1. INTRODUÇÃO O progresso científico, nas últimas décadas, trouxe uma multiplicação de possibilidades médicas de tratamento e de cura para as mais variadas doenças. O advento do transplantes de órgãos assinala esse avanço tecnológico. Como é um tema relativamente novo, vem provocando inúmeras discussões, de ordem ética, da forma de obtenção do material a ser transplantado e o tipo de procedimento a ser realizado. Os transplantes de órgãos e tecidos encontra-se em voga há muito tempo, entretanto, tiveram sua prática eficaz nas últimas duas décadas do século passado. Desde 1984 os transplantes de órgãos e tecidos vêm tendo bons resultados, isto em razão das drogas imunosupressoras1. Consolidaram-se todos os tipos de transplantes, em especial o transplante inter vivos que é realizado no caso de órgãos duplos ou quando estes possam ser regenerados. A Lei 9.434/97 veio regular o tema, juntamente com esta temos o Decreto 2.268/97. Esta lei veio a dar eficácia ao preceito constitucional esculpido no art. 199, § 4º, Constituição Federal de 19882, cuja norma incita estabelece a vedação da comercialização, bem como deixa clara a posição de nosso legislador constituinte, no sentido de que a lei deve facilitar a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante. 1 São aquelas que evitam a rejeição do órgão transplantado. 2 Art. 199. ...§ 4º - A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização. 15 A área de transplantes de órgãos lida com valores fundamentais da comunidade humana. A biotecnologia trouxe mudanças quantitativas e qualitativas de tal natureza a ponto de forçar os seres humanos a reconsiderarem as soluções que tinham sido validas durante séculos para resolver as grandes questões relacionadas à vida e à morte. A sociedade, então, precisa encontrar respostas jurídicas e moralmente validades para essa manifestação do progresso cientifico. E é aqui que reside o problema que pretende-se trabalhar no presente trabalho, qual seja, a questão da eficácia da fila única para transplantes. Com relação à fila única, tema central desta pesquisa surge uma indagação: este procedimento, isto é, a norma que o regula esta tendo a eficácia pretendida? O sistema de fila única está suprindo as necessidades daqueles que aguardam por um transplante? Quando nos resta à alternativa de transplantar um órgão ou tecido surge a necessidade de nos inscrever no sistema de fila única. Os dados clínicos inscritos nesse sistema formam o cadastro técnico referente a cada tipo de órgão, parte ou tecido a ser transplantado. A inscrição na lista de candidato ao transplante é feita pelo hospital ou médico responsável na Central Nacional de Captação e Distribuição de Órgãos (CNCDO). A lista única para transplantes obedece a critérios cronológicos, morfológicos, imunológicos e de gravidade. Os pacientes são escolhidos através de um programa informatizado do Sistema Nacional de Transplantes que indica os receptores mais adequados, segundo critérios previamente definidos. Dificilmente se altera a seqüência da lista única. Cada inscrito recebe um número e sua posição na lista pode ser acompanhada junto à Central de Transplantes de cada Estado, pessoalmente, através de procuração ou pela Rede Mundial de Computadores. 16 2. O DIREITO E A MORAL NA VISÃO KELSENIANA Para Hans Kelsen, na relação entre moral e direito está contida a relação entre a justiça e o direito. O direito é confundido com a ciência jurídica, a moral é muito freqüentemente confundida com a Ética, e afirma-se desta o que só quanto àquela está certo: que regula a conduta humana, que estatui o direito e deveres, isto é, que estabelece autoritariamente normas, quando ela apenas pode conhecer e descrever as normas morais postas por uma autoridade moral ou consuetudinariamente produzida. O caráter social da moral é por vezes posto em questão apontando se que, além das normas morais que estatuem sobre a conduta de um homem em face de outro, há ainda normas morais que prescrevem uma conduta do homem em face de si mesmo, como a norma que proíbe o suicídio ou as normas que prescrevem a coragem ou a castidade. O certo, porém, é que também estas normas apenas surgem na consciência de homens que vivem em sociedade. A conduta do individuo que elas determinam imediatamente, na verdade, a este mesmo individuo; mediatamente, porém, refere-se aos outros membros da comunidade. Na verdade, só por causa dos efeitos que esta conduta tem sobre a comunidade é que ela se transforma, na consciência dos membros da comunidade, numa norma moral. Também os chamados deveres do homem para consigo próprio são deveres sociais para o individuo que vivesse isolado não teria sentido. Temos a visão Kelsiana que também faz uso da geometria para desvincular o direito da Moral, concebe os dois sistemas como esferas independentes. A distinção entre o Direito e a Moral não pode referir-se à conduta que obrigam os homens as normas de cada uma destas ordens sociais. O suicídio não pode ser apenas proibido pela norma Moral, mas também pelo Direito, como a coragem e a castidade não podem ser apenas deveres Morais como também deveres jurídicos. 17 Dizer que o Direito prescreve uma conduta externa e a Moral uma conduta interna, não é acertada. As Normas das duas ordens determinam apenas ambas as espécies de conduta. A virtude Moral da coragem não representa apenas no estado de alma a ausência do medo, mas também uma conduta exterior condicionada pelo estado. Quando a norma jurídica proíbe suicídio não proíbe o ato em si de produzir o resultado, mas produz também à conduta interna. Para ser Moral terá que ser realizado contra a inclinação (tendência) ou contra o direito egoístico. Apenas uma conduta dirigida contra a inclinação ou interesse egoístico tem valor Moral, como "ter moral" não significa corresponder à norma Moral, apenas se refere aos motivos da conduta. Nem toda e qualquer conduta pode ser Moral apenas pode ser realizada contra a inclinação ou interesse egoístico, pois não são impostas como obrigação. Uma conduta apenas pode ter valor Moral quando não só o seu motivo dominante como também a própria conduta corresponde a uma norma Moral. O Direto e a Moral não podem se distinguir essencialmente com referência a produção ou à aplicação de suas normas. Tal como as normas do Direito, também as da Moral são criadas pelo costume por meio de uma elaboração consciente (podemos citar um profeta ou um fundador de uma religião como Jesus). O Direito só pode ser distinguido essencialmente da Moral quando se concebe como uma ordem de coação, isto é, como uma ordem normativa que procura obter uma determinada conduta humana, ligando a conduta oposta um ato de coerção socialmente organizado. Enquanto Moral é uma ordem social que não estatui qualquer sanção. Quando entre as normas da Moral e as do Direito possa existir uma justificação do Direito positivo pela Moral apenas é possível, contraposição, quando possa existir um Direito moralmente bom e um Direito moralmente mau. Quando uma ordem Moral, como, ex., a proclamada por Paulo na sua Epístola aos Romanos, prescreve a observância, em todas as circunstâncias, das normas postas pela autoridade jurídica e, assim, exclui de antemão toda a contradição entre ela própria e o Direito positivo, não pode realizar sua intenção de legitimar o Direito positivo emprestando-lhe o 18 valor moral. Com efeito, se todo o Direito positivo, por ser querido por Deus, e, portanto, justo, é bom, assim como tudo que é, por ser querido por Deus, é bom, nenhum Direito positivo pode ser mau, assim como nada do que é pode ser mau. Se o Direito é identificado com a Justiça, o ser com o dever-ser, o conceito de Justiça, assim como o de bom, perdem o seu sentido. Se nada há que seja mau (injusto), nada pode haver que seja bom (justo). A necessidade de distinguir o Direito da Moral e a ciência jurídica da Ética significa que, do ponto de vista de um conhecimento científico do Direito positivo, a legitimação deste por uma ordem moral distinta da ordem jurídica é irrelevante, pois a ciência jurídica não tem de aprovar ou desaprovar o seu objetivo, mas apenas tem de o conhecer e descrever. Embora as normas jurídicas, como prescrições de dever-ser, constituam valores, a tarefa da ciência jurídica não é de forma alguma uma valoração ou apreciação do seu objeto, mas uma descrição do mesmo alheia a valores. O jurista científico não se identifica com qualquer valor, nem mesmo com o valor jurídico por ele descrito. Se a ordem moral não prescreve a obediência à ordem jurídica em todas as circunstâncias e, portanto, existe a possibilidade de uma contradição entre a Moral e a ordem jurídica, então a exigência de separar o Direito da Moral e a ciência jurídica da Ética significa que a validade das normas jurídicas positivas não depende do fato de corresponderem à ordem moral, que, do ponto de vista de um conhecimento dirigido ao Direito positivo, uma norma jurídica pode ser considerada como válida ainda que contrarie a ordem moral. O que, sobretudo importa, porém - o que tem de ser sempre acentuado e nunca o será suficientemente - é a idéia de que não há uma única Moral, "a" Moral, mas vários sistemas de Moral profundamente diferentes uns dos outros e muitas vezes antagônicos, e que uma ordem jurídica positiva pode muito bem corresponder - no seu conjunto - às concepções morais de um determinado grupo, especialmente do grupo ou camada dominante da população que lhe está submetida - e, efetivamente, verifica-se em regra essa correspondência - e contrariar ao mesmo tempo as concepções morais de um outro grupo ou camada de população. Igualmente é de acentuar, com particular relevo, que as concepções sobre o que é moralmente bom ou mau, sobre o que é e o que não é moralmente justificável - como, v. g., o Direito - estão submetidas a uma permanente mutação, e que uma ordem jurídica ou certa das suas normas que, ao tempo em que entraram em vigor, poderiam ter correspondido as exigências morais de então, hoje podem ser condenadas como profundamente imorais. A tese, rejeitada pela Teoria Pura do Direito, mas muito espalhada na jurisprudência tradicional, de que o Direito, segundo a sua própria essência, deve ser moral, de que uma ordem social imoral não é Direito, pressupõe, porém, uma Moral absoluta, isto é, uma Moral válida em todos os tempos e em toda a parte. De outro modo não poderia ela alcançar o seu fim de 19 impor a uma ordem social um critério de medida firme, independente de circunstâncias de tempo e de lugar, sobre o que é direito (justo) e o que é injusto. A tese de que o Direito é, segundo a sua própria essência, moral, isto é, de que somente uma ordem social moral é Direito, é rejeitada pela Teoria Pura do Direito; não apenas porque pressupõe uma Moral absoluta, mas ainda porque ela na sua efetiva aplicação pela jurisprudência dominante numa determinada comunidade jurídica, conduz a uma legitimação acrítica da ordem coercitiva estadual que constitui tal comunidade. Com efeito, pressupõe-se como evidente que a ordem coercitiva estadual própria é Direito. O problemático critério de medida da Moral absoluta apenas é utilizado para apreciar as ordens coercitivas de outros Estados. Somente estas são desqualificadas como imorais e, portanto, como não-Direito, quando não satisfaçam a determinadas exigências a que a nossa própria ordem dá satisfação, v. g., quando reconheçam ou não reconheçam a propriedade privada, tenham caráter democrático ou não-democrático, etc. Como, porém, a nossa própria ordem coercitiva é Direito, ela tem de ser, de acordo com a dita tese, também moral. Uma tal legitimação do Direito positivo pode, apesar da sua insuficiência lógica, prestar politicamente bons serviços. Do ponto de vista da ciência jurídica ela é insustentável. Com efeito, a ciência jurídica não tem de legitimar o Direito, não tem por forma alguma de justificar - quer através de uma Moral absoluta, quer através de uma Moral relativa - a ordem normativa que lhe compete - tão somente - conhecer e descrever. 20 3. SISTEMA LEGAL DOS TRANSPLANTES 3.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS LEGISLAÇÕES PÁTRIAS SOBRE TRANSPLANTES Chaves3 lembra que o primeiro diploma legislativo que entre nós regulou a matéria relativa aos transplantes de órgãos e tecidos foi a Lei n. 4.280, de 6 de novembro de 1963: “Dispõe sobre a extirpação de órgão ou tecido de pessoa falecida”. Apenas nove artigos principais, subordinando a permissão, para fins de transplante, a autorização escrita do de cujus ou não oposição do cônjuge ou dos parentes até o segundo grau, ou de corporações religiosas ou civis responsáveis pelo destino dos despojos. Foi revogado pela Lei n. 5.479, de 10 de agosto de 1968, que “dispõe sobre a retirada e transplante de tecidos, órgãos e partes do cadáver para finalidade terapêutica e cientifica, e dá outras providências”. Em 15 artigos fundamentais, regulava não só a retirada e transplante de tecidos, órgãos e partes de cadáver, como indicava o título, mas também a retirada em vida. Pela Mensagem 425, de 13 de outubro de 1982, encaminhou o Presidente da República, aos Membros do Congresso Nacional, acompanhado de Exposição de Motivos do Ministro de Estado da Saúde, Projeto de Lei que “dispõe sobre a retirada de órgãos ou partes do corpo humano para transplante ou qualquer finalidade terapêutica e dá outras providências”. Trata-se de um segundo texto que o Ministério dirigiu à Presidência da República: o primeiro foi devolvido pela Casa Civil, por prever a retirada de órgãos, independentemente de autorização em vida, apenas nos casos de morte violenta. O título do Projeto de Lei era mais compreensivo do que o do diploma anterior. Mas oferecia dois inconvenientes, na opinião do mestre Antônio Chaves, O primeiro era o perigo que apresenta 3 CHAVES, Antônio. O Direito à Vida e ao Próprio Corpo. 2.ed. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1994. p 224 e ss. 21 vagüidade das expressões “qualquer finalidade terapêutica”, oferecendo um espectro de possibilidades subjetivas demasiadamente amplo. O segundo era a eliminação da permissibilidade contida na Lei n. 5.479/68 da retirada objetivando, outrossim, finalidade científica, cuja permanência parecia indispensável diante da falta de corpos para estudo nas Faculdades de Medicina. O projeto — percebeu o Governo — não lograria aprovação: preferiu, por isso, retirá-lo. Algum substitutivo que viesse a obter aprovação do Congresso Nacional, daria efetivamente um passo importantíssimo no sentido da solução do aflitivo problema do salvamento de um número incalculável de vidas. Além disso, até 18 de novembro de 1992, a Lei n. 5.479/68 não havia sido regulamentada, dando margem à severas críticas o que tornava prudente a elaboração de nova disciplina. Ao lado das leis federais sobre transplantes, a Constituição Federal de 1988 resolveu dedicar o § 40, de seu art. 199, à matéria, seguindo a trilha do Projeto Orlando Gomes (art. 30 e parágrafo único), bem como do Projeto de Lei 634-B, que institui o novo Código Civil pátrio (arts. 13 e 14). Mais polêmico, contudo, o Projeto apresentado em Brasília, em 1990, pelo deputado paulista Leonel Júlio, cujo teor constituía no que segue: “o detento que fizer doação, post mortem, de órgão ou tecido de seu corpo, gozaria da diminuição de um terço de sua pena. Se a doação ocorrer em vida, a diminuição seria de metade da pena”. Em 18 de dezembro de 1990, noticiava a imprensa a aprovação unânime, pelo Congresso Nacional, na semana anterior, de projeto de lei que alterava as normas para a realização de transplantes. Com 15 artigos e quatro alterações com relação à lei então vigente, tinha por objetivo aumentar o número de doadores mortos. Segundo o relator do projeto, o deputado Geraldo Alckmin Filho, apenas 20% dos 1,5 mil transplantes realizados no país eram feitos com doadores mortos Não existe uma preocupação com a doação As pessoas não procuram as entidades credenciadas dizia O professor emérito da Faculdade de Medicina da USP, o cirurgião Euryclides de Jesus Zerbini participou das primeiras reuniões para discutir o texto da nova lei. Ele defendia que a pessoa identificasse em algum documento, como carteira de trabalho ou de identidade, que era doador de órgãos. A proposta, entretanto, não foi incluída no texto final. 22 Na conformidade do projeto, se uma pessoa não demonstrou em vida o interesse em doar um órgão, a família poderá autorizar verbalmente o transplante ao médico. “A família não vai mais precisar se preocupar com burocracias para fazer a doação”, disse Neide Regina Barriguelli, presidente da Associação Paulista de Renais Crônicos. Cerca de 15 mil pessoas sofrem de problemas renais no país e apenas 900 conseguem transplante. Foi somente aos 2 de setembro de 1992 que a Comissão de Seguridade Social da Câmara dos Deputados aprovou projeto, que, com a intenção de elevar o número de transplantes, propunha que, se a pessoa se manifestasse em vida como doadora, não seria mais necessária a consulta à família para retirada de órgãos depois de sua morte. Para evitar o comércio de órgãos, a doação em vida para pessoas que não tenham parentesco direto com o receptor dependia de autorização judicial. O projeto, segundo o relator, deputado Geraldo Alckmin Filho, seria um dos mais adiantados do mundo, prova, sem dúvida, de excessivo otimismo. Ao contrário da legislação de 1968, que exigia atestado de morte assinado por apenas um médico, define a morte encefálica, que deve ser atestada por dois médicos que não pertençam às equipes de retirada ou transplante dos órgãos. Converteu-se, finalmente, na Lei n. 8.489, de 18 de novembro de 1992, que “dispõe sobre a retirada e transplante de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, com fins terapêuticos e científicos e dá outras providências”, com 16 artigos nominais, pois quatro foram vetados. Desta feita o regulamento não tardou tanto: Decreto n. 879, de 22 de julho de 1993: 33 artigos. A Lei n. 8.501, de 30 de novembro de 1992, por sua vez, “dispõe sobre a utilização de cadáver não reclamado, para fins de estudo ou pesquisas científicas, e dá outras providências” (oito artigos). A Portaria n. 96, de 28 de julho de 1993, da Secretaria de Assistência à Saúde do Ministério 23 da Saúde estabeleceu normas de credenciamento de Hospitais que realizam transplantes para o Sistema Único de Saúde. Nem passe sem registro que a Constituição do Estado de São Paulo determina, art. 225, crie a Unidade da Federação banco de órgãos, tecidos e substâncias humanas. § 1° A lei disporá sobre as condições e requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas, para fins de transplante, obedecendo-se à ordem cronológica da lista de receptores e respeitando-se, rigorosamente, as urgências médicas, pesquisa e tratamento, bem como, a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização. § 2° A notificação, em caráter de emergência, em todos os casos de morte encefálica comprovada, tanto para hospital público, como para a rede privada, nos limites do Estado, é obrigatória. § 3° Cabe ao Poder Público providenciar recursos e condições para receber as notificações que deverão ser feitas em caráter de emergência, para atender ao disposto nos §§ 1° e 2°. Mas, apesar do progresso legislativo, e das evoluídas técnicas cirúrgicas e do controle de rejeição, a escassez de doadores de órgãos continuou sendo a principal barreira para a realização dos transplantes. Em 1995, o médico e vice-governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin Filho, relatava que o Senado também aprovara, com emendas, outro projeto de lei de sua autoria que já havia sido aprovado por unanimidade na Câmara dos Deputados, há dois anos, pela Comissão de Seguridade Social e Família e também pelo Plenário. Pretendia-se, então, estimular as doações post mortem, buscando conscientizar a sociedade para a importância dos transplantes. Contava ele que, segundo dados da Sociedade Brasileira de Nefrologia, dos quinze mil pacientes que sobreviviam penosamente, submetidos a constantes diálises, nove mil poderiam ser beneficiados pelos transplantes. Com isso, esses pacientes teriam seus problemas renais definitivamente resolvidos e ainda haveria uma enorme economia nos gastos particulares e públicos com a saúde, uma vez que um transplante de rim custa menos que o tratamento por diálise durante seis meses. No entanto, por falta de doadores, menos de dez por cento dos doentes renais crônicos têm condições de receber transplantes de rins. A Lei procurava ainda facilitar os procedimentos legais para a retirada de órgãos de cadáveres, com o objetivo de corrigir uma grave distorção: no Brasil, oitenta por cento dos transplantes renais procedem de doadores vivos, enquanto na Europa quase noventa por cento vêm de cadáveres. 24 Como tratava de uma questão eticamente muito delicada, esse projeto de lei houvera sido por ele elaborado com extrema cautela. Como seu relator, Geraldo Alckmin Filho fez questão de ouvir os mais renomados especialistas em transplantes, entidades médicas e de representação de possíveis beneficiários dessa cirurgia. A exigência de que todas as doações de órgãos só podem ser feitas de forma gratuita é um exemplo dessa preocupação ética. Havia naquele projeto de lei outras normas igualmente cautelosas, tais como: a) a retirada de uma ou várias partes do corpo post mortem deveria ser precedida de prova incontestável de morte encefálica, atestada por dois médicos não integrantes das equipes de retirada e de transplante; b) a permissão para retirada seria efetivada por desejo expresso manifestado em vida pelo disponente, através de documento pessoal ou oficial e, na falta desse documento, “se não houvesse manifestação em contrário, por parte do cônjuge, ascendente ou descendente”; c) após a retirada de partes do corpo, o cadáver seria condignamente recomposto e entregue aos responsáveis para sepultamento ou necropsia obrigatória prevista em lei. Quanto aos doadores vivos, a lei exigia que eles fossem maiores de idade, capazes e parentes próximos do paciente a ser beneficiado: pais, filhos, irmãos ou cônjuge. Sem esse parentesco, o transplante só poderia ser feito com ordem judicial. Permitia a lei, ainda, à criação de centros estaduais ou regionais de transplantes de órgãos e tomava obrigatória — tanto para hospitais públicos como particulares — a notificação em caráter de emergência de todos os casos de morte encefálica comprovada. Isso, para que as equipes de transplantes tomassem conhecimento e pudessem promover a retirada de órgãos em tempo hábil e em perfeita consonância com a lei. A partir de 1993 o legislativo buscava alterar a Lei n. 8.489/92. Realmente, grande polêmica foi gerada pela discussão de um projeto e de uma lei municipais relativos à doação de órgãos, em São Paulo. Os dispositivos em questão são a Lei Municipal n. 11.479/94, que garantia a gratuidade do funeral dos que doassem seus órgãos, e, o projeto de lei do vereador Paulo -Roberto Faria Lima, autorizando a retirada de órgãos de pessoas 25 que não se manifestassem contra a medida em vida. Essa manifestação contrária deveria estar expressa em uma carteirinha de “não doador”, emitida pela Secretaria Municipal de Saúde. A lei foi regulamentada por decreto do então prefeito Paulo Maluf, e o projeto aprovado pela Câmara, foi vetado por ser tema de competência da União e porque contrariava a Lei Federal n. 8.489/92 que respeitava a recusa dos familiares nos casos de pacientes que não tivessem se manifestado favoráveis à doação. Entretanto, parece que a tentativa de se viabilizar a adoção da solução de oposição em matéria de transplante de órgãos e tecidos post mortem, começava a ganhar espaço no Brasil, a exemplo de países como Portugal e França. Tanto assim que, em meados de 1996, começou a ser votado projeto de lei que, alterando a Lei n. 8.489/92, propunha a doação compulsória de órgãos a todos os cidadãos que não tivessem se manifestado contrariamente a retirada em vida, numa tentativa de minimizar os problemas de falta de doadores cadáveres. A partir de 4 de fevereiro de 1997, portanto, entrou em vigor no Brasil a Lei n. 9.434 que “dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências”. Com 25 artigos nominais, e três vetados, a lei, desde sua vigência, vem causando sérias discussões. Seu regulamento, assim como ocorrera com a lei anterior, também não tardou Em 30 de junho de 1997 entrou em vigoro Decreto n 2 268 contendo 35 artigos. Organizou o Sistema Nacional de Transplantes — SNT, finalidade precípua é desenvolver o processo de captação e distribuição tecidos, órgãos e partes retiradas do corpo humano, bem como criou a Centrais de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos — CNCDOS unidades executivas das atividades do SNT. Na tentativa de acompanhar a mudança legislativa, o Conselho Federal de Medicina, por sua vez, publicou em 8 de agosto de 1997, a Resolução CFM n. 1.480/97, atualizando a anterior (Resolução CFM n. 1 .346/9l), estabelecendo os critérios para identificação da morte encefálica. A Lei n. 9.434/97 tem sido duramente criticada, mas também, fortemente aplaudida. Adotou o sistema de oposição para os transplantes post mortem, salvo manifestação expressa em sentido contrário contida em documento pessoal do falecido (carteira de identidade e/Ou carteira de 26 habilitação); vetou a possibilidade da colheita de órgãos de pessoa não identificada; eliminou a necessidade de parentesco entre doador e receptor, nos casos de transplantes in vida; regulou o autotransplante; exigiu o consentimento expresso do receptor para a realização da cirurgia de transplante de órgãos; foi severa na penalização da prática cirúrgica em descompasso com a lei e criou sanções de ordem administrativa, atingindo os hospitais, as entidades e as equipes de transplantação. Para alguns a atual lei de transplantes de órgãos é quase perfeita. Para outros, porém, eliminou um problema social para criar outro, este, de natureza jurídica. Conforme teremos a oportunidade de demonstrar, muito se discute sobre a constitucionalidade ou não da Lei n. 9.434/97, pois admite verdadeira renúncia ao direito da personalidade, sobre o corpo morto, pelo silêncio. Todos os que não manifestarem sua vontade, em sentido contrário ao disposto no art. 40 do referido diploma legal citado, serão doadores presumidos de seus órgãos e tecidos, após sua morte. Se a doação compulsória resolvesse o problema, talvez fosse até tolerável. Porém, na prática, isso não acontece. Um mês depois da aprovação da Lei n. 9.434/97, os jornais já noticiavam que as filas de não-doadores começavam a se formar em frente aos institutos de identificação em São Paulo. Nesse período foram emitidas 53.836 mil novas carteiras de identidade de não-doadores. Nessa mesma época, em pesquisa, apenas 18,1% haviam se declarado não-doadores, contra 81,9% de doadores. Em novembro de 1997, passados mais alguns meses da aprovação da lei, esse percentual havia subido para 45%. Entrevistas foram realizadas com populares das mais diversas classes sociais. Muitos não tinham qualquer conhecimento acerca da nova lei e da necessidade de se manifestar negativamente quanto a retirada de seus órgãos. Para esses, em sua maioria analfabetos, torna-se, inclusive, inviável a manifestação negativa, pois nem sequer documentos possuem. Apesar de pertencerem a um grupo mais reduzido, existem aqueles que se mostraram favoráveis à Lei n. 9.434/97. 27 3.2 ANÁLISE COMPARADA DAS LEIS N. 5.479/68; 8.489/92 E 9.434/97 A Lei 9.434/97, igualmente a 8.489/92 estabeleceram o critério da morte encefálica para efeitos de transplantes “pos mortem”, ponto que já era discutido na vigência da Lei 5.79/68. No que concerne a omissão dos sinais de morte, acreditamos que andaram bem o tanto o legislador de 1968 quanto o de 1992 e o de 1997. Para constatar e registrar a morte encefálica exige a atual legislação o diagnóstico de no mínimo dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplantes. Assim já o era na vigência da Lei n. 8.489/92. Procurou o legislador, realmente, evitar que dotados do espírito de emulação e vaidade deixassem os médicos de salvar uma vida para tentar recuperar outra. Um dos médicos porem deve ser um neurologista já que a morte do encéfalo é a única irreversível. Permite a Lei n. 9.434/97, contudo, a presença de médico de confiança da família do falecido no ato da comprovação e atestação da morte encefálica, o que não acontecia nas leis anteriores. Constituiu, igualmente, inovação legal a referente a não mais prevalecer na vigência da Lei n. 8.489/92 a proibição do transplante de órgãos ou partes de cadáveres de pessoas vítimas de crime o que criara inúmeras discussões quando em vigor a Lei n. 5.479/68 que sobre a matéria prescrevia em seu art. 12: “Art. 12. As intervenções disciplinadas por esta lei não serão efetivadas se houver suspeita de ser o disponente vítima de crime”. A Lei n. 9.434/97 manteve, nesse aspecto, a orientação da Lei n. 8.489/92, mas criou um outro problema para o intérprete. No art. 6° prescreve: “Art. 6° É vedada a remoção post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoas não identificadas” Diferença marcante entre a Lei n. 9.434/97 e suas antecessoras recai sobre a adoção da solução de oposição nos casos de transplante post mortem. Nesse sistema, a falta de oposição do defunto equivale à possibilidade de colheita de órgãos, sendo que a oposição do defunto não pode ser superada nem pelo consentimento dos familiares, nem por decisão de qualquer órgão público. Porém, gostaríamos de deixar claro que as Leis ns. 5.479/68 e 8.489/92 adotaram, ao contrário da atual, a solução de consentimento, muito embora tivesse a Lei n. 8.489/92 ampliado, de forma incisiva, a possibilidade de utilização de órgãos e partes de cadáveres para fins terapêuticos, científicos e “humanitários” que a anterior de 1968. 28 Em verdade, pretendeu o legislador de 1992 fazer valer no dia-a-dia a prática do transplante, tornando-o uma cirurgia mais costumeira e acessível, de modo a desburocratizar o processo administrativo a que estava sujeito na vigência da lei anterior. Dizia-se ser lícita a disposição do próprio futuro cadáver, desde que o ato obedecesse aos bons costumes e a moral vigentes. Logo, podia o ser humano pretender que o seu futuro cadáver fosse destinado aos fins previstos na Lei n. 8.489/92, bastando, para isso, que assim se manifestasse, expressamente. Diversamente da revogada Lei n. 5479/68, preocupava-se a lei de 1992 em estabelecer limites às doações de órgãos em vida, dispondo sobre relações de parentesco, inclusive civil e para os casos lá não compreendidos, exigindo prévia autorização judicial. Já a postura adotada pela atual legislação representa um retrocesso já que permite que haja doação entre não familiares, e ainda prescindir de autorização judicial, significa liberalizar na prática o comércio de órgãos e fazer letra morta o art. 1° da lei 9434/97, que exige a gratuidade do ato de disposição. Alias, todos aos diplomas legislativos sobre transplantes somente permitiram a disposição de órgãos e partes do corpo humano morto ou vivo para fins terapêuticos ou científicos, desde que gratuitamente. Outras diferenças existentes entre as aludidas leis referentemente aos transplantes, em vida recaem sobre a viabilidade do autotransplante e necessidade do consentimento expresso do receptor. Em ambos os casos, deve-se aplaudir o legislador atual, especialmente quanto a necessidade do consentimento do receptor que pode aceitar ou recusar o ato de disposição. Dividida em seis capítulos, a atual Lei n. 9.434/97 regulou, criteriosamente, as sanções penais, majorando as penas anteriormente existentes e, tipificando como crimes os atos de (I) remoção de tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa ou de cadáver, em desacordo com as disposições contidas no texto legal; de (II) compra e venda de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano; de (III) realização da cirurgia de transplante ou enxerto sem prévia obtenção do consentimento do doador e do receptor; de (IV) falta de recomposição do cadáver, devolvendo-lhe aspecto condigno, para sepultamento, e de (V) publicação de anúncios ou apelos publicitários em desacordo com o disposto no art. 11 da mesma lei. Além disso, por meio da Lei n. 9.434/97 os delitos acima mencionados podem ter suas penas aumentadas, sempre que do ato resultar incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias, perigo de vida, debilidade permanente de membro, sentido ou função ou morte. Se a vítima do ato praticado for gestante, a 29 pena é majorada se do ato resultar aceleração de parto ou aborto. Do mesmo passo, a Lei n. 9.434/97 instituiu sanções administrativas dirigidas aos estabelecimentos de saúde e as equipes médico-cirúrgicas aptas a realização de transplantes cujas penas variam desde a desautorização temporária de funcionamento até a suspensão definitiva das atividades, sem direito a qualquer indenização ou compensação por investimentos realizados. Merece aplauso a legislação atual nesse aspecto. Primeiro, porque organizou, sistematicamente, todos os dispositivos legais, em capítulos, facilitando não só a leitura como também a aplicação da lei. Segundo, porque foi mais severa do ponto de vista criminal, tipificando os delitos, qualificando-os e impondo penas rígidas, inclusive de reclusão com prazo máximo de vinte anos, superiores as aplicadas para homicídio simples. Terceiro, porque não deixou impune os estabelecimentos de saúde e as equipes de transplantes. 3.3 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS QUE PREVALECEM EM MATÉRIA DE TRANSPLANTES A categoria dos direitos da personalidade, que compreende os direitos atinentes à tutela da pessoa humana, considerados essenciais à sua dignidade e integridade, constitui-se fruto de elaborações doutrinárias de origem germânica e francesa da segunda metade do século XIX. Hoje, o tratamento jurídico dos aspectos físicos - direito à vida e ao próprio corpo - do sujeito do direito inscreve-se, inqüestionavelmente, dentro dos direitos da personalidade. A tutela jurídica desses direitos é de natureza constitucional, civil e penal, tendo como suporte básico o princípio fundamental, expresso no art. 1°, III, da Constituição Federal Brasileira, da dignidade da pessoa humana. Por esse princípio, verifica-se que a pessoa humana é o fundamento e o fim da sociedade, do Estado e do Direito. Entre os direitos voltados à proteção física do sujeito, o direito à vida antecede temporalmente os demais direitos. Entretanto, depende, ao mesmo tempo, da tutela jurídica dessas 30 manifestações para sua proteção e permanência. Assim explica Adriano de Cupis4. O bem da integridade física é, a par do bem da vida, um modo de ser físico da pessoa, perceptível mediante os sentidos. Esse bem, por outro lado, segue, na hierarquia dos bens mais elevados, o bem da vida. De fato, enquanto este último consiste pura e simplesmente na existência, a integridade física, pressupondo a existência, acrescenta-lhe alguma coisa, que é, precisamente, a incolumidade física, de importância indubitavelmente inferior ao seu pressuposto. O direito à vida e à integridade física, como princípio da dignidade humana, decorre do reconhecimento jurídico do interesse que cada indivíduo e a sociedade têm, em princípio, de manter, sem diminuições ou alterações, as qualidades que sustentam e tornam singular cada pessoa. Procura-se tutelar a intangibilidade do sujeito, não apenas física e psiquicamente, mas a saúde e integridade do próprio sujeito. Ocupa, portanto, posição de destaque, dentro do sistema dos direitos da personalidade. Com relação ao direito à disposição corporal, o que se protege e se limita é a liberdade de o indivíduo atuar licitamente, para permitir ingerências ou alterações em seu corpo, em seu benefício ou de terceiros, com maior ou menor sacrifício de sua integridade corporal. A lei, como ato de política legislativa, deve obedecer a determinados princípios. No caso da lei dos transplantes, o princípio primordial que se deve observar é o princípio da dignidade humana e, portanto, deve-se resguardar, dentre outros, o direito à vida e à integridade física5, e dentro deste está o direito sobre o próprio corpo (vivo e morto). Embora o direito à integridade física e o direito à disposição corporal tenham bases em distintos bens, são juridicamente valorados e protegidos. Em razão da finalidade e do livre consentimento, o exercício do direito de disposição corporal não resulta na violação ao direito de integridade física. O dever de curar impele para uma atuação e, hoje, face aos avanços da Medicina, não se questiona mais o dever do médico de buscar todas as soluções éticas que permitam prolongar a vida do paciente e melhorar a sua qualidade, desde que essas esperanças se mostrem concretizáveis, e 4 DE CUPIS, Adriano. Os direitos da personalidade. Tradução de Adriano Vieira Jardim e Antonio Miguel Caeiro. Livraria Moraes Editora, Lisboa, 1961. p. 70. in:LEITE, Rita de Cássia Curvo. Transplantes de Órgãos e Tecidos e os Direitos da Personalidade. São Paulo: J. de Oliveira, 2000. 5 AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 254. 31 desde que não haja, por parte do doente, recusa esclarecida de tais procedimentos6. Relativamente aos transplantes levados a cabo a partir de doadores mortos e para além da questão da determinação do momento da morte, sob o prisma do doador, não se trata mais da integridade física, mas do espaço de autonomia ética da pessoa, de um direito de autodeterminação a ver respeitadas as suas determinações para depois da morte, sem que signifique qualquer reconhecimento dos direitos sem sujeito, ou de uma personalidade parcial do morto, sem que ainda de qualquer subjetividade jurídica para além da capacidade para o direito, que, indiscutivelmente, cessou. Para o ordenamento jurídico, a personalidade jurídica cessa com a morte, e com ela, também, a suscetibilidade de se ser titular de direitos e obrigações. Há, portanto, uma impossibilidade jurídica em se falar de direitos de personalidade de um morto. Com relação ao cadáver, procura-se ver respeitada uma manifestação de vontade, um direito da pessoa viva, no sentido de proibir ou autorizar a colheita de seus órgãos depois de morta. Porém, mesmo que cesse a personalidade jurídica com a morte, não implica que a garantia de proteção à dignidade humana cesse, necessariamente. Nesse sentido, entendeu o Tribunal Constitucional Alemão que cessam os direitos de personalidade do doador, mas a sua dignidade bem como outros bens jurídicos cotinuam a gozar de proteção jurídica7. Não obstante a personalidade cesse com a morte do seu titular, tal fato não impede que haja bens da personalidade física e moral do defunto que continuam a influir no curso social e que, por isso mesmo, perduram no mundo das relações jurídicas e como tais são autonomamente protegidos. E particularmente o caso do seu cadáver, das partes destacadas do seu corpo, da sua vontade objetivada. O direito contemporâneo reconhece um prolongamento da proteção da personalidade após a morte. Além do princípio da dignidade humana existem, ainda, princípios gerais de proteção do corpo que devem ser observados: o direito do doador de dispor de parte do corpo; o direito do receptor de recusar o transplante; o direito do doador e receptor a um consentimento informado; a necessidade terapêutica; o direito à preservação da saúde; o respeito do ser humano diante da comercialização de sua vida; a integridade da espécie humana, a não-patrimonialidade do corpo 6 ROCHA, Maria Isabel de Matos. Transplantes de Órgãos Entre Vivos: As Mazelas da Nova Lei. In: Revista dos Tribunais. São Paulo: Ed.RT, ano 1986. v. 742, p.72. 7 FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro. Aspectos Jurídico-Penais dos Transplantes. Porto: Ed. Universidade Portuguesa, 1995. p. 30. 32 humano; a não-remuneração do doador. Entre as exigências gerais dos transplantes, para os efeitos da lei, devem ser observados: a) a necessidade; b) a gratuidade do ato de disposição; c) o dever do médico de informar o doador e o receptor ou seus familiares; d) a liberdade de decisão do doador e do receptor; e) a revogabilidade da decisão; f) a capacitação, especialidade e habilitação necessárias dos médicos e g) o registro dos estabelecimentos de saúde com a adequada infra-estrutura física e instrumental. 33 4 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA TÉCNICA DE TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS E TECIDOS A história dos transplantes de órgãos e tecidos percorreu os mesmos caminhos desbravados pela Medicina. No florescer do cristianismo, em Roma, se inicia a assistência hospitalar no Ocidente e com ela as primeiras tentativas de preservação da vida humana. Passa pela fase mitológica8 e científica9. A transferência de órgãos e tecidos de um organismo vivo para outro é procedimento que remonta considerável Antigüidade. As primeiras referências a esses eventos, no entanto são certamente lendárias. Assim, reza a tradição chinesa que o cirurgião Pien Chiao realizou, com êxito, a troca de órgãos entre dois irmãos, cerca de 300 anos a.C. O transplante de dentes parece haver sido evidenciado por estudos arqueológicos no Egito, Grécia, Roma e mesmo na América précolombiana10. Na Idade Média, entretanto, firmou-se a célebre lenda dos Santos Cosme e Damião, que por pura caridade exerciam medicina (representada em pintura de Fra Angelico e de Fernando Galiegos (1745-1 550): Para substituir a perna gangrenada de um doente que tinham necessidade de amputar foram os Santos ao cemitério, em busca de uma que lhes pudesse servir para aquele fim. O único cadáver utilizável naquela ocasião era o de uni negro etíope, mas os Santos não tinham preconceitos raciais nem problemas de histo-compatibilidade Retiraram, pois, do cadáver o segmento do membro de que o enfermo carecia e a transplantação foi, por graças de Deus, um êxito completo, realçado ainda pela diferença da cor. 8 A história da técnica de transplantes registra uma fase que pode ser chamada de mitológica, porque os incipientes recursos tecnológicos e científicos que existiam na época não permitem uma certeza da efetiva ocorrência dos transplantes relatados pelos doutrinadores que se ocuparam pelo tema. 9 Esta fase é assim denominada pois os fatos relatados correspondem ao estágio de desenvolvimento científico e tecnológico da civilização naquele momento histórico. Ademais, os documentos existentes permitem a certeza da realização dos fatos narrados. 10 CHAVES, Antônio. O Direito à Vida e ao Próprio Corpo. 2.ed. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1994. p 214. 34 Entre os antigos, encontramos nos hindus os primeiros trabalhos relativos a reconstrução do nariz, feito pelo cirurgião Sushruta (750-800 a.C.), quando transplantou um pedaço de pele da testa, abrindo o campo da reconstrução facial11. Antônio Bernardes de Oliveira12 descreveu o procedimento cirúrgico denominado rinoplastia, que teria sido realizado no ano 600 A.C. pelos hindus Atreya e Charaka: se o nariz de alguem foi cortado, o cirurgião deverá pegar uma folha de arvore do mesmo tamanho, e aplicá-la na face e cortar um segmento de pele e carne do mesmo tamanho, suturar a face com agulha e linha; escarifar o contorno da ferida nasal e rapidamente, mas com cuidado, aplicar o segmento de pele nesse ponto, protegendo com um curativo até suturar o novo nariz no seu lugar. Colocar dois tubos para manter a respiração livre Essa técnica revela o grau de evolução do povo Hindu na área médico-cirúrgica, motivo pela qual os doutrinadores os colocam como sendo os precursores da moderna técnica dos transplantes. Nos séculos XV-XVI foram descritos os primeiros intentos de utilizar tecidos procedentes de pessoas e animais, porém, as operações terminaram em fracasso, pois, a extração era feita por procedimentos primitivos sem levar em conta a infecção, de sorte que essas intervenções plásticas só superaram os inconvenientes nos últimos anos do século XIX e começo do século XX, após a adoção dos princípios básicos da cirurgia moderna: refinamento de instrumental, anestesia, antissepsia, antibioticoterapia e, mais modernamente, combate à rejeição. Um dos precursores das técnicas utilizadas nas cirurgias de transplantes foi o célebre cirurgião francês Ambrósio Pará (15 17-1590) chamado “pai da cirurgia moderna”. Foi cirurgião de Henrique II, de Francisco II, de Carlos IX e Henrique III. Celebrizou-se pela sua descoberta da ligação das artérias, que ele empregou nas amputações, segundo um método seu, como sucedâneo da cauterização. Como se sabe, a ligadura dos vasos é um dos mais importantes momentos do transplante de órgãos13. 11 A. Bernardes de Oliveira, ia A evolução da medicina até o início do século XX, p. 56, apud Daisy Gogliano, C) Direito ao Transplante ..., cit., p. 145 cita a passagem bíblica que se refere à criação de Eva, como o primeiro enxerto, isto e, o primeiro exemplo de uma ressecção costal feita sob anestesia (Gen. 2. 21.) que se decompõe nas etapas de uma cirurgia moderna. (1) E o Senhor, Deus, provocou um sono em Adão...- início da anestesia; (2) E ele dormiu ... — anestesia profunda; (3) E então Deus tirou uma de suas costelas...- operação cirúrgica; (4) E depois fechou a ferida...- suturas; (5) Com carne – enxerto de pele para reparar a cicatriz viciosa que poderia resultar. 12 OLIVEIRA, Antônio Bernardes. A Evolução da Medicina até o Início do Seculo XX. São Paulo: Pioneira/Secretaria de Estado da Cultura, 1981. p. 46/47. 13 OLIVEIRA, João Gualberto de, O Transplante de Órgãos Humanos à Luz do Direito, Tese proposta pelo Instituto dos Advogados de São Paulo para o concurso anual de 1968, 1970, p. 15. 35 Falando sobre o início da fase científica, propriamente dita, Daisy Gogliano lembra-nos que o cirurgião inglês John Hunter (1771) transplantou dentes de um indivíduo a outro, assim como os testículos de galo a uma galinha sem que se alterasse a disposição desta última. Foi Hunter o primeiro cirurgião a utilizar a palavra “transplante”14. O primeiro transplante ósseo afortunado remonta ao ano 1890 em Glasgow, Escócia. Com efeito, durante o ano de 1887 Macewen extirpou toda a diáfise humeral de uma criança de três anos, afetado de osteomielite persistente. Três anos mais tarde amputou o membro inútil e, em seu lugar, implantou grande número de cunhas ósseas ressecadas em outros seis pacientes. O osso transplantado regenerou e anos mais tarde o paciente ganhava a vida com trabalhos manuais15. Mas, foi somente em 1902 que os trabalhos relativos aos transplantes começaram a tomar vulto. Ullman, De Castello e Carrel trabalhando, independentemente, implantaram rins em um mesmo animal e em outros indivíduos da mesma ou de diferente espécie, observando que os rins eram capazes de formar urina de imediato. Ullman, na verdade, foi o primeiro pesquisador a tentar transplante de órgãos, com auto e alotransplante de cães. Por essa mesma época, Carrel iniciava seus trabalhos experimentais em anastomose vascular e em transplantes de órgãos. Apesar das tentativas de transplante terem prosseguido durante os vinte anos que se seguiram, foi em 1931, na Itália, que se efetuou um enxerto de glândulas genitais, praticado pelo médico Gabriel Janelli, que suscitou numerosas polêmicas no campo das ciências médicas e jurídicas, e na opinião pública, já que se tratava de doador vivo cedendo a glândula por dinheiro. O êxito das cirurgias envolvendo transplantes de órgãos, contudo, começou a ser obtido em 1954, quando em intervenção praticada no Hospital Peter Brighan, em Boston, o cirurgião Joseph Murray extraiu o rim de um gêmeo para implantá-lo, com resultados positivos, no corpo de seu irmão, O sucesso da cirurgia foi atribuído ao fato de se tratarem aqueles irmãos de gêmeos univitelinos de modo que inexistiam entre eles diferenças imunológicas. Em verdade, já havia o biólogo Peter B. Medawar demonstrado, reiteradas vezes, que o organismo são rejeita o transplante porque a sua “reação imunológica” — ou seja o seu sistema 14 GOGICLIANO, Daisy. O Direito ao Transplante de Órgãos e Tecidos Humanos, tese de doutoramento apresentada perante a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1986, p 149. 15 SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite dos. Ação Socialmente Adequada Transplante de Órgãos e Eutanásia, Tese apresentada corno exigência parcial para a obtenção do título de Livre Docente em Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1988, p. 167. 36 defensivo contra as infecções ou contra a presença de corpos estranhos — ataca o tecido transplantado como se este fora uma chuva de microrganismos invasores. E justamente essa repulsa — reconhecem os cientistas — o principal obstáculo para o bom êxito em qualquer caso de transplante de órgãos humanos. Da fase pioneirística dos transplantes destacam-se, ainda, o primeiro transplante de fígado em 1963 realizado pelo americano Starzl, em Denver; o primeiro transplante de pulmão, no mesmo ano; o primeiro transplante completo de pâncreas em 1967, em Minneapolis, por Kelly e o primeiro de medula óssea, por volta do ano de 1970. No Japão e nos Estados Unidos da América, certo número de transplantes do lobo pulmonar foram feitos em portadores de câncer do pulmão. Eram transplantes provisórios, destinados a ajudar o paciente durante o período pós-operatório, até que o pulmão não canceroso se recuperasse o suficiente para manter a vida. Não obstante os antecedentes comentados, a problemática dos enxertos de órgãos e tecidos em seres humanos adquiriu sua máxima expressão em razão da operação realizada em 3 de dezembro de 1967, no Hospital Grotte Shuur da Cidade do Cabo, Africa do Sul, pelo doutor Christian Barnard, que retirou o coração do comerciante Louis Washkansky para colocar no lugar o de Denise Ann Darvall, jovem de 25 anos falecida vítima de um acidente de trânsito que a deixou com o crânio e cérebro quase completamente destruídos. Esta intervenção fez surgir grandes discussões, tanto médicas como jurídicas, especialmente quanto a determinação da morte do doador, ou inconvenientes da rejeição e as baixas probabilidades de sobrevivência normal do receptor. Na atualidade, o transplante de certos órgãos e tecidos é considerado em muitos hospitais do mundo como técnica médica corrente, tal é o caso dos enxertos de rim, ossos, córnea, artérias e pele, além de estarem em pauta os transplantes de tecido do sistema nervoso central, como o de substância negra, enquanto que nos de fígado e pulmões, por exemplo, os resultados ainda são pouco satisfatórios. Não nutre dúvidas Euclydes Marques16 de que a Medicina do futuro usará larga manus do recurso da transferência de órgãos para a cura de males ainda intratáveis. E o caso dos membros, cujo autotransplante pós-acidentes já é exeqüível mas o risco da imunossupressão não admite o 16 CHAVES, Antônio. O Direito à Vida e ao Próprio Corpo. 2.ed. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1994. p. 220. 37 emprego de membros doados17. Outros órgãos cuja execução técnica do transplante é factível, mas ainda esbarra no impedimento por rejeição e no grave risco da imunossupressão, são os de intestino, tireóide, pâncreas e outros. No dia 19 de dezembro de 1986 foi criada em São Paulo, numa assembléia no Centro de Convenções Rebouças, a Associação Brasileira de Transplantes de Orgãos (ABTO) que reunia os principais profissionais da área no Brasil. Nomes como Euryclides de Jesus Zerbini, Uno Mariani, Tadeu Civintal, Emil Sabagga e Adib Jatene faziam parte da nova sociedade que lutaria por uma mudança da legislação, possibilitando uma maior agilidade na realização dos transplantes. A Lei n. 9.434, sancionada em 1997, procurou estabelecer as condições legais para a modificação do panorama dos transplantes no país. Criou o Sistema Nacional de Transplantes — SNT, que tem como componentes principais a Coordenação Nacional, as Centrais de Captação, Notificação e Distribuição de Orgãos — CNCDOs, regionais e estaduais e os estabelecimentos de saúde onde são realizados os transplantes. Está previsto, ainda, a estruturação de um sistema articulado entre a Coordenação Nacional, e os gestores das listas estaduais ou regionais atuando sobre as atividades de notificação da morte encefálica, de captação de órgãos e sua distribuição. O funcionamento deste sistema se dará por meio de banco de dados com atualização de informações em tempo real, e com disponibilização para todo o país durante 24 horas por dia. Atualmente, existem, no país, 12 Centrais de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos para transplantes. Em curto prazo serão 16, permitindo a cobertura de todo o território nacional. São 115 os hospitais cadastrados pelo SUS, públicos, universitários e filantrópicos realizando transplantes. No ano de 1996, foram realizados pelo SUS, 1.954 transplantes, dos quais 1.501 de rim, 65 de coração, 115 de fígado, 6 de pulmão, 267 de medula óssea e 1551 de córnea. Foram aplicados 36 milhões de reais, com procedimentos diretamente relacionados aos transplantes (retiradas de órgãos, transplantes e intercorrências), e 37 milhões com procedimentos de laboratório (imuno genética, dosagem de imunossupressores) e medicamentos contra rejeição. No primeiro quadrimestre de 1997 foram realizados 569 transplantes, sendo 420 de rim 15 de coração 40 de figado 1 de pulmão e 93 de medula óssea. 17 Recentemente foi feito transplante de um braço de um paciente que tivera o seu amputado, em hospital na França. 38 Segundo o médico Emil Sabagga, desde 1965, já foram realizados 1.247 transplantes renais somente no HC, sendo 300 deles através de doadores cadáveres. Em outros hospitais do Estado aconteceram 1.342 transplantes e nos demais Estados brasileiros 1.640— num total aproximado de 4.229 transplantes, somente de rins18. 18 CHAVES, Antônio. O Direito à Vida e ao Próprio Corpo. 2.ed. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1994. p 221. 39 5 ELEMENTOS CONCEITUAIS DOS TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS E TECIDOS O advento dos transplantes assinala uma decisiva reviravolta não só na cirurgia, que atinge a chamada “idade de ouro” da ciência médica, mas principalmente pela exigência de contemplar duas premissas conflitivas básicas, que, sistematicamente, bem salientou Leite dos Santos19 a saber: De um lado, existe o interesse coletivo no irrenunciável progresso da ciência médica (a experimentação humana como passagem obrigatória) ao preço, porém, do sacrifício de outros, da mutilação e retirada de órgãos: utilizando-se o corpo humano, vivo ou cadáver, no exclusivo interesse de alguém. De Outro lado, o interesse individual e o respeito à pessoa humana, nos seus bens existenciais da vida e da integridade física reivindicando a própria liberdade e prioridade, contra qualquer degradação de sua estrutura física. O possível conflito traz em sua origem o fato que, pela sua peculiaridade e novidade, é ainda hoje uma atividade explorativa de resultados incertos e imprevisíveis. E como tal transcende o campo estritamente médico e exige a atenção das ciências morais e jurídicas. Múltiplos são os ângulos visuais do fenômeno em consideração: do médico-cirúrgico ao ético e moral; filosófico e psicológico; do aspecto humano in individual ao social e econômico; enquanto toca ao homem — pessoa — um problema essencialmente jurídico. Nessa heterogênea complexidade a exigência do Direito e sua dialética entre indivíduo e coletividade, entre utilitarismo e valores se faz necessária e urgente. Trata-se, portanto, de um problema inquietante, que além de estar intimamente relacionado com a seara jurídica tanto em seus aspectos civis quanto penais, requer o estudo de algumas características típicas da ciência médica, na medida em que somente a partir do enfoque dessa disciplina e que poder-se-á alcançar os reais conceitos de “transplante”, de “órgãos” e de “tecidos”. 5.1 ETIMOLOGIA, TERMINOLOGIA E CONCEITO DE TRANSPLANTE Literalmente, “transplante” alude ao ato ou ação de arrancar (planta, árvore) de um lugar e plantar em outro, ou introduzir na terra as raízes de uma planta pequena para que se desenvolva, cresça e amadureça. Não obstante o sentido literal da palavra “transplante”, sua utilização na ciência 19 SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite dos. Ação Socialmente Adequada: Transplante de Órgãos e Eutanásia, cit., pp. 165-6 40 médica é secular, derivada do latim transplantare, que significa transferir órgão ou porção deste de uma para outra parte do mesmo indivíduo, ou ainda, de indivíduo vivo ou morto para outro indivíduo. E o ato ou efeito de transplantar. A palavra “transplante”, que coincide com o conceito dado pela legislação especial, responde, com exatidão, à retirada de órgãos ou partes de seres humanos, para aproveitamento, com fins terapêuticos, noutros seres da mesma espécie. A Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos define o transplante como um procedimento cirúrgico que consiste na reposição de um órgão ou tecido de uma pessoa doente receptor - por outro órgão normal de um doador, morto ou vivo. E um tratamento que pode prolongar a vida com melhor qualidade, ou seja, é uma forma de substituir um problema de saúde incontrolável por outro sobre o qual se tem controle. Esclarece Leite Santos20 que o transplante: Trata-se de uma técnica cirúrgica, denominada cirurgia substitutiva, que se caracteriza em essência porque se introduz no corpo do paciente um órgão ou tecido pertencente a outro ser humano, vivo ou falecido, com o fim de substituir a outros da mesma entidade pertencente ao receptor, porém, que tenham perdido total ou sensivelmente sua função. A natureza desse tipo de intervenção do ponto de vista do receptor - posto que com relação ao doador a situação é diversa - é de estimá-la, em conseqüência, como uma intervenção curativa, sempre que exista a indicação terapêutica e se aplique a técnica adequada ao caso. Pari11i21 define o transplante como “a retirada de um órgão ou material anatômico proveniente de um corpo, vivo, ou morto, e sua utilização com fins terapêuticos em um ser humano”. Casabona22 entende que o transplante trata-se de uma técnica cirúrgica, denominada cirurgia substitutiva, que se caracteriza em essência porque introduz no corpo do paciente um órgão ou tecido pertencente a outro ser humano, vivo ou falecido, com o fim de substituir a outros da mesma entidade pertencente ao receptor, porém, que tenham perdido total ou sensivelmente sua função. A natureza deste tipo de intervenção, do ponto de vista do receptor, posto que em relação ao doador a situação é diversa, é de estimá-la, em conseqüência, como uma intervenção curativa, 20 SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Ob. cit., 1992, p. 140. 21 Ricardo Antequera Parilli, El Derecho, Los Trasplantes y las Transfusiones, cit., p. 22. in: BANDEIRA, Ana Claudia Pirajá. Consentimento no Transplante de Órgãos: À Luz da Lei 9.434/97 com Alterações Posteriores. Curitiba: Juruá, 2001. 22 Carlos Maria Romeo Casabona, El Medico y El Dereclio Penal: 1— La atividad curariva (licitud y responsabilidad penal) Bosh, Barcelona, 1979, p. 2000. in: BANDEIRA, Ana Claudia Pirajá. Consentimento no Transplante de Órgãos: À Luz da Lei 9.434/97 com Alterações Posteriores. Curitiba: Juruá, 2001. 41 sempre que exista a indicação terapêutica e se aplique a técnica adequada ao caso. Todoli23 entende por transplante a amputação ou ablação de um órgão, com função própria, de um organismo para instalar-se em outro, a fim de exercer neste as mesmas funções que no anterior. Também são chamados enxertos vitais. Diferenciam-se dos enxertos propriamente ditos, pois por enxerto deve-se compreender a secção de uma porção do organismo, próprio ou alheio, para instalação no próprio ou organismo alheio, com fins estéticos e terapêuticos, sem exercício de função autônoma. Chamam-se também enxertos “plásticos”. Assim, o transplante é um ato complexo que começa com a ablação ou extirpação de um órgão ou partes do corpo humano e termina com a implantação dessa peça anatômica em outro indivíduo com uma finalidade terapêutica. Isto é, transplante significa o ato ou efeito de transplantar ou transplantar-se, i. e., mudar de um lugar para outro. Enxertar é o mesmo que inserir uma coisa em outro lugar de modo a se tornar uma parte integrante deste último. E, finalmente, implantar consiste em inserir. Requer-se para tanto, uma equipe médica de destacada experiência, previamente autorizada pelo Ministério da Saúde. Assim, o transplante de órgãos, além de ser um recurso excepcional, também o é final, uma vez que só se recorre a ele quando esgotadas todas as vias terapêuticas, conforme preceitua o art. 23 do Decreto 2.434, de 30.06.97. Embora freqüentemente se fale de “enxertos” e “transplantes” como palavras sinônimas, preleciona Chaves24 que devem ser diferenciadas, uma vez que por enxerto se entende: a secção de uma porção de organismo, próprio ou alheio, para a instalação no próprio ou organismo alheio, com fins estéticos e terapêuticos, sem exercício de função autônoma, O transplante, diferentemente, é a amputação ou ablação de um órgão, com função própria, de um organismo para instalar-se em outro, a fim de exercer neste as mesmas funções que no anterior, podem ser chamados de enxertos vitais ou, simplesmente transplante. O vocábulo “enxerto” traz a idéia de inserção, ou seja, introduzir no corpo de uma pessoa fragmentos retirados de outro indivíduo, ou de outra parte de seu próprio corpo. Maria Celeste Cordeiro Leite Santos define o enxerto como “qualquer coisa inserida em outra de modo a se tornar 23 CHAVES, Antônio. O Direito à Vida e ao Próprio Corpo. 2.ed. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1994. p. 213. 24 CHAVES, Antônio O Direito à Vida e ao Próprio Corpo. 2.ed. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1994., p. 213. 18 Ob. cit.., p. 139. 42 parte integrante desta última, especificamente um pedaço de osso, pêlo, dente etc., implantado para suprir um defeito”. Tanto a Lei 9.434, de 04.02.97 quanto o Decreto 2.268, de 30.06.97, que a regulamenta, tratam em seus artigos do transplante ou enxerto de tecido, órgãos ou partes do corpo humano. Na Argentina, o vocábulo “implante” é usado como sinônimo de “transplante”, o qual não tem o mesmo significado, podendo gerar confusões. Implante é uma intervenção cirúrgica que retira do seu lugar de origem um tecido, ou parte de um organismo, para ser colocado noutro local do mesmo corpo, como acontece nos implantes de cabelo e pele (autotransplante). Outros, ainda, entendem por implante a incorporação de materiais de natureza distinta (não animal) e, portanto, sem procedência semelhante (por exemplo, o metal ou plástico)25. A medicina também distingue transplantes de processos mecânicos (próteses e órgãos artificiais). As próteses são processos mecânicos nos quais são usados materiais inertes (tais como vasos, válvulas etc.) para substituir certas partes anatômicas. Órgãos artificiais são órgãos que substituem inteiramente a função de um órgão natural, como o coração, rim, pulmão e se subdividem em: a) Órgãos artificiais externos, extracorpóreos, como o rim artificial, a máquina de coração-pulmão etc; b) Órgãos artificiais internos, intracorpóreos, são completos e de longa duração, entretanto, ainda estão em fase de experimentação. Por exemplo: o coração artificial temporário, parcial ou total, com a finalidade de substituir a função parcial desse órgão, permitindo superar fases críticas de emergência. Diante do transplante de órgãos, que transforma o corpo humano vivo ou morto em fonte de elementos indispensáveis nas cirurgias, faz-se necessário também definir o que passou a ser objeto de relações jurídicas na medicina. A legislação especial, orientada pelos parâmetros da Medicina, regula, especificando, por vezes, quais os órgãos, partes ou tecidos não renováveis que podem ser objeto de disposição e transplante e estabelece requisitos especiais para cada caso. 25 LIMA, Madalena. Transplantes: Relevância Jurídico-Penal. Coimbra: Almedina, 1986. p. 28. in: BANDEIRA, Ana Claudia Pirajá. Consentimento no Transplante de Órgãos: À Luz da Lei 9.434/97 com Alterações Posteriores. Curitiba: Juruá, 2001. 43 5.1.1 Classificação dos Transplantes Numerosos termos são usados em várias classificações dos transplantes. Os termos “transplante” e “transplantação” são usados amplamente em referência a qualquer remoção ou separação parcial de uma parte do corpo e sua implantação dentro ou sobre o corpo do mesmo ou de um diferente indivíduo. Alguns tratados médicos usam “enxerto” como sinônimo de transplante, “hospedeiro” e receptor também como sinônimos. A transplantação não inclui o uso de próteses, materiais sintéticos ou dispositivos artificiais que possam ser fixados dentro ou presos ao organismo e que não compreendam células ou tecidos de seres humanos ou de outros animais. O estudo médico-legal do transplante adota vários tipos ou classificações para nominar os transplantes, e a terminologia usada é diferente. A lei não contempla todas as categorias existentes. Em geral, prevalecem usos incertos para designar diferentes tipos de transplante. Entretanto, determinaremos cada um deles para esclarecer quais são normatizados pela legislação nacional: a) autotransplante: (doador e receptor são o mesmo indivíduo) deslocamentos de diferentes partes do corpo de uma pessoa para outra região, na mesma pessoa. Também denominado autógeno, transplante autoplástico, auto-enxerto; b) transplante isógeno ou isotransplante: transplante de tecido ou órgão entre indivíduos da mesma espécie e com caracteres hereditários idênticos; por exemplo: gêmeos univitelinos. Também chamado isoenxerto ou enxerto singênico; c) alotransplante ou homotransplante: transplante de tecido ou órgão entre indivíduos do mesmo gênero, porém com diferentes caracteres hereditários, ou sei a, doador e receptor entre indivíduos geneticamente dessemelhantes da mesma espécie. O homotransplante pode ser entre vivos ou do cadáver. (aloenxerto ou homoenxerto); d) xenotransplante ou heterotransplante: é o transplante que se faz entre um indivíduo de um gênero a um ser vivo de outro gênero; por exemplo, do chimpanzé ao homem: doador e receptor de espécies diferentes. (xenoenxerto ou heteroenxerto). Diversos são os tipos de cirurgia substitutiva, bem como suas finalidades. Podem ser 44 enumeradas, quanto ao objeto, como: 1- Cirurgia substitutiva com órgãos ou partes de órgãos artificiais - com uma única fase (innesto - enxerto); 2 - Cirurgia de transplante - tem por objeto partes anatômicas pertencentes ao ser vivo e compreende duas fases: numa primeira fase podem ser retirados tecidos, órgãos ou parte do corpo humano do doador, vivo ou de cadáver e, numa segunda fase, implanta-se esse material orgânico no receptor. Com referência à natureza das partes anatômicas, é mister distinguir entre: a) Transplantes de tecidos ou isotransplantes - utilizados em virtude de traumatismos ou processos mórbidos irreversíveis e necessários não só para suprir funções de importância secundária mas também para reintegrar o organismo em seu aspecto morfológico; b) Transplantes de órgãos ou organotransplantes - destinados a suprir a função global de um órgão agravado de uma total insuficiência por lesões anatômicas ou circunscritas, não remediáveis com o enxerto daquela parte alterada26. Por último, quanto à sede do transplante, pode distinguir-se entre: a) Transplante substitutivo - quando o órgão é colocado na sua sede anatômica natural, isto é, no lugar do órgão primitivo; b) Transplante heterotópico - quando é feito noutra parte do corpo, como suplemento, quando o órgão primitivo é deixado no lugar, não é removido. Com os tratamentos de drogas imunossupressoras cada vez mais potentes e específicas, o transplante de órgãos tornou-se um procedimento terapêutico habitual para o tratamento da falência crônica de alguns órgãos. Entretanto, ainda existe um grande número de receptores que não podem ser objeto de transplante devido à escassez de órgãos, fato que, infelizmente, apresenta uma tendência a manter-se ou aumentar, no futuro. Por essa razão, a possibilidade de transplantar órgãos 26 SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Transplantes de Órgãos e Eutanásia (Liberdade e Responsabilidade). São Paulo: Saraiva, 1992, p. 135. 45 xenogênicos é considerada pelos transplantadores uma possível solução para a escassez de órgãos para transplante. Nota-se, entretanto, que os transplantes têm experimentado um enorme progresso nas últimas décadas, tornando-se cada vez mais comuns, o que requer a organização de regras claras e eficientes para a obtenção e distribuição de órgãos, com embasamento ético e legal por parte dos profissionais envolvidos nesse tipo de tratamento. 5.2 CONCEITO DE ÓRGÃOS Com relação a determinados órgãos e partes do corpo humano, é indispensável a distinção entre integridade anatômica e integridade funcional, para se permitir a retirada desses materiais orgânicos. Tratando-se de doador vivo, os órgãos, como a própria lei dispõe, devem ser duplos e a retirada de um desses implica, necessariamente, a perda da integridade anatômica, sem que haja, porem, perda das funções orgânicas, que passam a ser desempenhadas por apenas um deles, com relativa alteração. O conceito utilizado pelo legislador na lei de transplante, tecido, órgãos ou partes do corpo humano, decorre de noções fornecidas pela Medicina. Nesse sentido Fachin27 adverte: Esse enfrentamento requer, isso sim, enfoques plurais, eis que será encontrado na interdisciplinaridade o terreno mais apto para compreender as décalages entre direito, ética e biotecnologia. Isso tudo para que no corpo do direito não ingresse tão simplesmente um novo estatuto do corpo humano a título de mercancia suscetível de trânsito na arena jurídica. Assim, órgão é entendido como um grupo de células semelhantes ou vários desses grupos, que se especializaram para uma determinada função, ou funções em benefício do organismo. No sentido de tecidos fundamentais, órgão é a combinação de tecidos e unidade encarregada de executar cada função ou conjunto de funções correlacionadas. Em um dicionário28, encontra-se o órgão definido como: “parte do corpo que goza de certa 27 FACHIN, Luiz Edson. Em busca de novas mandrágoras? Notas apresentadas debate realizado durante o Encontro Regional do CONPEDI (Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito), na Universidade Estadual de Londrina, Paraná, maio de 1997. 28 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Forense, 46 autonomia e desempenha uma ou mais funções especiais.” O professor Eros Abrantes Erhart29, professor associado do departamento de anatomia da faculdade de medicina da USP, nos ensina que “órgãos, em sentido genérico, são unidades suprateciduais, com forma e função próprias, definidos como “instrumentos de função”. São, portanto, unidades mais complicadas que o tecido fundamental que os constitui.” No mesmo sentir é a lição de Gardner & Osburn, in “anatomia do corpo humano”: o órgão, em definição simplista, é a unidade ou formação do corpo que executa uma função específica. Mas, em base das descrições anteriores, pode-se ir além. No sentido de especialização das células, órgão é u. grupo de células semelhantes ou vários desses grupos que se especializaram para uma determinada função, ou funções, em benefício do organismo. No sentido do conceito de tecidos fundamentais, órgão é a combinação de tecidos em unidade encarregada de executar cada função ou conjunto de funções correlacionadas30 O dicionário médico Stedman, assim define órgão: “Órgão é qualquer parte do corpo que exerce função especifica, como de respiração, secreção, digestão etc.” 5.2.1.Órgãos Comumente Utilizados para Transplantes São os principais órgãos do corpo humano utilizáveis para transplantes: o coração, o pulmão, o fígado e os rins. Examinaremos, brevemente, quais são os candidatos ao transplante de cada um dos órgãos mencionados no parágrafo anterior, vislumbrando, ainda, critérios excludentes e de classificação, bem como os casos de urgência. a) Coração: podem necessitar de transplante cardíaco, as pessoas que sofrem de problemas cardíacos e que já não são beneficiadas com terapêuticas convencionais. Tais anomalias provocam a falha do coração e são, entre outras, as doenças das artérias coronárias, hipertensão severa, válvulas anormais, miocardiopatia e doença congênita. Avalia-se o paciente através de vários testes sangüíneos, ecocardiogramas, cateterismo, raio X, avaliação psicológica, até que se chegue a definição do comprometimento cardíaco, bem como 1986, p. 1232 29 ERHART ,Eros Abrantes. Elementos De Anatomia Humana. 3.ed. Atheneu Editora São Paulo S.A., 1969. p. 31. 30 Apud Daisy Gogliano, O Direito ao Transplante de Órgãos e Tecidos Humanos, cit., p. 199. 47 do estado geral de saúde dos demais órgãos. São considerados casos de urgência os do retransplante indicado no período de 48 horas após o transplante anterior e o choque cardiogênico. Constatada a necessidade do transplante, devem-se seguir os critérios excludentes e de classificação na localização do doador. 1) critérios excludentes: incompatibilidade sangüínea, em relação ao sistema ABO, entre o doador e o receptor, exceto em casos de urgência; incompatibilidade de peso corporal entre doador e receptor idade do receptor tempo decorrido desde a entrada na lista única b) pulmão: normalmente o transplante pulmonar se faz ou de parte do órgão ou acoplado ao de coração. Diagnosticada a necessidade desta modalidade de intervenção cirúrgica, obedecera aos seguintes critérios: 1) critérios de classificação: identidade sangüínea, em relação ao sistema ABO, entre doador e receptor; precedência quando doador e receptor tiverem peso corporal abaixo de quarenta quilogramas; tempo decorrido desde a entrada na lista de espera. 2) determinação de urgência: hepatite fulminante; 48 retransplante indicado no período de quarenta e oito horas após transplante anterior. c) Rim: o rim é um órgão duplo e, por essa razão, permite seja realizado o transplante inter vivos. Normalmente quando um dos rins falha o outro passa a exercer a função básica do órgão: filtrar o sangue. Quando os dois rins falham, esta função tem que ser exercida por uma máquina de diálise. Com o passar do tempo, a diálise torna-se exaustivamente cansativa e inoperante. 1) critérios excludentes: amostra sorológica fora do prazo de validade; incompatibilidade sangüínea entre o doador e o receptor, em relação ao sistema ABO. 2) critérios de classificação: compatibilidade em relação aos Antígenos Leucocitários Humanos “HLA” idade do receptor; tempo decorrido desde a entrada na lista única; indicação de transplante combinado de rim e pâncreas. 5.3 CONCEITO DE TECIDOS Vejamos o conceito de acordo com o magistério de Junqueira e Carneiro, Professores de Histologia e Embriologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo: células que desempenham as mesmas funções básicas e que têm a mesma morfologia geral agrupam-se para formar os tecidos. Apesar da complexidade do nosso organismo, há apenas quatro tipos básicos de tecidos: os epiteliais, os conjuntivos, os musculares e os nervosos. Esses quatro tipos de tecidos não existem isoladamente, mas juntam-se uns aos outros, em proporções variáveis, para formar os deferentes órgãos e sistemas do organismo animal. Os tecidos conjuntivos caracterizam-se pela riqueza em material intercelular produzido por suas células. Os tecidos musculares são formados por células alongadas especializadas na contração, enquanto que o tecido nervoso é formado por células especializadas em recebei; produzir e transmitir os impulsos nervosos. Os epitélios são constituídos por células geralmente poliédricas, justapostas, entre as quais encontramos pouca substância 49 intercelular Uma das propriedades dos tecidos epiteliais é a capacidade de coesão entre suas células, que formam camadas celulares contínuas, revestindo a superfície e cavidades do corpo31. Almeida Júnior32, por seu turno, assim dispõe sobre os tecidos em geral: Os cem quatrilhões de células, que se calcula existirem no corpo humano, formam certos grupos em que os elementos, além de semelhantes entre si, se congregam para o desempenho de determinadas funções. São os tecidos. Define-se qualquer tecido por dois caracteres fundamentais: a forma e a função. O tecido epitelial, por exemplo, tem como caráter morfológico o fato de ser feito unicamente de células; e como caráter funcional o de revestir o corpo. O tecido muscular se caracteriza, morfologicamente, por ter as suas células alongadas em fibras e,funcionalmente, por ser contrátil. Gardner & Osburn33 assim conceituam tecidos: O tecido é um agregado de células de diferenciação e função semelhantes, unidas para a execução de determinada tarefa. Em um tecido há três componentes: as células características a ele, um meio ou líquido intercelular; e produtos intercelulares da atividade celular. Dos tecidos do corpo humano, ressaltam-se, para efeitos de transplantes, os epitélios e o tecido muscular. 5.3.1.Os Tecidos que Podem Ser Transplantados Inúmeros são os tecidos que podem ser transplantados. Devemos destacar: Medula óssea: usada em pessoas com leucemia, displasias sangüíneas e doenças do sistema imunológico; Válvulas cardíacas: para a restauração de defeitos congênitos ou adquiridos; Córneas: Utilizadas em casos de cegueira ou deficiência visual adquirida por doença ou em acidentes. (O transplante de córnea não está regulado pela Lei n. 9.434/97); 31 L.C. Junqueira e J. Carneiro. Histologia Básica. 3.ed., Guanabara Koogan, I974,p. 60. 32 Apud, Daisy Gogliano, O Direito ao Transplante de Órgãos e Tecidos Humanos cit., p. 201. 33 Apud Daisy Gogliano, idem, p. 202. 50 Pele: para cirurgia reconstrutiva em casos de queimaduras graves; Dura mater: para reparos nos tecidos que revestem o c&ebro e a medula espinhal; Ossos do ouvido interno: para restauração da audição; Cartilagem costal: em cirurgias reconstrutivas; Crista ilíaca: feita em vários blocos, pode ser usada para fusão espinhal; Cabeça do femur: em substituição (prótese) do quadril; Tendão da paleta: para fazer reparos em joelhos lesados. Dos tecidos acima referidos, ganha destaque o de medula óssea. Utilizada em transplantes entre vivos, permite nossa legislação (Lei n. 9.434/97) que se extraia de menor — pessoa juridicamente incapaz — mediante autorização judicial, com o consentimento de ambos os pais ou responsáveis e desde que o ato não ofereça risco para a sua saúde, bem como da gestante, comprovada a inexistência de perigo à sua saúde e à do feto34. 5.4 FINALIDADES O transplante de órgãos responde aos avanços científicos com os quais a ciência médica tenta amenizar o clamor da sociedade em sua luta contra a dor ou a enfermidade. Por isso, o fim terapêutico sempre será sobrelevado na técnica do transplante para justificá-la. O destino do transplante tem o propósito de melhorar a esperança ou as condições de vida da pessoa receptora 34 Medula óssea é usada em dois transplantes. LONDRES — Um menino de 4 anos que havia sofrido um transplante de medula salvou a vida de seu irmão recém-nascido, servindo de doador. Pela primeira vez o órgão, recebido de um doador parcialmente compatível, foi implantado em um paciente e depois foi parcialmente transplantado em um terceiro. “É um procedimento inédito; a medula recebida pelo menino foi implantada em outra criança”, declarou o especialista Paul Veys, do Great Ormond Street Children’s Hospital. Owen e Niail Vincent fizeram história na medicina quando o irmão mais velho, um transplantado, doou sua medula ao seu irmão mais novo, 24 horas após seu nascimento. Os pacientes passam bem. A cirurgia feita, há três meses, foi divulgada em 06/10/1998 pela mde de TV BBC. Os meninos nasceram com uma doença conhecida como imunodeficiência severa combinada, que provoca uma incapacidade de lutar contra infecções, podendo levar à morte. (The Guardian). Essa matéria foi publicada pelo Jomal “O Estado de São Paulo”, em 7 de outubro de 1998, p. A19. 51 substancialmente35. O transplante de órgãos constitui, hoje em dia, a melhor e, em muitas ocasiões, a única alternativa para aqueles pacientes afetados por enfermidades nas quais existe um dano irreversível de algum órgão ou tecido. É importante distinguir-se os transplantes que visam à verdadeira e própria terapia daqueles que permanecem no campo da experimentação pura ou experimentação em sentido estrito. Trata-se de uma distinção difícil pela própria atividade médica que tem sempre um componente de experimentação, risco e incerteza. Além de tudo, a atividade terapêutica é sempre uma tentativa que visa a um resultado positivo. A Declaração de Helsinque, da XVIII Assembléia Geral da Associação Mundial de Médicos, considerou necessária a distinção de um grau intermediário entre os extremos: tratamento médico cirúrgico curativo e experimental, sendo este último denominado experimentação terapêutica36. O Direito, desde o Código de Nuremberg, de 1947, recepcionou um conjunto de postulados éticos e revigorou a noção de liberdade dos sujeitos, diante da atividade estatal, principalmente, quando esta atividade visava à utilização do corpo para a realização de experimentação científica. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, datada de 1948, dispõe sobre a proibição de tortura ou tratamentos cruéis ou degradantes. No mesmo sentido, o Acordo Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da Assembléia Geral da ONU, firmado em 1966, proclama a proibição de tortura ou tratamento desumano, acrescentando que é proibido submeter uma pessoa a uma experiência médica ou científica sem o seu livre consentimento. Seguindo essa orientação, o Código de Ética Médica, no seu art. 122 e 123, veda a participação do médico em qualquer tipo de experimentação no ser humano com fins bélicos, políticos, raciais ou eugênicos e a realização de pesquisa em ser humano, sem que este tenha dado seu consentimento por escrito. A Constituição Federal também acolheu a dignidade da pessoa humana como valor fundamental da República. Em 1996, o Conselho Nacional de Saúde aprovou, através da Resolução 196/96, diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos. Ainda, a Lei 35 O art. 23, do Decreto 2.434/97, dispõe: “Os transplantes somente poderão ser realizados em pacientes com doença progressiva ou incapacitante, irreversível por outras técnicas terapêuticas, cuja classificação, com esse prognóstico, será lançada no documento previsto no § 2° do art. anterior” 36 SANTOS, M. C. Ob. cit., p. 141. 52 9.455, de 04.04.97, dispõe que constitui crime de tortura: Art.1°, I - “constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental”. Assim, para que o tratamento médico possa ser considerado terapêutico, deve ser aplicado em pessoa enferma; ele deve se referir a essa enfermidade determinada e à sua cura. Além disso, sua realização deve se adaptar às regras da lex artis, ou seja, à indicação terapêutica, ou não consistirá em uma tarefa de valoração, de ponderação dos benefícios e riscos previsíveis para a saúde do paciente. A lex artis se refere à boa técnica médica, cuida da aplicação adequada, correta, por parte do médico no tratamento indicado. A necessidade da utilização de um método terapêutico responde à dúvida do tratamento (por exemplo: se se deve aplicar ou não), enquanto a lex artis se refere ao “como” do tratamento ou método a ser seguido, relação essa que há de se estender ao diagnóstico, o qual incide decisivamente na indicação. Será, portanto, a intervenção cirúrgica considerada aventurosa, quando não reconhecida pela lex artis, o que acontece quando é considerada duvidosa. A cirurgia que cria perigo para o paciente pode ser reconhecida pela lex artis, porque dúvida e perigo se distinguem: na dúvida, a sujeição às causas; no perigo, o buscar dominá-los pelo propósito dos fins. Uma intervenção cirúrgica duvidosa é um fato imoral; já, quando for perigosa, pertence à realidade da vida. No caso de transplante de órgãos, existem cinco regras, na opinião de Fávero37, professor catedrático da Faculdade de Medicina da USP, que devem ser respeitadas: 1) A segurança absoluta de que a intervenção não é uma experiência in anima nobili, mas visa, sem dúvida, apenas a uma ação terapêutica no paciente; 2) A exclusão absoluta de uma finalidade sensacionalista na intervenção; 3) O absoluto segredo profissional; 4) O diagnóstico seguro da morte do doador e 5) A real necessidade da terapêutica heróica de exceção do transplante, para beneficiar o 37 FÁVERO, Flamínio. Transplante de coração em seu aspecto médico-legal. In: RT 424/400. 53 paciente receptor e salvar-lhe a vida. O cirurgião, ao utilizar o seu conhecimento médico, alicerçado na competência técnica, observando as regras da lex artis e acatando as normas jurídicas da legislação de transplante, busca atingir o fim maior da lei e do clamor da sociedade, procurando trazer a esperança de salvar o paciente e a certeza de contribuir para a descoberta de novos caminhos no campo da cirurgia. 54 6 GENERALIDADES 6.1 MODALIDADES DE TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS E TECIDOS Os transplantes de órgãos e tecidos estão submetidos a uma classificação no âmbito cirúrgico voltada, fundamentalmente, a resguardar a afinidade biológica entre doador e receptor. Do ponto de vista médico-legal, portanto, os transplantes podem assumir diversas feições Assim falar-se-ia em: a) Autotransplante: transferência de tecido ou órgão de um lugar a outro na mesma pessoa Também denominado transplante autoplástico (ou autologi) aquele em que o doador é também o receptor sendo, portanto, partes anatômicas do mesmo organismo. É o que ocorre, por exemplo, com as conhecidas cirurgias de “ponte de safena”. b) Isotransplante ou transplante isogênico: transplante de tecido ou órgão entre indivíduos do mesmo gênero e com caracteres hereditários idênticos. c) Alotransplante ou homotransplante: transplante de tecido ou órgão entre indivíduos do mesmo gênero, porém com diferentes caracteres hereditários. d) Xenotransplante ou heterotransplante: transferência de órgãos ou tecidos de um indivíduo de um gênero a um ser vivo de outro gênero (heretoplástico). Tais classificações são importantes, pois do diferente grau de afinidade depende o próprio êxito do transplante: fenômeno imunológico da reação e da rejeição. Quanto ao homotransplante podemos distinguir: 55 A) homotransplante entre vivos — quando a parte anatômica provém de pessoa viva através de uma operação cirúrgico-terapêutica ordinária e proveniente de um incidente ou fato lesivo. B) homotransplante do cadáver — quando procede de um corpo humano sem vida. Enquanto no homotransplante entre vivos o problema fundamental consiste na salvaguarda da saúde do doador, no do cadáver o problema de fundo centra-se, basicamente, salvo a questão inquietante do momento da morte do doador, sobre a salvaguarda dos interesses do receptor. Diversos, ainda, os tipos de cirurgia substitutiva, bem como as suas finalidades. Essa diversidade quanto ao objeto pode ser enumerada: 1 — Cirurgia substitutiva com órgãos ou partes de órgãos arttficiais — única fase (innesto — enxerto). 2—Cirurgia do transplante — tem por objeto partes anatômicas advindas de um corpo vivo ou de um cadáver. Com referência à natureza das partes anatômicas, é mister distinguir entre: A — transplantes de tecidos ou isotransplantes — utilizados em virtude de traumatismos ou processos morosos irreversíveis e necessários, não só para suprir funções de importância secundária, mas também para reintegrar o organismo em seu aspecto morfológico. B — transplantes de órgãos ou organotransplantes — destinados a suprir a função global de um órgão gravado de uma total insuficiência por lesões anatômicas difusas ou circunscritas, não remediáveis com o enxerto daquela parte alterada. Por último, diferenciamos quanto a sede do transplante entre: A — transplante substitutivo — quando o órgão é colocado em sua sede anatômica natural, isto é, no lugar do órgão primitivo. B — transplante heterotópico — quando é feito em outra parte do corpo, supletivo quando o órgão primitivo é deixado em seu posto (não é removido) . 56 Chaves também sistematizou as espécies de transplantes, argumentando que muito controvertida é a terminologia no tocante ao tema, adotando a classificação preconizada por Euclydes Marques, a saber: Transplante — É o termo mais geral. Trata-se da retirada de um tecido e inserção do mesmo em outro organismo ou em outro local do mesmo ser de onde foi colhido. Transplante livre — É o transplante sem conexão com a região ou o organismo de onde foi retirado. Transplante pediculado — É aquele que conserva um pedículo que o liga ao local de origem, proporcionando-lhe nutrição provisória enquanto se efetua a sua revascularização à custa da nova região ou organismo. Transplante ortotópico — É aquele em que o tecido ou órgão transplantado ocupa sua situação anatômica normal. Transplante heterotópico — Neste caso, o órgão ou tecido transplantado é levado para uma região anatômica que não lhe é natural. Transplante autógeno — É o realizado à custa de órgão ou tecido do mesmo organismo. Transplante isógeno — É o que se efetua entre indivíduos transisógenos (gêmeos univitelinos, por exemplo).Transplante homógeno — É o transplante entre seres da mesma espécie. Transplante heterógeno —É o que se faz entre seres de espécies diferentes. As demais espécies de transplantes, apesar de também encenarem um ato de disposição, nem sempre envolvem dois seres humanos. Os xenotransplantes ou transplantes heterógenos, por exemplo, implicam na transplantação de órgãos ou tecidos de um ser de uma espécie para outro ser de espécie diversa. Consistem, assim, em experiências ou experimentações que servem, muitas vezes, de especulação técnica ou de desenvolvimento da ciência médica. 57 6.2.TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS E TECIDOS ENTRE VIVOS Quando utilizamos a expressão entre vivos ou in vivo para caracterizar determinada modalidade de transplante de órgãos e tecidos não estamos nos referindo a uma categoria de ato jurídico, mas aos sujeitos do transplante. De fato, assim o denominamos por envolver pessoas vivas. Tanto o doador (sujeito ativo) quanto o receptor (sujeito passivo) são seres que estão no pleno gozo de seu direito à vida.O estudo relacionado aos transplantes de órgãos e tecidos entre vivos requer, antes de mais nada, que o situemos dentro do panorama legal vigente.Assim está redigido o art. 9° da Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997: Art. 9° É permitida à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes consangüíneos até o quarto grau, inclusive, na forma do § 4o deste artigo, ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea. (Redação dada pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001) § 1º (VETADO) § 2º (VETADO) § 3º Só é permitida a doação referida neste artigo quando se tratar de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora. § 4º O doador deverá autorizar, preferencialmente por escrito e diante de testemunhas, especificamente o tecido, órgão ou parte do corpo objeto da retirada. § 5º A doação poderá ser revogada pelo doador ou pelos responsáveis legais a qualquer momento antes de sua concretização. § 6º O indivíduo juridicamente incapaz, com compatibilidade imunológica comprovada, poderá fazer doação nos casos de transplante de medula óssea, desde que haja consentimento de ambos os pais ou seus responsáveis legais e autorização judicial e o ato não oferecer risco para a sua saúde. § 7º É vedado à gestante dispor de tecidos, órgãos ou partes de seu corpo vivo, exceto quando se tratar de doação de tecido para ser utilizado em transplante de medula óssea e o ato não oferecer risco à sua saúde ou ao feto. § 8º O auto-transplante depende apenas do consentimento do próprio indivíduo, registrado em seu prontuário médico ou, se ele for juridicamente incapaz, de um de seus pais ou responsáveis legais. O primeiro requisito legal para a realização de transplantes entre vivos é que seja feito, gratuitamente, por pessoa juridicamente capaz. Ao discorrermos sobre os atos de disposição do próprio corpo asseguramos que o corpo apesar de ser direito da personalidade e ter a característica de ser indisponível possui a particularidade de ser disponível limitadamente Argumentamos então que os atos de disposição do próprio corpo são lícitos desde que não importem na ofensa da moral e dos bons costumes e desde que não impliquem na extinção da própria vida. 58 Eis a razão pela qual é permitido o transplante de órgãos e tecidos entre vivos. Em verdade, o fim altruísta e humanitário de que se reveste o dispositivo é suficiente para tornar licita a disposição de partes destacadas do corpo. O que não se pode permitir, contudo, é a “venda” de órgãos e tecidos humanos porque existe um sentimento generalizado de repúdio à comercialização de parte ou funções do corpo humano, que se tem como ofensiva da dignidade e contrária aos bons costumes. Conforme relata Goghiano38 frequentemente sob o nomen iuris de doação, encontrávamos nos jornais venda de partes do corpo, notadamente rins e córnea, em verdadeiro mercado cujo preço sofria as suas flutuações, de pessoas que se propunham a vender partes da substância corpórea, motivadas por interesses os mais diversos, em verdadeiro comércio. Tal atitude, alem de ilícita, era imoral pois tais bens, por sua própria natureza, são inestimáveis, não pecuniários e, portanto, insuscetíveis de qualquer avaliação econômica. A Organização Mundial de Saúde estabelece no seu princípio 5: “O corpo humano e as suas partes não podem ser objeto de transações comerciais. Conseqüentemente, é proibido dar ou receber uma contrapartida pecuniária (ou qualquer outra compensação ou recompensa) pelos órgãos”. Como corolários o principio 7 proíbe a publicidade que visa obter órgãos mediante contrapartida e participação dos profissionais de saúde quando saibam que os órgãos foram comercializados, e o princípio 8 proíbe que as remunerações devidas pelos serviços ultrapassem um montante justificado. Assim sendo, agiu bem o legislador ao exigir a gratuidade do ato de disposição do próprio corpo, punindo com reclusão, de três a oito anos, e multa de 100 a 150 dias-multa, todo aquele que não observar o disposto no aludido art. 9°, caput (conforme art. 14, § 1° da Lei n. 9.434/97). Ao lado da gratuidade do ato de disposição do próprio corpo, exige o caput do art. 9°, da referida Lei n. 9.434/97, que a sua prática se limite a pessoas juridicamente capazes. Apesar de acreditarmos que melhor teria sido empregar o legislador o termo absolutamente capazes, cremos que tanto a maioridade quanto a capacidade do doador deverão obedecer os princípios elencados no Código Civil, arts. 5° e 6°, facultando-se, portanto, ao maior de 21 anos ou ao emancipado, a 38 Apud Daisy Gogliano. O Direito ao Transplante de Órgãos e Tecidos Humanos, Cit., pp. 266-7 59 possibilidade de dispor de órgão ou de partes de seu próprio corpo para a realização de transplantes em vida. Excepcionalmente, entretanto, permite-se que o indivíduo absoluta ou relativamente incapaz (menor impúbere ou púbere), sirva como doador, em vida, nos casos de transplante de medula óssea, desde que haja consentimento de ambos os pais ou responsáveis e mediante autorização judicial, comprovada a inexistência de risco para a sua saúde (art. 15, § 8°, do Decreto n. 2.268/97). Ainda, é importante destacar que o § 9°, do art. 15, do Decreto n. 2.268, de 30 de junho de 1997, veda à gestante a disposição de órgãos, tecidos ou partes de seu corpo vivo para ser utilizado em transplantes, salvo se se tratar de medula óssea e o ato médico não oferecer nenhum risco à gestante e ao feto. A legislação argentina (Lei n. 24.193), na esteira da brasileira, também impõe limites etários no que tange ao doador in vida. Como se vê, a capacidade para o ato de disposição é imprescindível também na lei argentina, que, porém, restringe os transplantes inter vivos a determinadas pessoas que com o receptor mantenham relação de parentesco. No que concerne aos transplantes de medula óssea, entretanto, a Lei n. 24.193 é um pouco mais branda, na medida em que amplia o horizonte dos doadores para abarcar, inclusive, aquelas pessoas que não sejam parentes do receptor, bem assim, os menores de dezoito anos, estes sim desde que parentes do receptor e com prévia autorização do seu representante legal. No mesmo sentido, a lei portuguesa — Lei n. 12/93, de 22 de abril — que também impõe limites à doação entre vivos, restringindo a colheita em vida a substâncias regeneráveis, como é o caso da medula óssea, e apenas permitindo a retirada de substâncias não regeneráveis, como os rins, quando entre o receptor e o doador houver relação de parentesco até o 3° grau. A revogada Lei n. 8.489/92 também exigia, nos casos de transplante in vida, além da limitação etária, que houvesse uma relação de parentesco entre o doador e o receptor. O § 1°, do art. 10, daquele diploma legal estava assim redigido: “§1° A permissão prevista no caput deste artigo limita-se à doação entre avós, netos, pais, filhos, irmãos, tios, sobrinhos, primos até segundo grau inclusive, cunhados e entre cônjuges”. 60 Apesar das impropriedades técnico-jurídicas contidas nesse dispositivo — como, por exemplo, a que se refere à contagem de graus entre os colaterais — pretendia-se, com o emprego dessa limitação, evitar não só o comércio de órgãos como também reduzir os problemas criados pela histocompatibilidade sangüínea como solução ao fenômeno imunológico da rejeição. De acordo com Parilli39, as estatísticas médicas demonstram um alto índice de rejeição quando se tratam de doadores que com o receptor não mantenham qualquer parentesco consangüíneo. Porém, esta preferência não foi, como se viu, reafirmada na nova lei, o que tem ensejado severas críticas, como teremos a oportunidade de relatar no capítulo seguinte. Como a prática de transplantes in vivo envolve a disposição de parte do corpo humano, é sempre prudente que o doador tenha total conhecimento das implicações que esse ato pode ocasionar, sendo imprescindível que se realizem todos os esclarecimentos técnicos de modo a que nada lhe seja ocultado para evitar a incidência de qualquer vício em seu consentimentos40. É indubitável que a manifestação da vontade exerce papel preponderante no ato de disposição de órgãos ou partes do corpo humano vivo, sendo um de seus elementos básicos. França41 define o consentimento como “a anuência válida do sujeito a respeito do entabulamento de uma relação jurídica sobre determinado objeto” Ora, é certo, assim, pois, que a declaração de vontade do doador, na hipótese de transplante de órgãos e tecidos inter vivos, deve respeitar o seu mais intimo desejo de servir ao receptor mas por outro lado deve também ser exarada com total consciência dos prejuízos e riscos que o ato envolve. Tanto assim que o § 4° do art 15 do Decreto n 2 268/97 exige que o doador esclareça, em 39 Ricardo Antequera Parilli, El Derecho, Los Trasplantes ..., cit, p. 100. in: LEITE, Rita de Cássia Curvo. Transplantes de Órgãos e Tecidos e os Direitos da Personalidade. São Paulo: J. de Oliveira, 2000. 40 Em nosso Direito são vícios do consentimento: erro, dolo e coação. Erro é, num sentido geral, uma noção inexata, não verdadeira, sobre alguma coisa, objeto ou pessoa, que influencia a formação da vontade. É o estado da mente que, por defeito do conhecimento do verdadeiro estado das coisas, impede uma real manifestação da vontade. Dolo é o artificio ou expediente astucioso, empregado para induzir alguém à prática de um ato, que o prejudica, e aproveita o autor do dolo ou a terceiro. Difere do erro porque enquanto nesse o engano advém espontaneamente, naquele surge provocado. A Coação, por seu turno, advém da imposição à vítima da prática de determinado ato por ameaça do outro contratante ou de terceiros. É a pressão exercida sobre um indivíduo para determiná-lo a concordar com um ato. Esses conceitos podem ser encontrados in Silvio Rodrigues, Dos Vícios do Consentimento, 3’ cd., Ed. Saralva, 1989, p. 21 e ss.; pp. 129-130 e 225-6, assim como in Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, 1° vol., 7.ed. Saraiva, 2002, p. 227 e ss. 41 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, 7.ed. São Paulo: Saraiva. 2002. 1° vol. p. 227. 61 documento escrito (público ou particular), firmado por 2 testemunhas, qual tecido, órgão ou parte de seu corpo está doando para transplante, indicando, ademais, o receptor mediante qualificação completa, inclusive fornecendo seu endereço. Esse documento — que equivale a uma autorização — será expedido, em 2 (duas) vias, uma das quais será destinada a órgão do Ministério Público em atuação no lugar do domicilio do doador (§ 5º do aludido art. 15). Verifica-se, assim, que a autorização consistirá em documento escrito da maior seriedade e que há de conter número suficiente de informações sobre o ato de disposição de modo a evitar que se desvirtue a intenção do doador. Seria conveniente, inclusive, que nos casos de doação de pele ou outro tecido passível de mensuração, a autorização do disponente deixasse indicada qual a extensão ou medida do tecido cuja retirada estaria sendo autorizada. Casabona42 reúne três requisitos que devem informar o consentimento. Aludindo à manifestação da vontade que não se confunde, portanto, com a simples declaração, para que o consentimento do doador ou disponente seja válido, é necessário que o candidato à disposição reúna condições prévias em sua capacidade de querer e entender em geral e que tenha compreendido e querido o ato realizado no caso concreto. Logo, a manifestação de vontade deve ser: 1. Pessoal, O consentimento unicamente pode ser manifestado validamente por quem doa ou dispõe de órgão. Não se admite a substituição por outra pessoa, ou seja, a representação, nem mesmo a delegação a terceiro. Por sua vez, o sujeito deve ter capacidade de entender e de querer o ato e suas conseqüências. 2. Livre. A decisão de doar deve ser totalmente espontânea, sem pressões, nem captação de vontade. Observamos que as promessas de cura, na informação ao paciente, pode colocar em risco a validade do consentimento. 3. Não viciado. Para que o consentimento seja válido o doador deve receber previamente, uma informação completíssima sobre a extração do órgão. Nestas condições, o consentimento não viciado é de suma importância para a realização do ato de disposição de órgãos e tecidos, no exercício de um direito da personalidade, que diz respeito à integridade física, onde a sua diminuição só pode ser legítima, com o consentimento válido. Busca-se, assim, obter uma manifestação intacta, próxima da verdade, informando-se o doador de todos os riscos que a terapêutica encerra, para que, consciente mente, possa manifestar sua vontade, sem qualquer induzimento por parte de quem quer que seja. A inexistência do consentimento para a recolha de órgãos determina a prática do crime de lesão corporal grave. Seguindo essa linha de raciocínio, é de fundamental relevância, portanto, o papel do médico. 42 Apud Daisy Gogliano, O Direito ao Transplante de Órgãos e Tecidos Humanos, Cit., pp. 266-7. 62 A ele compete advertir o doador e informá-lo sobre todas as circunstâncias técnico-cirúrgicas, sob pena de responsabilidade43. Como adverte José de Aguiar Dias44 responde o médico por infração do dever de conselho quando não instrui o paciente ou a pessoa que dele cuida a respeito das precauções essenciais requeridas pelo seu estado. Quanto mais perigosa a intervenção, tanto mais necessária a advertência quanto aos riscos do procedimento operatório ou do tratamento. De fato, o médico tem o dever ético de informar o doente sobre as vantagens e desvantagens de qualquer tratamento, pois é o doente quem vai decidir se quer ou não a atuação do médico. O enfermo tem o direito de conhecer os riscos e objetivos do tratamento, além do diagnóstico e do prognóstico, exceto quando a referida informação possa provocar-lhe algum dano, caso em que a comunicação há de ser feita ao seu representante legal. Em suma, no direito aos transplantes, assim como nos demais casos de intervenção médicocirúrgica, o direito à verdade e o direito à informação são os requisitos legais da licitude do ato cirúrgico, sob o fundamento de que toda diminuição da integridade física deve ter por respaldo o consentimento válido. O princípio da prevalência da vontade do paciente está consagrado no art. 46 do Código de Ética Médica. Cabe ao enfermo, titular exclusivo dos atributos físicos que lhe são particulares, e não ao médico, a última palavra sobre a aplicação de um tratamento ou a execução de um ato cirúrgico. Cabe lembrar, aqui, que também a Lei n. 24.193 (legislação argentina sobre transplante de órgãos e tecidos humanos) entende criterioso dar-se aos pacientes envolvidos na cirurgia todas as informações pertinentes ao caso. A informação, portanto, deve ser suficiente, isto é, abarcar todos os aspectos do ato médico que possam interessar aos envolvidos na cirurgia de transplante. A claridade impõe o uso de termos correntes, evitando-se os tecnicismos científicos. Em síntese, não se trata de um mero trâmite, nem de recitar fórmulas preestabelecidas. Se deve informar de um modo idôneo, diferente 43 O Código de Ética Médica dispõe em seu art. 73: “É vedado ao médico deixar, em caso de transplante, de explicar ao doador ou seu responsável legal, e ao receptor, ou seu responsável legal, em termos compreensíveis, os riscos de exames, cirurgias ou outros procedimentos”. Miguel Kfouri Neto, Responsabilidade Civil do Médico, Revista dos tribunais, 1994, p. 20 esclarece que “é direito do paciente obter todas as informações sobre seu caso, em letra legível, e cópias de sua documentação médica: prontuários, exames laboratoriais, raios-X, anotações de enfermagem, laudos diversos, avaliações psicológicas, etc. Em caso de recusa do médico ao fornecimento desses dados, o habeas data é remédio jurídico eficaz para compelir o profissional a conceder tais informações”. 44 DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1954. p. 276. 63 e particular para cada caso concreto. Tamanha a necessidade da pureza do consentimento que se reconhece a possibilidade de revogação do ato de disposição por parte do doador. Nesse sentido prescreve o § 7º, do art. 15, do Decreto n. 2.268/97: “§ 7°A doação poderá ser revogada pelo doador a qualquer momento, antes de iniciado o procedimento de retirada do tecido, órgão ou parte por ele especificado”. A doutrina é unânime ao reconhecer a revogabilidade dos atos de disposição, não se admitindo execução coativa, em razão da inexistência de uma obrigação, no sentido de dispor da integridade física, bem da personalidade. Não é outra a lição de Cupis45: Normalmente e invalido por contrario a morai o ato destinado a uma obrigação de dispor do direito à integridade física. E que aquelas atividades que atingem a integridade física humana e que se exercem sobre o corpo humano, têm como pressuposto de licitude um consentimento que normalmente deve determinar-se livre e espontaneamente, fora de toda e qualquer coação contratual. Aplicando esse postulado às operações cirúrgicas o civilista italiano esclarece: o consentir em entregar-se aos ferros do cirurgião — ainda que a operação seja do interesse do doente — não é ato que possa tolerar uma coação contratual. Por isso, o contrato estipulado entre o cirurgião e o doente sobre uma futura operação cirúrgica, não produz a obrigação de consentir no ato operatório; dela deriva, sim, a obrigação de indenizar o cirurgião das despesas suportadas e das de outras operações porventura perdidas... O mesmo se aplica em matéria de transplantes, por ser contrário à moral e aos bons costumes, como também pela própria natureza do direito que tem por objeto um bem da personalidade, cuja disponibilidade só é admitida em casos especialíssimos. O arrependimento do doador, portanto, é lícito e poderá ser manifestado até o momento da intervenção cirúrgica. Acrescente-se, ademais, que a finalidade do ato de disposição de partes do corpo humano em vida deve-se revestir de alta dosagem de altruísmo, destacando-se, por oportuno, que a doação referida no caput do art. 9°, da Lei n. 9.434/97 só será permitida quando corresponder a uma 45 Adriano De Cupis, Os Direitos da Personalidade, cit., p. 79. 64 necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora (art. 9°, § 3°, in fine). Não basta que se considere conveniente o transplante para o paciente receptor: o transplante há de ser indispensável e, mais ainda, comprovadamente indispensável ao receptor. Deveras, prescreve o art. 15, § 2°, do Decreto n. 2.268/97: ”§ 2° A retirada, nas condições deste artigo, só será permitida, se corresponder a uma necessidade terapêutica, comprovadamente indispensável e inadiável, da pessoa receptora” A submissão de paciente a transplante de órgãos não imprescindível, além de constituir inqualificável falha ética, apresentará diretas conseqüências na órbita do Direito Penal, podendo tipificar o crime de lesão corporal culposa de maior ou menor gravidade, por negligência ou imperícia, assim como, em certas hipóteses, também poderá caracterizar crime doloso, suficiente para tanto, naturalmente, também o dolo eventual46. Parilli47 também afirma que o transplante de órgãos e tecidos entre vivos é prática cirúrgica excepcional, praticável unicamente quando há impossibilidade de obter o órgão ou o tecido necessário de um cadáver ou através de outra intervenção cirúrgica. O rigor atinente à comprovada indispensabilidade da cirurgia de transplante assenta-se no fato de que, nos transplantes in vivo, a realização do ato cirúrgico envolve bens da personalidade, na disposição de partes da substância corpórea. Por se tratar de atividade terapêutica, cujo exercício está limitado à condições e requisitos especiais, que legitimam o ato, além do consentimento dos sujeitos, torna-se necessária a observância e a salvaguarda dos direitos da personalidade que implicam em respeito à pessoa humana. Tendo em vista o necessário respeito a pessoa humana entendeu o legislador ser mais conveniente estabelecer limites às doações de órgãos inter vivos. O § 3º, do art. 9º, da Lei n. 9.434/97 exige, para a realização do transplante entre vivos, que se tratem de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação 46 MARREY NETO, José Adriano. Transplante de Órgãos — Nova Disciplina. Lei Federal 8.489 de 18.11.92. in: RT 691/59. p. 73-4. 47 Ricardo Antequera Pariu, El Derecho, Los Trasplantes ..., cit., p. 94. in:LEITE, Rita de Cássia Curvo. Transplantes de Órgãos e Tecidos e os Direitos da Personalidade. São Paulo: J. de Oliveira, 2000. 65 ou deformação inaceitável. Trata-se, também, de dispositivo de razoabilidade evidente, não se podendo esperar de alguém, v.g., sacrifício da própria vida em benefício de terceiro, nem sendo admissível, sequer em tese, tal possibilidade legal. Por essa razão, não se admite o transplante de órgãos ímpares ou daqueles que, apesar de dúplices, se retirados ocasionariam a incapacidade total e permanente do doador. E o caso típico das córneas, cuja extração não está regulada pela Lei n. 9.434/97, mas que tomamos emprestado, a título ilustrativo. De fato, ninguém afirmaria possível a retirada de uma córnea de pessoa viva para a realização de transplante, dada a manifesta mutilação grave que do fato resultaria, pela perda de um dos olhos. O balizamento que parece possível para a retirada de órgãos e partes do corpo vivo, será o de não importar em risco de vida, nem em prejuízo direto e imediato de um dos sentidos e/ou funções do corpo do disponente, conforme análise a ser efetuada em cada caso, sempre com extrema cautela, tomando-se em linha de conta os conhecimentos médicos e científicos disponíveis no momento, máxime o que se denomina senso comum48. Adverte Casabona49 que: Podem ser objeto de doação órgãos ou tecidos cuja extração não altere a saúde do doador deforma permanente, e não ponha em perigo sua vida, O doador não pode ter diminuída sua capacidade física ou psíquica, nem perder nenhuma função importante do organismo. Por essa razão não poderão ser objeto de doação órgãos impares nem membros nem outras partes que produzam uma diminuição funcional, nem que afetem consideravelmente seu aspecto estético. Só será possível a doação de órgãos pares, que admitem a substituição funcional ou tecidos regeneráveis. Em conseqüência, é necessário realizar um minucioso exame do doador que permita prever se, por seu estado de saúde atual , pode ver-se seriamente prejudicado no futuro pela doação. Igualmente se deve analisar se produzam transtornos psíquicos como conseqüência da perda do órgão. Logo, é curial que só podem ser objeto de transplantes entre vivos as partes recuperáveis e regeneráveis, bem como os órgãos duplos, em que a retirada de um não coloque em risco o sistema de que faz parte e não prejudique a saúde do disponente. 48 José Adriano Marrey Neto, op. cit., p. 76. 49 Apud Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos, Ação Socialmente Adequada cit., pp. 243-4. 66 Para a realização desta modalidade de transplante deve ser cumpridas algumas formalidades: a) que seja realizada entre sujeitos em vida, gratuitamente e com fins humanitários e terapêuticos, sendo, comprovadamente, o único meio para salvar o individuo; b) que o doador seja juridicamente capaz, salvo nos casos elencados nos § § 8° e 9°, do art. 15, do Decreto n. 2.268/97; c) serão doadores in vida qualquer pessoa, mesmo que não mantenham com o receptor qualquer vínculo de parentesco; d) deve o doador autorizar, de preferência por escrito e na presença de testemunhas, o ato de retirada de órgãos e tecidos para transplantes in vida; e) para que a manifestação do desejo de doar seja válida, é preciso que tenha sido exarada pessoalmente pelo doador, de forma livre e espontânea, e com total consciência dos possíveis riscos que o ato envolve; f) da mesma forma, deve o receptor consentir com a realização do transplante depois de ter obtido todas as informações necessárias acerca do ato operatório; g) somente podem servir aos transplantes entre vivos órgãos dúplices, tecidos vísceras ou partes do corpo que não impliquem em prejuízo ou mutilação grave para o disponente; h) o incapaz pode doar medula óssea com autorização dos pais ou responsáveis mais autorização judicial i) é vedada á gestante a doação, exceto de medula óssea; j) o autotransplante é permitido, mesmo de incapaz, desde que autorizado pelos pais ou responsáveis e k) é preciso haver uma sólida probabilidade de êxito do transplante, pois não se admitem experiências nos seres vivos in anima nobili. 67 6.3 TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS E TECIDOS POST MORTEM Quando falamos, em transplantes de órgãos e dos post mortem queremos nos referir aos sujeitos do transplante. A diferença básica existente entre a primeira modalidade de transplante— transplante de órgãos e tecidos entre vivos — e esta que, agora, será de objeto de nossa preocupação — transplante de órgãos e tecidos após a morte — reside no fato de que nesta teremos um sujeito vivo e um morto. De fato, o receptor (sujeito passivo) do transplante é um ser vivo que necessita de um órgão ou de um tecido proveniente de um cadáver, que figurará como doador (sujeito ativo). O cadáver é o corpo inanimado, sem vida. E a pessoa morta. É, pois, uma res sui generis: uma projeção ultra existencial da pessoa humana conservando sua dignidade. Logo, é somente com a morte que o indivíduo deixa de ser pessoa e passa a ser cadáver. E somente quando atinge esse estágio de identificação — como cadáver — é que poderá servir aos fins previstos no art. l°, da Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. Pelo exposto, podemos concluir que a determinação da morte é essencial para limitar o momento em que é possível se dar início a uma cirurgia de transplantes em que o doador é, sem dúvida, um cadáver. A certeza da morte é imprescindível em matéria de transplantes de órgãos e tecidos post mortem. Como assevera Paulo José da Costa Júnior50 não será possível dispensar a evidência da morte. Sem ela, se a morte for apenas aparente, o transplante poderá dar causa a um homicídio culposo. Diagnosticada com segurança a morte real, a lei brasileira não impede o transplante que é válido e conforme ao direito. Como se vê, a determinação da morte representa um dos mais importantes aspectos relativos aos transplantes de órgãos e tecidos do cadáver, sendo certo, ademais, que cabe ao médico atestá-la com seriedade. Nesse sentido, cabe lembrar que comete crime de falsidade de atestado médico punível com pena de detenção, de um mês a um ano, o médico que der, no exercício de sua 50 COSTA JUNIOR, Paulo Jose da .O Transplante do Coração face ao Direito Penal Brasileiro. in RT 389/395. p 396-7. 68 profissão, atestado falso (art. 302 do Código Penal). Feitas essas considerações introdutórias, passemos ao exame da morte propriamente dita. Uma definição precisa para a “morte” tem resultado dificultoso, inclusive para a ciência médica. Tal inquietante problema invade a esfera da Tanatologia, vocábulo grego: Thánatos = morte e Lógos = tratado, significando estudo da morte51. A Tanatologia nos afirma, nos dias de hoje, que biologicamente a passagem da vida para a morte do corpo humano se apresenta como um fenômeno não instantâneo, mas gradual: um processo com fases sucessivas. A morte é considerada um estado transitório de evolução declinante compreendido entre a cessação da atividade dos centros nervosos, da circulação e respiração e extinção dos últimos grupos celulares52. O Professor Dr. Irany Novah Moraes53 afirma que a morte nunca é instantânea, há um intervalo de tempo entre a instalação e a sua consumação. Tratando-se de processo evolutivo, pode-se distinguir a morte do morrer. Enquanto ela é o final da vida, este é a sua progressão no organismo. Tal período é conhecido como agonia e temido pelo sofrimento que geralmente o acompanha. A essência da morte está na ativação da catepsina, ocorrida pela ausência de oxigênio, ou seja, pela anóxia. A diminuição de oxigênio determina a autólise, ou seja, sua auto-digestão e, assim, a morte. Inicialmente, morre a célula, depois o tecido e, a seguir, o órgão; trata-se de um fenômeno em cascata. Estabelecido o processo, ele pode atingir os órgãos, dos quais depende a vida do indivíduo, os chamados Órgãos vitais. Desta forma, desencadeia-se a parada da respiração, do coração, da circulação e do cérebro. Não existe um protocolo único para a definição de morte. Mas, uma coisa é certa: ela é mais cerebral. Essa também a postura adotada pelo Dr. Christian Barnard54 o primeiro cirurgião a realizar 51 Thánatos era um deus grego, irmão de Hipnos, deus do sono, em cujas asas as pessoas eram levadas, O que observamos em comum entre eles é o estado de inconsciência apresentado, tanto no sono, como na morte. Na mitologia a morte aparece como a figura de uma caveira encapuçada com um manto negro, trazendo nas mãos uma foice com a qual pretende ceifar a vida das pessoas. Os pintores a retratam sob diferentes ângulos, desde o Século XVI até o barroco alemão e espanhol. É famoso o quadro em que uma jovem ao olhar-se no espelho, é supreendida pelo reflexo de um casal de idosos que se encontra a suas costas, cuja imagem, é vista como duas caveiras. Esse relato é feito por Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos in Morte Encefálica e a Lei de Transplante de Órgãos. Editora Oliveira Mendes, 1998, p. 5. 52 Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos, Ação Socialmente Adequada cit., pp. 197-8. 53 Apud Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos, Morte Encetálica ..., cit. p. 4. 54 Apud, Antônio Chaves, Direito à Vida e ao Próprio Corpo, cit., p. 231. 69 um transplante de coração em 3 de dezembro de 1967: Devem reunir-se três condições no doador: detenção cardíaca, detenção respiratória e, sobretudo, a prova da morte, isto é, o fim da atividade cerebral. Para mim, o problema é muito simples; nós realizamos 17 provas diferentes antes de intervir A luz verde só a pode dar o neurologista. Ele é quem ‘estabelece’ a morte. Em verdade, a capacidade da Medicina Moderna de prolongar indefinidamente uma vida através de meios artificiais, torna imperativo que se defina morte clínica. Preocupados com essa conceituação, o Conselho Federal de Medicina promoveu, no dia 9 de março de 1989, em sua sede, um debate sobre o tema “CONCEITO DE MORTE”, com a participação de todos seus conselheiros. O Diretor do Serviço de Neurologia de Emergência do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, Luiz Alcides Manreza, participou como convidado expondo sobre o “Critério de Morte Encefálica”. Discorrendo sobre o assunto, afirmou Luiz Manreza que: com os avanços da medicina, tais como ressuscitação cardíaca, circulação extracorpórea e respiradores artificiais, tornou-se obsoleta a definição tradicional de morte clínica. Passouse a aceitar o conceito de morte encefálica (ME — paralisação das funções cerebrais) como o de morte clínica — (paralisação das funções cardíaca e respiratória), contando com a simpatia das autoridades civis e religiosas. Nesse passo, conclui-se que cabe aos neurologistas a difícil tarefa de decidir se determinado paciente, a despeito de tremendos esforços médicos, apresenta uma cessação irreversível da atividade cerebral55. Com efeito, o cérebro, em seu córtex, é assento das funções humanas superiores — está formado por neurônios, células que perderam a faculdade de se regenerar e de se dividir. Portanto, é um órgão que não se reconstitui eno qual toda lesão é irreversível. Também é um órgão em que a oxigenação é vital: seu córtex não pode subsistir sem oxigênio além de três ou seis minutos. Logo, morto o cérebro, sua cessação funcional é irreparável, o que não ocorre com outros órgãos. Por conseqüência, um homem sem cérebro, isto é, sem possibilidade de consciência, não é homem56. 55 Matéria publicada pelo jornal do Conselho Federal de Medicina, abril/maio, 1989, T. Conceito de Morte e seus Reflexos sobre os Transplantes. 56 Apud Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos, Ação Socialmente Adequada cit., nota 39, in fine, p. 200. 70 Manoel Cláudio de Motta Maia57 diz que a cessação definitiva da atividade cerebral, Brain Death, é para os modernos biologistas e neurologistas, o momento da morte, por se estatuir a perda da personalidade, deter,ninando, portanto, a impossibilidade de relação com o mundo exterior E a proscrição definitiva do indivíduo perante a coletividade. Entretanto, registre-se que a ausência das funções cerebrais não impede que sejam mantidas artificialmente as funções de respiração e de circulação, o que os fisiologistas denominam de vida técnica, O conhecimento deste fato é de grande importância para a transplantação de órgãos de cadáver; pois a manutenção artificial das funções cárdio-pulmonares, durante um certo período, garantindo o estado nutritivo de tecidos e órgãos, favorece as condições da transplantação. Uma vez constatada a morte cerebral completa, isso significa que não há mais vida a nível cerebral, não existindo no estágio atual dos conhecimentos médicos forma de reverter esse processo. Nessas circunstâncias se o paciente se encontra conectado a um respirador artificial, esse batimento cardíaco não é mais do que algo puramente mecânico que não prosseguirá além do desligar das máquinas. Logo, não poderá ser tida como ilegítima a atua do clínico que desliga o reanimador após a verificação da morte cerebral completa, como a daquele que colhe o coração desse mesmo doente. Em 1968 quando o Comitê ad hoc de Harvard foi requisitado para dar uma definição do coma irreversível, o referido Comitê afirmou que só poderia definir um status de vida, por ser o coma uma espécie de vida, ainda que mínima. “Ser uma pessoa” não termina pelo processo de morrer. A personalidade do homem está inseparavelmente conectada a sua unidade. Brain Death apenas marca um decisivo ponto durante o processo de morrer e não pode ser definido como a morte do ser humano em geral As objeções ao novo dualismo do encéfalo e corpo como também as do corpo e personalidade “alma” são muitas. A questão se refere ao problema de sobrevivência de pacientes em cuidados intensivos e sem nenhuma possibilidade de recuperação Os cuidados intensivos são anti econômicos não apenas do ponto de vista técnico, mas também sob o ponto de vista humano. O Comitê elaborou critérios de avaliação de morte encefálica citando o Papa Pio XII que, em 1958, disse que o processo de morrer deveria ter um tempo no qual uma vez ultrapassado os médicos deveriam parar de lutar contra a morte e poderiam deixar o paciente morrer. Critérios de Harvard 1968 • Coma arresponsivo, temperatura maior que 32° • Ausência de drogas depressoras 57 Apud Daisy Gogliano, Direito ao Transplante de Órgãos e Tecidos Humanos, cit., p. 310. 71 • Ausência de movimentos espontâneos • Apnéia da VM. por 3 minutos aa • Arreflexia incluindo: Ausência de decorticação ou descerebração Pupilas fixas e dilatadas Ausência de vocalização Ausência de reflexos faríngeos e corneanos Ausência de reflexos tendinosos profundos EEG isoeletnco Todos deveriam estar presentes por 24 horas58. Como relata Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos59, estes critérios são muito específicos. Apenas 4,1% dos pacientes que evoluíram para óbito preenchiam os critérios. A repetição da avaliação após alguns dias diagnosticou em 20,2% dos casos. Reflexos medulares podem ocorrer em 50% dos pacientes com morte encefalica não invalidando o diagnostico. Como se vê, não existem até hoje claras regras para definir que espécie de vida ou está ou não o médico obrigado a deixar morrer, ou seja, não temos regras de uma definição unanimemente aceita. 58 Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos, Morte Encefálica e a Lei de Transplantes de Órgãos, cit., pp. 24-5. 59 Idem, cit., p. 25. 72 7 SISTEMA DE CAPTAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO DE TECIDOS, ÓRGÃOS E PARTES DO CORPO HUMANO PARA FINS TRANSPLANTE 7.1 O SISTEMA NACIONAL DE TRANSPLANTE (SNT) O Decreto n. 2.268/97, em seu art. 2°, criou o sistema nacional de Transplante, que ficou incumbido de desenvolver processo de captação e distribuição de tecidos, órgãos e partes retiradas do corpo humano para finalidades terapêuticas. Por forca do parágrafo único deste artigo, o SNT tem como âmbito de intervenção as atividades de conhecimento de morte encefálica verificada em qualquer parte do território nacional e a determinação da destinação dos tecidos, órgãos e partes retirados. Integram o SNT o Ministério da Saúde, as Secretarias de Saúde, as Secretarias de Saúde dos Estados e do Distrito Federal ou Órgãos equivalentes, as Secretarias de Saúde dos Municípios ou Órgãos Equivalentes, os estabelecimentos hospitalares autorizados e a rede de serviços auxiliares necessários a realização de transplantes. Ao ministério de saúde ficou atribuída a condição de órgão central do SNT, com a incumbência de coordenar atividade de remoção e transplantes de tecidos, órgãos e partes do corpo humano para fins de transplante, bem como expedir normas e regulamentos técnicos para disciplinar os procedimentos estabelecidos no decreto supramencionado. Outra importante atribuição do órgão central do SNT consiste em gerenciar a lista única nacional de receptores, com todas as indicações necessárias à busca, em todo território nacional, de tecidos, órgãos e partes compatíveis com as suas condições orgânicas. Essas e todas as demais atribuições do órgão central do SNT estão previstas no art. 4° do citado decreto. O órgão central do SNT trata-se de uma espécie de agencia central, lotada no ministério da saúde, e que tem o objetivo de coordenar, com abrangência nacional, as atividades de remoção e transplantes de tecidos, órgãos e partes do corpo humano. As unidades executivas das atividades de remoção e transplantes são as centrais de notificação, captação e distribuição de órgãos. 73 7.2 DAS CENTRAIS DE NOTIFICAÇÃO CAPTAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO DE ÓRGÃOS (CNCDOS) Como alhures dito, as Centrais de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos (CNCDOs) constituem as unidades executivas das atividades de remoção e transplantes, conforme preceitua o artigo 6.° do Decreto n. 2.268/97, com incumbência de coordenar as atividades de transplantes no âmbito estadual. Dentre as demais atribuições desse órgão, previstas no artigo 7.° do citado Decreto, releva destacar as seguintes: a)Promover a inscrição de potenciais receptores, com todas as indicações necessárias à sua rápida localização e à verificação de compatibilidade do respectivo organismo para o transplante ou enxerto de tecidos, órgãos e partes disponíveis, de que necessite; b)Classificar os receptores e agrupá-los segundo as indicações do inciso anterior, em ordem estabelecida pela data de inscrição, fornecendo-se-lhes o necessário comprovante; c) Comunicar ao órgão central da SNT as inscrições que efetuar para a organização da lista nacional de receptores; d)Receber notificações de morte encefálica ou outra que enseje a retirada de tecidos, órgãos e partes para transplante, ocorrida em sua área de atuação; e)Determinar o encaminhamento e providenciar o transporte de tecidos, órgãos e partes retirados ao estabelecimento de saúde autorizado, em que se encontre o receptor ideal; f)Notificar o órgão central do SNT de tecidos, órgãos e partes não aproveitáveis entre os receptores inscritos em seus registros, para utilização dentre os relacionados na lista nacional; As demais atribuições, previstas nos incisos VIII a XIII do artigo 7.° do Decreto n. 2.268/97, são todas de cunho administrativo. Do rol de atribuições dos CNCDOs, percebe-se claramente a condição de executor das atividades de remoção e transplantes de tecidos, órgãos e partes do corpo humano para fins de 74 transplantes, sendo que ao município considerado pólo de região administrativa é permitido instituir CNCDOs, e que ficará vinculada às CN€DOs estaduais, nos termos do artigo 7.°, § 1.°, do Decreto n. 2.268/97. 7.3 DOS CRITÉRIOS PARA DISTRIBUIÇÃO DE TECIDOS, ÓRGÃOS E PARTES DO CORPO HUMANO PARA FINS DE TRANSPLANTES – A LISTA ÚNICA A nova legislação sobre transplantes instituiu o critério da lista única de receptores, cuja organização compete às CNCDOs, nos termos do artigo 7.°, TI e III, do Decreto n. 2.268/97, obedecida a ordem estabelecida pela data de inscrição. Esse critério, a princípio, causou certa reação, pois foi acusado de extinguir a autonomia dos hospitais, os quais, anteriormente, obedeciam a um rodízio de captação, destinando os órgãos a uma lista própria. Os críticos argumentaram, também, que o sistema da lista única desestimula o trabalho de captação dos hospitais, pois o diagnóstico da morte encefálica com a utilização de aparelhos para manter a função vital do paciente, a manutenção do corpo, retirada de órgãos e cirurgia, geram despesas, que acabam por desestimular a captação. Tanto isso é verdade que, atualmente, muitos hospitais acabam por não efetuar a comunicação de morte encefálica às Centrais de Transplantes, impossibilitando que esse órgão contate a família do morto, para permitir a remoção dos tecidos, órgãos e partes do corpo que possam ser aproveitados para a atividade de transplante. Assim, as Secretarias de Saúde devem prove os meios para pagar todas as despesas e, assim, estimular a captação. No entanto, constatada a morte encefálica, os estabelecimentos de saúde são obrigados a notificar imediatamente às CNCDOs, do lugar onde ocorrer o diagnóstico de morte, feito em pacientes por eles atendidos, nos termos do artigo 13 da lei n. 9.434/97. A inobservância dessa regra gera sanções administrativas. Uma vez notificada a ocorrência de morte encefálica, as CNCDOs deverão contatar a família para que essa possa autorizar a remoção dos tecidos, órgãos e partes do corpo do morto, e, em caso de anuência da família, o receptor será escolhido de conformidade com a lista única. Entretanto, é preciso esclarecer que os tecidos, órgãos e partes do corpo do falecido não serão destinados a receptor classificado unicamente pela data da inserção na lista única, ou seja, o critério cronológico não é o único critério a ser observado. O receptor será o primeiro que apresentar compatibilidade do respectivo organismo para o transplante ou enxerto. E dentre estes, deve-se dar prioridade para os casos mais graves. Cabe destacar, também, que a distribuição é feita no âmbito 75 estadual, nos termos do art. 7°, § 2.°, do Decreto n. 2.268/97. A Portaria n. 3.407 do Ministério da Saúde, de 6 de agosto de 1998, instituiu o regulamento técnico sobre as atividades de transplantes. No Capítulo VII, Seção II, artigo 39, estão enumerados os critérios excludentes e de classificação para a distribuição de cada tipo de órgão, a saber: 1 — Para rins: a) Critérios excludentes: 1. Amostra do soro do receptor fora do prazo de validade; 2. Incompatibilidade sangüínea entre o doador e o receptor, em relação ao sistema b) Critérios de classificação: 1. Compatibilidade em relação aos Antígenos Leucocitários Humanos, “HLA”; 2. Idade do receptor; 3. Tempo decorrido da inscrição na lista única de espera; 4. Indicação de transplante combinado de rim e pâncreas. ABO. II — Para fígado: a) Critérios de classificação: 1 .identidade sangüínea, em relação ao sistema ABO, entre doador e receptor; 2 Precedência quando doador e receptor tiverem o peso corporal abaixo de 40 quilogramas; 3. Tempo decorrido da inscrição na lista única; 76 III — Para pulmão: a) Critérios excludentes. 1. Incompatibilidade sanguínea, em relação ao sistema ABO, entre o doador e o receptor; 2. Reatividade contra painel em percentual igual ou maior que 10%; 3. Relação, entre o peso corporal do doador e do receptor, excedendo 20%. Critérios de classificação: 1 Indicação de transplante bilateral; 2 Idade do receptor; 3 Tempo decorrido da inscrição na lista única; Para coração a) Critérios excludentes 1. Incompatibilidade sanguínea, em relação ao sistema ABO, entre o doador e receptor, exceto em casos de urgência; 2. Incompatibilidade de peso corporal entre o doador e receptor b) Critérios de classificação: 1. Compatibilidade de peso corporal entre o doa- dor e receptor; 2. Idade do receptor; 77 3. Tempo decorrido da inscrição na lista única; V — Para córnea, critérios de classificação: 1. Tempo decorrido da inscrição na lista única; 2. Compatibilidade de idade entre doador e receptor. Além do mais, no artigo 40, a citada Portana especifica, cada uma das espécies de órgãos referidos no artigo 39, casos que determinam a urgência. São os seguintes: 1. Rim: a) A falta de acesso para a realização das modalidades de diálise; 2. Fígado: a) Hepatite fulminante; b) Retrotransplante indicado no período de 48 horas após o transplante anterior; 3. Pulmão: retrotransplante indicado no período de 48 horas após o transplante anterior; 4. Coração: a) Retrotransplante indicado no período de 48 horas após o transplante anterior; b) Choque cardiogênico; c) Necessidade de internação em unidade de terapia intensiva e medicação vasopressora; d) Necessidade de auxilio mecânico à atividade cardíaca; 5) Córnea: 78 a) Falência de enxerto, estado de opacidade com duração superior a 30 dias; b) Úlcera de córnea sem resposta a tratamento; c) Iminência de perfuração de córnea — descementocale; d) Perfuração do globo ocular; e) Receptor com idade inferior a sete anos que apresente opacidade corneana bilateral. 7.4 EFICÁCIA DA LISTA ÚNICA DE TRANSPLANTES Diante da atual situação que se encontra o sistema de transplantes de órgãos no Brasil, o presente trabalho teve por objetivo analisar a questão da eficácia da fila única de transplantes, tendo em vista que, a título de exemplo, podemos citar o Estado de São Paulo como aquele em que há maior índice de morte de pacientes na lista de espera por um transplante. A lista única conta atualmente com aproximadamente 64 mil pessoas inscritas. Ela foi criada pelo Ministério da Saúde no ano de 1997, elencando todas as pessoas, de norte a sul do país, que aguardam qualquer tipo de transplante. O critério adotado, via de regra, é o cronológico para a realização da inscrição. Isto é, aquele que primeiro se inscreve, independentemente de seu estado de saúde, receberá antes o transplante. Ocorre que, como já era previsível, esse critério é insuficiente, ineficaz e sobremaneira injusto na prática, uma vez que tem como fator determinante do momento em que cada paciente receberá o transplante o da ordem de inscrição. Esse protocolo nunca atendeu a realidade, tendo em vista não ser aquele que primeiro se inscreveu na lista, necessariamente, quem está mais próximo de ser fatalmente vitimado por sua doença. Assim, surgiu a necessidade de serem estabelecidos dados técnicos, calcados na realidade objetiva de saúde de cada paciente, que além da cronologia de tempo de espera, considerasse os avanços da ciência médica na avaliação de riscos e benefícios do momento da realização do transplante, passando na frente, pois, aquelas pessoas que, mesmo cronologicamente pior situadas 79 na lista, não gozassem de condições para aguardar o longo calvário para o recebimento de um órgão, este procedimento é o realizam nos Estados Unidos da América e em alguns países da Europa. Diante de tais contingências e notadamente do dilatado tempo de espera na fila, aqueles que se vêem na iminência de ter sua vida ceifada pela moléstia que os acomete não tiveram outra alternativa, senão buscar socorro e guarida no Poder Judiciário, onde pugnam pela burla na famigerada fila de espera. Acabou-se impondo ao nosso aparelho judiciário, portanto, a decisão sobre a realização imediata de um transplante que, qualquer que seja ela, poderá caracterizar-se como injusta e não asseguradora da garantia do direito à vida a todos, pois certamente poderão existir ou não outras pessoas em piores condições do que aquela que procurou a Justiça. Não obstante até seja razoável tal argumento, quando se trata do direito à vida, sem a menor dúvida, o uso de fator estandardizado (rectius: critério cronológico) é manifestamente arbitrário e desumano, pois olvida as peculiaridades individuais do caso in concreto e o tempo de sobrevida de cada paciente. Entre uma possibilidade não provada – ainda que presumível de prioridade de outro paciente em lista – e a situação concreta e provada da indispensabilidade do transplante para o autor da ação, afim de que tenha uma chance de sobreviver, entendemos, indubitavelmente, deva ser o caso, sempre, de se optar pela tentativa de preservação da vida que concretamente se apresenta em risco. 7.4.1 As Restrições Impostas À Alteração do Critério Cronológico e o Posicionamento Contrário Da Jurisprudência O Poder Judiciário tem aceito o critério cronológico, e, excepcionalmente não o respeita. O poder judiciário nega a vários pedidos alegando, em síntese, que não pode interferir na questão da fila única do transplante uma vez que é função exclusiva dos centros de transplantes e também por não ser possível avaliar se existem outros pacientes em piores condições que aquele que postula – o que poderia implicar em injustiça com os demais pacientes da fila, que também aguardam o recebimento de um órgão. Nesse sentido, vale colacionar o presente julgado do Desembargador Caetano Lagrasta, do Tribunal de Justiça de São Paulo: 80 De fato, todos que se encontram na mesma situação do recorrente têm a legitima expectativa de que os critérios da ‘fila’ serão observados, conforme estabelecidos em lei, e por mais ameaçadora que seja a condição de cada um que nela espera, supõe-se existir solidariedade entre os que se vêem acometidos pelo mesmo mal; havendo, identidade de interesses quanto à manutenção ou alteração do sistema de doação de órgãos, de modo a afastar qualquer possibilidade de prover determinada situação particular à revelia dos demais interessados. Desarrazoado, dessa forma alegar que o direito não socorre aos que dormem60. Importante trazer para o presente trabalho a justificativa dada para que seja respeitado o critério cronológico: Mas, outra circunstância não há que possibilite escape à famigerada ‘lista’. Ocorre, ainda, que, anteriormente à lista prevalecia a ‘lei da selva’, quem pudesse conseguia e os outros sequer tinham meios de obter alguma esperança. Dizer que a lista é elaborada sem observar critérios de isonomia ou gravidade – esta em relação à moléstia e seus estágios – é crítica pertinente, porém que deve ser dirigida, ressalte-se, aos demais Poderes, pois que ao Judiciário descabe criar ou modificar situações, com parecença legislativa, salvo pela não observância, até, daqueles critérios61. Vale trazer a tona o julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que, mesmo sendo inovador em suas decisões, sob o argumento de que faltava uma das condições da ação (pedido juridicamente impossível) negou o direito de burlar a fila única. Vejamos: Com efeito, o pedido diz respeito à recolocação de paciente que aguarda em fila de espera de transplante de órgãos – fígado -, sendo juridicamente impossível ao Poder Judiciário, sem qualquer base científica, determinar a não-observância da lista de espera. Tratando-se de uma questão médica de alta indagação, a avaliação de prioridade deve ser confiada ao Centro de Transplantes da Irmandade Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, sob pena de se colocar em risco a vida de outras pessoas que aguardam, seguramente com a mesma aflição, a ordem cronológica estabelecida, segundo a compatibilidade dos receptadores 62. 60 TJSP - Agravo de Instrumento n. 306.823-5/5 – São Paulo – 8ª Câmara de Direito Público – Relator: Caetano Lagrasta – 28.05.03. Em igual sentido: "MEDIDA CAUTELAR – Liminar – Transplante duplo de órgãos – Prioridade no atendimento – Inadmissibilidade – Lista única de receptores editada por lei federal e regulamentada por decreto – Manutenção dos critérios insertos no Ofício n.º 3197 da Secretaria da Saúde – Impossibilidade – Incompatibilidade com o ato regulamentar vinculado – Liminar revogada – Recurso provido" (JTJ 210/259) 61 TJSP - Agravo de Instrumento n. 306.823-5/5 – São Paulo – 8ª Câmara de Direito Público – Relator: Caetano Lagrasta – 28.05.03. 62 TJRS, Apelação n. 70011591963 – 3ª Câmara Cível – Relator Luiz Ari Azambuja Ramos – 07.07.05. Em igual senda: "AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. SAÚDE PÚBLICA. PORTADOR DE CIRROSE ALCOOL + CHC. NECESSIDADE DE TRANSPLANTE DE FÍGADO. INSCRIÇÃO NO SISTEMA NACIONAL DE TRANSPLANTE. ALEGAÇÃO DE IMINENTE RISCO DE VIDA. ALTERAÇÃO DA ORDEM DE INSCRIÇÃO. AUSÊNCIA DE PROVA IMPRESCINDÍVEL. ÔNUS PROBATÓRIO DO AGRAVANTE. LIMINAR INDEFERIDA. A inobservância do critério cronológico da lista dos pacientes que estão a espera de um transplante de fígado só poderá ocorrer mediante respaldo da autoridade competente, o que inexiste no caso" (TJRS, Agravo de Instrumento n. 70008701203 – 4ª Câmara Cível – Relator: Wellington Pacheco Barros – 30.06.04) 81 Neste mesmo sentido encontramos o posicionamento do Desembargador Magno Araújo, do Tribunal de Justiça de São Paulo, que, com fundamento na nova redação do art. 10 da Lei 9.434/97 entendeu ser necessária a prévia inscrição, na lista única de espera, do paciente que encontre doador fora desta lista nacional, e pretenda receber transplante na modalidade inter vivos. Diz a recorrente que a exigência judicial não podia prevalecer, posto que o receptor não está inscrito em nenhuma lista, podendo ser realizada a doação, em razão da vontade das partes. Tal entendimento, todavia, não é de ser aceito, porquanto, o que a recorrente deseja é burlar a lei brasileira, que é suficientemente explícita a respeito do tema 63. E continua: Se se tratasse a doadora de parente do receptor ainda assim havia necessidade de prévia autorização do Ministério da Saúde, consoante a regra do art. 8º do Decreto n.º 2.268, de 30.06.97. Correto, destarte, o indeferimento da liminar, pelo não atendimento dos requisitos a que alude a Lei n.º 10.211/200164. Para o desembargador, portanto, não poderá o receptor não inscrito na lista única de espera, encontrando amigo ou pessoa sem parentesco disposta a fornecer-lhe órgão, em vida e gratuitamente, receber transplante do mesmo, em razão de não estar inscrito na aludida lista; isso implicaria em burla à lei pátria. E acrescenta dizendo que caso o doente, percebendo que não sobreviveria até ser contemplado na lista única de espera, encontre parente consangüíneo até quarto grau ou cônjuge disposto a doar-lhe órgão (ou parte dele) em vida, necessitaria ele, ainda assim, de autorização do ministério de saúde para consumar o ato. 7.4.2 A Possibilidade de Burla à Fila Tais argumentos acima erigidos não convencem e não podem prosperar. E digo isso, porque uma situação concreta e real de risco iminente à vida, não pode ser simplesmente ignorada – como se não existisse -, unicamente pelo fato de ‘supostamente poderem’ subsistir outras pessoas em pior estado de saúde - o que, lembre-se, também não é possível de ser constatado na prática, em razão da incapacidade técnica e financeira das centrais de transplantes. 63 TJSP – Agravo de Instrumento n. 365.796-4/9– 6ª Câmara de Direito Privado – Relator: Magno Araújo – 11.11.04. 64 TJSP – Agravo de Instrumento n. 365.796-4/9– 6ª Câmara de Direito Privado – Relator: Magno Araújo – 11.11.04. 82 Ora, se o sistema não tem, como já dissemos, condições de informar sobre a existência de outro paciente em lista de espera, situado precedentemente ao requerente - que esteja em situação pior ou semelhante à dele -, continuar a considerar somente o critério legal da cronologia, sem qualquer dado adicional de necessidade de urgência na realização do transplante por outra pessoa, é não assegurar o direito à vida no caso concreto. É fechar os olhos para o princípio da dignidade da pessoa humana (fundamentos da República Federativa - art. 1º, III), além de esvaziar de conteúdo a própria função do Direito, afinal, uma ciência que não se presta para prover a sociedade de tudo quanto é necessário para permitir o desenvolvimento integral do homem, que não se presta para colocar o sistema a favor da dignidade humana, que não se presta para servir ao homem, permitindo-lhe atingir seus anseios mais secretos, não se pode dizer Ciência do Direito.65 E como ensina Alexandre de Moraes, a dignidade da pessoa humana deve ser vista como um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos66. Logo, apenas a existência do referido mandamento, é mais do que suficiente para justificar sejam repelidas todas e quaisquer alegações no sentido de que não cabe ao julgador adentrar na atividade administrativa, assim não há se falar em desobediência ao Principio da Tripartição dos Poderes, já que o jurisdicionado tem direito à vida e à saúde, como corolários do Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana (artigo 1°, III, CF), o qual é o norteador e vetor da interpretação e aplicação do direito. Portanto, se o Estado-administração não atender a tais direitos de forma voluntária, cabe ao Poder Jurisdicional obrigá-lo ao cumprimento das garantias fundamentais dos cidadãos, até porque vigente o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional a toda lesão ou ameaça a direitos (artigo 5°, XXXV, CF)67. É dever daquele que se encontra investido da função jurisdicional, sob pena de afronta aos comandos constitucionais supracitados, havendo plausibilidade de ameaça a direito, efetivar o 65 NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. São Paulo: RT, 2006. p. 118. 66 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002, p. 128-129. 67 TJSP, Apelação Cível n° 293.675.5/1-00. 83 pedido de prestação judicial requerido pela parte de forma regular, afinal, como é cediço, a indeclinabilidade da prestação judicial é princípio básico que rege a jurisdição, 68 porquanto a toda violação de um direito responde uma ação correlativa, independentemente de lei especial que a outorgue69. Neste sentido, é importante destacar os ensinamentos de Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery: todos têm acesso à justiça para postular tutela jurisdicional preventiva ou reparatória de um direito individual, coletivo ou difuso. Ter direito constitucional de ação significa poder deduzir pretensão em juízo e também poder dela defender-se. O princípio constitucional do direito de ação garante ao jurisdicionado o direito de obter do Poder Judiciário a tutela jurisdicional adequada70. E, finalizam: "Todo expediente destinado a impedir ou dificultar sobremodo a ação ou a defesa no processo civil constitui ofensa ao princípio constitucional do direito de ação"71. Nesse sentido, se posicionou o juiz Eugênio Couto Terra, ao decidir o caso onde o jurisdicionado necessitava de transplante de fígado e concluiu pela necessidade de se afastar o critério cronológico, e determinar a sua imediata inclusão como paciente prioritário na lista única de espera, sobretudo diante da impossibilidade das centrais de transplantes em informar se haviam ou não pessoas em piores ou semelhantes condições do que o requerente. Vejamos um trecho da sentença onde o magistrado fala da ineficácia do critério cronológico. Não resta a menor dúvida que existe a necessidade de estabelecimento de critérios administrativos para a realização de transplantes. Ocorre que um critério exclusivamente temporal – cronologia de inscrição na lista de transplantes – é falsamente democrático e assegurador de igualdade entre todos os que necessitam de transplante de órgãos. Leva em linha de conta uma única variável, quando vários são os fatores que devem ser considerados (por exemplo: risco de morte em caso de não realização em tempo hábil do transplante; expectativa de vida após o transplante; estágio da doença que obrigou à inclusão na lista dos serem transplantados; etc.)72. 68 RTJ 99/790. 69 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002, p. 292. 70 NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 7ª ed., São Paulo: RT, 2003, p. 127. 71 Ibidem, p. 128. Nessa senda, nunca é demais recordar, memorável julgado do colendo STF, onde restou assente que: "a garantia constitucional alusiva ao acesso ao judiciário engloba a entrega da prestação jurisdicional de forma completa, emitindo o estado-juiz entendimento explícito sobre as matérias de defesa veiculadas pelas partes. nisto está a essência da norma inserta no inciso XXXV do art. 5º da Carta da República" (STF – RE nº 172.084, Rel. Min. Marco Aurélio de Melo, DJ 03/03/1995). 72 Justiça autoriza paciente a furar fila de transplante. Consultor Jurídico, 01 fev. 2005. Disponível em: . Acesso em 24 jan. 2008. 84 Discute ainda: Tal risco, entretanto, não pode levar à ausência de uma decisão, pois estabelecido o dilema, incumbe perscrutar o sistema de princípios do sistema jurídico e optar pelo caminho que melhor preserve a dignidade humana no caso concreto. A apreciação da questão não pode fugir do princípio – ou como preferem alguns, do critério – da ponderação. Tem-se uma situação concreta e real de risco de vida iminente (atestada por equipe médica que merece credibilidade), pois a não realização imediata do transplante implicará na morte do paciente. Esse paciente não se encontra no topo da lista de transplante de fígado e, por força dos critérios administrativos em vigência, não pode ser, em caráter excepcional, considerado como prioritário para a realização do transplante. O sistema – leia-se Central de Transplantes – não tem condições de informar sobre a existência de outro paciente em lista de espera, posicionado antecedentemente ao requerente, que esteja em situação de risco de vida iminente. Talvez até exista, mas não há meio de identificação de tal situação, porque o critério adotado é o cronológico, tão-somente. Valorar mais o critério legal da cronologia, sem qualquer dado adicional de necessidade de urgência na realização do transplante por outra pessoa, é não assegurar o direito à vida no caso concreto73. Não poderia ter sido outro a conclusão do Magistrado: Em resumo, adotando-se o princípio da ponderação, faz-se a escolha pela possibilidade de salvar a vida de um ser humano devidamente identificado e com risco de morte, com o afastamento do critério impessoal – e, como já demonstrado, de pouca eficiência como possibilitador de salvar vidas – estabelecido no regulamento administrativo do Sistema Nacional de Transplantes74. E finaliza ele: Assim faço, por entender que uma possibilidade tem, necessariamente, de ser relevada quando a única chance de vida de um ser humano, devidamente personalizado e identificado, só é possível com a realização do transplante, mesmo que com isso tenha que ser afastado o critério cronológico estabelecido pelo sistema como o único a ser considerado75. Esta decisão efetivamente avaliou e calculou todos os interesses que estavam em jogo, enfrentando com coragem a questão posta,76 para, só então, optar pelo caminho mais justo e 73 Justiça autoriza paciente a furar fila de transplante. Consultor Jurídico, 01 fev. 2005. Disponível em: . Acesso em 24 jan. 2008. 74 Justiça autoriza paciente a furar fila de transplante. Consultor Jurídico, 01 fev. 2005. Disponível em: . Acesso em 24 jan. 2008. 75 Justiça autoriza paciente a furar fila de transplante. Consultor Jurídico, 01 fev. 2005. Disponível em: . Acesso em 24 jan. 2008. 76 Acerca da firmeza e tenacidade exigidas do juiz ao julgar, oportuno invocar o sempre lúcido e fecundo magistério de Piero Calamandrei: "Não conheço outro ofício que exija, de quem o exerce, mais que o do juiz, um forte senso de 85 consentâneo para a proteção do direito material de todos os envolvidos, firmando-se, precipuamente, no princípio da proporcionalidade. Trata-se, pois, de postulado nuclear que se converte em fio condutor metodológico da concretização judicial da norma, à qual, segundo Pierre Muller, ‘devem obedecer tanto os que exercem quanto os que padecem o poder77. viril dignidade, aquele senso que impõe buscar na sua consciência, mais que nas ordens alheias, a justificação do seu modo de agir, e de rosto descoberto assumir plenamente a responsabilidade por ele." (Eles, Os Juízes, Vistos por um Advogado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 351) 77 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A Constituição aberta e os direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 82. 86 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em tempos de avanços tecnológicos, principalmente da medicina e da ciência, crescem as esperanças de pessoas com doenças graves e alguns órgãos do corpo, em torno da recuperação através de transplantes. Porém esta esperança é reprimida quando nos deparamos com a questão da espera na fila por um transplante. Após esmiuçarmos o tema satisfatoriamente, podemos concluir que o transplante de órgãos e tecidos é um avanço da ciência que acaba por interferir na órbita do direito já que com ele veio diversas discussões que já mereceram estudos mais aprofundado, tais como o consentimento, os direitos fundamentais a vida e a integridade física quando tratamos de transplante e também, a questão da fila única, tema que mereceu nossa atenção no presente estudo uma vez que teve por finalidade a analise de sua eficácia, isto é, procurou-se verificar se a norma que instituiu a fila única e seu procedimento cumpre sua finalidade no seio da sociedade, sito, perante os pacientes que necessitam de um transplante como última alternativa de cura. A princípio verificamos o que é o transplante propriamente dito. O transplante é um procedimento cirúrgico que consiste na reposição de um órgão (coração, pulmão, rim, pâncreas, fígado) ou tecido (medula óssea, ossos, córneas...) de uma pessoa doente, o receptor, por outro órgão ou tecido normal de um doador, vivo ou morto. O transplante é um tratamento que pode salvar vidas e/ou melhorar a qualidade de vida de muitas pessoas. Para ser um doador existem alguns critérios mínimos de seleção. Idade, diagnóstico que levou à morte clínica e tipo sangüíneo são itens estudados do provável doador para saber se há receptor compatível. Não existe restrição absoluta à doação de órgãos a não ser para aidéticos e pessoas com doenças infecciosas ativas. Então todos nós somos doadores em potencial, desde que a nossa família autoriza, portanto a atitude mais importante é comunicar aos familiares o desejo de ser doador. 87 A doação dos órgãos como rim, parte do fígado e da medula óssea pode ser feita em vida, porém em geral nos tornamos doadores quando a família autoriza a retirada dos órgãos e em situação de morte encefálica, que é a parada definitiva e irreversível do encéfalo (cérebro e tronco cerebral), provocando em poucos minutos a falência de todo o organismo, é a morte propriamente dita. No diagnóstico de morte encefálica, primeiro são feitos testes neurológicos clínicos, os quais são repetidos seis horas após. Depois dessas avaliações, é realizado um exame complementar (um eletroencefalograma ou uma arteriografia). Mais freqüentemente são aproveitadas as seguintes partes: dois rins, dois pulmões, coração, fígado e pâncreas, duas córneas, três válvulas cardíacas, ossos do ouvido interno, cartilagem costal, crista ilíaca, cabeça do fêmur, tendão da patela, ossos longos, fascia lata, veia safena, pele. O procedimento para a doação é de certa forma simples, um familiar pode manifestar o desejo de doar os órgãos. A decisão pode ser dada aos médicos, ao hospital ou à Central de Transplante mais próxima. Depois de autorizada a doação, desde que haja receptores compatíveis, a retirada dos órgãos é realizada por várias equipes de cirurgiões, cada qual especializada em um determinado órgão. O corpo é liberado após, no máximo, 48 horas. O receptor não é escolhido, nem o doador, nem a família podem escolher o receptor. Este será sempre indicado pela Central de Transplantes. A não ser em caso de doação em vida. Exceto este caso de doar em vida, o receptor é escolhido através de testes laboratoriais que confirmam a compatibilidade entre doador e receptor. Após os exames, a triagem é feita com base em critérios como tempo de espera e urgência do procedimento. Aqui iniciamos o estudo sobre a fila única que tem como procedimento o seguinte: A cada vez que surge um doador a Central é informada e processa a seleção dos possíveis receptores para os vários órgãos. Esta seleção leva em conta o tempo de espera para o transplante, o grupo sangüíneo, o peso e altura do doador, com nuanças próprias para cada órgão. Só isto faz com que nem sempre o mais antigo fique em primeiro lugar na "fila" daquele doador. Além disso, é preciso levar em conta alguns exames feitos no doador para ver se ele é portador de infecções. Caso um desses exames seja positivo as equipes não aceitam os órgãos para transplantar receptores negativos para a tal infeção pois isto representa um risco de contaminar o receptor com uma doença que colocará em risco sua saúde. Nesses casos algumas equipes aceitam os órgãos para transplantá- 88 los em receptores que tenham a mesma infecção e estes podem não ser os primeiros da "fila". Outras vezes o receptor que foi selecionado em primeiro lugar pode não estar momentaneamente em condições de receber um transplante em conseqüência de complicações clínicas ou não pode ser localizado, não quer ser transplantado naquele momento, etc e portanto, para aquele doador ele é preterido. Algumas vezes a equipe médica responsável pela realização do transplante não está disponível e o paciente selecionado não pode ser transplantado. Se ele não for transplantado com aquele doador ele não perde o seu lugar na lista. Entretanto, este critério que é o adotado atualmente me parece injusto e ineficaz tanto o é que por diversas vezes foi objeto de discussão nos nossos tribunais de justiça. 89 REFERËNCIAS AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. BANDEIRA, Ana Claudia Pirajá. Consentimento no Transplante de Órgãos: À Luz da Lei 9.434/97 com Alterações Posteriores. Curitiba: Juruá, 2001. CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A Constituição aberta e os direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Forense, 2003. CHAVES, Antônio. O Direito à Vida e ao Próprio Corpo. 2.ed. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1994. COSTA JUNIOR, Paulo Jose da .O Transplante do Coração face ao Direito Penal Brasileiro. in RT 389/395. DE CUPIS, Adriano. Os direitos da personalidade. Tradução de Adriano Vieira Jardim e Antonio Miguel Caeiro. Livraria Moraes Editora, Lisboa, 1961. DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1954. 90 ERHART ,Eros Abrantes. Elementos De Anatomia Humana. 3.ed. Atheneu Editora São Paulo S.A., 1969. FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro. Aspectos Jurídico-Penais dos Transplantes. Porto: Ed. Universidade Portuguesa, 1995. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Forense, 1986. GOGICLIANO, Daisy. O Direito ao Transplante de Órgãos e Tecidos Humanos, tese de doutoramento apresentada perante a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1986. LEITE, Rita de Cássia Curvo. Transplantes de Órgãos e Tecidos e os Direitos da Personalidade. São Paulo: J. de Oliveira, 2000. MARREY NETO, José Adriano. Transplante de Órgãos — Nova Disciplina. Lei Federal 8.489 de 18.11.92. in: RT 691/59. MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002. NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. São Paulo: RT, 2006. OLIVEIRA, Antônio Bernardes. A Evolução da Medicina até o Início do Século XX. São Paulo: Pioneira/Secretaria de Estado da Cultura, 1981. 91 OLIVEIRA, João Gualberto de, O Transplante de Órgãos Humanos à Luz do Direito, Tese proposta pelo Instituto dos Advogados de São Paulo para o concurso anual de 1968, 1970. ROCHA, Maria Isabel de Matos. Transplantes de Órgãos Entre Vivos: As Mazelas da Nova Lei. In: Revista dos Tribunais. São Paulo: Ed.RT, ano 1986. v. 742. RTJ 99/790. SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite dos. Ação Socialmente Adequada Transplante de Órgãos e Eutanásia, Tese apresentada corno exigência parcial para a obtenção do título de Livre Docente em Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1988. SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite dos. Ação Socialmente Adequada: Transplante de Órgãos e Eutanásia. SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Transplantes de Órgãos e Eutanásia (Liberdade e Responsabilidade). São Paulo: Saraiva, 1992. TJSP - Agravo de Instrumento n. 306.823-5/5 – São Paulo – 8ª Câmara de Direito Público – Relator: Caetano Lagrasta – 28.05.03. Em igual sentido: "MEDIDA CAUTELAR – Liminar – Transplante duplo de órgãos – Prioridade no atendimento – Inadmissibilidade – Lista única de receptores editada por lei federal e regulamentada por decreto – Manutenção dos critérios insertos no Ofício n.º 3197 da Secretaria da Saúde – Impossibilidade – Incompatibilidade com o ato regulamentar vinculado – Liminar revogada – Recurso provido" (JTJ 210/259) 92 TJSP - Agravo de Instrumento n. 306.823-5/5 – São Paulo – 8ª Câmara de Direito Público – Relator: Caetano Lagrasta – 28.05.03. TJRS, Apelação n. 70011591963 – 3ª Câmara Cível – Relator Luiz Ari Azambuja Ramos – 07.07.05. Em igual senda: "AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. SAÚDE PÚBLICA. PORTADOR DE CIRROSE ALCOOL + CHC. NECESSIDADE DE TRANSPLANTE DE FÍGADO. INSCRIÇÃO NO SISTEMA NACIONAL DE TRANSPLANTE. ALEGAÇÃO DE IMINENTE RISCO DE VIDA. ALTERAÇÃO DA ORDEM DE INSCRIÇÃO. AUSÊNCIA DE PROVA IMPRESCINDÍVEL. ÔNUS PROBATÓRIO DO AGRAVANTE. LIMINAR INDEFERIDA. A inobservância do critério cronológico da lista dos pacientes que estão a espera de um transplante de fígado só poderá ocorrer mediante respaldo da autoridade competente, o que inexiste no caso" (TJRS, Agravo de Instrumento n. 70008701203 – 4ª Câmara Cível – Relator: Wellington Pacheco Barros – 30.06.04) TJSP – Agravo de Instrumento n. 365.796-4/9– 6ª Câmara de Direito Privado – Relator: Magno Araújo – 11.11.04. TJSP, Apelação Cível n° 293.675.5/1-00. Justiça autoriza paciente a furar fila de transplante. Consultor Jurídico, 01 fev. 2005. Disponível em: . Acesso em 24 jan. 2008. 93 DECLARAÇÃO Eu, MIRIAN SOARES DE LACERDA, acadêmica devidamente matriculada no 10º Período do Curso de Ciências Jurídicas da Fundação Universidade Federal de Rondônia – UNIR –, Campus de Cacoal, DECLARA para todos os fins, que o trabalho monográfico intitulado A EFICÁCIA DA FILA ÚNICA DE TRANSPLANTES, foi por mim desenvolvido. Cacoal, RO, 06 de Abril de 2008. MIRIAN SOARES DE LACERDA 94 DECLARAÇÃO Declaro para todos os fins de direito que o trabalho monográfico desenvolvido pela acadêmica MIRIAN SOARES DE LACERDA, com o título A EFICÁCIA DA FILA ÚNICA DE TRANSPLANTES, foi por mim revisado no tocante ao aspecto gramatical e abstract do mesmo, sendo procedida as devidas correções. Cacoal, RO, 06 de Abril de 2008. ROMILDA BORGES DE MELLO Licenciada em Letras com Habilitação em Língua portuguesa pela Universidade Federal de Rondônia - UNIR 95 DECLARAÇÃO Declaro para todos os fins de direito que o trabalho monográfico desenvolvido pela acadêmica MIRIAN SOARES DE LACERDA, com o título A EFICÁCIA DA FILA ÚNICA DE TRANSPLANTES, foi por mim revisado no tocante ao aspecto gramatical e abstract do mesmo, sendo procedida as devidas correções. Cacoal, RO, 06 de Abril de 2008. CRISTIANE RODRIGUES LIMA Licenciada em Letras com Habilitação em Língua Inglesa pela Faculdades Integradas de Cacoal - UNESC