estado e o Direito, como foram concebidos por Kant, possuem fundamentos metafísicos, isto é, da razão pura. O contrato social, através do qual acontece a passagem do estado de natureza para o estado civil, é concebido como uma idéia da razão onde o consenso é dado sobre a limitação e a defesa das liberdades individuais. Kant oferece pressupostos para o Estado Liberal ao conceber a liberdade como o direito natural fundamental, e o Estado Civil legitima-se a partir de sua proteção. A saída do estado de natureza é analogamente válida entre os países: o cume da ética de Kant é a necessidade moral de paz entre as nações livres. Para que a guerra seja efetivamente evitada, deve-se criar uma confederação internacional que legitime as relações entre os povos. No presente trabalho, apresenta-se a ética de Kant como uma teoria e prática da liberdade, uma ética do esclarecimento, do uso da maioridade no pensamento. Ética que somente é possível pela liberdade metafísica do ser humano, este, mediante a pura espontaneidade de sua vontade, é capaz de determinar e escolher a si mesmo. 1 A herança da filosofia teórica A obra Crítica da razão pura (1781) de Immanuel Kant (1724-1804) operou a Revolução Copernicana do conhecimento: através da construção da filosofia transcendental, Kant erige a subjetividade como o centro do conhecimento humano. Examinando as possibilidades e limites do conhecimento, chega à conclusão de que a "razão conhece segundo um projeto seu" (KANT, 1997a, p.xx). Através da distinção feita entre fenômeno e noumenon, a metafísica não pode ser aceita como ciência, pois as proposições metafísicas extrapolam os limites da experiência, suas proposições não contemplam o viés sintético a priori do conhecimento verdadeiro. Porém, na Dialética da razão pura, nas aporias transcendentais em que a razão se encontra, Kant encontra um horizonte onde a metafísica pode ser pensada, embora não possa ser conhecida. A terceira antinomia da razão pura possui uma tese e uma antítese: a tese assevera que a liberdade humana, puramente transcendental, pode iniciar por si mesma uma série de fenômenos. A antítese, da esfera do entendimento, afirma que tudo na natureza 70 ISHIKAWA, Ítalo Kiyomi. A ética kantiana e o primado da autonomia está associado à ordem de causa e efeito. A razão pura não pode estabelecer a realidade da liberdade, pois só é real o que concorda com as condições materiais da experiência. Tampouco pode provar as possibilidades da liberdade, pois esta depende das condições formais da experiência. A conclusão de Kant, a partir da via teórica, é de que a liberdade não é impossível, isto é, não está em contradição com o determinismo material. Se não é possível comprovar a realidade da liberdade, ao menos é possível pensar sua existência (cf. KANT 1997a, p.406-427). É a partir da liberdade transcendental do homem que será fundada a ética de Kant: a vontade humana, como pura espontaneidade, é capaz de determinar a si mesma e iniciar uma série de causas. A liberdade só é possível de ser pensada a partir da teoria do duplo caráter do homem: a tese da terceira antinomia é verdadeira em relação à razão, a partir de sua liberdade transcendental; a antítese é verdadeira em relação ao entendimento, a partir do caráter empírico do homem. Este, entre as coisas a serem conhecidas, aparece como fenômeno na natureza, mas em nível de ética é sempre noumenon, inteligível, sujeito transcendental, ou seja, capaz de agir segundo a não-causalidade da vontade. A fim de sistematizar a ética apenas apontada pela Crítica da razão pura, Kant publica a Fundamentação da metafísica dos costumes (1785), a Crítica da razão prática (1788) e a Metafísica dos costumes (1797). Preliminarmente, na Fundamentação, Kant reconhece que a ética "não se deve buscar em nenhuma outra parte senão numa filosofia pura" (KANT, 1997b, p.17), isto é, trata-se de uma metafísica dos costumes, pois a metafísica, incapaz de ser conhecida no projeto teórico, é encontrada como fundamento da ética no sujeito da ação. "A metafísica dos costumes deve investigar a idéia e os princípios duma possível vontade pura, e não as acções e as condições do querer humano em geral" (KANT, 1997B, p.17). A investigação pelos fundamentos da ética é a busca pelo "bom sem limitação" (KANT, 1997B, p.21) da ação moral. Este princípio supremo é encontrado na boa vontade. A ética de Kant é deontológica, isto é, sua preocupação recai sobre os princípios da ação moral, ou seja, seus motivos: a boa vontade não possui outro fundamento determinante, mas ela mesma é capaz de determinar a escolha. A boa vontade expressa a "incondicionada indeterminação humana" (HECK, 2004, p.508). A vontade humana, porém, é contingente; ao lado de um querer bom, há outros interesses, a vontade humana é afetada por inclinações, e, somente onde a vontade humana é contingente, a boa vontade se configura como dever. Através desta, a moralidade é constituída "na forma de mandamento, do desafio, do imperativo" (HÖFFE, 2005, p.193). Na interpretação de Höffe: Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.71-81, jul./dez. 2008 71 artigos -resumo de monografia 1.1 O princípio da boa vontade e o dever Só se pode falar de dever onde há, ao lado de um apetite racional, ainda impulsos concorrentes das inclinações naturais, onde há, ao lado de um querer bom, ainda um querer ruim ou mau. Esta circunstância é o caso em todo ente racional que é dependente também de fundamentos determinantes sensíveis. Tal ente racional sensível ou finito é o homem. Na medida em que Kant elucida a moralidade com a ajuda do conceito de dever, ele persegue o interesse de compreender o homem como ente moral (HÖFFE, 2005, p.193). Há três possibilidades de agir a partir do dever (cf. KANT, 1997B, p.27-28). A primeira forma é agir conforme ao dever; tal ação não é moral, porque o motivo da ação está em quaisquer outros interesses menos na vontade do sujeito. A segunda forma é agir conforme ao dever motivado por uma inclinação subjetiva, e tal ação ainda não é moral, porque o móvel está em outra coisa que ainda não é ação por si mesma. A ação moral, finalmente, é aquela assumida simplesmente por dever, sem motivação externa ou inclinação subjetiva. Para a ética de Kant, o valor da ação moral não está na meta a que se possa pretender, mas somente na motivação, na máxima que a determina. A ética depende "...unicamente do princípio do querer, segundo o qual a ação foi produzida, sem tomar em conta nenhum dos objetos da faculdade apetitiva" (KANT, 1997b, p.30). Entre o ilimitadamente bom da vontade boa e a ação por dever deve haver um terceiro termo para mediar sua união: o sentimento de respeito. De fato, o homem necessita de um móvel para agir, e nenhum móvel tomado da sensibilidade pode ser qualificado como ético; não resta, portanto, "outro móvel para a ação de quem queira agir por dever senão o respeito à lei que lhe ordena cumprir o dever" (PASCAL, 2005, p.122). Em nota, Kant esclarece que não se trata de algo obscuro, embora seja um sentimento. O respeito não é recebido por influência externa ao sujeito; ao contrário, é "um sentimento que se produz por si mesmo através de um conceito da razão" (KANT, 1997B, p.32), portanto muito distinto da inclinação e do medo. 1.2 O aspecto imperativo da ética A ética trata de "princípios íntimos que não se vêem" (KANT, 1997B, p.40), e a moralidade nunca pode ser apreendida a partir da experiência, pois esta jamais poderia conferir a universalidade e a necessidade que a moral exige. Se, por um lado, não se pode "prestar pior serviço à moralidade do que querer extraí-la de exemplos", por outro, "a razão por si mesma e independentemente de todos os fenômenos ordena o que deve acontecer" (KANT, 1997b, p.41). Diante de uma vontade humana contingente, o dever se apresenta, junto com suas leis morais objetivas e derivadas de princípios racionais, como obrigação. "A representação de um princípio objectivo, enquanto obrigante para uma vontade, chamase mandamento (da razão), e a fórmula do mandamento chama-se imperativo" (KANT, 1997b, p.48). O princípio objetivo do dever universal, representado diante de uma vontade contingente, assume o caráter de mandamento, de imperativo. Uma vontade que fosse 72 ISHIKAWA, Ítalo Kiyomi. A ética kantiana e o primado da autonomia plenamente racional, uma vontade perfeita, não se poderia representar como obrigada a agir conforme ao ideal prático da razão. Os imperativos são fórmulas "para exprimir a relação entre leis objectivas do querer em geral e a imperfeição subjectiva deste ou daquele ser racional, da vontade humana, por exemplo" (KANT, 1997b, p.49). Kant conceitua o imperativo categórico na oposição e superação aos imperativos hipotéticos. Esses também são mandamentos da razão, mas possuem uma finalidade fora de si mesmos, movem-se a partir da máxima que reza que "aquele que quer os fins quer os meios". O imperativo hipotético apresenta a necessidade prática de uma ação que visa atingir uma finalidade. O imperativo hipotético é a inclinação prática que determina a vontade em direção a algo. "Os (imperativos) hipotéticos representam a necessidade prática de uma ação possível como meio para se alcançar qualquer coisa que se quer (ou que é possível que se queira)" (KANT, 1997b, p.50). Nos imperativos hipotéticos, sejam eles de destreza (busca de fins contingentes) ou de prudência (busca da felicidade), a determinação da vontade se inclina em direção a algo, a racionalidade é nesses casos parcial e contingente. Kant demonstra a impossibilidade de fundar, num nível transcendental, a moral sobre os imperativos ditos hipotéticos, eles não comportam a universalização necessária para o projeto kantiano. O imperativo categórico marca a superação dos imperativos hipotéticos, pois A natureza do imperativo categórico é sintética a priori, pois seu fundamento está na razão pura e se constitui na experiência: a máxima é dada pela razão, mas somente na ação ele pode se constituir. A formulação do imperativo categórico é: "Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal" (KANT, 1997B, p.59). Trata-se de um princípio objetivo incondicionado, isto é, aquilo a que todo agente racional, independentemente de seus desejos e fins particulares, obedeceria necessariamente se a razão tivesse completo controle sobre suas paixões e inclinações. O imperativo categórico só se configura como tal porque é universalizável, tem de ser válido para todos os agentes racionais, possui um caráter objetivo. O imperativo categórico não determina "conteúdos" morais, mas preocupa-se tão-somente com a forma da obrigação moral. Entre a lei moral da razão e a ação do sujeito, Kant introduz a máxima, que é o princípio subjetivo da ação, aplicável não somente a uma situação, mas a diferentes situações da mesma espécie. A máxima tem um aspecto material por considerar as circunstâncias, os fins e as conseqüências das ações individuais, mas deve apresentar a forma da universalidade. Quer dizer, sua validade depende Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.73-81, jul./dez. 2008 73 artigos -resumo de monografia só a lei traz consigo o conceito de uma necessidade incondicionada, objectiva e conseqüentemente de validade geral, e mandamentos são leis que têm de se obedecer, quer dizer que se têm de seguir mesmo contra a inclinação (KANT, 1997, p.53). da possibilidade dela transformar-se em lei universal. Pelo conteúdo ou matéria, conhecemos o lado concreto da moral e pela sua forma, há uma proximidade da máxima com a lei moral como tal (GUIMARÃES, 2004, p.522-523). A pergunta "como é possível um imperativo categórico?" é respondida através da liberdade e da autonomia. Aqui se chega ao escopo da ética de Kant, pois o "citado princípio da autonomia é o único princípio da moral" (KANT, 1997b, p.85-86). 2 Liberdade e autonomia: os fundamentos da ética O imperativo categórico só é possível porque entre vontade, que "é uma espécie de causalidade dos seres vivos enquanto racionais" (KANT, 1997b, p.93) e dever, que é "a necessidade objectiva de uma acção por obrigação" (KANT, 1997b, p.84) tem que haver um terceiro termo: a liberdade. Liberdade é, pois, a capacidade da vontade de iniciar uma causalidade "independentemente de causas estranhas que a determinem" (KANT, 1997b, p.93). Tal definição de liberdade da vontade por enquanto só se apresenta em seu aspecto negativo, ou seja, da liberdade da vontade não ser determinada por qualquer coisa exterior a ela. Tal conceito de liberdade é puramente a priori. Para Kant, "a definição de liberdade que acabamos de propor é negativa e portanto infecunda para conhecer sua essência; mas dela decorre um conceito positivo desta mesma liberdade, que é tanto mais rico e fecundo" (KANT, 1997b, p.93), ou seja, uma definição sintética. Analiticamente, o conceito de causa implica um efeito; esse conceito de causalidade se configura como lei. Ora, a liberdade enquanto capacidade da vontade de iniciar por si mesma uma causalidade traz em si uma espécie de lei, pois uma vontade absolutamente livre seria um absurdo (cf. KANT, 1997b, p.94). As leis da liberdade da vontade não são qualquer tipo de lei, dadas de fora do sujeito, mas "que outra coisa pode ser, pois, a liberdade da vontade senão autonomia, isto é a propriedade da vontade de ser lei para si mesma?" (KANT, 1997b, p.94). Se se afirma que "a vontade é, em todas as acções, uma lei para si mesma" (KANT, 1997b, p.94), e uma vontade boa sem limitação "caracteriza apenas o princípio de não agir segundo nenhuma outra máxima que não seja aquela que possa ter-se a si mesma por objecto como lei universal" (KANT, 1997b, p.94), concluise que tal definição de liberdade da vontade é a mesma do imperativo categórico: "Age apenas segundo uma máxima que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal" (KANT, 1997b, p.59). Para Kant, portanto, "vontade livre e vontade submetida a leis morais são uma e a mesma coisa" (KANT, 1997b, p.94). Resumidamente e em outros termos, os pressupostos teóricos lançados na Crítica da razão pura continuam válidos na filosofia prática. Kant estabeleceu que só é possível conhecer o fenômeno, que começa na experiência. Fazer experiência da liberdade seria atribuir-lhe uma causa, o que comprometeria os princípios do projeto moral, um princípio que tem de ser incondicionado. Ora, a liberdade não pode ser "conhecida" no viés teórico da Crítica da razão pura, mas tão-somente conhecida na prática moral. O resultado 74 ISHIKAWA, Ítalo Kiyomi. A ética kantiana e o primado da autonomia dessa construção conceitual é que a liberdade não pode ser provada teoricamente, mas tem que ser pressuposta na prática moral. O homem tem que pressupor-se como livre para que sejam possíveis os imperativos categóricos. O princípio de que a vontade é lei para si mesma é uma proposição sintética a priori; a ligação entre vontade pura e vontade empírica, isto é, entre uma vontade absolutamente boa e uma vontade afetada pelas inclinações só é possível por meio da liberdade. Por fim, se o imperativo categórico é possível mediante o conceito positivo da liberdade, a pergunta pela possibilidade desse mesmo imperativo é imperscrutável, pois a razão metafísica é superior ao entendimento, e tal questionamento extrapola os limites do conhecimento: "como seja possível esse pressuposto mesmo (a autonomia), isso é o que nunca se deixará jamais aperceber por nenhuma razão humana" (KANT, 1997b, p.114). Para Kant, a ética não pode ser uma doutrina da felicidade, assim como Aristóteles a concebeu, mas a ética é um merecer ser feliz. Kant chega a afirmar que "o exato oposto do principio da moralidade é tornar o princípio da felicidade própria fundamento determinante da vontade [...]" (KANT, 2002, p.58). A lei moral está muito acima da máxima que busca a felicidade pessoal, o amor de si ou a prudência: "A máxima do amor de si (prudência) apenas aconselha aconselha; a lei da moralidade ordena ordena. Há, porém, uma grande diferença entre aquilo que nos aconselha e aquilo para o qual somos obrigados obrigados" (KANT, 2002, p.60). A razão prática e suas leis são superiores à máxima da felicidade porque a ação moral está na eminente possibilidade de todos: todos os homens podem agir moralmente aqui e agora, enquanto que a busca da felicidade não está na eminente possibilidade de todos, e tampouco a felicidade geral, como visto acima, tem um único objetivo entre os homens (cf. KANT, 2002, p.61). Através de sua ética, Kant valida a moral cristã; com efeito, a forma moral dos preceitos evangélicos é a mesma da ética Kantiana: ambos os sistemas fundam-se sobre a autonomia da vontade e aspiram ao progresso moral ininterrupto, rumo ao infinito. Para Kant, a lei moral "concorda perfeitamente com a possibilidade de um tal mandamento: ama a Deus acima de tudo e teu próximo como a ti mesmo mesmo" (KANT, 2002, p.134). Kant reconhece que é impossível amar a partir da exigência de uma lei, mas, na compreensão de Kant, a proposição evangélica refere-se a um amor prático, que tenciona que se cumpram os mandamentos divinos de bom grado (cf. KANT, 2002, p.134). Os princípios da razão prática pura se conformam com a moral do Evangelho porque esta não é restritiva quanto aos conteúdos, mas erigi-se apenas numa forma que aspira a progressão ao infinito. O homem, possuidor de vontade contingente, vê-se, por um lado, determinado a agir moralmente pela influência da lei moral; e, por outro lado, se vê submetido aos apetites e inclinações da sensibilidade. A moral evangélica é válida porque valoriza a disposição: mesmo que não seja plenamente atingida, a perfeição moral não pode ser renunciada. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.75-81, jul./dez. 2008 75 artigos -resumo de monografia 2.1 Felicidade e virtude Portanto aquela lei de todas as leis, como todo o preceito moral do evangelho, apresenta a disposição moral em toda a sua perfeição, do modo como ela enquanto ideal de santidade não é atingível por nenhuma criatura; contudo é o arquétipo do qual devemos aspirar aproximar-nos e, em um ininterrupto mas infinito progresso, aspirar a ela igualar-nos (KANT, 2002, p.134-135). No projeto teórico da Crítica da razão pura, a razão se encontrou em questões metafísicas em que não obteve soluções: Deus, imortalidade da alma e liberdade não podem ser conhecidos. Mas o que fora antinomia agora se converte em postulado: Deus, imortalidade da alma e liberdade são exigências da razão prática pura sob o ideal do sumo bem. A razão, portanto, "procura a totalidade incondicionada do objeto da razão prática pura sob o nome de sumo bem bem" (KANT, 2002, p.176). A lei moral é a condição suprema do conceito de sumo bem, que se configura como único objeto que determina a vontade, pois o conceito de sumo bem já está incluído e pensado numa vontade pura: Mas é evidente que, se no conceito de sumo bem a lei moral já está compreendida como condição suprema, então o sumo bem não é simplesmente objeto objeto, mas também o seu conceito e a representação de sua existência possível mediante a nossa razão prática são ao mesmo tempo o fundamento determinante da vontade pura; porque então a lei moral – já efetivamente incluída e pensada conjuntamente nesse conceito – e nenhum outro objeto determina a vontade segundo o princípio da autonomia (KANT, 2002, p.179). Através dos postulados da razão prática pura, Kant concebe uma fé racional (cf. KANT, 2002, p.203). Os postulados não são necessários na construção do projeto moral, mas tornam-se exigências desta mesma razão quando esta se torna objetiva. Importante observar a intenção kantiana de contemplar e validar a moral cristã. A ética não pode ser uma doutrina da felicidade; Deus, imortalidade da alma e liberdade se convertem em exigências da razão prática pura; logo, a ética é um merecer a felicidade, pois assim como o Evangelho busca a progressão moral ininterrupta, rumo ao infinito, o homem ético é aquele que merece uma felicidade sem fim que não pode ser dada no mundo fático. A Crítica da razão prática tem o seu desfecho com um testemunho de Kant: "Duas coisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre nova e crescente, quanto mais freqüente e persistente a reflexão ocupa-se com elas: o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim" mim (KANT, 2002, p.255). Embora a metafísica tenha sido eliminada na primeira crítica, Kant a encontra e a admite numa outra esfera de conhecimento: a moral. Através dela, os preceitos cristãos são validados: é moralmente bom crer em Deus e aspirar o merecimento ininterrupto dos justos. Na frase citada acima é possível intuir uma certa religiosidade sobre a moral, o que para Kant é uma fé racional. 76 ISHIKAWA, Ítalo Kiyomi. A ética kantiana e o primado da autonomia 3 Justiça, liberdade e paz O Direito distingue-se da ética porque se configura como uma moral empírica, isto é, age-se legalmente porque o motivo da ação não está no sujeito, mas na força da lei. Mas o Direito, para Kant, não pode ser desconsiderado, e a investigação da Metafísica dos costumes (1797) busca os fundamentos puramente racionais, isto é, metafísicos do Direito. Os filósofos jusnaturalistas consideram a fundação do Estado civil a partir da superação do estado de natureza, Kant situa-se entre os jusnaturalistas, porém, altera substancialmente a tese de O contrato social: se para Hobbes e Rousseau o direito natural fundamental a ser defendido é a vida, o direito natural inalienável para Kant, aquele que deve legitimar o Estado, é a liberdade. O Estado e o Direito se constituem na medida em que garantem a liberdade dos indivíduos. Em Kant pode-se fazer uma tríplice caracterização do Direito: pertence às relações humanas, se constitui na relação entre arbítrios e sua função é de prescrever as formas e as condições para a coexistência entre as liberdades. Para Kant, Dessa definição Kant deriva o postulado universal do Direito, da seguinte forma definida: "Age externamente de modo que o livre uso do teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de acordo com uma lei universal" (KANT, 2003, p.77). A preocupação do Direito em Kant é a defesa da liberdade: somente as relações entre os homens podem ser jurídicas, e o objeto do Direito não é prescrito previamente, mas deve ocupar-se com as condições formais para que a coexistência entre arbítrios seja assegurada. Pode-se ver em Kant a ereção de grandes fundamentos do Estado Liberal. A justiça, nesse horizonte, é compreendida negativamente: justo é o ato que permite a coexistência de todas as liberdades segundo uma lei universal (KANT, 2003, p.77). 3.1 À paz perpétua O opúsculo, de 1795, A paz perpétua: Um projecto filosófico é concebido, no presente trabalho, como o escopo da ética de Kant. Essa pequena obra fora de atualidade tremenda: em meio à violência da Revolução Francesa, Kant formulou um tratado de paz internacional que visa erigir as condições para que os países estabeleçam uma confederação internacional que legitime suas relações. As exigências de saída do estado de natureza no interior do Estado valem analogamente entre as nações: a falta de um Direito que assegure a liberdade entre os países é um estado de natureza, um estado de constante ameaça e violência que necessita ser superado através de uma confederação internacional que busque a efetiva paz entre os países. Tal confederação não pode tornar-se um superestado (um Estado Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.77-81, jul./dez. 2008 77 artigos -resumo de monografia O Direito é, portanto, a soma das condições sob as quais a escolha de alguém pode ser unida à escolha de outrem, de acordo com uma lei universal de liberdade (KANT, 2003, p.76). federal), mas todos os seus membros devem estabelecer uma relação entre iguais e se eximir de interferir em qualquer assunto interno de outro Estado. Primeiramente Kant estabelece seis condições negativas para a paz: 1) "Não se deve considerar como válido nenhum tratado de paz que se tenha feito com a reserva secreta de elementos para uma guerra futura" (KANT, [s/d], p.120); 2) "Nenhum estado independente (grande ou pequeno, aqui tanto faz) poderá ser adquirido por outro mediante herança, troca, compra ou doação" (KANT, [s/d], p.121); 3) "Os exércitos permanentes (miles perpetuus) devem, com o tempo, desaparecer totalmente" (KANT, [s/ d], p.121); 4) "Não se devem emitir dívidas públicas com assuntos de política exterior" (KANT, [s/d], p.122); 5) "Nenhum Estado deve imiscuir-se pela força na constituição e no governo de outro Estado" (KANT, [s/d], p.123); 6) "Nenhum Estado em guerra com outro deve permitir tais hostilidades que tornem impossível a confiança mútua na paz futura [...]" (KANT, [s/d], p.124). Além dos artigos preliminares, de caráter negativo, Kant propõe três artigos definitivos, de caráter positivo. O primeiro, "a constituição civil em cada país deve ser republicana" (KANT, s/d, p.127), estabelece o ideal do republicanismo como a forma de governo onde o poder executivo está separado do poder legislativo, ou seja, não cabe ao governante estabelecer se deve ou não haver guerra, mas tal decisão tem de recair sobre o povo. O republicanismo é o único modelo político que erige como fundamento a autonomia, na Resposta à pergunta: o que é esclarecimento? lê-se: "[...] a pedra de toque está na questão de saber se um povo poderia ter ele próprio se submetido a tal lei" (KANT, 1974, p.115). É à vontade pública que pertence o poder legislativo, e a constituição republicana, segundo A paz perpétua, é a única "em que se deve fundar toda a legislação jurídica de um povo" (KANT, s/d, p.128). O segundo artigo, "o direito das gentes deve fundar-se numa federação de Estados livres" (KANT, [s/d], p.132), assevera que não basta que os países sejam republicanos, mas para que a paz seja efetiva ela tem de ser garantida pela criação de uma confederação de Estados livres. Nesse artigo Kant concebe um Direito internacional que assegure a liberdade entre as nações e que torne possível a paz. O terceiro artigo afirma que "o direito cosmopolita deve limitar-se às condições da hospitalidade universal" (KANT, [s/d], p.137). Kant concebe um direito de visitação internacional, onde os homens são cidadãos do mundo e têm o direito de visitar qualquer localidade do mundo sem serem hostilizados por motivo de sua presença. Há limites claros para a hospitalidade: pode-se rejeitar o estrangeiro se este cometer atos hostis contra o Estado hospedeiro. Através desse artigo, Kant critica a prática colonialista dos europeus e sua conduta inospitaleira; "causa assombro a injustiça que eles revelam na visita a países e povos estrangeiros (o que para eles se identifica com a conquista dos mesmos)" (KANT, [s/d], p.138). O Direito cosmopolita opõe-se assim a um direito de estabelecimento e a uma prática de abuso sobre o território de um outro povo. O filósofo tem em mente, ao escrever o terceiro artigo, os países vitimados pelo colonialismo europeu, como a América, a África e países orientais. 78 ISHIKAWA, Ítalo Kiyomi. A ética kantiana e o primado da autonomia Ao final de A paz perpétua, Kant escreve um artigo secreto onde afirma: "As máximas dos filósofos sobre as condições de possibilidade da paz pública devem ser tomadas em consideração pelos Estados preparados para a guerra" (KANT, [s/d], p.149). A filosofia tem de ser uma atividade pública, e o filósofo, por força de sua atividade, não pode se calar diante de situações em que a razão está obscurecida. Os filósofos, pelo caráter de seu ofício, assim como todos os intelectuais e demais pessoas que usam de sua razão, têm algo a dizer aos governantes: estes não podem deter arbitrariamente o destino da humanidade, este deve depender do uso da razão acima de quaisquer interesses. Conclusão O texto, de 1784, Resposta à pergunta: o que é esclarecimento?, ao modo de conclusão do presente trabalho, indica a passagem da menoridade para a maioridade no uso da razão. Menoridade que é "a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem" (KANT, 1974, p.100). A essa categoria de pessoas que vivem na menoridade, Kant chama de "gado doméstico". "É difícil, portanto, para um homem em particular desvencilhar-se da menoridade, que para ele se tornou quase uma natureza" (KANT, 1974, p.102). Sair dessa condição pode ser difícil, mas se ao homem "lhe for dada a liberdade, é quase inevitável" (KANT, 1974, p.102). A única maneira de possuir a liberdade é tendo coragem e autonomia de fazer uso do próprio pensamento, e esse espírito racional constitui, para "para este esclarecimento, porém nada mais se exige senão liberdade" (KANT, 1974, p.104). A moral da autonomia é do uso esclarecido da razão, a ética kantiana é uma ética da liberdade e da responsabilidade: o homem é o agente das leis que a si mesmo impõe. Tornar-se maior, tornar-se sujeito das próprias ações, marca a suprema dignidade humana. A lição imortal legada por Kant é o valor do homem como fim em si mesmo e jamais como meio para algo. "Diante de um homem humilde e cidadão comum, no qual percebo uma integridade de caráter [...], meu espírito se curva" (KANT, 2002, p.125); através da ética o homem eleva sua grandeza, e o heroísmo, nas palavras de Kant, a "disposição moral em luta" (KANT, 2002, p.137), torna-o merecedor da felicidade. Tal ética pode ser compreendida idealisticamente, e essa crítica fora, de fato, feita muitas vezes. Mas há de se admitir, no entanto, o valor de seus princípios "universalmente necessários", o que no entendimento de Kant os justificaria por si mesmos. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.79-81, jul./dez. 2008 79 artigos -resumo de monografia Kant, o "próprio valor" e a "vocação de cada homem" (cf. KANT, 1974, p.102). E mais, O grande mérito da filosofia do Direito e do Estado concebidas por Kant consiste em sua exigência de universalização de critérios que permitem a coexistência entre os homens, isto é, seu mérito reside na exigência moral de paz. Sua filosofia do Estado continua atual, porque a paz ainda não foi alcançada, esta, mesmo que distante, não pode ser abdicada pelos filósofos e por todos aqueles que não podem justificar a violência e o horror na história. Enfim, a metafísica que não pode ser conhecida pelo entendimento é encontrada como o fundamento incondicionado da razão pura prática: apesar de ser fenômeno entre os fenômenos do mundo, a liberdade humana é noumenon, o homem é transcendentalmente livre, ser capaz de determinar e construir a si mesmo. 80 ISHIKAWA, Ítalo Kiyomi. A ética kantiana e o primado da autonomia Referências GOMES, Alexandre Travessoni. O fundamento de validade do direito direito: Kant e Kelsen. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004. GUIMARÃES, Waldir Souza. As fórmulas do imperativo categórico de Kant. Revista Estudos, Goiânia, v.31, n.3, p.517-541, 2004. Estudos eritas, Porto Alegre, v.46, HECK, JOSÉ N. Autonomia, sentimento de respeito e direito. Veritas n.4, p.527-542, 2001. HECK, JOSÉ N. 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KANT, IMMANUEL. O conflito das faculdades faculdades. Tradução de: Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, [s/d]. KANT, IMMANUEL. Textos seletos seletos. Tradução de: Raimundo Vier e Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1974. NOUR, SORAYA. À paz perpétua de Kant Kant: filosofia do direito internacional e das relações internacionais. São Paulo: Martins Fontes, 2004. PASCAL, GEORGES. Compreender Kant Kant. Petrópolis: Vozes, 2005. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.81-81, jul./dez. 2008 81 artigos -resumo de monografia KANT, IMMANUEL. Fundamentação da metafísica dos costumes costumes. Tradução de: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1997. Utilitarismo Negativo Negative Utilitarism Leonardo Aureliano dos Reis T. dos Santos* Resumo Tendo como fundamento a epistemologia falseabilista, apresenta-se a proposta popperiana de um utilitarismo negativo como alternativa à versão clássica. A adoção de um princípio de minimização do sofrimento seria decorrente da assimetria moral e lógica existente entre dor e prazer análoga àquela existente entre verificabilidade e falseabilidade. Defende-se aqui a coerência desta proposta com o pensamento de Popper e com uma crítica à epistemologia milleana, possibilitando uma aproximação do utilitarismo com a moral comum e combatendo os possíveis efeitos perversos de uma política direcionada para o incremento do bem-estar. Palavras-chave alavras-chave: utilitarismo; crítica; teleologia; assimetria; sofrimento; falseacionismo. * O presente artigo foi elaborado originalmente a partir do trabalho de conclusão de curso apresentado à Faculdade de Filosofia São Boaventura do Centro Universitário Franciscano do Paraná (FAE). Graduado em filosofia pelo Instituto de Filosofia São Boaventura. Atualmente cursa teologia no ITF – Instituto Teológico Franciscano. [email protected] Having as a basis the falseabilist epistemology, we present the popperian proposal of a negative utilitarism as an alternative to the classic version. The adoption of a principal of minimizing suffering would come from the moral and logic asymmetries existing between pain and pleasure, similar to that of trueness and falsehood. We defend the coherence of this proposal with the thought of Popper and with criticism of the milean epistemology, allowing for an approximation of utilitarianism with the common moral and fighting the possible negative effects of policies directed towards increasing well-being. Key W ords Words ords: utilitarianism; critic; theology; asymmetry; suffering. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.83-97, jul./dez. 2008 83 artigos -resumo de monografia Abstract Introdução A idéia de um utilitarismo que fosse negativo vem da proposta que Karl Popper aponta em Conjecturas e refutações: um princípio mais modesto e realista para substituir o princípio clássico do utilitarismo. – Esta concepção apareceu pela primeira vez em A sociedade democrática e seus inimigos, em duas notas de rodapé. Em 1958, Popper recebeu uma crítica de R. N. Smart, no artigo Negative utilitarianism, onde o autor, ao mesmo tempo em que nomeava a tese de Popper, estabelecia a crítica que posteriormente tornou-se a mais conhecida. Este artigo é uma revisão bibliográfica, tanto dos textos de Popper quanto de comentadores, a fim de analisar a coerência do utilitarismo negativo (doravante UN) em relação às teses fundamentais da epistemologia popperiana. Ao mesmo tempo, estabelecese uma comparação da versão negativa do utilitarismo com a clássica. Para tanto, apresentar-se-á na primeira parte uma introdução ao utilitarismo, a partir de Bentham e Mill. Outros referenciais poderiam ser apresentados, mas a brevidade não o permite. Segue-se, então, uma crítica àquilo que neste trabalho é chamado de utilitarismo clássico. O fundamento desta crítica é a epistemologia popperiana, particularmente presente na Lógica da pesquisa científica, e também com embasamento na crítica de Popper ao historicismo. A seguir, há uma contraposição entre o que seriam as versões clássica e negativa do utilitarismo, tangida pela crítica decorrente de dois aspectos do pensamento de Karl Popper: a crítica de cunho lógico ao positivismo e a crítica ao historicismo, apesar de em alguns pontos haver coincidência entre ambas. Para a crítica à proposta popperiana de um UN, são tomados dois referenciais: Roderick Ninian Smart, para quem o UN implicaria na destruição de toda a humanidade, e Martin Diego Farrell, defendendo a tese de que a proposta em questão não toca nenhum dos problemas fundamentais do utilitarismo. O que se segue é, portanto, uma discussão acerca da proposta popperiana de reformulação do utilitarismo a partir da obra do próprio Popper com especial atenção para as interpretações de Bermudo e Farrell. 84 SANTOS, Leonardo Aureliano dos Reis T. dos. Utilitarismo negativo 1 A versão clássica do utilitarismo Jeremy Bentham é o primeiro grande sistematizador do que se conhece por utilitarismo. Para ele, a natureza teria colocado o ser humano sujeito a dois senhores, que determinariam toda a vida: o prazer e a dor. O princípio da utilidade seria a utilização deste duplo senhorio como fundamento para uma ética conseqüencialista1, que prime pela busca do prazer e pela fuga da dor, definida nos seguintes termos: Por princípio da utilidade entende-se aquele princípio que aprova ou desaprova qualquer ação, segundo a tendência que tem a aumentar ou a diminuir a felicidade da pessoa cujo interesse está em jogo, ou, o que é a mesma coisa em outros termos, segundo a tendência de promover ou a comprometer a referida felicidade (BENTHAM, 1974, p.10). Para Bentham, há seis princípios que fundamentam a moral e a legislação. Por diversas vezes, leituras unilaterais comprometeram a coerência de seu pensamento. A seguir, tem-se a apresentação dos seis princípios (P) do utilitarismo com as respectivas regras (R) morais: I Princípio de utilidade: P1. Todo ser humano busca sempre o maior prazer possível. R1. Busque sempre o prazer e fuja da dor. II Princípio da identidade de interesses: P2. O fim da ação humana é a maior felicidade de todos aqueles cujos interesses estão em jogo. Obrigação e interesse estão ligados por princípio. R2. Aja de forma que sua ação possa ser modelo para os outros. P3. A utilidade das coisas é mensurável e a descoberta da ação apropriada para cada situação é uma questão de aritmética moral. R3. Faça o cálculo dos prazeres e das dores e defina o bem em termos numéricos. 1 Por ética conseqüencialista entenda-se o mesmo que ética teleológica. Neste modo de abordar a ética verifica-se a subordinação do conceito de justo ao télos, que é a finalidade, o bem. O justo é, pois, definido como o que conduz o homem ao bem. Os adversários desta abordagem costumam iniciar seus ataques argumentando, com base em casos hipotéticos, que para haver incremento de bem-estar dever-se-ia necessariamente violar uma regra moral. A resposta dos que defendem uma ética conseqüencialista segue uma das formas seguintes: 1. Ética teleológica não requer, necessariamente, violação de alguma regra moral (esta parece ser a resposta da maior parte dos utilitaristas clássicos); 2. Ética conseqüencialista pode, eventualmente, requerer violação de alguma regra moral, mas tal violação pode ser justificada pelos próprios fundamentos da moral, como nos casos em que o indivíduo se vê entre duas opções, sendo que ambas hão de violar a moral, e escolhe a que lhe acarretará o menor mal (este argumento, no século XX, foi defendido por F. C. Sharp e J. J. C. Smart) (cf. OLSON, 1967, p.88). Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.85-97, jul./dez. 2008 85 artigos -resumo de monografia III Princípio da economia dos prazeres: IV Princípio das variáveis concorrentes: P4. O cálculo moral depende da identificação do valor aritmético de sete variáveis: intensidade/duração/certeza/proximidade/fecundidade/pureza/extensão. R4. Procure maximizar a objetividade e exatidão de suas avaliações morais. V Princípio da comiseração: P5. O sofrimento é sempre um mal. Ele só é admissível para evitar um sofrimento maior. R5. Alivie o sofrimento alheio. VI Princípio da simetria: P6. Prazer e dor possuem valores simétricos, pois a eliminação da dor sempre agrega prazer. R6. Escolha sempre a ação que resulta na maior quantidade de prazer, agregando o prazer da eliminação de sofrimento (PELUSO, 1998, p.24-25). De acordo com a listagem acima, tanto a partir do princípio da comiseração quanto do princípio da simetria, é possível, pois, admitir que em Bentham há consideração do sofrimento, ainda que este seja apenas o negativo da dor. O utilitarismo de Mill, por seu turno, é uma versão mais refinada do que o de Bentham (Cf. CARVALHO, 1997, p.3). Algumas idéias que este julgou claras o suficiente, apesar de não o serem, aquele procurou tornar mais evidentes. A versão milleana do utilitarismo é conhecida como liberalismo utilitarista (Cf. SIMÕES, 2005, p.77-78), pois Mill traz para a reflexão utilitarista a ênfase na liberdade como fator primordial para o incremento do bem-estar. Em Utilitarismo, ele afirma que o princípio da maior felicidade, o que Bentham defendera, exerceu papel preponderante na formulação até mesmo das doutrinas morais que o rejeitam (Cf. MILL, 2000, p.180-181). E afirma ainda que o mesmo princípio da utilidade estaria a designar não o que contrastasse com o prazer, mas o prazer em si mesmo e a ausência de sofrimento. Para Mill, que parece ter sido o primeiro a usar o termo “utilitarismo” para denotar a moral fundada no princípio da utilidade, o conceito de utilidade coincide com aquele apresentado por Bentham, pois o utilitarismo é? O credo que aceita a utilidade ou o princípio da maior felicidade como a fundação da moral sustenta que as ações são corretas na medida em que tendem a promover a felicidade e erradas conforme tendam a produzir o contrário da felicidade. Por felicidade se entende prazer e ausência de dor; por infelicidade, dor e privação do prazer (MILL, 2000, p.187). A diferença considerável surge quando se trata daqueles dois senhores que Bentham já havia apresentado, pois, segundo Carvalho (1997, p.3-4), Mill não identificaria a mera satisfação com o prazer. Bentham, ao que tudo indica, não aceitaria também o disparate de identificar os prazeres de alguém culto aos de um néscio, apesar de não ter desenvolvido tal distinção. Mill ainda retoma mais um elemento proposto por Bentham em um dos princípios da moral, mais precisamente no quarto; fazendo isso, Mill valoriza mais os prazeres mentais. 86 SANTOS, Leonardo Aureliano dos Reis T. dos. Utilitarismo negativo É preciso admitir, entretanto, que em geral os escritores utilitaristas reconhecem a superioridade dos prazeres mentais sobre os corpóreos principalmente pela maior permanência, maior segurança, pelo menor custo etc., dos primeiros por suas vantagens circunstanciais, mais que por sua natureza intrínseca (MILL, 2000, p.188). O critério apresentado por Mill para a escolha de determinados prazeres é a unanimidade da escolha, isto é, havendo um que seja preferido por todos, sem a interferência de uma obrigação moral ou qualquer sentimento, ele deve ter uma superioridade qualitativa. Afirmou-se acima que o princípio da utilidade supõe o incremento da felicidade e a diminuição do sofrimento. É mister, contudo, lembrar que Mill defende que: “nem as dores nem os prazeres são homogêneos entre si, e a dor e o prazer são sempre heterogêneos” (MILL, 2000, p.193). A heterogeneidade entre ambos, porém, não significa assimetria moral, de fato continua-se a descontar do prazer a dor nele eventualmente engendrada. Isto torna patente a preocupação de Mill com o sofrimento, pois sua definição de moralidade tem grande consideração até mesmo pelos animais. Assim, é possível definir a moralidade como as regras e os preceitos da conduta humana, cuja observação permitiria que uma existência tal como a descrita fosse assegurada, na maior medida possível, a todos os homens; e não apenas a eles, mas também, na medida em que compõem a natureza das coisas, a todos os seres sencientes da criação (MILL, 2000, p.194-195). [...] uma vez que a utilidade inclui não somente a busca da felicidade, como também a prevenção ou mitigação da infelicidade; e se o primeiro desses fins for quimérico, o último abrirá campo de ação mais amplo, responderá a necessidades mais imperativas, enquanto a humanidade julgar conveniente a vida [...] (MILL, 2000, p.195). A solução apontada por Mill é muito próxima da de Popper, pois para ele o obstáculo real para a realização da felicidade na vida da maioria das pessoas é a “deplorável educação e os deploráveis arranjos sociais” (MILL, 2000, p.196). Pode-se perceber aí alguma aproximação com a mecânica social fragmentária2 que Popper propõe. 2 Em La miseria del historicismo, Karl Popper apresenta, como alternativa ao modo historicista de propor transformações na sociedade, a tecnologia social fragmentária e sua aplicação, a engenharia fragmentária. A tecnologia fragmentária, ou gradual, tem como tarefa fundamental, coerente com a metodologia da pesquisa científica, destacar o que não pode ser levado a cabo. São chamados de tecnologia social fragmentária os métodos mais afortunados na solução de problemas no campo da sociologia. Segundo Popper (1973, p.72), haveria algum risco no uso do termo “tecnologia”, pois este remeteria a alguns modelos que culminam na planificação. O adjetivo “fragmentária” tem assim dupla função: afastar a associação com modelos que culminem na planificação econômica e expressar a idéia da valorização Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.87-97, jul./dez. 2008 87 artigos -resumo de monografia A existência de que Mill faz alusão é aquela que seja isenta, o máximo possível, da dor e do sofrimento e rica em prazeres. A partir de tais questões já se entrevê que a preocupação com a problemática do sofrimento sempre esteve presente na obra de Mill. Há alguns pontos de sua obra em que tal preocupação aparece de maneira bastante lúcida, inclusive dando algum aceno para a versão negativa do utilitarismo. A atenção de Mill para com o sofrimento, entretanto, não isenta o utilitarismo das críticas. O ponto a seguir apresenta uma breve introdução ao pensamento de Popper seguida da apresentação da crítica popperiana à epistemologia milleana, de modo que a crítica ao utilitarismo clássico partirá de uma crítica epistemológica. 2 A proposta popperiana 2.1 Racionalismo crítico O pensamento de Popper repousa sobre uma constatação: aprende-se com os erros. Eles fornecem as maiores certezas, certezas negativas que delineiam por onde a pesquisa não poderá prosseguir e, conseqüentemente, mantêm abertas muitas sendas ao conhecimento que progride, estabelecendo afirmações provisórias sobre a realidade, ou conjecturas. Há uma desconfiança para com a certeza que a ciência moderna procura, conforme a compreensão usual de ciência baseada na indução, um problema que Popper (1975, p.13-40) afirma ter sido criticado por David Hume3. É a solução a este problema que norteará todo o desdobramento da filosofia de Popper: o conhecimento conjectural. “Esta solução tem sido extremamente frutífera, capacitando-me a resolver bom número de outros problemas filosóficos” (POPPER, 1975, p.13). Nenhuma série de observações de da particularidade necessária à metodologia proposta por Popper à pesquisa científica. Segue-se daí que a análise crítica dos problemas particularizados conduzirá a um maior êxito na investigação e, mesmo que não haja sucesso, evitará erros maiores. Os problemas tecnológicos no campo da ciência social podem ser de caráter teórico ou prático, sendo que os primeiros podem ser públicos ou privados. Apesar de a tecnologia social fragmentária parecer focada exclusivamente em problemas práticos, pode suscitar numerosos e importantes problemas teóricos, contudo os critérios de clareza e experimentação, como falseamento através do modus tollens, permanecem válidos. A melhor proposta para sanar problemas sociais seria, criticamente, aplicar soluções parciais. Este processo é chamado de engenharia social fragmentária. Segundo Popper, a engenharia social fragmentária é parecida com a engenharia física que considera que os fins estão fora do campo da tecnologia, pois o que é possível à tecnologia afirmar é a adequação ou compatibilidade entre tecnologia e fim esperado. Da mesma maneira que o engenheiro físico projeta máquinas e as remodela para pô-las em funcionamento, também o engenheiro social fragmentário deve projetar, reconstruir e manejar as instituições que já existem (Cf. POPPER, 1973, p.79). Para planejar a ação o engenheiro deverá tratar as instituições desde seu caráter funcional ou instrumental. As instituições são os meios a serviço de certos fins, estariam mais próximas das máquinas do que dos organismos. Porém a eficácia das máquinas sociais é limitada, elas não são infalíveis. Uma característica da engenharia social fragmentária é que, ainda que os fins sejam concernentes à sociedade como um todo, é impossível alcançá-los de uma só vez, de maneira global. Diante de quaisquer fins, ajustes contínuos e correções controladas são, isto é certo, mais lentos, porém mais seguros. 3 É questionável se o que Hume discute seria principalmente o problema da indução. Segundo o professor João Paulo Monteiro, a interpretação que Popper e Russell fazem de Hume – afirmando que o que estaria em jogo seria a indução e, no caso de Popper, estabelecendo dois problemas, um lógico e um psicológico – é um exagero que ruma ao extremo oposto daquilo que Hume de fato propunha no problema da inferência causal. Para o professor Monteiro, Hume estaria tratando de três problemas: O primeiro é o do papel da associação de idéias; o segundo diz respeito ao verdadeiro papel da indução, apenas como conseqüência de sua análise da inferência causal; o terceiro problema seria a definição de costume e hábito (Cf. MONTEIRO, 2005, p.111-128). 88 SANTOS, Leonardo Aureliano dos Reis T. dos. Utilitarismo negativo enunciados singulares oferece, pois, base segura para a formulação de algum enunciado geral, como deve ser uma teoria científica. Assim como formular um enunciado geral a partir de enunciados particulares é ilegítimo, também procurar a comprovação empírica de enunciados gerais também o será, dada a extensão destes. Contudo, se é impossível a comprovação empírica de uma teoria, é perfeitamente possível falseá-la. A saída racional é, pois, submeter todas as conjecturas a testes severos para falseá-las com o uso do modus tollens, uma forma dedutiva da lógica tradicional que opera em direção indutiva. Nisto se verificaria uma assimetria lógica4 entre verificabilidade e falseabilidade resultante da relação lógica entre as teorias e os enunciados básicos (Cf. POPPER, 1972, p.290). A partir daí, isto é, a partir das principais idéias gestadas na Lógica da pesquisa científica, toma corpo todo o pensamento de Karl Popper, que passou a ser chamado posteriormente de racionalismo crítico. É a partir da crítica de Popper à epistemologia positivista que se estabelecerá a crítica ao utilitarismo, tendo sempre presente a assimetria entre verificabilidade e falseabilidade. 2.2 Crítica ao utilitarismo clássico 1) concordância – a causa de um dado efeito será a propriedade que se fizer presente em todas as ocasiões em que esse feito se manifestar; 2) diferença – a causa de um dado efeito será a propriedade que se fizer presente em todas as ocasiões em que esse feito se manifestar e estiver ausente em todas as ocasiões em que esse feito não se manifestar; 3) variação concomitante – a causa de um dado efeito é a combinação das propriedades que crescem de intensidade quando o efeito cresce de intensidade e decrescem de intensidade quando o efeito decresce de intensidade. 4) dos resíduos – retire-se de um dado fenômeno aquilo que sabidamente é efeito de certos antecedentes; o resíduo será efeito dos antecedentes remanescentes (HEGENBERG, 2001, p.172). 4 A assimetria lógica entre verificabilidade (neste trabalho, correspondente ao que defende o Círculo de Viena) e falseabilidade está presente até mesmo em enunciados simples como “todos os cisnes são brancos”. Dado que verificá-lo dependeria de observar todos os cisnes e falseá-lo dependeria apenas de encontrar um cisne que não fosse branco, é muito mais simples e correto, do ponto de vista lógico, submeter o enunciado a teste. No caso da ciência, os enunciados presentes em leis descritivas e teorias seriam parcialmente decisíveis, isto é, somente podem ser falseáveis (Cf. POPPER, 1972, p.344). Estabelece-se assim também o critério de demarcação entre ciência e não-ciência. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.89-97, jul./dez. 2008 89 artigos -resumo de monografia Aqui se critica fundamentalmente a base epistemológica do utilitarismo clássico, aquela que aparece de maneira mais clara no Sistema de lógica de John S. Mill. Aí se encontra a principal tese que haveria de fundamentar todo o seu trabalho: a regularidade na natureza. Esta seria para Mill a premissa que está oculta em qualquer raciocínio indutivo. Sua metodologia depende de uma lei de causação universal: “Cada evento ou o início de qualquer fenômeno deve ter uma causa, algum antecedente, de que é, invariável e incondicionalmente, uma conseqüência” (MILL apud HEGENBERG, 1976, p.180). E para a determinação das causas, há os quatro procedimentos a seguir: A admissão de uma lei universal de causação não é ponto pacífico, e uma crítica acurada, como a de Hume, é suficiente para demonstrar a fragilidade do argumento. É o que se pode verificar nas teses fundamentais da Lógica da pesquisa científica, principalmente quando se trata da assimetria entre verificabilidade e falseabilidade. Já, em La miséria del historicismo, Popper critica a aplicação da metodologia defendida por Mill no estudo da sociedade e da história. Para Mill as leis históricas de sucessão determinariam uma seqüência de acontecimentos na ordem em que realmente ocorrem. O método milleano consiste em intentar, por el estudio y análisis de los hechos generales de la historia, el descubrimiento... de la ley del progresso; la cual, uma vez determinada debe permitirnos la predicción de acontecimientos futuros, de la misma forma que después de unos cuantos términos de una serie algebraica infinita podemos descubrir el principio de regularidad en su formación y predecir el resto de la serie hasta cualquier número de términos que queramos (MILL, apud POPPER, 1973, p.132). Não se trata de seqüências matemáticas simples, isto seria atribuir uma rigidez muito grande à história. Mill defende a existência de leis de sucessão na história que, para Popper, inexistem. Convém ressaltar, porém, que alguns fenômenos ligados à sociedade parecem seguir uma tendência de caráter dinâmico, tese que, segundo Popper, seria ratificada pelo próprio Mill ao descrever sua lei histórica de progresso como uma propensão a um estado de coisas melhor, no qual haja mais felicidade (Cf. POPPER, 1973, p.133). Popper também defende esta idéia, mas não acredita que haja leis regendo a história, pois o curso da história está fortemente influenciado pelo crescimento do conhecimento, e qualquer formulação de lei que almeje prever o curso da história partirá sempre do conhecimento já previamente existente. A tese milleana das leis históricas de sucessão é pouca coisa além de uma coleção de metáforas mal aplicadas (Cf. POPPER, 1973, p.134). 2.3 O utilitarismo negativo: adoção de um princípio de minimização do sofrimento O fato de o utilitarismo ter surgido como uma ética adaptada ao contexto do século XIX, assumindo a filosofia empirista, a metodologia positivista e as concepções naturalistas impostas à filosofia pela ciência moderna, caracteriza sua impostura teórica: apoiar-se em uma teoria empirista da natureza humana, para ditar um princípio ético normativo e aparentemente oposto aos ditames naturais (Cf. BERMUDO, 1992, p.35-36). Deste modo, o raciocínio que norteia a proposta de adoção de um princípio de redução do sofrimento é análogo à posição popperiana no campo da epistemologia. Seria muito mais simples procurar agir nos problemas que eventualmente se encontrassem em uma sociedade do que procurar incrementar a felicidade dos indivíduos. 90 SANTOS, Leonardo Aureliano dos Reis T. dos. Utilitarismo negativo De maneira que uma ação seria moralmente aceita à medida que promovesse o bem estar do maior número de seres humanos, daí a derivação do Justo do Bem. De fato, poder-se-ia afirmar que a promoção do bem-estar não supõe a minimização do sofrimento, contudo Mill admite que o implemento da felicidade (utilidade) implica necessariamente na diminuição da dor. O que incita Popper a formular sua variação do utilitarismo é a exigência moral de igualdade, liberdade e ajuda aos necessitados (POPPER, 1972, passim). Sendo assim, sua fórmula utilitária segue, de certa forma, o rumo já seguido na epistemologia: o da negatividade. Acho que há certa espécie de analogia entre esta concepção da ética e a concepção da metodologia científica que defendi em minha obra Logik der Forschung. Será mais claro, no campo da ética, formularmos nossas exigências em forma negativa, isto é, reclamando a eliminação dos sofrimentos em vez da promoção da felicidade. Similarmente, é útil formular a tarefa do método científico como a eliminação das teorias falsas (dentre as várias tentativas apresentadas para prova), em vez do alcance de verdades estabelecidas (POPPER, 1959, p.601). substituir a fórmula utilitária “aspiremos à maior quantidade de felicidade para o maior número de pessoas”, ou mais sinteticamente “felicidade ao máximo”, pela fórmula: “a menor quantidade possível de dor para todos”, ou, em resumo, “dor ao mínimo”. Esta fórmula tão simples pode-se converter, creio, num dos princípios fundamentais (por certo que não o único) da política pública. (O princípio da “felicidade ao máximo” parece tender, pelo contrário a produzir ditaduras benevolentes.) É mister compreender, além disso, que do ponto de vista moral não podemos tratar simetricamente a dor e a felicidade; isto é, que a promoção da felicidade é, em todo caso, muito menos urgente que a ajuda àqueles que padecem e a tentativa de prevenir sua dor (POPPER, 1959, p.546). Podem-se destacar dois pesquisadores atuais que tratam da tese popperiana: Martin Diego Farrell (1994, p.210), para quem a tese de Popper não foi aprofundada adequadamente, e Jose Manuel Bermudo Ávila (1992, passim), que defende a proposta popperiana como alternativa viável aos problemas do utilitarismo. O que é necessário, porém, é verificar a coerência da tese basilar do UN: a premência moral da dor sobre o prazer, que está implícita na idéia basilar do sofrimento mínimo. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.91-97, jul./dez. 2008 91 artigos -resumo de monografia Se na epistemologia o critério de demarcação é a falseabilidade, ou a possibilidade de refutação de uma teoria que passa pela procura do erro, da refutação oriunda de ao menos um caso particular que refute uma afirmação universal; no caso das políticas públicas, a negatividade está no alvo, no sofrimento que deve ser minimizado. Popper reconhece que toda premência moral tem sua base na premência do sofrimento, por isso intenta 2.3.1 Premência da dor sobre o prazer Já em Jeremy Bentham observa-se que o princípio da comiseração representa uma preocupação considerável com o sofrimento alheio. O que Popper eventualmente propõe não é o mesmo princípio, mas uma assimetria que torna o sofrimento premente sobre o prazer. Isto é o mesmo que afirmar que o principal fundamento da moralidade é o sofrimento. Não há simetria, do ponto de vista ético, entre sofrimento e felicidade, ou entre dor e prazer. Tanto o princípio da felicidade máxima dos utilitários como o princípio de Kant – “promover a felicidade dos demais” – (parecem-me pelo menos em suas formulações) fundamentalmente errados neste ponto, que, entretanto, não é de argumento racional [...]. É meu parecer de que o sofrimento humano faz um direto apelo por auxílio, ao passo que não há tal apelo para que se aumente a felicidade de um homem que de qualquer modo vá indo muito bem (POPPER, 1959, p.601). O que ocorre, pois, com a tese popperiana não é somente a colocação da assimetria moral, mas lógica, porque defender a minimização do sofrimento não é apenas inverter a antiga máxima utilitarista. O que ocorre de fato é uma assimetria lógica, dado que não se sabe como tornar as pessoas felizes, mas são bem conhecidos os meios para minimizar o sofrimento de boa parte da humanidade (MAGEE, 1976, p.85). Implícita à tese popperiana está a idéia de que a defesa dos utilitaristas clássicos de um saldo único seria insuficiente para dar conta de todos os problemas que surgiriam em uma sociedade. Aumentar a felicidade não equivale a diminuir a dor. 2.4 Os três princípios Bermudo (1992, p.133-140), ao tratar da nota 6, detém-se na análise de três paradoxos que se afiguram nos três princípios fundamentais do UN, o princípio da tolerância limitada, o da legalidade suficiente e o do sofrimento mínimo. O princípio da tolerância limitada baseia-se na paradoxal posição de não ser tolerante com os intolerantes. Subjaz a tal princípio a defesa necessária da tolerância. Segundo Popper: A tolerância ilimitada pode levar ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada até aqueles que são intolerantes; se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra os ataques intolerantes, o resultado será a destruição dos tolerantes e, com eles, da tolerância (1959, p.579). Pode-se supor já de antemão que, para Popper, a tolerância não pode ser compreendida como valor em si, posição bastante lúcida para alguém que prime mais pelas conseqüências das ações do que pelos meios adotados para efetivar as mesmas. Por isso, o primeiro princípio do UN deve ser entendido como regra utilitária. Então, a 92 SANTOS, Leonardo Aureliano dos Reis T. dos. Utilitarismo negativo proposta da intolerância para com os intolerantes tem em vista a redução do sofrimento. Quando se trata do paradoxo da intolerância, surgem outros dois paradoxos fundamentais para que haja clareza sobre a questão da tolerância: o paradoxo da democracia, que permite limitar o poder do governante, e o da liberdade, que tende à autodestruição quando ilimitada (Cf. POPPER, 1959, p.579). Esta proposta seria um mecanismo de autodefesa da sociedade – isto se coaduna perfeitamente com a tese de que a tolerância não é um bem em si e que também o intolerante não o é, não se persegue o mal moral, só se combatem seus efeitos (BERMUDO, 1992, p.135). O princípio da legalidade suficiente assevera que é melhor depositar a defesa dos direitos e interesses não nas mãos de governantes benevolentes, mas nas instituições e nas leis: “a luta contra a tirania, ou, em outras palavras, a tentativa de salvaguardar os outros princípios pelos meios institucionais de uma legislação em vez de pela benevolência dos que estejam no poder” (POPPER, 1959, p.546). Semelhante idéia é aceitável somente tendo-se consciência que, para Popper, Configura-se assim mais uma aplicação à política da metaciência de Popper na qual o caráter eminentemente crítico é patente. As instituições e as leis estão, neste caso, como as teorias científicas, abertas à constante reformulação. O princípio do sofrimento mínimo é o mais importante, porque é a sua aceitação que determinará o UN. É a conseqüência da adoção da “fórmula: ‘a menor quantidade possível de dor para todos’, ou, em resumo, ‘dor ao mínimo’” (POPPER, 1959, p.546). Segundo Popper, haveria três vantagens na adoção de tal princípio: a eliminação do risco de ditaduras benevolentes, um maior fundamento natural e coerência com a moral comum. 3 Críticas ao utilitarismo negativo Roderick Ninian Smart (1958, p.542-543), na revista Mind, ao criticar os argumentos de substituição ao utilitarismo clássico propostos por Popper, formulou também o nome que é aqui utilizado, UN. Sua crítica continuou sendo muito utilizada por diversos teóricos. Smart formula a situação hipotética de um possível governante que detenha uma arma com o poder de destruir toda a humanidade sem lhe causar dor. Caso o dito governante a destruísse, o ato seria justo a partir das bases do UN, já que a morte de todos implicaria na eliminação de toda e qualquer possibilidade de sofrimento, na verdade usar a arma seria até necessário, já que a máxima “minimizai o sofrimento” o exigiria. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.93-97, jul./dez. 2008 93 artigos -resumo de monografia a democracia não se baseia no princípio de que a maioria deve governar, mas, antes, no de que diversos métodos igualitários para o controle democrático, tais como o sufrágio universal e o governo representativo, devem ser considerados como simplesmente salvaguardas institucionais de eficácia comprovada pela experiência, contra a tirania, repudiada de modo geral como forma de governo. E estas instituições devem ser susceptíveis de aperfeiçoamento (POPPER, 1959, p.143). A partir do UN, atos que reduzam o sofrimento são necessariamente bons, ou justos – Smart estende isto à possível prevenção de sofrimento futuro. Desde que o homicídio fosse indolor, a vítima seria beneficiada, pois não poderia mais sofrer. Há, entretanto, algumas implicações. A primeira, que há de subdividir-se em duas, diz respeito ao sofrimento das pessoas próximas à vítima. Sendo irreparável a perda de alguém, a tristeza resultante da morte de um ente querido deve ser contabilizada como sofrimento e seria um ponto contrário ao homicídio indolor. A segunda conseqüência da primeira implicação é o possível sofrimento resultante de privar-se uma família da pessoa que lhe garante o sustento. A segunda implicação diz respeito à sociedade como um todo: esta poderia tornar-se caótica e as vidas humanas, miseráveis (Cf. SMART, 1958, p.542). De antemão, a tese de que o UN implicaria a destruição da raça humana é extravagante (Cf. BERMUDO, 1992, p.128). Não obstante, há um problema: Smart se prende à máxima do sofrimento mínimo, mas desconsidera os outros dois princípios do UN. Acabar com o sofrimento não é necessariamente acabar com qualquer possibilidade de sofrimento. Em todo caso, a proposta de Smart parece cabível apenas em casos em que o indivíduo não tenha perspectiva de ter seu sofrimento aliviado. Nos casos marginais da ética, isto parece ser de grande importância; casos como a eutanásia, o aborto e os direitos dos animais sofreriam algumas alterações, quiçá tornando legítimas ações que atualmente não o são e rechaçando outras atualmente aceitas. Uma conseqüência da não consideração dos princípios da legalidade suficiente e da tolerância limitada é direcionar toda a argumentação para casos individuais, ainda que seja a soma de todos os indivíduos que esteja em questão como propõe Smart. A ênfase de Popper nas instituições, vale lembrar, parece indicar qual seja o seu alvo. Ainda assim seria pertinente a crítica de Smart. A destruição global, como ele a apresenta, é um ato governamental, de modo que não se refere apenas a decisões individuais. Tal ato seria correto se, e somente se, não se considerasse o que o princípio da legalidade suficiente assevera – a saber: a questão fundamental da política não é “quem deve governar?”, mas “qual o poder deve ser depositado nas mãos dos governantes?” – somado à falta de clareza quanto à mensuração do sofrimento. Farrell, por sua vez (1994, p.210), reconhece que se trata do estabelecimento de um princípio importante de uma ética humanitária. Mas ataca a proposta em três pontos: 1. nunca existiu um utilitarismo exclusivamente positivo; 2. Popper é impreciso ao defender a assimetria entre dor e prazer. 3. Farrell critica também as possíveis conseqüências da proposta popperiana. A defesa do UN, segundo Farrell, passa pela afirmação de que realmente tenha havido uma versão exclusivamente positiva. Se a versão negativa seria uma tentativa de reforma, qual utilitarismo Popper estaria tentando reformar? Certamente nem Bentham nem Mill são aptos a receber tal crítica (Cf. FARRELL, 1994, p.211). Ambos teriam o sofrimento em conta, quando elaboram suas teorias. 94 SANTOS, Leonardo Aureliano dos Reis T. dos. Utilitarismo negativo Imaginemos ahora un estado que ponga en práctica el utilitarismo negativo de Popper: el objetivo es la disminución del dolor, y no el aumentar la felicidad de los súbditos. ¿Por qué deberia seguir-se de este solo propósito la adopción de la democracia como forma de gobierno? Alguien podria sostener que un dictador benévolo es el indivíduo más capacitado para aliviar el dolor de su pueblo. Es cuando experimentan grandes calamidades que los pueblos se volven hacia un dictador, como lo recuerda la historia alemana de la década del treinta (FARRELL, 1994, p.217). Para Farrell, portanto, o UN não resolve nenhum dos problemas que afetam o utilitarismo. Os problemas atribuídos por Popper à versão clássica não se verificariam e os benefícios esperados na adoção da formulação negativa da máxima utilitarista não seriam certos. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.95-97, jul./dez. 2008 95 artigos -resumo de monografia Mill, segundo Farrell (1994, p.212), é mais claro que Bentham ao determinar a correção do agir pela sua capacidade de promover o prazer e de reduzir o sofrimento. A dor seria prazer negativo. Então, promover a felicidade seria, necessariamente, reduzir o sofrimento. Farrell admite que Popper poderia ter razão ao defender um utilitarismo estritamente negativo. É isto que ocorre, esta é a conseqüência da assimetria do ponto de vista moral entre a dor e o prazer. Neste ponto, Farrell, critica a fragilidade da tese popperiana, mais precisamente o ponto em que afirma “a promoção da felicidade é, em todo caso, muito menos urgente que a ajuda àqueles que padecem e a tentativa de prevenir sua dor” (POPPER, 1959, p.546). O trecho citado é a seqüência da afirmação da assimetria entra dor e prazer, Popper estaria aí – desconsiderando-se a idéia de que dor e prazer sejam assimétricos – sustentando um ponto de vista incompatível com as formas usuais de utilitarismo. No entanto, sua tese da prioridade na redução do sofrimento seria perfeitamente cabível em qualquer teoria utilitarista (Cf. FARRELL, 1994, p.213). Admitida a possibilidade de assimetria entre dor e prazer, Farrell estabelece que Popper não aprofunda de maneira adequada esta tese: não haveria precisão nos argumentos. O UN continuaria com os mesmos problemas de comparação interpessoal de sofrimento (no caso das versões clássicas esta comparação seria de utilidade) das versões que pretende suplantar (Cf. FARRELL, 1994, p.215). Outro ponto a receber críticas de Farrell é uma conseqüência da proposta popperiana. Já que Popper supusera que a forma positiva “aumentemos a felicidade” poderia produzir ditaduras benévolas, a forma negativa seria um antídoto que levaria a uma forma democrática e liberal de governo. Farrell, para refutar tal afirmação, cita Bentham e Mill novamente, pois ambos apoiaram a democracia de forma decisiva e nenhum utilitarista jamais apoiou qualquer regime totalitário (Cf. FARRELL, 1994, p.216). A tese de Popper é, pois, infundada ao supor que a versão “positiva” tende à ditadura. Mas há mais um ponto em que ela é falha: a formulação negativa não conduz necessariamente à democracia. Considerações finais Entre as diversas críticas que o utilitarismo clássico recebeu, o fato de permanecer distante da moral comum é uma constante ao lado do problema de ser fundamentado em uma epistemologia de cunho positivista que carrega consigo sérios problemas para aquilo que oferece comumente a base para o discurso ético, a saber a antropologia. Parece que é a estes problemas que Popper intenta solucionar. É inegável, ainda, que Popper escreveu muito pouco sobre a proposta de adoção de um princípio de minimização do sofrimento. Assim, qualquer estudo acerca do UN é dificultado pela escassez bibliográfica. A proposta central deste trabalho: da coerência entre o UN e a epistemologia de Popper, pode-se afirmar, é ponto pacífico, uma vez que ele mesmo propõe tal coerência. Além disso, a idéia de uma ética teleológica que priorize a minimização do sofrimento é parte integrante do pensamento político apresentado, sobretudo, em A sociedade democrática e seus inimigos e em La miseria del historicismo. De modo que, reformulada a base epistemológica, é mister reestruturar também a proposta ética. A tese basilar do UN, o sofrimento mínimo, é a necessária alternativa quando se percebe que produzir riqueza não equivale a diminuir a dor. Já a idéia de que o UN eliminaria o risco, presumivelmente engendrado na versão clássica, de propiciar ditaduras benevolentes é discutível. Popper parece estar criticando os rumos seguidos por diversas nações, levadas a isso pela máxima “aumentai a felicidade”. Contudo, as ditaduras, sejam quais forem, não se coadunam com o utilitarismo clássico, principalmente se o referencial tomado for John S. Mill (defende-se aqui uma interpretação mais recente de Mill que procura compreender seu Utilitarianism à luz do que é proposto em On Liberty). O UN, portanto, diferente do que afirma Farrell, resolve pelo menos dois dos problemas da versão clássica: a base epistemológica e a distância da moral comum. Uma vez que a versão estritamente negativa implica em uma reorganização dos pressupostos e conceitos fundamentais do utilitarismo, tornando-o mais próximo da moral comum e revitalizando um traço que, em Bentham, era marcante: o humanismo. 96 SANTOS, Leonardo Aureliano dos Reis T. dos. Utilitarismo negativo Referências BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral moral. Tradução de: Luiz João Baraúna. São Paulo: Abril Cultural, 1974. Os Pensadores. BERMUDO, J. M. Eficacia y Justicia Justicia. Possibilidad de un utilitarismo moral. Barcelona: Horsori, 1992. CARVALHO, Maria Cecília Maringoni de. O utilitarismo de John Stuart Mill: Um outro olhar. 1997. 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Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.97-97, jul./dez. 2008 97 artigos -resumo de monografia PELUSO, Luis Alberto. Utilitarismo e ação social. In: PELUSO, L. Alberto (Org.). Ética & utilitarismo. Campinas: Alínea, 1998, p. 13-26. utilitarismo Os Dois Infinitos* The two infinites * Fragmentos extraídos de PASCAL, B. P ensées ensées. Texte de l’édition Brunschvicg. Paris: Librairie Garnier Frères, 1948, p.87-93, 131. Tradução de Enio Paulo Giachini. [Frag. 72] Que o homem contemple pois a natureza inteira em sua majestade elevada e plena, que ele afaste seu olhar dos objetos baixos que estão ao seu redor. Que olhe para essa luz cintilante, postada como uma lâmpada eterna para alumiar o universo, que a terra lhe pareça como um ponto do vasto curso descrito por esse astro, e que se admire de que esse vasto curso não é ele próprio mais que um ponto muito débil frente ao curso abrangido pelos astros que giram no firmamento. Mas se nossa vista se detém ali, que a imaginação a ultrapasse; é mais fácil ela cansar-se de conceber do que a natureza de lhe fornecer. Todo esse mundo visível não passa de um traço imperceptível no amplo seio da natureza. Nenhuma idéia pode se aproximar de tal. Podemos muito bem inflar nossas concepções além dos espaços imagináveis, não vamos conceber mais que átomos da realidade das coisas. É uma esfera cujo centro está em todo lugar, e a circunferência em parte alguma. Enfim, é a maior característica sensível do total-poder de Deus, de tal modo que nossa imaginação se perde nesse pensar. Tendo voltado a si, que o homem considere o que ele é frente àquilo que é; que observe a si como desgarrado nesse cantão afastado da natureza; e dessa pequena cela onde se acha instalado, quero dizer, o universo, que aprenda a avaliar e estimar a terra, os reinos, as cidades e a si mesmo, em seu justo preço. O que é um homem no infinito? Mas a fim de apresentar-lhe um outro prodígio igualmente desconcertante, que ele procure pelas coisas as mais delicadas naquilo que ele conhece. Que uma lêndea lhe oferece na pequenez de seu corpo partes incomparavelmente menores, pernas com articulações, veias nas pernas, sangue nas veias, humores no sangue, gotas nesses humores, vapores nessas gotas; e que, dividindo ainda essas últimas coisas, ele Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.99-103, jul./dez. 2008 99 traduções Blaise Pascal esgote suas forças para concebê-las, e que o último objeto ao qual consegue alcançar seja objeto de nosso discurso agora; possivelmente imaginará estar diante da pequenez extrema da natureza. Quero fazer-lhe ver ali dentro, porém, um novo abismo. Quero pintar-lhe não apenas o universo visível, mas a imensidão que podemos conceber da natureza, na clave dessa fenda do átomo. Que ele veja ali uma infinidade de universos, cada um dos quais tendo seu firmamento, seus planetas, sua terra, na mesma proporção que o mundo visível; nessa terra, animais, e por fim lêndeas nas quais irá encontrar aquilo que esses primeiros deram; e encontrando ainda nos outros a mesma coisa sem fim e sem repouso, que ele se perca nessas maravilhas, tão desconcertantes por sua pequenez como as outras por sua extensão; pois quem não se admirará de nosso corpo, que há pouco não era perceptível no universo, imperceptível ele mesmo no seio do todo, seja ora um colosso, um mundo, ou, antes, um todo frente ao nada onde se pode chegar. Quem assim se considerar se assustará de si mesmo, e considerando que está suspenso na massa que a natureza lhe deu, entre os dois abismos do infinito e do nada, tremerá diante da visão dessas maravilhas; e mudando sua curiosidade em admiração, estará mais disposto a contemplá-las em silêncio do que procurá-las com presunção. Pois, afinal, o que é o homem na natureza? Um nada frente ao infinito, um todo frente ao nada, um meio entre nada e tudo. Infinitamente distante de compreender os extremos, o fim das coisas e seu começo estão invencivelmente escondidos dentro de um segredo impenetrável, igualmente incapaz de ver o nada donde foi retirado e o infinito que o engole. Que fará ele, então, a não ser perceber [alguma] aparência do meio das coisas, num desespero eterno de não conhecer seu princípio nem seu fim? Todas as coisas saíram do nada e são levadas até o infinito. Quem seguirá essa marcha estonteante. O autor dessas maravilhas as compreende. Todo e qualquer outro não o pode fazer. Sem terem contemplado esses infinitos, os homens puseram-se temerariamente a investigar a natureza, como se tivessem qualquer proporção para com ela. É estranho eles terem querido compreender os princípios das coisas e a partir dali alcançar conhecer o todo, por uma presunção tão infinita quanto seu objeto. Com efeito, é impossível formar tal desígnio sem uma presunção ou uma capacidade infinita como a natureza. Quando se é instruído, compreende-se que, tendo a natureza gravado sua imagem e a de seu autor em todas as coisas, todas essas contêm, quase todas, algo de sua dupla infinidade. Vemos assim que todas as ciências são infinitas na extensão de sua investigação, pois quem duvida por exemplo que a geometria tem uma infinidade de infinidades de proposições a expor? São infinitas tanto na multidão quanto na debilidade de seus princípios; com efeito, quem não percebe que aquelas que propomos como as derradeiras não se sustentam a si mesmas, apoiando-se em outras, que tendo ainda outras como apoio, jamais admitem o último? Mas nós estabelecemos últimos que parecem ser à razão, como fazemos nas coisas materiais onde chamamos de indivisível a um ponto além do qual nossos sentidos nada mais percebem, embora infinitamente divisível e por natureza. 100 PASCAL, Blaise. Os dois infinitos 1 TÁCITO, citado por Montaigne, XXX, 8. Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.101-103, jul./dez. 2008 101 traduções Desses dois infinitos das ciências, aquele infinito da grandeza é bem mais sensível e é por isso que um bocado de pessoas pretendeu poder conhecer todas as coisas. “Vou falar de todas as coisas”, dizia Demócrito. Mas o infinito em pequenez é bem menos visível. Preferentemente os filósofos pretenderam ali chegar, e é ali onde todos tropeçaram. Foi o que deu lugar a esses títulos tão comuns: os princípios das coisas, os princípios da filosofia e semelhantes, embora pareçam modestos, são na realidade tão faustosos como esse outro que nos mostra sem nos deixar ver: De omni scibili. Cremos naturalmente sermos mais capazes de alcançar o centro das coisas do que abraçar sua circunferência; a extensão visível do mundo nos ultrapassa visivelmente; mas como somos nós que ultrapassamos as coisas pequenas, cremos sermos mais capazes de possuí-las, e todavia, não é preciso de menos capacidade para ir até o nada do que para ir ao todo: ela deve ser infinita, tanto para um quanto para o outro, e parece-me que quem compreendeu os princípios últimos das coisas poderia também alcançar conhecer o infinito. Um depende do outro, e um conduz ao outro. Essas extremidades se tocam e se reúnem em virtude de terem se distanciado, e se reencontram em Deus e em Deus somente. Conheçamos pois nosso alcance; somos alguma coisa e não somos tudo; isso que temos de ser nos priva do conhecimento dos primeiros princípios que nascem do nada; e o pouco que temos de ser nos oculta a vista do infinito. Na ordem das coisas inteligíveis, nossa inteligência ocupa o mesmo nível que nosso corpo na extensão da natureza. Delimitados em todo gênero, este estado que ocupa o meio entre dois extremos se encontra em todas as nossas capacidades. Nossos sentidos nada percebem de extremo, muito barulho nos ensurdece, muita luz nos cega, distância muito grande ou muito pequena nos impede a vista, um discurso muito longo ou muito breve torna-se obscuro, muita verdade nos assombra (conheço pessoas que não conseguem compreender que tirando 4 de 0 resta 0), os primeiros princípios têm evidência demasiada para nós, prazer demasiado incomoda; na música, muitas consonâncias acabam desagradando; muitos benefícios irritam, queremos ter com que pagar a dívida. [Beneficia eo usque laeta sunt dum videntur exsolvi posse; ubi multum ante venere, pro gratia odium redditur1]. Não sentimos nem o extremo calor nem o frio extremo; as qualidades excessivas são nossas inimigas, e não são sensíveis; não as sentimos, sofremo-las. Demasiada juventude e demasiada velhice impedem o espírito, muita ou muito pouca instrução; enfim, para nós, as coisas extremas são como se não fossem, e em sua perspectiva nós não somos; elas nos escapam, ou nós a elas. Eis aí nosso verdadeiro estado; é o que nos torna incapazes de saber certamente e de ignorar absolutamente. Vagueamos sobre um vasto meio, sempre incertos e flutuando, empurrados de um lado ao outro. Qualquer forma à qual pensemos em nos prender, afirmando-nos, isso começa a oscilar e nos deixa; e se a seguimos, escapa à nossa captura, escorrega e foge numa fuga eterna. Nada se detém para nós. É o estado que nos é natural, e no entanto o mais contrário à nossa inclinação; ardemos de desejo por encontrar um assento firme e uma base última e constante para ali edificar uma torre que se eleve ao infinito, mas todo nosso fundamento se rompe, e o solo se fende até o abismo. Não procuremos, portanto, ponto de segurança e de firmeza. Nossa razão é desiludida constantemente pela inconstância das aparências, nada pode fixar o finito entre os dois infinitos que o abarcam e dele fogem. Uma vez tendo bem compreendido isso, creio que nos manteremos em repouso, cada um no estado onde a natureza o colocou. Se esse é o meio que nos foi legado, estando sempre distantes dos extremos, que importa então que o homem tenha um pouco mais de inteligência das coisas? Se ele a tem, ele as tomará de modo um pouco mais elevado. Ele não está infinitamente distante do fim, e a duração de nossa vida não está infinitamente [distante] da eternidade, mesmo que dure dez anos a mais? Frente a esse infinito, todos os finitos são iguais; e não vejo razões para assentar sua imaginação antes num do que no outro. A simples comparação que fazemos de nós e do finito nos deixa acabrunhados. Se se esforçasse para estudar o primeiro veria como é incapaz de alcançar o outro. E como poderia uma parte conhecer o todo? Mas talvez ele aspirasse a conhecer, pelo menos, as partes com as quais tem certa proporção. Mas as partes do mundo têm todas uma tal remissão e um tal encadeamento mútuo que me parece impossível conhecer uma sem a outra e sem o todo. O homem por exemplo está remetido a tudo que ele conhece. Precisa de lugar para o conter, de tempo para durar, de movimento para viver, de elementos que o componham, de calor e de alimentos para (se) nutrir, de ar para respirar; ele vê a luz, sente o corpo; enfim, tudo recai sob sua aliança. Para conhecer o homem, portanto, é preciso saber donde vem que ele precisa de ar para subsistir, e para conhecer o ar, saber como ele tem essa remissão com a vida do homem etc. A chama não subsiste sem o ar; de modo que para conhecer um é preciso conhecer o outro. Ora, uma vez que todas as coisas são causadas e causadoras, auxiliadas e auxiliadoras, mediatas e imediatas, e todas se entretêm por um liame natural e insensível que liga as mais distanciadas e as mais diferentes, julgo ser impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tanto quanto conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes. [A eternidade das coisas, em si mesmas ou em Deus, deve assombrar ainda nossa pequena duração. A imobilidade fixa e constante da natureza, em comparação com a transformação contínua que se processa em nós, deve causar o mesmo efeito.] E o que completa nossa incapacidade de conhecer as coisas é que elas são simples em si mesmas e que nós somos compostos de duas naturezas opostas e de gênero diverso, de alma e de corpo. Com efeito, é impossível que a parte que em nós pensa seja outra coisa que espiritual; e se pretendem que sejamos simplesmente corpóreos, isso nos excluiria 102 PASCAL, Blaise. Os dois infinitos traduções ainda mais do conhecimento das coisas, e nada seria mais inconcebível do que afirmar que a matéria conhece a si mesma; não nos é possível saber como ela se conheceria. E, assim, se [somos] simplesmente materiais, nada podemos conhecer, e se somos compostos de espírito e matéria, não podemos conhecer com perfeição as coisas simples, espirituais ou corpóreas. É por isso que quase todos os filósofos confundem as idéias das coisas, falando de coisas corpóreas espiritualmente, e de coisas espirituais corporalmente. Com efeito, afirmam ousadamente que os corpos tendem para baixo, que aspiram a alcançar seu centro, que fogem da destruição, que temem o vácuo, que possuem inclinações, simpatias, antipatias, coisas essas que pertencem todas só aos espíritos. E ao falarem dos espíritos, consideram-nos como estando num lugar, atribuem-lhes movimento de um lugar para outro, coisas essas que pertencem todas só aos corpos. Em vez de receber as idéias dessas coisas puras, nós as tingimos com nossas qualidades, impregnando com nosso ser composto todas as coisas simples que contemplamos. Ao nos ver compondo todas as coisas de espírito e de corpo, quem não acreditaria que essa mistura nos é bem compreensível? Todavia, essa coisa é a que menos compreendemos. Por ele mesmo, o homem é o mais prodigioso objeto da natureza; visto que não pode conceber o que seja corpo, ainda menos o que seja espírito, e menos que qualquer coisa, como um corpo pode estar unido com um espírito. Ali está sua mais elevada dificuldade, e no entanto é seu próprio ser: Modus quo corporibus adhaerent spiritus comprehendi ab hominibus non potest, et hoc tamen homo est... [Frag. 205] Quando considero a pequena duração da minha vida, absorvido na eternidade precedente e posterior, o pequeno espaço que ocupo e mesmo que vejo, abismado na infinita imensidão dos espaços que ignoro e que me ignoram, me assombro e fico perplexo de ver-me aqui e não lá, pois não há razão alguma para que esteja aqui em vez de lá, viver presentemente e não em outro momento. Quem me colocou aqui? Por ordem e orientação de quem me foram destinados esse lugar e esse tempo? Memoria hospitis unius diei praetereuntis (a lembrança de hóspede de um dia que passa. Sabedoria, V,15). Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, p.103-103, jul./dez. 2008 103 Normas para publicação Os artigos devem ser formulados obedecendo às normas técnicas de publicação da ABNT, e encaminhados à nossa editoria em modelo eletrônico e com cópia impressa. A editoria da Revista se reserva o direito de, após criteriosa análise consultiva, publicá-los ou não. Os artigos não publicados não serão devolvidos, sendo que os autores serão informados da decisão. Os autores articulistas receberão três exemplares da revista em que tiver sido publicado seu artigo, abdicando, com isso, em favor da revista, dos direitos autorais dos artigos. Os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores e não precisam coincidir com o pensamento da Faculdade. O idioma de publicação é o português, não estando excluída e publicação ocasional de textos ou artigos em outras línguas. 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Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, jul./dez. 2008 105 Pedidos e Assinaturas Nome: ___________________________________________________________________ Endereço: ________________________________________________________________ ________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________ Telefones: ________________________________________________________________ E-mail: __________________________________________________________________ Outras informações: _______________________________________________________ ________________________________________________________________________ normas Assinatura anual: R$ 25,00 (2 por ano) Volume avulso: R$ 15,00 E-mail: [email protected] Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.1, n.1, jul./dez. 2008 106