UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MESTRADO ULBRA A FLEXIBILIZAÇÃO DAS GARANTIAS CRIMINAIS FRENTE AO TERRORISMO E À CRIMINALIDADE ORGANIZADA Liza Bastos Duarte Canoas 2006 UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MESTRADO A flexibilização das garantias criminais frente ao terrorismo e à criminalidade organizada Liza Bastos Duarte Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Luterana do Brasil para obtenção do título de Mestre em Direito Orientador: Dr. José Nereu Giacomolli Canoas, 2006 A flexibilização das garantias criminais frente ao terrorismo e à criminalidade organizada Autora: Liza Bastos Duarte Dissertação submetida ao Corpo Docente do Programa de PósGraduação em Direito da Universidade Luterana do Brasil, como parte dos requisitos necessários para obtenção do título de Mestre em Direito Área de Concentração: Direitos Fundamentais Orientador: Prof. Dr. José Nereu Giacomolli Comissão de Avaliação: Drª. Wanda Capeller Dr. Jaime Weingartner Neto Dr. Ângelo Roberto Ilha da Silva Prof. Dr. Wilson Steinmetz Coordenador do PPGDir D812f Duarte, Liza Bastos A flexibilização das garantias criminais frente ao terrorismo e a criminalidade organizada. - Porto Alegre, 2006. 293 f. Dissertação (Mestrado em Direitos Fundamentais, Faculdade de Direito) – Universidade Luterana do Brasil, 2006. “Orientação: Prof. Dr. José Nereu Giacomolli”. 1. Flexibilização das garantias. 2. Terrorismo e criminalidade. 3. Dignidade da pessoa humana. 4. Expansão do direito penal. 5. Direito penal do inimigo. I. Giacomolli, José Nereu. II. Título. Catalogação na publicação: Patrícia C. Cezar – CRB:10/1222 Dedico a ti Bebeth, Pela leitura e debate Pela obstinação Por nunca teres desistido de nós Por me amares incondicionalmente Pela tua coragem e generosidade Pelas falas e pelos silêncios Por tão bem me entender Por tentares inutilmente frear minhas paixões Pela tua busca da beleza nos pequenos detalhes Pela tua ambição e teu brilho (deseja mãe, eu agüento!) Por povoares o mundo (de muitos) com tuas idéias e ideais Pela musicalidade que te habita Pelo dom da palavra e da poesia Pelo alimento e o não lamento Pelo paradigma (vou tentar responder!) Por seres incansável e visionária Obrigado, mãe, eu me orgulho de ti. ....E a Júlia pois nada do que eu possa fazer ou pensar está destituído da tua presença. AGRADECIMENTOS - Agradeço ao meu orientador, Nereu José Giacomolli, pela dedicação e orientação segura; - Agradeço à Universidade Luterana do Brasil, porque acreditou em mim, havendo me agraciado com uma bolsa parcial para a realização deste mestrado; - Agradeço a Daniele de Souza, por ter sabido tão bem cuidar da Júlia durante minhas ausências. RESUMO A presente dissertação propõe-se a realizar uma reflexão aprofundada sobre a tendência contemporânea de expansão do discurso jurídico penal, frente ao contexto de terrorismo e criminalidade organizada que caracteriza este início de terceiro milênio. Trata-se de uma abordagem que propõe adentrar no campo jurídico – lugar de onde se fala –, de forma a articular questões políticas e jurídicas em torno das novas doutrinas e discursos que professam a necessidade da supressão de alguns dos direitos e garantias individuais, para determinadas classes de cidadãos, oriundos do contexto do terrorismo e da criminalidade organizada, indivíduos esses, que, segundo a doutrina do direito penal do inimigo, estão à margem do contrato social. Esse tema central é então discutido a partir da contraposição entre garantias constitucionais e necessidade de segurança, atualizadas pelos atentados terroristas aos Estados Unidos. Nessa perspectiva, o trabalho se propõe à análise das alterações ocorridas na postura do direito penal e a expansão do direito penal contemporâneo após o advento do atentado; à verificação e discussão da expansão da doutrina do direito penal do inimigo, como forma de combater a esse tipo de criminalidade; ao exame do discurso jurídico penal e, em especial o discurso do direito penal (para) do inimigo e de suas matizes, confrontando-o com o princípio da dignidade da pessoa humana. Palavras-chaves: Garantias. Dignidade. Pessoa. Terrorismo. Criminalidade organizada. ABSTRACT The following dissertation has as objective a careful thought over the contemporary tendency of expanding the penal judicial discourse, in face of the terrorism and organized crime context that characterizes the beginning of this 3rd millennium. It is an approach that intends to enter the judicial field -- the place from where this comes from --, so that it is possible to debate political and judicial questions around the new doctrines and discourses that profess the need of suppression of some individual rights for some classes of citizens, such as those who come from the context of terrorism and organized crime. Those individuals, according to the doctrine of enemy penal law, are at the margin of the social contract. This central theme is then discussed after the contraposition of constitutional rights and the need of security, updated by the terrorist attacks to the United States of America. Under this perspective, this paper analyses the alterations done to the position of penal law and the expansion of contemporary penal law after the attacks; to verify and discuss the expansion of the doctrine of enemy penal law as a way to fight this kind of crime; to examine the penal law discourse, and in special the enemy penal law discourse and of its different shades, confronting it to the principle of human being dignity. Key-words: Rights. Dignity. People. Terrorism. Organized crime. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 10 1 CRIMINALIDADE: TERRORISMO E CRIME ORGANIZADO................ 1.1 Ações terroristas e os direitos fundamentais.............................................. 1.2 O ápice do terrorismo no séc. XXI............................................................... 1.3 Entre o terrorismo e a criminalidade organizada....................................... 1.4 Cultura do medo ........................................................................................... 18 21 35 48 55 2 O DISCURSO JURÍDICO PENAL................................................................... 67 2.1 A interpretação da lei frente ao discurso jurídico penal............................ 92 3 EXPANSÃO DO DISCURSO PENAL E DIREITOS FUNDAMENTAIS.... 3.1 O discurso da emergência e a relativização das garantias......................... 3.2 Contextualização da expansão...................................................................... 3.3 Discurso penal do inimigo............................................................................. 3.4 Estado de exceção........................................................................................... 106 106 129 155 192 4 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA......................................................... 4.1 Histórico da dignidade da pessoa................................................................. 4.2 Atualizações contextuais do conceito de dignidade..................................... 4.3 A dignidade da pessoa humana como sustentáculo aos direitos fundamentais.......................................................................................... 4.3.1 Eficácia da dignidade da pessoa humana............................................. 4.3.2 A (im)possibilidade de relativização do caráter absoluto da dignidade.......................................................................................................... 213 216 225 254 235 240 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 245 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................. 251 INTRODUÇÃO A presente dissertação propõe-se a realizar uma reflexão aprofundada sobre a tendência contemporânea de expansão do discurso jurídico penal, frente ao contexto de terrorismo e criminalidade organizada que caracterizam este início de terceiro milênio. Possui a dissertação desenvolvida como tema central as questões referentes às garantias constitucionais contrapostas às necessidades de segurança, atualizadas pelos atentados terroristas aos Estados Unidos, visando: 1) à análise das alterações ocorridas na postura do direito penal e a expansão do direito penal contemporâneo após o advento do atentado; (2) à verificação e discussão da expansão da doutrina do direito penal do inimigo, como forma de combater a esse tipo de criminalidade; (3) a análise do discurso jurídico penal e em especial o discurso do direito penal do inimigo e de suas matizes e seu confronto com a dignidade da dignidade da pessoa humana. Trata-se de uma abordagem que propõe adentrar no campo jurídico – lugar de onde se fala –, de forma a articular questões políticas e jurídicas em torno das novas doutrinas e discursos que professam a necessidade da supressão de alguns dos direitos e garantias individuais, de determinadas classes de cidadãos, oriundos do contexto do terrorismo e da criminalidade organizada, categorias de indivíduos, que segundo a doutrina do direito penal do inimigo estão à margem do contrato social. Frente ao tema desenvolvido levantam-se diversas questões, as quais se buscaram respostas, não só na doutrina, mas no confronto com ações concretas e de certa forma legitimadas pelas diferentes posições assumidas frente ao terrorismo e à criminalidade organizadas. A formulação do problema de pesquisa se deu a partir dos seguintes questionamentos: 1) O Estado pode permitir a minimização dos direitos e garantias individuais, operando de forma sumária com procedimentos que violem estas garantias 11 fundamentais? ; 2) Em que se constitui e fundamenta a teoria do direito penal do inimigo e quais seriam as justificativas legais para esse retrocesso doutrinário nas teses do minimalismo do direito penal? ; 3) as posições doutrinárias relativas ao direito penal do inimigo, num segundo momento, não ameaçariam toda a construção histórica da humanidade em torno dos direitos fundamentais, dando guarida a ações arbitrárias e tribunais de exceção? ; 4) Em algum outro momento histórico da humanidade doutrinas como as do direito penal do inimigo já foram usadas para camuflar intenções política escusas e práticas de aniquilamento de alguns segmentos da sociedade? O tema merece e carece de uma discussão aprofundada, pois toda a ficção cinematográfica ficou aquém do ataque terrorista às torres do World Trade Center, reabrindo, de forma vigorosa, o questionamento sobre a violência indiscriminada que assola o mundo contemporâneo e comprovando a ineficácia do Estado em conferir mínimas condições de proteção aos cidadãos. Quando o coração de Nova York foi ferido, soube-se que o inconcebível poderia acontecer. E acontecer diante dos olhos esbugalhados da população planetária: o atentado foi planejado com todos os requintes de um espetáculo midiático. Essa visão apocalíptica estarreceu a todos ceifando em parte da esperança, a fé e a dignidade da raça humana. A princípio tudo cheirava à irrealidade; afinal, o episódio parecia a repetição, com novidades, de mais uma catástrofe cinematográfica, realmente empolgante pelo grau de veracidade conseguido pelo engenheiro de efeitos especiais, trata-se de espetáculo limpo de estertores, de jorros de sangue, de carnes esmagadas, de ossos triturados. Segundo o prêmio Nobel, José Saramago, o horror agachado como animal imundo, esperou que saíssemos da estupefação para nos saltar a garganta. O horror disse pela primeira vez aqui estou quando aquelas pessoas saltaram para o vazio como se tivessem acabado de escolher uma morte que fosse sua, agora o horror aparecerá a cada instante ao removerse uma pedra, um pedaço de parede, uma chapa de alumínio retorcida, e será uma cabeça irreconhecível, um braço , uma perna, um abdômem desfeito, um tórax esparramado. Mas estas cenas que num primeiro momento tanto nos chocaram imediatamente assumiram o gosto do deja vú: de certo modo, este espetáculo aparentemente ficcional dado o surrealismo da violência já era familiar pelas imagens daquela Ruanda de um milhão de mortos, daquele Vietnã cozido a napalme, daquelas execuções em estádios 12 cheios de gente, daqueles linchamentos e espancamentos, daqueles soldados iraquianos sepultados vivos debaixo de uma tonelada de areia, daquelas bombas atômicas que arrastaram e chacinaram Hiroshima e Nagasaki, daqueles crematórios nazistas a vomitar cinzas, daqueles caminhões a despejar cadáveres como se de lixo se tratasse. Só depois, aos poucos, foi-se estabelecendo a medida da distância entre o caráter fantástico da imagem e a tragédia real por ela revelada e ao mesmo tempo ocultada. Tragédia direta e imediata para as famílias das milhares de vítimas do atentado; hecatombe iminente para todo o planeta, prenúncio de uma guerra de todos contra todos, feroz e sem fim, e o pior, sem inimigo certo. Ao contrário da maquilagem que normalmente acontece, quando estados poderosos-imperialistas subtraem os efeitos de seus massacres cotidianos, selecionando as imagens dos povos colonizados e excluindo, muitas vezes, as cenas de fome e miséria a que é exposta a população_ as fantásticas cenas do fatídico 11 de setembro, que passaram por um processo de triagem, tentavam evitar, no limite do possível, a visualização do estado americano diante de sua imensa impotência. Mas o que enxergamos não define com precisão o inimigo, apenas embaralha os dados. Embora as cenas dramáticas assistidas nos coloquem frente ao dever de apoiar uma das partes, dado o grau de absurda violência impetrada contra inocentes, cabe-nos, ainda assim, sopesar as duas faces do conflito. Na medida em que a nova guerra não se resume a um conflito entre estados e nações, cujas populações estariam sendo postas em perigo, mas se exerce contra um outro indeterminado e sem face, o perigo é resvalar a ação para o plano em que o inimigo a colocou. Com intuito de combater, não pode o estado se valer dos mesmos métodos desrespeitosos que o converteriam, então, em uma nação terrorista. Emprestar ao inimigo o rosto de Bin Laden consiste num estratagema que, ao catalisar todo o ódio de vingança a qualquer preço, implica simultaneamente a perda das garantias constitucionais, tais como liberdade, a identidade, a vida privada –tão caras à nação americana e planetária. E é nesse sentido que todos já perdermos, na medida em que fomos levados a conviver, pelo menos, com duas formas de terror. A primeira diz respeito ao surto de um indivíduo ou de um grupo que leva ao extremo sua rebeldia e violência. Não há como erradicá-la, 13 principalmente porque a complexidade crescente do mundo cotidiano e dos modos de estruturação social multiplicam as fissuras por onde podem ser introduzidas lâminas que impedem o funcionamento desse enorme organismo que é o Estado. A segunda diz respeito ao controle: quanto mais esse mundo se torna complicado, quanto mais crescentes são os estímulos padronizados para a violência, tanto mais nascem possibilidades práticas de controle. O desafio que então se coloca é como encontrar instituições reguladoras capazes de evitando restringir as liberdades democráticas, impedir atos terroristas como os que viveu os Estados Unidos, não só com as explosões das torres e do Pentágono, tampouco com a disseminação do vírus como o Antraz, mas também com a violência que seus soldados infringem à população civil iraquiana. O governo americano, após o 11 de setembro, implementou medidas para combater o terrorismo, entre elas a detenção de mais de seiscentos imigrantes com situação irregular por período indeterminado, em prisões. Em 26 de outubro de 2001, o presidente Bush assinou o USA Patriot Act que concedeu ao governo maiores poderes para prender e deter estrangeiros suspeitos. Em outubro de 2001 o presidente Bush baixou uma ordem executiva permitindo as autoridades policiais monitorar comunicações entre presos federais e seus advogados, sem a obtenção de uma autorização judicial, assinou também uma ordem autorizando o uso de tribunais militares para interrogar e levar a juízo pessoas que sejam eventualmente terroristas, com o objetivo de evitar o risco de ataques terroristas. O governo americano, com as ações acima descritas, inaugurou o que ficou conhecido como a "Guerra contra o terror". Porém deter o inimigo não é tarefa fácil, as associações terroristas são ambulantes por dever de ofício. Os terroristas obedecem às descrições de pessoas normais, vivendo vidas cotidianas, ao mesmo tempo em que se preparam cuidadosamente para atacar e morrer. Não é isso que sempre se chamou coragem? Mas, a partir do momento em que admitimos essa coragem, também é preciso indagar o motivo dela. Por que não se tornaram soldados regulares? A história ensina que o militante se converte em guerrilheiro quando está irremediavelmente acuado, quando os exércitos em que poderia se integrar foram desbaratados, nada mais lhe restando, para continuar a luta, do que se dispersar em pequenos grupos, tentando 14 aferroar o inimigo pelas costas, pelos lados, nunca de frente. O terrorista sem rosto constitui uma ameaça que, ao ser mordida pela astúcia ou pela mera força bruta, é salamandra que renasce de suas cinzas. É emblemática a postura dos terroristas que, ao arrepio da lei e do direito, dispõem-se a provocar atos por intermédio de ações violentas que objetivam desestabilizar nações. Sem dúvida, é preocupante o desiderato daqueles que praticam ações terroristas e a razão por que escolhem o caminho do aniquilamento, do suicídio, da morte. Porém à revelia das entidades de proteção aos direitos aqueles que foram desrespeitados, vários estados violentam com a mesma desmedida: recorrem, com igual desprezo aos direitos humanos e idêntico (ou maior, muito maior!) emprego da violência física e psicológica contra àqueles que são tidos como inimigos. Abordando a expansão gradativa do direito penal contemporâneo que o atentado terrorista de 11 de setembro aguçou, far-se-á um apanhado geral dos contínuos avanços e retrocessos realizados pelo direito penal, demonstrando que o séc. XXI inaugurou uma fase de retrocessos, na qual, em nome da criminalidade organizada e do terrorismo o mundo assiste e muitas vezes anui ao total desrespeito à dignidade da pessoa humana e a vulnerabilização dos direitos e garantias dos cidadãos. O direito penal do inimigo inaugura um discurso que serve a métodos inquisitórios, aumentando as fronteiras puníveis, mudando assim o papel que se atribuído ao direito penal para dar conta de interesses eleitorais e políticas criminais eliminatórias e descriminalizatórias. A expansão do direito criminal como um discurso simbólico revestido de uma ideologia otimizante se efetiva à custa de mudanças importantes na estrutura e nas garantias do direito penal. Este propósito instrumental de tutela dos bens jurídicos como meio simbólico de reduzir o caos e a insegurança da sociedade sinaliza para um déficit de operacionalidade marcante oriundo do aumento esquizofrênico do número de leis punitivas e demonstrando a incapacidade do sistema penal de estruturar e dar solução a todas as demandas a ele exigidas, atuando sempre como resposta tardia às solicitações problemáticas que o contexto social lhe impõe. A monografia em tela pretende, então, dissertar a respeito desta expansão operada a nível mundial após o 11 de setembro que incidiu em termos globais tornando o direito 15 penal mais abrangente e severo e o direito processual penal mais flexível e menos garantista, abordando os efeitos desta maximização legislativa simbólica no direito brasileiro. O direito penal brasileiro, melhor dizendo latino americano, é o reflexo de uma ideologia messiânica e de uma economia imperialista, imprimida pelos Estados Unidos e pela da classe dominante brasileira, que se vale do direito penal simbólico para, pelo discurso jurídico penal, dissipar as desigualdades sociais, usando do apelo à feitura de justiça para maquilar a imensa massa de excluídos que por falta total de alternativas possíveis aderem a criminalidade como tentativa de inclusão (por via transversa) social. Pretende-se, nesse sentido, examinar, à luz de diferentes posições sócio-jurídicas a legitimidade do discurso jurídico penal, o contexto econômico que dá origem a construções jurídicas como a doutrina do direito penal do inimigo, bem como verificar quem são esses sujeitos apenados, configurados pela doutrina como inimigos. A dissertação organiza-se em quatro capítulos, além dessa introdução e da conclusão. O primeiro capítulo objetiva traçar um panorama do contexto da criminalidade contemporânea, tratando do tema criminalidade organizada latu sensu, compreendendo a criminalidade oriunda do terrorismo e aquela proveniente do crime organizado, observando a criminalidade tanto no seu aspecto associativo quanto organizacional, salientando que a primeira independentemente de motivações econômica, política, ou religiosas; e a segunda, ao contrário, diz estar fundada em motivações econômica, política e religiosas, porém é sustentada por um discurso de caráter ideológico justiceiro alicerçando com seus argumentos uma investida violenta contra alvos civis e dando suporte a uma cultura do medo dela decorrente, responsáveis pela dualidade entre o minimalismo e a expansão do direito penal. O segundo capítulo centra-se em aspectos afeitos ao discurso penal e a interpretação dos crimes à luz desse discurso, demonstrando seu caráter manipulatório e a possibilidade de inserção nesse discurso jurídico penal intenções diversas do que a priori o mesmo foi instrumentado a comunicar, inflacionado-o de intenções que vão da tutela de bens jurídicos até a veiculação de propósitos simbólicos e políticos, que visam ao fim e ao cabo maquilar a ineficácia do Estado em dar eficácia aos direitos fundamentais previstos constitucionalmente. 16 O terceiro capítulo disserta a respeito da expansão do discurso penal, o contexto que o mesmo ocorre, o punitivismo exacerbado ínsito a ele e o apogeu desta maximização do direito penal, entabulada através do discurso do direito penal do inimigo e de sua proposta de formalização teórica da total disponibilização/mitigação dos direitos e garantias individuais, justificando que a expansão acentua ao invés de minimizar o caos social e diversamente de estarmos sob a égide de um estado democrático de direito estamos invertendo a ordem de um estado de direito fazendo da exceção a regra e vivendo sob o império do estado de exceção. O quarto capítulo aborda os limites constitucionais das possibilidades intervenção do Estado nos direitos individuais dos cidadãos e restrição/mitigação da dignidade da pessoa humana, traçando um estudo aprofundado da dignidade como núcleo essencial das constituições democráticas do mundo, paradigma interpretativo a dar unidade às Constituições, contrapondo-o com a necessidade da seguridade jurídica, efetivação do bem estar social e dos direitos fundamentais e minimização dos riscos oriundos da contemporaniedade. Aborda-se os direitos e garantias individuais impressos nas legislações globais, desenvolvendo um breve histórico da dignidade da pessoa humana, comentando as atualizações contextuais do conceito de dignidade e o princípio da dignidade da pessoa humana como sustentáculo das constituições democráticas e como paradigma que dá sustentação e unidade a Constituição, dissertar-se-á também sobre a eficácia da dignidade da pessoa humana, sua interpretação dentro do contexto da ordem constitucional e as (im)possibilidades de relativização de seu caráter absoluto. Esta análise tem como pano de fundo o atentado ao Worl Trade Center. O capítulo cinco são as conclusões finais: uma abordagem parcial de todos os argumentos desenvolvidos no transcorrer da dissertação e a demonstração do perigo da semeadura do direito penal do inimigo como discurso acadêmico, político e jurídico e a ameaça que o mesmo representa no estado democrático de direito alicerçado na dignidade da pessoa humana como eixo paradigmático que dá unidade a qualquer a constituição. Para a realização do trabalho em tela, fez-se primeiramente uma análise histórica do terrorismo e de com o mesmo influenciou a expansão do direito penal: a pesquisa foi realizada através de um aprofundado levantamento bibliográfico em livros 17 e revistas jurídicas, filosóficas e históricas, sua leitura, seu compilamento, a digitação dos dados mais importantes e as citações de outros autores pertinentes aos temas pesquisados. Por fim, após o cotejamento dos materiais pesquisados a da procura de autores que viessem a endossar as conclusões tomadas pela autora realizou-se a digitação final na qual a participação da pesquisadora nas teses suscitadas pode ser notada. Na abordagem do trabalho fez-se uso do raciocínio dedutivo buscando explicar o conteúdo das premissas levantadas e obter uma nova decorrente da análise das anteriores. Essa nova premissa foi determinada por intermédio de uma cadeia de raciocínios em ordem descendente, de análise do geral para o particular chegando-se assim a uma conclusão. A pesquisa possibilitou, através de uma combinação de observação cuidadosa e intuição científica, alcançar um conjunto de postulados que governam os fenômenos sociais e jurídicos, a partir disso, por meio de experimentos intelectuais, deduziu-se as conseqüências e refutou-se alguns postulados, substituindoos por outros que se enquadravam melhor nas teses pesquisadas. O pesquisa foi direcionada com o propósito de levantar um conjunto de postulados que governam os fenômenos sociais que ensejaram a expansão do direito penal e a possibilidade jurídica de flexibilização dos direitos e garantias fundamentais e suas conseqüências. A dissertação está vinculada a linha de pesquisa II, do Mestrado em Direito Fundamentais, da Universidade da Universidade Luterana do Brasil, que busca através de um repensar da sociedade acadêmica a respeito do tema, a conscientização e a concretização dos direitos fundamentais no Estado Social e Democrático de Direito, sua eficácia e seu contínuo processo de desenvolvimento e proteção por meio da jurisdição constitucional que crie instrumentos processuais adequados para a garantia dos direitos fundamentais, oferecendo ao operador do direito uma possibilidade de interpretação do direito mais voltada para às questões sociais de nosso tempo. O desenvolvimento e a proteção dos direitos fundamentais no sentido de sua garantia no plano normativo material (legislação) e no plano processual (legislação e jurisdição), afirmando a impossibilidade de total flexibilização das garantias constitucionais e o perigo que representa abdicar das mesmas. 18 1 CRIMINALIDADE: TERRORISMO E CRIME ORGANIZADO O presente capítulo trata do tema criminalidade organizada latu sensu, compreendendo a criminalidade oriunda do terrorismo e aquela proveniente do crime organizado. A criminalidade no mundo contemporâneo assumiu contornos bem particulares: em primeiro lugar pelo seu aspecto associativo – trata-se de uma rede, na maioria das vezes transnacional que abarca múltiplos crimes, não se cingindo a um único ilícito penal; em segundo, porque, independentemente de suas motivações econômica, política, ou religiosa, é sustentada por um discurso de caráter “justiceiro”, promovido pela cultura do medo, que ao invés que minimizar os efeitos da violência os potencializa, dando suporte a abusos de poder por parte do Estado e de suas agências executivas. A criminalidade oriunda do terrorismo, geralmente, é direcionada e propulsionada (agora na contemporâniedade) por fatores políticos, ou seja, visa pela violência demonstrar o grau de insatisfação de um grupo pelo contexto governamental, econômico, político, ideológico ou religioso a que este grupo é submetido, pretende que sejam lidos os atos de violência, como uma manifestação política de sua insurreição. A criminalidade decorrente do terrorismo assume assim um cunho de disputa política, ideológica ou religiosa (por disputas ou privilégios decorrentes de posturas religiosas), não é eminentemente e necessariamente uma violência direcionada a tomar para si os bens e os signos do capitalismo, mas, muitas vezes uma manifestação contra as conseqüências de seu sistema de exclusão e de exploração de significativa parcela da população que vive à mercê do imperialismo econômico ditado pelas nações desenvolvidas. A criminalidade proveniente do crime organizado trata-se de outra espécie de criminalidade, destituída deste cunho político e/ou de manifestação ideológica, opera simplesmente para a obtenção dos lucros decorrentes destas atividades ilícitas. Este tipo de criminalidade não assume nenhuma postura ideológica que paute sua ação, pois ela é decorrente, tão somente, de interesses econômicos, diferentemente das do terrorismo, visa eminente e necessariamente apossar-se dos bens e os signos do capitalismo através de atividades ilícitas. 19 É importante ressaltar que a criminalidade organizada vem sendo indistintamente utilizada como gênero do qual são espécies os mais diversos crimes, tais como os monetários – especialmente falsificações de moedas e títulos públicos – lavagem de dinheiro, fraude nos sistemas financeiros, crimes de extorsão, corrupção, concussão, prevaricação, contrabando de mercadorias, de materiais radioativos, de tecidos humanos, comercio de armas (eventualmente até nucleares), drogas, tecnologias sofisticadas mediante espionagem industrial ou compra de segredo, prostituição, trafico de mulheres e crianças, crimes ecológicos, roubo de cargas, terrorismo, pirataria, falsificação de remédios, dentre vários outros. A mídia Basta que se assista a um noticiário, se tenha acesso a jornal, revista, internet, ao discurso de um político, de um policial, e até mesmo advogados, promotores de justiça e magistrados. Nesse sentido salienta “A criminalidade organizada vem sendo indistintamente utilizada como gênero do qual são espécies os mais diversos crimes, tais como os monetários – especialmente falsificações de moedas e títulos públicos – lavagem de dinheiro, fraude nos sistemas financeiros, crimes de extorsão, corrupção, concussão, prevaricação, contrabando de mercadorias, de materiais radioativos, de tecidos humanos, comercio de armas ( eventualmente até nucleares), drogas, tecnologias sofisticadas mediante espionagem industrial ou compra de segredo, prostituição, trafico de mulheres e crianças, crimes ecológicos, roubo de cargas, terrorismo, pirataria, falsificação de remédios, dentre vários outros.Não raro, os exemplos são sobremaneira ampliados sem qualquer preocupação técnica(cite-se apenas como exemplo, a adjetivação do Movimento Nacional sem-terra, como modalidade de crime organizado). Basta que se assista a um noticiário, se tenha acesso a jornal, revista, internet, ao discurso de um político, de um policial, e até mesmo advogados, promotores de justiça e magistrados. Salienta-se que a lei n° 9.034/95 não elucidou o conceito de criminalidade organizada, manifestando-se de forma omissa quanto à sua conceituação e fazendo uma homogenização de conceitos distintos como o de organização criminosa, criminalidade organizada e quadrilha ou bando, já tipificados no ordenamento jurídico brasileiro. A lei n° 9.034/95 foi revogada pelo artigo 1° da lei n° 10.217/01, porém esse mandamento legal declarou apenas a existência da distinção entre os crimes de quadrilha ou bando e de associação criminosa do crime organizado, sem, contudo, solucionar o problema apontado”.1 1 BECK, Francis Rafael. Perspectivas de controle: ao crime organizado e a crítica à flexibilização das garantias. São Paulo: IBCCRIM, 2004, p.68 20 O aspecto associativo, relacional é responsável por uma prática criminal cuidadosamente estruturada, que se utiliza indiscriminadamente da população civil como massa de manobra e escudo para conferir êxito às suas ações. O aspecto referente ao discurso justicialista recupera os traços caóticos da sociedade contemporânea, principalmente no que concerne à perversidade do modelo econômico globalizador adotado e às injustiças sociais dele decorrentes, assumindo configurações “Robin hoodianas”. Não obstante, as formas que adotam e as razões que convocam, essas organizações criminosas hoje se estabelecem como um governo paralelo aos estados-nação, muitas vezes ultrapassando as fronteiras de um país. Tais organizações se estabelecem sob o formato de terrorismo ou crime organizado. Embora o terrorismo também seja expressão da manifestação de uma criminalidade organizada possuindo os mesmos contornos dessa, sua distinção reside nos objetivos a serem alcançados com a atividade ilícita que são diversos dos do crime organizado. 2 3 O Brasil carece da descrição do tipo penal do terrorismo, como também, do que seja a criminalidade organizada, omitindo-se a legislação quanto ao estabelecimento de contornos mais precisos a respeito do conceito de criminalidade organizada, o que dificulta seu enquadramento. Assim, entre nós, o conceito de criminalidade organizada, apesar da tentativa de algumas leis especiais em defini-la, continua difuso, diante da complexidade de condutas que o conceito de criminalidade organizada abarca.4 5 2 Registre-se que grupos de narcotraficantes estão associando-se a movimentos terroristas que, por sua vez, têm no comércio ilegal de drogas uma importante fonte de recursos para financiar suas operações. Constata-se, portanto, uma combinação literalmente explosiva, o que torna essa questão mais complexa e preocupante. Neste sentido MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime organizado aspectos gerais e mecanismos legais. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, p.6. “Crime Organizado é qualquer ato cometido por pessoas ocupadas em estabelecer divisão de trabalho: uma preposição por delegação para prática de crimes como a divisão de tarefa também inclui, em última análise, uma posição para corruptor, uma para o corrompido e uma para um mandante”. 3 Vale observar que o terrorismo pode ser dividido em dois grandes grupos: a) organizações que agem por motivações políticas e ideológicas contra uma população específica ou um determinado governo; b) o terrorismo de estado, patrocinado por governos interessados em desestabilizar e aniquilar nações rivais ou grupos populacionais específicos. 4 Não há figura típica no direito brasileiro que defina o crime de "terrorismo". Encontramos menção na CF/88 e na Lei dos crimes hediondos, mas sem a identificação de quais seriam os atos de terrorismo. 21 Pela ausência de definição precisa, o conceito é, então, volátil, aberto, absolutamente poroso, visto que o legislador omitiu-se, na sua enunciação típica, não oferecendo sequer a descrição mínima das atividades que pressupõem serem tidas como atividades específicas da criminalidade organizada. É inócua, por via de conseqüência, leis como a 9.034/1995, que passam a servir apenas como letra morta. Trata-se de uma enunciação abstrata que nada comunica, tampouco veda, tornando-se imprestável para a interpretação restritiva a que invoca o direito penal e que garante a um conteúdo normativo que atenda o princípio da legalidade.6 As seções que seguem deste capítulo procuram traçar um panorama deste tipo de criminalidade, tentando, além disso, distinguir terrorismo de crime organizado e examinar a suas conseqüências, materializadas através da cultura do medo. Desta forma, mesmo que o sujeito pratique atos de terrorismo e com isso obtenha bens e dinheiro, as condutas de omitir ou dissimular a natureza deles não poderá configurar crime de lavagem, pois o legislador não o terrorismo como crime antecedente. 22 1.1 Ações terroristas e os direitos fundamentais O terrorismo pode ser entendido como a externalização de uma postura ideológica, com objetivos políticos ou religiosos, manifesta pelo uso sistemático de violência contra civis ou militares. A ação terrorista é sempre realizada por grupos de criminalidade organizada, ainda que possa se manifestar através de uma só pessoa (p.e. homem bomba), sendo múltiplos os seus propósitos: a coação frente a total vulnerabilidade da população a esse tipo de violência; a desestabilização do poder formal dos estados e de suas instituições; a submissão do povo ao terror, etc... Na pauta dos métodos terroristas, está sempre à destruição da vida humana em nome desses princípios ideológicos, políticos ou religiosos. O nome terror, que significa “medo, uma ansiedade extrema correspondendo com mais freqüência, a uma ameaça vagamente percebida, pouco familiar e largamente intimidante”, tem seu registro em língua francesa, datado de 1335. Mas a conotação político-jurídico agregada ao termo terror aparece pela primeira vez na França Revolucionária, durante o governo de Robespierre, constituindo-se, então, em meio de legítima defesa da ordem social. Segundo Pellet a palavra reaparece no final do século XIX com um novo sentido, advindo dos atos anarquistas, que visavam a aterrorizar o estado, incitando a sociedade contra os órgãos estatais, por meio da propaganda. 7 A singularidade do conceito de terrorismo é adota em determinante difusa, sendo que o termo comporta, atrelada à acepção política de seu sentido, diferentes fenômenos que, às vezes, se manifestam separadamente e outras vezes se confundem: (1) a revolta ou rebelião contra um governo legítimo; (2) o exercício da violência política, violando direitos humanos (inclusive, na opinião de alguns, os direitos de propriedade); e (3) a prática da guerra em violação das regras de combate, inclusive com ataques a civis. 8 7 PELLET, Sarah. Terrorismo e direito: os impactos do terrorismo na comunidade internacional e no Brasil – perspectivas políticas-jurídicas – o desafio da comunidade internacional frente ao terrorismo. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 9. 8 NEGRI, Antonio & HARDT, Michael. Multidão: guerra e democracia na era do império. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 26-27 “O problema de todas as definições é que variam de acordo com aquele que esteja definindo seus elementos principais: quem pode determinar, por exemplo, o que é um governo legítimo, o que são os direitos humanos e quais as regras da guerra? Dependendo de quem defina esses elementos, naturalmente, até mesmo os Estados Unidos poderiam ser considerados um estado terrorista. Dada a instabilidade de sua definição, o conceito terrorismo não fornece uma base sólida para entender o atual estado de guerra global”. 23 Já o Departamento de Estado americano define o terrorismo como "a violência premeditada contra alvos civis, praticada por grupos minoritários ou agentes clandestinos, normalmente com a intenção de influenciar a opinião pública”, sendo que tais objetivos podem ser usados por grupos religiosos, nacionalistas, radicais de direita ou esquerda. Nessa ótica, uma associação terrorista pode ser entendida como um agrupamento de duas ou mais pessoas que, visando prejudicar a integridade ou a independência de um determinado estado, impede, altera ou subverte o funcionamento de suas instituições, boicotando, através da violência, seu devido funcionamento. A gravidade do terrorismo decorre de seu modo de funcionamento, na medida em que atua pela disseminação do terror de forma a alcançar um efeito de total intimidação da comunidade, objetivando finalidades políticas muito distintas: a subversão do sistema político (como sucedeu com as Brigadas Vermelhas na Itália ou com o Baader Meinhof na Alemanha), a destruição de movimentos cívicos ou democráticos (como sucedeu com a Aliança anticomunista da Argentina e, em certa medida, com os Esquadrões da morte brasileiros), o separatismo (como sucede com a ETA) ou a afirmação de convicções religiosas (como sucede com alguns movimentos fundamentalistas). As práticas terroristas têm como sustentação e álibi a crença em determinada verdade ou ideologia que fundamenta, dá sentido e legitima, sob sua ótica, os crimes perpetrados contra a população. A fundamentação subjetiva de uma ação terrorista nunca é individual, sempre está ligada à manifestação coletiva de um determinado grupo que se insurge por motivos religiosos, patrióticos, econômicos contra a ordem formalmente estabelecida, tentando desestabilizá-la, dissolvê-la. A justificativa psicológica do terrorista é, portanto, sempre alheia/externa a si mesmo, que, em conseqüência, não se considera um criminoso. O terrorismo sistemático recebeu um grande impulso ao término do séc. XVIII e desenrolar do séc. XIX, com a propagação de ideologias e nacionalismos seculares, depois da Revolução Francesa. Os seguidores e detratores dos valores revolucionários usaram o terrorismo a seguir das guerras napoleônicas. 24 Em 1793, já se falava dos atentados terroristas, realizados pelos jacobinos de Robespierre, pouco depois da Revolução Francesa. Quase um século depois, em 1881, o czar Alexandre Segundo, da Rússia, foi assassinado pela organização terrorista "Vontade do Povo". O terrorismo era então utilizado por agrupamentos políticos com um meio de ação cujo objetivo era derrubar o poder vigente em um determinado país. Também no sul dos Estados Unidos de América, o Ku Klux Klan, depois da derrota da Confederação Sulista na guerra o civil americana (1861-1865), intensificou o terrorismo contra os negros. Da mesma forma, na Europa do final do século de XIX, levaram-se a cabo, em favor do anarquismo, ataques terroristas contra altos líderes e até mesmo cidadãos comuns. Os estudos jurídicos penais dedicados à incidência de atividades terroristas contra sociedades civis não datam de hoje. Em 1898, Francisco José, imperador da Áustria, teve sua esposa Isabel assassinada por um anarquista italiano. Em 28 de junho de 1914, em Serajevo, seu sobrinho Francisco Fernando foi assassinado juntamente com a sua esposa Sophia por um jovem de origem bósnia, pertencente a uma sociedade secreta. O advento do liberalismo na Europa Ocidental implicou uma mudança de atitude por parte do estado de direito em relação aos delinqüentes políticos, sendo a França um exemplo claro dessa nova mentalidade. Com efeito, o criminoso comum passou a ser distinguido do criminoso político. Além disso, o novo estado liberal francês9 começou a impor, em tratados de extradição, o direito de asilo para o delinqüente político. Toda 9 NEGRI, Antonio & HARDT, Michael. Multidão: guerra e democracia na era do império. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 44-52. “O momento histórico era de embate entre os interesses de predomínio do estado: o rei ou o povo. O cidadão vivia reprimido por um sistema que o sufocava em nome da ordem proclamada em nome de Deus. A Revolução Francesa impôs a vitória ao cidadão. Todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido. A administração pública visa ao bem comum. Fora desse limite perde legitimidade. A grande vitória foi a liberdade consubstanciada nos direitos e garantias individuais. Eles é que representam na vida a real liberdade. Garantia é algo que caracteriza tutela diante de uma relação de poder. Em tal relação o direito penal passou a intervir com a finalidade de limitar o poder estatal. Ante essa textura renovada de estado, era possível limitar a autoridade estatal, o que oportunizou a especialização da disciplina do Direito Público, onde num dos pólos da relação de direito está o poder público. o direito penal é Direito Público por excelência: disciplina o direito que o estado tem de punir”. 25 essa distinção criminológica de caráter jurídico-político atingiu o seu ponto mais alto com a abolição da pena de morte para os crimes políticos em 1848. Ora, essa progressiva despenalização do delito político teve reflexos na figura do direito concernente ao asilo, em tratados de extradição.10 A partir da segunda metade do sec. XIX, com o aparecimento das primeiras ações violentas realizadas por militares anarquistas, o estado viu-se obrigado a repensar a penalização de delitos que, embora se intitulassem políticos, não podiam gozar da benevolência penal reservada aos tradicionais delinqüentes políticos. Para essa nova filosofia penal, foi decisivo o atentado realizado em 1855 por dois anarquistas franceses contra Napoleão III. Após o atentado, os seus co-autores refugiaram-se na Bélgica. O governo francês solicitou então a extradição desses criminosos ao governo belga. Mas ela foi negada pelos tribunais belgas ao abrigo da legislação em vigor, que não permitia a extradição por crimes políticos. Na seqüência dessa decisão judicial, foi elaborado um novo tratado de extradição franco-belga (22 de março de 1856), que introduziu uma cláusula de extradição que, pela sua importância na despolitização do terrorismo, passou, no futuro, a integrar outros tratados sobre essa matéria, exatamente sob a designação de cláusula belga. Nessa cláusula, estipulava-se que não seria considerado delito político, nem fato conexo com semelhante delito, atentado contra a pessoa de um chefe de estado estrangeiro ou membro de sua família. Assim, a tendência a uma progressiva despenalização do delito político foi sustada com a elaboração desse tratado, que estabelecia uma diferença entre crime político e ato de terrorismo, entendendo que, em relação aos primeiros crimes, a reação deveria ser mais branda; para os autores de atos de terror, entretanto, a resposta deveria ser dada à altura da violência praticada. A doutrina jurídica passou a desenhar, a partir de então, uma nítida e salutar diferença entre crime político e terrorismo, dando ao primeiro tratamento mais brando que aos crimes comuns; disso decorreu uma progressiva despenalização do delito político. 10 SARDINHA, José Miguel. O terrorismo e a restrição dos direitos fundamentais no processo penal. Coimbra, Coimbra Editora, 1989, p. 16. 26 No início do século XX, a válvula propulsora da primeira guerra mundial foi o atentado contra o arquiduque austro-húngaro Francisco Ferdinando, em 1914, morto em atentado assumido pelo grupo terrorista sérvio Mão negra. 11 Até então o terrorismo revolucionário era utilizado pelos grupos anarquistas e nilistas que atentavam exclusivamente para a ordem externa do estado no qual atuavam – na realidade o terrorismo internacional só reaparece recentemente, no período entre as duas grandes guerras.12 Os debates acerca do terrorismo internacional surgem realmente nas conferências internacionais para a unificação do direito penal a partir de 1927, mas, na realidade, as negociações não progridem. Somente na 6ª conferência, em Copenhague em agosto/setembro de 1935, é proposta a adoção de oito artigos, precedidos de um preâmbulo. Esse texto dispunha sobre a abertura, no código penal ou em lei especial, de uma secção ou capítulo intitulado “Dos atentados que criam um perigo comum ou um estado de terror”, seguindo-se de uma legislação que tipificaria esses crimes.13 E foi exatamente no período entre a primeira e a segunda guerra que o terrorismo ganhou dimensões internacionais, passando a ser visto como um fenômeno criminoso de interesse global. Mas o passo representativo aconteceu com a Convenção de Genebra sobre o assunto em 1937. 11 ROSA, Fábio Bittencourt da. Da vingança de sangue ao direito penal do inimigo. In: Derecho penal online (Revista electrónica de doctrina y jurisprudencia en línea, 2005, el 6/3/2005). Disponible en Internet: http://www.derechopenalonline.com). “Estava, portanto, criado o direito penal das garantias, que até hoje persiste como significativa conquista do povo contra um poder arbitrário. Não há liberdade individual sem limitação do poder do governante. Uma nova etapa era inaugurada: o direito penal não seria apenas instrumento para manter a paz social, mas também para regulamentar as garantias do indivíduo contra o poder de impor. Limite da atuação do delinqüente contra a sociedade e limite da atuação do estado para invadir e afetar a individualidade do acusado. Esse é o perfil do direito penal moderno, que só pôde tornar-se ciência no momento em que a norma ganhou referido conteúdo de limitação, disciplina da garantia. A grande virada da cultura ocidental em que valorizou-se a pessoa, colocando-a no mesmo nível axiológico do sistema constitui um bem da civilização que não pode ser destruído ou minimizado sem uma pesquisa séria e consciente sob o prisma político.” 12 PELLET, Sarah, Terrorismo e Direito: os impactos do terrorismo na comunidade internacional e no Brasil – perspectivas políticas-jurídicas – o desafio da comunidade internacional frente ao terrorismo. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.11. 13 PELLET, Sarah. Terrorismo e direito: os impactos do terrorismo na comunidade internacional e no Brasil – perspectivas políticas-jurídicas – o desafio da comunidade internacional frente ao terrorismo. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 11. 27 O movimento revolucionário russo, existente antes da segunda guerra, teve um componente terrorista forte. Não obstante, no decorrer do século de XX, grupos como a Organização Revolucionária Interna de Macedônia, o Ustashi Croata, e o Exército Republicano Irlandês levaram a cabo freqüentemente atividades terroristas, recebendo até mesmo apoio de governos como o caso de Bulgária ou da Itália e Alemanha sob os líderes fascista Benito Mussolini e nazista Adolfo Hitler. Aliás, foram nos regimes totalitários de Josef Stalin e Adolf Hitler que o terrorismo começou a desenhar os contornos do que hoje pode ser visto como o terrorismo transnacional. Embora até hoje não cessem os questionamentos sobre as bombas atômicas jogadas em agosto de 1945 pelos Estados Unidos sobre o Japão, em que mais de 170 mil civis perderam a vida num ataque que não tinha como objetivo vencer a guerra, mas fazer uma demonstração de força à União Soviética, o debate jurídico político em torno da criminalidade terrorista só voltaria a intensificar-se no final da década de 60, devido à realização de ações violentas por parte de grupos extremistas que, pela primeira vez, não visavam diretamente ao poder público, mas, sim, à população em geral, através de desvio de aviões e deflagrações de engenhos explosivos em aeroportos e estações ferroviárias. Vale destacar, entretanto, que o conceito de terrorismo, tal como está posto nos dias de hoje, é derivado de debate jurídico-político intensificado no final da década de 60 do século passado, com o aparecimento de ações violentas por parte de grupos extremistas. Já naquela época, com o surgimento desses grupos extremistas, começou ser defendida, no âmbito jurídico, a idéia da relativização dos direitos fundamentais, sob o argumento de que, enquanto valores constitucionais, os direitos fundamentais não são absolutos e nem ilimitados, pois a proteção de outros bens ou direitos pode depender, em situações extremas, da restrição de garantias que a própria constituição considerada fundamental. 14 14 PELLET, Sarah. Terrorismo e direito: os impactos do terrorismo na comunidade internacional e no Brasil – perspectivas políticas-jurídicas – o desafio da comunidade internacional frente ao terrorismo. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 11. “O quadro da criminalidade foi modificado a partir da segunda metade do século XX. Aquela espécie de delinqüência que existia, quando se discutia o direito penal clássico, e mesmo a teoria finalista de Welzel, não mais consistia o foco de preocupação do sistema repressivo 28 Na segunda metade do séc. XX, com a implantação de uma política global de dominação e com grande marginalização e exclusão provocadas pelo estado liberal, a violência foi-se tornando uma epidemia incontrolável. As guerras e a instabilidade econômica e política, sobretudo no chamado terceiro mundo, criaram uma geração de insatisfeitos. Radicais e extremistas arregimentaram, ao longo desse último século, uma infinidade de seguidores, responsáveis pela multiplicação de associações de cunho paramilitar que passaram a disseminar pelo mundo um tipo diferente e não ortodoxo de combate: trata-se de um sistema de guerrilha, primeiramente com finalidades políticas, mas que depois, como se comprovou, passou a se configurar no chamado crime organizado. Nessa direção, inúmeros estados investiram em armamentos e treinamentos específicos, transformando seus soldados em máquinas de matar, sem questionamentos ou arrependimentos. Países que se consideravam desenvolvidos, civilizados, apostaram no uso da guerra não convencional, adotando táticas de guerrilhas, formando pelotões de operações especiais e comandos, com utilização mesmo de armas químicas e bombardeio de civis como se fossem alvos militares.15 Assim, o século XX presenciou, de diversas maneiras, o crescimento do terrorismo do próprio estado, com a adoção de políticas de eliminação física de minorias étnicas, de adversários de um regime ou de seres que, por não produzirem para uma sociedade capitalista eram eliminados. Um exemplo é o regime racista da África do Sul, responsável por ações terroristas contra a maioria negra do país até o fim do apartheid, no início dos anos 90. Na América Latina, as ditaduras militares dos anos 60 e 70 promoveram o terrorismo de estado contra seus opositores, torturando e matando milhares de pessoas. No Oriente Médio, os palestinos de cidadania israelense e os habitantes dos territórios de Gaza e Cisjordânia foram segregados e sofreram ataques das forças armadas de Israel, entre 1967 e 1993. O terrorismo de extremistas formal. Com a vulgarização do uso do tóxico especializou-se a organização criminosa e recrudesceu a violência urbana. Por outro lado, a grandeza do movimento financeiro e das atividades comerciais e industriais fez com que se transferisse significativa parcela de poder às empresas. Na economia desenvolveu-se um novo ambiente do delito e com a dificuldade de combate aos crimes sofisticados o espaço vazio de poder cada vez mais foi ocupado pelos criminosos do colarinho branco, manipulando a realidade em especial pela instrumentalização das pessoas jurídicas para ludibriar o sistema. Isso o direito penal clássico desconhecia: organizações de delinqüentes com eficácia no crime transnacional (as organizações criminosas então existentes não tinham tal dimensão)”. 15 PELLET, Sarah. Terrorismo e direito: os impactos do terrorismo na comunidade internacional e no Brasil – perspectivas políticas-jurídicas – o desafio da comunidade internacional frente ao terrorismo. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p.287. 29 muçulmanos contra judeus de Israel, por sua vez, também vem assustando e matando pessoas inocentes, principalmente a partir da década de 80. Não obstante, somente após os anos 60, a comunidade internacional, frente à multiplicação do número de seqüestros de aviões, reatou a luta contra o terrorismo internacional. Esta recrudescência do terrorismo internacional, que, a partir de então, não fez mais que se confirmar, foi se diversificando e se intensificando.16 17 Um dos acontecimentos que fomentou essa relativização dos direitos fundamentais, já nos anos 70, foi ação de terroristas japoneses no aeroporto israelita de Lod, em 30 de março de 1972, matando 24 pessoas e ferindo 72. Esse fato alertou a sociedade para a formação desse tipo de criminalidade organizada, e para a ameaça que ações como essas representavam em um contexto social em que se ambiciona uma sociedade democrática, com total e irrestrita obediência ao estado de direito e aos direitos fundamentais do ser humano. Para Pellet, os atentados de Munique, no verão de 1972, serviram de agentes catalisadores para uma intervenção da Assembléia das Noções Unidas que, por sua vez editou a Resolução 3.034 (XXXVII), adotada em dezembro de 1972, encarregando um comitê especial de estudar a questão do terrorismo internacional, sem, todavia, chegar a grandes resultados. 18 Na Irlanda do Norte, uma lei de 1973 amplia os poderes de polícia do estado, restringindo sobremaneira os direitos fundamentais de suspeitos de terrorismo. A Inglaterra, em resposta a uma seqüência de ações terroristas, ocorridas em pubs de 16 PELLET, Sarah. Terrorismo e direito: os impactos do terrorismo na comunidade internacional e no Brasil – perspectivas políticas-jurídicas – o desafio da comunidade internacional frente ao terrorismo. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p.12. 17 ROSA, Fábio Bittencourt da. Da vingança de sangue ao direito penal do inimigo. In: Derecho penal online (Revista electrónica de doctrina y jurisprudencia en línea, 2005, el 6/3/2005). Disponible en Internet: http://www.derechopenalonline.com). “De outra banda, uma atividade empresarial extremamente complexa, que dava oportunidade à sonegação de dados com dano ao fisco, ao consumidor (direitos coletivos), ao concorrente, ao sistema financeiro, ao meio ambiente (interesses difusos), etc. O direito penal era desafiado. Então, certos dogmas foram minimizados. Por exemplo, no que se refere à autoria e culpabilidade, nos crimes empresariais cria-se uma presunção relativa com referência ao administrador da sociedade (mandato de determinação). Normatiza-se a responsabilidade criminal da pessoa jurídica. Surgem novas penas. Adapta-se o processo penal para ganhar eficácia na reação à nova criminalidade. Afeta-se o direito à intimidade com quebra de certos sigilos com base no postulado da proporcionalidade. Cogita-se de uma aplicabilidade da lei nacional extraterritorialmente para determinados crimes, porque se o delito não tem fronteiras, o direito penal deve agir pela mesma forma”. 18 PELLET, Sarah. Terrorismo e direito: os impactos do terrorismo na comunidade internacional e no Brasil – perspectivas políticas-jurídicas – o desafio da comunidade internacional frente ao terrorismo. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p.12. 30 Birmingham, em 21 de novembro de 1974, causando a morte de 20 pessoas e feriu outras 180, aprovou em 29 de novembro de 1974 – a "The prevention of terrorism (Temporary provisions) act of 1974”. A referida legislação possibilitava várias restrições de direitos fundamentais em na fase de averiguação dos suspeitos, inclusive de detenção prévia dos mesmos, sem a formação da culpa e o devido processo legal. Em repúdio a essas ações terroristas, em 27 de janeiro 1977, os estados membros do Conselho da Europa firmaram, na Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, a Convenção européia para a repressão do terrorismo. Mas as medidas adotadas para conter as ações terroristas não as fizeram cessar, tampouco foram suficientes para contê-las, passando os estados a cogitarem outras formas de coação mais eficazes para deter o terror. Dentro dessa idéia de contenção das ações terroristas, a Europa Ocidental, apesar de sua construção jurídica até então em sentido contrário, passou a admitir a restrição dos direitos fundamentais aos indivíduos envolvidos em ações terroristas. A Constituição Espanhola de 1978 já havia externalizado, em sua carta restrições a direitos e garantias individuais, a intenção de combater o terrorismo, inclusive com supressão de direitos e garantias individuais, tendo em vista a séria ameaça que representava o terrorismo à segurança do regime democrático. É nesse contexto que os contornos da doutrina do direito penal do inimigo começam a ser desenhados: a Constituição Espanhola de 1978, com a expressa relativização dos direitos fundamentais, inclusive com a mitigação do princípio da presunção de inocência, a possibilidade de escutas telefônicas, o controle de correspondências e a invasão de domicílios, abriu espaço para a consecução dessas medidas excepcionais em seu texto constitucional. A judicialização de tais atos ocorria a posteriori, para a verificação da legalidade da atuação das forças de segurança, realizada a título emergencial.19 19 ROSA, Fábio Bittencourt da. Da vingança de sangue ao direito penal do inimigo. In: Derecho penal online (Revista electrónica de doctrina y jurisprudencia en línea, 2005, el 6/3/2005) Disponible en Internet: http://www.derechopenalonline.com). “Por outro lado, a autoria e a culpa ganham conceitos peculiares, o que faz Silva Sánchez imaginar uma setorialização do direito penal, que Hassemer preferiu denominar de Direito de Intervenção. Para o autor espanhol esse direito especial ficaria reservado às hipóteses de pena privativa de liberdade. Outros sustentam a necessidade de administrativização do direito penal. Todo o drama reside no fato de conciliar um direito penal garantista com um direito penal 31 Além disso, já no final dos anos 70, o terrorismo ganhava um novo ingrediente, o religioso, com a ascensão dos muçulmanos xiitas no Irã, em janeiro de 79. Sob o comando do aiatolá Khomeini, os xiitas derrubaram a ditadura do xá Reza Pahlevi e implantaram um sistema que fugia à lógica dos dois blocos econômicos, liderados pelos Estados Unidos e União Soviética. A partir da revolução iraniana, foi implantado um sistema de governo guiado por convicções religiosas radicais e inflexíveis. Khomeini inaugurou a chamada "jihad" em nossos dias, isto é, a guerra santa contra o Grande Satã, representado pelo mundo não xiita. Daí, para a prática do terrorismo, foi um passo. O inédito nessa história era o caráter oficial do terror, assumido claramente pelo regime dos aiatolás. A primeira demonstração radical de Khomeini foi em novembro de 79. Com apoio do governo, estudantes iranianos invadiram a embaixada norte-americana em Teerã, fazendo 66 reféns. Eles queriam a extradição do xá Reza Pahlevi, em tratamento de saúde nos Estados Unidos. Foi o início de uma longa crise entre os dois países. Mesmo com a morte de Pahlevi, vítima de câncer, em julho de 1980, os estudantes não desocuparam a embaixada. O impasse prejudicou a campanha de reeleição do presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, que acabou derrotado pelo candidato republicano Ronald Reagan. Foram 444 dias de expectativa. Em 20 de janeiro de 1981, dia da posse do novo presidente dos Estados Unidos, os iranianos finalmente libertaram os reféns norte-americanos. Até hoje são obscuras as condições sob as quais o presidente Reagan negociou o fim da crise. Com a revolução no Irã e a resistência dos rebeldes afegãos, a “jihad” ficou conhecida no Ocidente e ganhou força junto à população muçulmana de todo o mundo. Na mesma linha de atuação, a República Federal da Alemanha, em sua lei fundamental de Bona, consagrou várias disposições fortemente restritivas aos direitos da Prevenção contra os riscos. As posições mais extremadas apregoam a teoria do risco, ou seja, no exercício de atividades perigosas os agentes ficariam submetidos à imputação em vista da tipificação de certas condutas. Seria a responsabilidade objetiva em decorrência da realização da conduta típica. O simples atuar em determinadas áreas acarretaria a assunção dos riscos da resposta penal. Essa maneira de solucionar o problema do risco tem explicação num estado ineficiente, sem condições de administrar a realidade de certas atividades, preocupado em criminalizar para agradar os eleitores, visando à eternização no poder e, em especial, carente de pessoal habilitado em razão de uma orientação neoliberal de configuração do estado Mínimo. Criminaliza-se porque não há como vigiar o cumprimento do dever de concretizar-se o cuidado mínimo. Como se vê, a ansiedade por proteção e assistência passa a prestigiar o caráter instrumental do direito penal em detrimento de seu perfil garantista. O que interessa é a segurança contra a criminalidade mais sofisticada, ainda que perca o cidadão seus parâmetros existenciais, com relativização da liberdade.” 32 fundamentais, sob o argumento da necessidade de realização de tais medidas como princípio mantenedor do estado democrático de direito. Adotou-se o conceito de democracia militante, que defende a idéia de que se deve assumir uma posição de defesa e não de indiferença política em relação a atos de terror, inferindo contra esse tratamento especial, no qual o respeito aos direitos fundamentais são relativizados frente ao dever do estado de assegurar ao cidadão um mínimo de seguridade jurídica. Ora, na medida em que os direitos fundamentais são relativizados para a realização de uma ponderação que tem sempre como norte o interesse público, justificase, segundo alguns autores, a intervenção do estado, mitigando esses direitos, diminuindo seu rigor formal, para alcançar o objetivo de assegurar a soberania e a segurança jurídica ameaçadas. É, aliás, nessa linha de raciocínio, que a constituição da antiga Alemanha Ocidental justifica o acolhimento da teoria funcionalista dos direitos fundamentais, teorizando no sentido de que as garantias oriundas dos direitos fundamentais só se justificam na medida em que levam à comunidade bem-estar social e a segurança jurídica. Dessa forma, devem as mesmas honrar o caráter público desses direitos, de forma a possibilitar, a intervenção estatal, em caráter excepcional, nas ocasiões em que esses direitos fundamentais são usados de abusivamente para camuflar atividades criminosas. No começo dos anos 80, o Líbano tornou-se palco de inúmeros atentados. Várias facções disputavam o poder, apoiadas por países vizinhos, especialmente Síria e Israel. A existência de áreas de refugiados palestinos na capital Beirute aumentava a tensão e o clima de guerra civil. Uma das organizações acusadas com mais freqüência de terrorismo era a OLP. Na tentativa de capturar ou eliminar o líder Yasser Arafat e destruir bases militares palestinas, forças israelenses invadiram o Líbano, em junho de 82. Durante vários dias, a capital libanesa transformou-se num inferno. Milhares de civis foram mortos, entre eles mulheres, velhos e crianças. Os israelenses não encontraram Arafat, mas expulsaram a OLP e deixaram o Líbano em ruínas. Em setembro de 82, falanges cristãs libanesas, apoiadas por Israel, atacaram os campos de refugiados de Sabra e Chatila, nos arredores de Beirute. Mais de 2.500 civis palestinos e libaneses desarmados foram mortos. O massacre chocou a opinião pública internacional. 33 Foi nesse clima extremamente tenso que se multiplicaram os grupos terroristas no Líbano nos anos 80. A ação terrorista mais famosa dessa época aconteceu em 83, quando dois atentados simultâneos mataram mais de 250 fuzileiros navais americanos e mais de 50 soldados franceses, em Beirute. Mas os xiitas de Khomeini e os militantes de grupos fanáticos, como o Hamas e o Hezbollah, não limitaram seus ataques ao Oriente Médio: em nome da guerra santa, eles organizaram vários atentados na Europa e nos Estados Unidos. Na Itália, uma lei de 6 de fevereiro de 1980 estabeleceu medidas urgentes para a tutela da ordem democrática e da segurança pública, que contemplavam alterações em disposições do código penal e de processo penal, limitando os direitos de defesa dos acusados de envolvimento em atividades criminosas e possibilitando a investigação sumária, destituída de contraditório. A legislação portuguesa, por exemplo, embora não contemple explicitamente restrições ao direito de defesa àquele que estava sujeito à averiguação por acusação de ações terroristas, adotou algumas das medidas para coibir ao avanço da criminalidade organizada, que, em princípio, poderiam ser vistas como medidas restritivas de direitos fundamentais. Nessa direção, a lei portuguesa dispõe sobre a comunicação entre o preso e o seu advogado, que, em casos especiais, deve ocorrer à vista de um funcionário da vigilância; sobre a possibilidade de o juiz de instrução intervir nos contatos entre o réu e o seu defensor, quando tiver fundadas razões para crer que tal intervenção se afigura necessária para o esclarecimento da verdade; sobre a possibilidade de o juiz, em situações necessárias, autorizar ou ordenar a apreensão da correspondência entre o réu e o advogado. Observe-se que, dentro da estruturação formal de um estado de direito, as intervenções do estado estão sempre atreladas ao exercício dos imperativos legais e à obediência aos princípios fundamentais; então, hão de perpassar, por essas intromissões na esfera privada dos cidadãos, o dever de obediência à reserva legal. Por outro lado, em um estado que pretende o mínimo de intervencionismo aos direitos e garantias fundamentais, a burocracia instrumental de apuração da responsabilidade penal, muitas vezes, não consegue dar respostas rápidas o suficiente para a criminalidade organizada, que se vale do estado de direito para fomentar o exercício da violência. Assim, a 34 contenção da discricionalidade e abuso de poder do estado, através do exercício dos direitos e garantias individuais, oscila entre proteger indiscriminadamente a todos e, nesse caso, corre o risco de assistir com demora os cidadãos; ou limitar os direitos em nome da segurança da maioria do povo.20 Não obstante tudo o que já foi relatado, a verdade é que o mundo ocidental vemse posicionando de forma bastante ambígua frente ao terrorismo. Em 1993, Mandela recebeu o Prêmio Nobel da Paz. Mas outros terroristas também receberam honrarias da Fundação Nobel como Menachem Begin e Yasser Arafat. Begin e Arafat dedicaram a juventude à luta pela criação de um estado para o seu povo. Ambos usaram métodos terroristas. Explodiram bombas, mataram civis e espalharam pânico. Ambos conseguiram chamar a atenção da comunidade internacional graças à violência, mas acabaram sendo líderes de seus povos e abandonaram os métodos terroristas, sendo então agraciados com o Nobel da Paz por conseguirem uma trégua no conflito que ajudaram a começar. Begin liderava um grupo terrorista judaico com a finalidade de expulsar os ingleses da Palestina e criar o Estado de Israel. Acabou tomando-se primeiro-ministro do país e ganhou o Nobel de 1978, pelo acordo de paz com o Egito. Dessa forma, se, no direito internacional contemporâneo, existem diversas convenções internacionais multilaterais que objetivam a repressão e combate ao terrorismo – a maioria delas sobre a égide das Organizações das Nações Unidas; outras, como proposição da Agência Internacional de Energia Atômica – é certo que elas não se tem mostrado suficientemente eficazes. Todos esses instrumentos jurídicos internacionais que se encontram em vigor – Convenção para a Repressão do 20 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério / Ronald Dworkin; tradução e notas Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002 “Para o ilustre doutrinador Ronald Dworkin, os princípios são normas imediatamente finalísticas, que estabelecem um fim a ser atingido, ou seja, a idéia que exprime uma orientação prática do conteúdo pretendido, trata-se de mandamentos constitucionais passível de otimização. Ainda, segundo Dworkin a diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão, pois se duas regras estão em conflito, uma suplanta a outra em virtude de sua importância maior, onde uma delas não pode ser válida”. 35 Apoderamento Ilícito de Aeronaves, assinada em Haia, em 1970; Convenção para a Repressão de Atos Ilícitos contra a Segurança da Aviação Civil, assinada em Montreal, em 1971; Convenção sobre a Prevenção e Punição de Crimes contra Pessoas que gozam de proteção internacional, inclusive agentes diplomáticos, adotada pela AssembléiaGeral das Nações Unidas, em 1973; Convenção Internacional contra as Tomadas de Reféns, adotada também pela Assembléia-Geral das Nações Unidas, em 1979; Convenção sobre o Proteção Física dos Matérias Nucleares, assinada em Viena, em 1980; Protocolo para Repressão de Atos Ilícitos de Violência nos Aeroportos que prestem Serviços a Aviação Civil Internacional, complementa à convenção para a repressão de atos ilícitos contra a segurança da aviação civil, assinado em Montreal, em1988; Convenção para a Supressão de Atos Ilegais contra a Segurança da Navegação Marítima, celebrada em Roma, em 1988; Protocolo para a Supressão de Atos Ilícitos contra a Segurança das Plataformas Fixas situadas na Plataforma Continental, celebrado em Roma, em 1988; Convenção Internacional para a Supressão de Atentados Terroristas a Bomba, adotada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas, em 1997; Convenção Internacional para Supressão do Financiamento do Terrorismo, aceita pela AssembléiaGeral das Nações Unidas, em 1999 – não têm respondido às necessidades de segurança e proteção do cidadão comum. Em assim sendo nada justifica a “guerra preventiva” (nos termos em que a mesma está dotada) organizada pelos Estados Unidos que empreendendo e motivando toda a sua angústia e sua sede de expansão imperialista contra alvos civis indeterminados acaba por se transformar também na maior nação terrorista que rompe totalmente com o princípio da legalidade e da dignidade da pessoa humana. Por todo dito analisaremos em separado as conseqüências em termos globais da primeira guerra do séc. XXI: o ápice da violência generalizada e do terrorismo entre nações. 21 21 GIACOMOLLI, Nereu José. Função Garantista do Princípio da Legalidade, Revista Ibero Americana de Ciências Criminais, ano 1, n 0, maio/agosto de 2000, p.16 “ o significado material do princípio da legalidade está na própria evolução histórica do princípio, vinculando-se a limitação do exercício do poder, à divisão das funções públicas entre os poderes do Estado, ao pacto social que sustenta politicamente a convivência humana e à soberania popular, legitimadora das normas penais” 36 1.2 O ápice do terrorismo no séc. XXI Para além das resoluções do Conselho de Segurança e da Assembléia Geral das Nações Unidas, condenando pontualmente atentados terroristas específicos, foram necessários os atentados de 11 de setembro de 2001 contra o World Trade Center e Pentágono, em Washinton D.C., para afirmar a vontade da comunidade internacional como um todo de agir contra esse flagelo de maneira geral e não mais de forma compartimentada e especializada. Dessa forma, a história do terrorismo mudou completamente no início do terceiro milênio, com a ação terrorista de 11 de setembro de 2001, quando o terror assumiu o rosto de Osama bin Laden. Osama bin Muhammad bin Awad bin Laden, nascido em Riad em 1957, é o 17º dos 52 filhos de um rico construtor civil da Arábia Saudita, Muhammad bin Laden. O terrorista pertence a uma família abastada; seu pai tratava-se do empresário da construção civil mais bem relacionado dos países árabes, conseguindo, inclusive, contratos de empreitada milionários com os Estados Unidos. A sua empresa construiu palácios para a família real e ganhou contratos tão importantes como a auto-estrada Medina-Jeddah e a manutenção das mesquitas de Meca e Medina. O construtor também não descuidava os contatos com os Estados Unidos da América e um dos irmãos de Osama chegou mesmo a ser sócio de uma empresa de exploração petrolífera fundada por George W. Bush, que viria a fracassar. A sua empresa de construção ainda é a maior da Arábia Saudita, havendo faturado mais de 10.000 milhões de dólares em 2002. Osama herdou uma fortuna, avaliada por um porta-voz da família, entre os 300 milhões e 600 milhões de dólares. Osama descrito por professores ocidentais era tido como um jovem discreto, vestido à ocidental e sem barba. Aos 22 anos, quando a URSS invadiu o Afeganistão, Osama bin Laden, aconselhado pelo chefe dos serviços secretos sauditas e ajudado pela fortuna da família, começou a treinar combatentes para lutar contra os soviéticos no Afeganistão. Quando Osama bin Laden decidiu lançar-se na luta para expulsar os soviéticos do Afeganistão, em 1979, transferiu para este país os seus negócios e levou com ele os empregados e a maquinaria pesada das suas empresas de construção. 37 A partir de então, Osama bin Laden organizou um programa de recrutamento em todos os países muçulmanos, levado a cabo por uma organização que criou com a ajuda de Abdallah Azzam, líder da Irmandade muçulmana palestiniana: a Maktab alKhidamat (MAK - Services Office).A MAK abriu escritórios de recrutamento por todo o mundo, incluindo os Estados Unidos e a Europa. Com a expulsão da URSS do Afeganistão, uma grande parte dos mudjahidin regressaram aos seus países, exportando a ideologia islâmica fundamentalista e levando consigo a retórica da violência. Mas os campos de treino continuaram a operar e a fornecer guerrilheiros para os conflitos que os solicitavam: Somália, Bósnia, Kosovo, Tchetchénia. Após a vitória sobre os soviéticos, em 1989, Bin Laden regressou à Arábia Saudita. Os seus apelos à jihad contra os Estados Unidos e as suas críticas ao poder saudita levaram o governo desse país a expulsá-lo em 1991 por "comportamento irresponsável" e a retirar-lhe a nacionalidade em abril de 1994. Em 7 de agosto de 1998, no oitavo aniversário da chegada das tropas americanas à Arábia Saudita, após a invasão do Kuwait, ocorreram os atentados contra as embaixadas dos Estados Unidos em Nairobi (capital do Quénia) e Dar-es-Salam (capital da Tanzânia), que mataram 224 pessoas. Depois disso, os Estados Unidos começaram a avaliar devidamente o risco representado por Bin Laden. O plano de guerra global de Bin Laden remonta a 1987, quando o milionário saudita "teve uma visão", segundo se afirma num artigo publicado pelo New York Times. "O momento tinha chegado, disse aos amigos, de iniciar uma "jihad" [guerra santa] global contra os governos seculares corruptos do Oriente Médio e as potências ocidentais que os apóiam”. Os atentados terroristas de 11 de setembro invadiram o imaginário americano, despertando em toda a nação americana um sentimento de insegurança incomum. Estabeleceu-se a partir de então a seguinte ideologia: todos aqueles que estivessem contrários aos interesses americanos deveriam ser tratados como inimigos de guerra. Essas sementes de uma ansiedade que se evidencia nos códigos de alerta adotados pelo governo americano, serviu para legitimar a proposta americana, através de seus governantes, de levar a cabo uma guerra imperialista messiânica. Afirma Barber que, ao confrontar o terrorismo, seja desencadeando guerras no exterior ou organizando a segurança interna. 38 “os Estados Unidos acabaram por fazer surgir, como por mágica, o próprio medo que constitui a arma principal do terrorismo; os líderes americanos estão implementando uma militância irresponsável que visa estabelecer um império americano do medo mais terrível do que qualquer coisa que os terroristas poderiam ter concebido, (...) querendo chocar e espantar tanto inimigos quanto amigos para levá-los a uma submissão total, a nação que já foi celebrada como o arauto da democracia tornou-se hoje a 22 23 potência beligerante que todos temem”. Os atos do estado americano que submeteram a população global, vão desde guerras e torturas de inimigos até desrespeito às convenções internacionais e ao pactuado com a ONU. Eles colocaram o governo americano oscilando entre duas estratégias: num primeiro momento apelou para a legalidade e o respeito às leis; porém, tentando maquilar sua vulnerabilidade e impotência frente aos atentados de 11 de setembro, passou a buscar suspeitos, atropelando os procedimentos judiciais com atitudes arbitrárias. Com isso, destruiu, de um só solavanco, toda a construção em torno da democracia americana, invocando para si o direito de tomar iniciativas unilaterais, desencadeando guerras preventivas, forçando mudanças de regime em outros países e minando, assim, o quadro internacional de cooperação e o império da lei dos quais foi o principal arquiteto, e que, aliás, representa o único meio de superar a anarquia terrorista. 24 22 BARBER. Benjamin R. O império do medo. Rio de janeiro: Record, 2005. p.75. BARBER. Benjamin R. O império do medo. Rio de janeiro: Record, 2005. p.78. 24 BARBER. Benjamin R. O império do medo. Rio de janeiro: Record, 2005. p.31 “Desde a epidemia de Aids ao aquecimento global, desde os monopólios da mídia global aos sindicatos internacionais do crime, todas as características do mundo interdependente atual demonstram que os Estados Unidos precisam dirigir o olhar para além das suas fronteiras; em vez disso, olham para dentro. Quando contemplam o mundo exterior, é para escolher, com mirada ameaçadora, alvos ‘inimigos’ definidos nos termos de uma enganosa guerra contra o terrorismo ou para selecionar quixotescamente ‘estados parias’ que servem para tomar o lugar de terroristas individuais difíceis de localizar e destruir. Embora seja um ‘modelo’ de sociedade democrática, os Estados Unidos agem freqüentemente com um desdém plutocrático diante das exigências de igualdade global e denunciam um obscuro ‘eixo do mal’ enquanto, ao mesmo tempo ignoram um óbvio eixo da desigualdade. Decidiram seguir uma estratégia de segurança nacional alicerçada no conceito de guerra preventiva, quando as circunstâncias estão claramente pedindo que seja seguida, o que chamo de segurança nacional alicerçada no conceito de guerra preventiva, quando as circunstâncias estão claramente pedindo que seja seguida o que chamo de estratégia de ‘democracia preventiva’. Apesar de se serem o protótipo de uma sociedade multicultural, os Estados Unidos demonstram impaciência diante da diversidade cultural ou da heterogeneidade religiosa no mundo, sobre tudo quando elas parecem ameaçar os ideais americanos ou se situam fora do âmbito de sua imaginação. Os Estados Unidos acreditam que, sob a mira das armas, podem impor a democracia a inimigos subjugados, ao mesmo tempo em que apóiam ditaduras em países considerados amigos; julgam que mercados privatizados e consumismo livre de freios democráticos constituem os instrumentos para a criação da democracia; enfim, supõem que outros países possam construir um edifício democrático da noite para o dia importando instituições que os americanos levaram séculos para desenvolver. A atual política de Washington para a guerra e para a paz e que visa derrubar tiranias e estabelecer democracias num conhecimento insuficiente das conseqüências da interdependência e das características de uma democracia. Essa política não é capaz de perceber que fomentar um clima de medo acaba resultando precisamente na instauração de um império do medo inimigo tanto da segurança 23 39 Todo o poderio bélico dos Estados Unidos e essa ideologia expansionista e imperialista faz do messias salvador também alvo; mais forte, mas igualmente vulnerável, odiado por aqueles que salva (a Coréia do Sul tem demonstrado recentemente menos afeição aos Estados Unidos do que à própria Coréia do Norte, sua inimiga). O poderio sem precedentes dos americanos não exclui assim uma certa vulnerabilidade, pois os Estados Unidos empreendem esforço desmedido para manter suas conquistas, considerando inimigos todos aqueles que se opõem à administração do estado americano.25 Para as famílias americanas instaladas no tripé de segurança (tradição, família e propriedade) do capitalismo, cujos filhos olhavam o mundo na soberba ótica da ausência de privações materiais e com a consciência de seus inúmeros privilégios frente aos países do terceiro mundo, o medo desencadeado pelo terrorismo foi um golpe fatal. Não se pode esquecer que o medo é uma arma muito mais potente contra os que vivem num clima de esperança e prosperidade do que contra os que vivem num mundo de desespero e não têm nada a perder. O atentado de 11 de setembro demonstrou ao mundo que os Estados Unidos possuem capacidade bélica para deslocar tropas para qualquer parte do planeta e travar várias guerras simultaneamente, mas não conseguem proteger a sede do Pentágono em Washington ou a catedral do capitalismo em Manhattan, porque a interdependência permite que os fracos utilizem em seu favor a própria força do adversário. É necessário considerar, por outro lado, que inimigos representados por grupos terroristas, por não terem lugares precisos de atuação, por estarem sempre em constante deslocamento, são sempre menos atacáveis. O poderio americano está instrumentado para combater um alvo preciso com território circunscrito. Seus exércitos não se quanto da liberdade”. 25 BARBER. Benjamin R. O império do medo. Rio de janeiro: Record, 2005. p.35 “Gastando mais em defesa nacional (350 bilhões de dólares, sem contar os gastos com a guerra no Iraque, e esses números tendem a subir) do que o conjunto dos 15 maiores gastadores mundiais nesse setor (os orçamentos de defesa nacional da totalidade dos aliados americanos somam 220 milhões de dólares) e dispondo de armamentos de alta tecnologia que nenhum outro país consegue ter, os Estados Unidos podem com facilidade arrasar qualquer nação que julguem ser inimiga. São formidável adversário, pronto para eliminar um terrorista qualquer em um remoto deserto, por meio de um míssil disparado de uma aeronave Predador não-tripulada, ou pronto para derrubar um regime hostil mediante ameaças de índole militar, ou ainda para desfechar em qualquer canto uma guerra preventiva antes mesmo que qualquer ato de agressão tenha sido cometido contra os interesses americanos”. 40 encontram, entretanto, preparados para lidar com um terrorista cujas batalhas em prol do Islã são vencidas não pelas armas e sim o medo provocado no coração do inimigo. O fato de os terroristas não possuírem algo a perder, pois são destituídos de alvos de valor uma vez que estão engajados exclusivamente ao seu fanatismo, torna-os capazes de tudo. 26 27 O estado americano posicionou-se dentro da lógica da autodefesa por antecipação, atirando primeiro para perguntar depois, abrindo o caminho para o fomento de mais revoltas daqueles de não têm nada a perder e instituindo um precedente para que outras nações busquem justificativas para suas próprias lógicas excepcionalistas. Abandonando a prudente lógica do contrato social e do respeito à lei, desfez os alicerces da democracia mundial e norte-americana. A tática reativa para defender o território americano dos atentados terroristas só poderia ocorrer mantendo-se a liberdade que é o alicerce político e estatal americano, isto é, adotando-se um modelo de procedimento que servisse para qualquer nação soberana e democrática na busca de garantia para a sua própria segurança. Em nome de ações tidas por arbitrárias ou destituídas de legalidade democrática, os Estados Unidos intervieram na política e na soberania de vários países 26 É notório que um ser humano que tem frustrado todas as suas necessidades básicas estará menos voltado para o mundo externo e mais voltado para si mesmo para satisfaze-lo. Privado da satisfações básicas não conseguindo suprir o seu lar das necessidades básicas, certamente viverá em constante frustração tendo maior resistência a mudanças, menos companherismo, mais agressividade e consequentemente maior vulnerabilidade para o delito. Em países subdesenvolvidos onde residem as maiores células terroristas isto é facilmente detectável, pois em classes menos abastados deste contexto social, falta-lhe o suprimento das necessidades básicas do indivíduo e as famílias estão desestruturadas pelas mortes dos seus membros e pelo clima de guerra civil advindo da pobreza e da privação. Ressalte-se que este indivíduo desorientado pela falta de paradigmas e esperanças e priva das necessidades básicas para a sua subexistência em crise de identificação agrupa-se com outros igualmente sem norte criando micro culturas de oposição ao mundo a instituído inclusive a lei e a ordem, fechando-se de forma hermética dentro de seu próprio grupo. Cometendo comunitariamente atos ilícitos, o agrupado em subgrupos culturais ficam espiados da culpa que poderiam incidir sobre os mesmos pelo descumprimento da lei. 27 O indivíduo pode neutralizar os valores normativos: a) através de tradições subterrâneas que, presentes na cultura convencional nutrem as subculturas desviadas; b)mediante técnicas de utilizações escusas legais, tais como a ocultação de responsabilidade , do dano , da vítima , da generalização das injustiças do sistema, da idealização das lealdades superiores. Da mesma maneira como há diferentes acessos aos meios legítimos para alcançar as metas comuns, existem também vários ilegítimos e frustrações distintas. Se os membros dos grupos delinqüentes buscam ganhos materiais, a resultante será uma subcultura delinqüente, que busca seus fins através da apropriação indébita de bens materiais por meios ilegítimos, enquanto a subcultura do conflito, a tônica será a violência. A obtenção do prestígio mediante o emprego da força sem paira o sentimento haver fracassado por meios legítimos, a violência e a internalização da frustração , o refúgio no consumo de drogas torna-se )se ainda não o é) a tônica da delinqüência. 41 antidemocráticos, direta ou indiretamente, imbuídos de seu papel messiânico de propagar a democracia a qualquer preço. Porém, a democracia como afirma Barber, não pode ser imposta sob a mira de um fuzil, não cresce das cinzas da guerra, mas, sim, de uma história de lutas, atividades cívicas e desenvolvimento econômico.28 29 A história de uma Alemanha democratizada e de um Japão liberalizado, surgida das cinzas de tiranias vencidas na segunda guerra mundial, é tocante e exemplar. É fácil entender que os defensores da tese de reconstrução de nações como o Afeganistão e o Iraque se inspirem nela. Mas vale lembrar que se trata da história de fracassadas nações agressoras, desiludidas após cinqüenta anos de guerras e tendo que enfrentar, sozinhas, o mundo do pós-guerra (o mar em que suas ideologias tóxicas outrora flutuavam secou e desapareceu). É uma história de cooperação, apoio econômico maciço, extensa educação cívica, envolvimento a longo prazo (soldados americanos ainda estão posicionados em ambas as regiões, anos após o fim da guerra), compromissos com a organização de instituições internacionais e a criação de um sistema de leis internacionais como uma estrutura para a recuperação econômica, desenvolvimento cívico e democratização. Essa foi, de fato, a estrutura que possibilitou os sucessos da Europa e da Ásia no pós-guerra. 30 A história da Europa é, na verdade, exclusivamente a história da democracia preventiva, o que pode explicar a atual antipatia que os europeus sentem em relação à fé 28 BARBER. Benjamin R. O império do medo. Rio de janeiro: Record, 2005. p. 37 “A guerra preventiva direcionada contra estados é um genitor improvável da democracia. A democracia também não se deixa construir com material exportado por um exército americano ‘liberador’, ou à sombra de firmas do setor privado americano e organizações não-governamentais (ONGs). As empresas inicialmente convidadas a concorrer para a reconstrução do Iraque incluíram a Bechtel (e uma filial que pertence em parte à ala ‘respeitável’ da família bin Laden); Parson Corporation, Washington Group Internacional, assim como Kellogg, Brown & Root, subsidiária da Halliburton (que já foi administrada pelo atual vice-presidente da República, Dick Cheney), construtora de celas para os prisioneiros na baía de Guantánamo Bay. A democracia se desenvolve lentamente, e requer esforços das populações locais, aprimoramento de instituições cívicas nacionais e um espírito de cidadania cuidadosamente cultivado que depende enormemente do setor educacional. As empresas privadas são boas para auferir lucros, mas confiar nelas para alcançar finalidades públicas é uma contradição que foi bem caracterizada por Lawrence Summers, em 1995, quando disse ao Congresso: ‘Por cada dólar de contribuição do governo americano ao Banco Mundial, as firmas americanas receberam 1 dólar e 35 centavos em contratos de serviços’28. Um cínico poderia acrescentar que por cada dólar doado às campanhas eleitorais do Partido Republicano, as empresas amigas podem esperar ganhar 1 milhão com os contratos de reconstrução do Iraque.” 29 BARBER. Benjamin R. O império do medo. Rio de janeiro: Record, 2005, p.39. 30 FREI, Norbert. Adenauer’s germany and the nazi past: the politics of amnesty and integration. Nova York: Columbia University, 2003, p. 47. “Infelizmente, é também a história do clima de medo da Guerra 42 dos americanos na guerra preventiva. As homenagens da boca para fora da administração Bush ao Plano Marshall só ganharão credibilidade quando se traduzirem em medidas concretas, como a designação de pessoal para as tarefas indicadas, a dotação de verbas para o seu financiamento, a disposição para consumir o tempo que for necessário para atingir os objetivos. Mas nada disso acontece. A democracia preventiva empregada como doutrina estratégica precisa ter dois componentes de vital importância: primeiro, um componente militar e de inteligência ligado a uma guerra preventiva dirigida contra não-estados. Essa forma limitada de guerra preventiva visa e destrói exclusivamente alvos terroristas, isto é, agentes, células, redes, organizações, bem como bases de treinamento e de guarda de armamentos. Pode haver dúvidas sobre que grupos ou indivíduos devem ser considerados terroristas, mas seja como for, a missão de persegui-los não leva a violar a soberania de nenhum estado independente. O segundo componente, de alcance global, diz respeito à construção propriamente dita da democracia – nele se incluem projetos como Civworld, que promulgam a democracia preventiva. O Civworld (e muitos outros programas semelhantes) concentra-se na criação de condições dentro dos estados, ou entre eles, que promovam o crescimento de instituições democráticas no plano interno, bem como instituições democráticas globais, operando no contexto do relacionamento entre os estados. A guerra preventiva, que evita tomar estados como alvo, obedece à lógica da prevenção tal como ela foi inicialmente concebida – contra mártires desvinculados de estados, e todos os indivíduos e organizações terroristas que, por seu comportamento, se colocaram em estado de guerra com os Estados Unidos e/ou seus aliados. Rigorosamente falando, a guerra preventiva, nesse contexto, é mais defensiva do que preemptiva. Ela é sempre dirigida contra um inimigo declarado – os terroristas – e nunca contra protagonistas considerados culpados por associação crescentemente remota; nunca, por exemplo, contra países que podem ter contribuído de alguma forma para patrocinar ou apoiar terroristas, e/ou financiá-los ou abrigá-los, a não ser que tais atividades constituam verdadeiros atos de guerra (por exemplo, o fornecimento de arma nuclear a um grupo que planeja usá-la contra os Estados Unidos). Quando terroristas são Fria e do perdão rapidamente concedido a dezenas e milhares de ex-dirigentes nazistas de médio escalão, oficiais, juízes e administradores integrados a nova Alemanha ‘democrática.”. 43 atacados no território de um país inamistoso (ou mesmo um país amigo, como por exemplo, quando um comboio terrorista em trânsito no Iêmen foi atingido por um foguete americano), deve ser feito o máximo esforço para respeitar a soberania do país em questão e tratar o episódio como um caso isolado. Idealmente, o melhor seria obter prévia autorização das autoridades locais, mas isso nem sempre é viável. Essa tática efetivamente exime o país cuja integridade territorial foi violada de responsabilidade pelo terrorista que estava sendo buscado, o que é exatamente o contrário do que faz a guerra preventiva dirigida contra estados. A presunção é que o terrorista internacional que age no território de um estado está agindo fora dos limites da soberania desse estado e, portanto, torna-se um alvo propício a ser legitimamente atingido. Essa tática se fundamenta na ilusão, na qual as duas partes acreditam, de que um ataque de precisão cirúrgica não constitui uma afronta à soberania do país. É mediante ilusões desse tipo que a legitimidade e a legalidade são sustentadas. Mas, essa tática, embora suscite dúvidas sobre sua legitimidade, é preferível à guerra preventiva contra estados soberanos. Ela pode ser chamada de opção Osirak, em alusão ao ataque isolado e controverso de Israel contra o reator nuclear de Osirak no Iraque, em 1981. Aquela foi uma operação de legitimidade discutível, mas, por ter sido limitada e visado uma instalação apta a produzir, de fato, armas nucleares de destruição em massa, além de ter tido claramente a finalidade de eliminar uma ameaça e não agredir um país, permitiu aos israelenses se saírem relativamente bem do episódio. Um exemplo relevante foi quando os Estados Unidos descobriram, no início de 2002, a existência de uma célula terrorista do grupo Ansar al-Islam, operando no Norte do Iraque, cujos executivos (incluindo o perigoso Abu Mab-Zarqawi) tinham sido vistos em Bagdá e também na Síria, Irã e outros países vizinhos. Os Estados Unidos tinham duas opções. Em conformidade com a estratégia de guerra preventiva contra estados, o secretário Powell, em seu pronunciamento no Conselho de Segurança em fevereiro de 2003, valeu-se da descoberta como argumento para fortalecer o caso de uma guerra preventiva contra o Iraque. Uma resposta mais apropriada e conforme com uma estratégia de guerra preventiva contra não-estados teria sido atacar o acampamento de Khurmal no Norte do Iraque (região, aliás, que não estava sob controle de Saddam Hussein). Mais de um ano antes, o presidente Bush tinha falado da futilidade de mandar foguetes de alto custo contra tendas vazias no deserto. Não obstante, o único meio de 44 garantir efeitos seguros para uma guerra contra o terrorismo é selecionar as tendas certas, antes de seus ocupantes escaparem. De qualquer forma, Ansar al-Islam era o inimigo real, e seu campo de treinamento o alvo apropriado, e não os vários governos em cujos territórios os executivos do grupo transitavam, à procura de tratamento médico, contatos ou financiamento, e que poderiam incluir até governos amigos ou aliados dos Estados Unidos. Quando, afinal, o acampamento em Khurmal foi conquistado, durante a guerra com o Iraque, seus supostos ocupantes terroristas já tinham fugido. A guerra preventiva que visa a entidades não-estatais, é a única modalidade capaz de justificar a incursão até os confins da legitimidade – e deve-se consistir normalmente em atividades de coleta de informações e operações policiais (que foram os elementos mais positivos da campanha antiterror do presidente Bush depois do 11 de setembro). Representa o componente militar a curto prazo de uma estratégia da democracia preventiva que trate o terrorismo como um parasito autônomo e móvel, vivendo no organismo de um hospedeiro – voluntário ou involuntário –, mas não dependente dele. Matar o hospedeiro não afeta o parasita, a não ser na medida em que o obriga a procurar outro hospedeiro. O que se deve fazer é ou isolar o parasita e destruílo (guerra preventiva antiterror), ou tornar o hospedeiro inóspito. A democracia preventiva tem por meta restaurar a saúde do corpo infectado do hospedeiro e torná-lo contra-indicado ao parasito. Suas táticas mais importantes a longo prazo são de ordem cívica, econômica, cultural e diplomática. Essa abordagem visa a, com o tempo, compor democracias interagindo num mundo democrático. Um mundo de democracias civicamente sadias seria um mundo sem terror, cujas relações internacionais, econômicas, sociais e políticas fossem reguladas democraticamente, estando relativamente livre de profundas desigualdades e da angustiante miséria, o que o tornaria menos vulnerável à violência sistemática. O foco de uma estratégia de segurança nacional baseada na doutrina da democracia preventiva – e o padrão pelo qual ela é medida – deve ter como objetivos, primeiramente a segurança nacional, seja dos Estados Unidos, ou de qualquer outro país. Em segundo lugar, vem a questão da segurança dos outros; em terceiro, os valores e normas que definem a democracia na melhor das circunstâncias (seja a democracia 45 americana, ou não), bem como as normas de um sistema legal internacional que seja também justo (espera-se que os dois aspectos sejam, de algum modo, comensuráveis). Esses três tipos de objetivos devem ser harmônicos, mas, mesmo que não o sejam, o ponto referencial central de qualquer política de defesa nacional tem de ser a segurança e, não, alguma metáfora para valores como justiça e liberdade, que, em si mesmos, não caracterizam a segurança. Não se pode esperar que nenhuma nação, por mais idealista que seja, se coloque em risco, e menos ainda que cometa suicídio em nome de seus valores, por mais venerados que sejam. A democracia preventiva obedece a esses critérios estritos. Seus méritos são evidentes, quando avaliados em conformidade com regras retiradas das lições da história e com os argumentos da lógica da guerra preventiva, utilizados para justificar a democracia preventiva, pois a doutrina da guerra preventiva dirigida contra estados vem revelando falhas cujas conseqüências são catastróficas. A conotação contemporânea do conceito de terrorismo, formulada no século XX, presenciou o aumento de diversas formas de violência dentre elas o terrorismo impetrado contra os estados, nos quais foram adotadas políticas de insurreição contra a ideologia vigente com implicações na eliminação física de determinadas minorias étnicas, de adversários de um regime, de grupos e líderes do poder contrários aos interesses destes grupos criminosos. À guisa de exemplo, pode-se citar o regime racista da África do Sul, e as ações terroristas impetradas contra a maioria negra do país com objetivo de sujeita-la, adestra-la, estas ações foram constantes até o fim do apartheid, no início dos anos 90. Assim, qualquer legislação ou tratado que envolva o terrorismo deve ter presente que: (1) os estados não são o inimigo, porque terroristas não são estados; (2) as armas convencionais não são capazes de derrotar o terrorismo; (3) a arma do terrorismo é o medo. Dessa forma, uma estratégia eficaz de segurança nacional deve reduzi-lo ao invés de aumentá-lo, pois o medo não consegue derrotar o medo; (4) os terroristas são criminosos internacionais – quando são capturados, devem ser tratados de acordo com as normas do direito internacional; (5) uma mudança de regime não justifica uma guerra preventiva contra o terrorismo – derrubar um governo com ações externas viola sua soberania sem atingir os terroristas. 46 A democracia preventiva ajusta-se melhor às regras acima citadas do que a guerra preventiva contra estados. No entanto, sua concretização é mais árdua do que os slogans freqüentemente associados a ela parecem indicar. Implementá-la efetivamente é um pouco mais difícil do que implementar a guerra preventiva. Conta somente com duas vantagens: mantém-se longe do âmbito do império do medo, buscando a segurança em relação ao terror por meios diferentes, em vez de querer contrapor o medo ao medo. E dá certo. A ironia do terrorismo é que, por ser um problema multilateral e contar com agentes relativamente imunes às armas convencionais, está em condição de tirar vantagem da hegemonia militar dos Estados Unidos, conforme observou o general Wesley Clark. Nem uma política de contenção, nem uma guerra preventiva dirigida contra estados, é capaz de detê-lo. A democracia preventiva tem mais chances de consegui-lo, porque desfaz as condições que permitem ao terrorismo florescer – seca, por assim dizer, o pântano no qual os mosquitos proliferam. Ela, ao contrário da guerra preventiva contra estados, lida diretamente com o problema do terrorismo, e não pode ser distorcida para atender à conveniência dele. Mas, quando a guerra preventiva contra a jihad é direcionada contra supostos substitutos, como o Iraque, mesmo uma guerra bem sucedida acaba parecendo uma cruzada que imita a própria violência da jihad e alimenta as chamas que o inflamam. As mortes de civis, que os Estados Unidos eufemisticamente descreveram como danos colaterais, foram encaradas de modo bem diferente no resto do mundo. Na guerra contra o Iraque, houve um texto, ditado pelo governo americano e adotado pela maioria dos americanos, e um subtexto, no qual muita gente, mundo afora, percebeu um outro significado. O texto americano, marcado pelo excepcionalismo, resumia-se no 11 de setembro e nos malefícios fora de série causados por horrendos atos de terror. Isso significa a guerra como uma retribuição justa, bem como uma prevenção ativa contra Saddam Hussein, visto como Hitler do século XXI, cuja ameaça de aniquilar o mundo com armas de destruição em massa foi contida por um corajoso exército americano na liderança de uma coalizão de amigos e aliados, a despeito de uma ONU covarde e recalcitrante; o subtexto referia-se a um país que exagerava os seus próprios sofrimentos e diminuía os dos demais e a uma guerra de agressão norteamericana, na qual um animal gigantesco e arrogante abate um esquilo do deserto, 47 bravo, mas dotado de uma força inferior. Nesse subtexto, deixadas de lado as racionalizações e justificativas dos dois adversários, e mesmo a apuração dos reais interesses dos Estados Unidos nessa guerra, vê-se, de qualquer forma, o choque entre os dois exércitos: o rico bombardeando o pobre. Refletida na tela, a guerra oferecia a todos, menos ao americano ensimesmado, o espetáculo de arrogantes e bem armados soldados esmagando adversários que ainda utilizam armas antiquadas. Esses tecno-soldados – com seu componente humano comprimido em armaduras de Kevlar, com seus sentidos incrementados por laser e por instrumentos de visão noturna, e com máscaras contra gás e vestimentas de proteção contra agentes químicos – enfrentavam míseros milicianos insuficientemente armados e que empregavam táticas do século passado. Ainda assim, aqueles combatentes menos favorecidos conseguiam, de vez em quando, com operações de surpresa, abalar a colossal máquina militar que fora jogada contra eles para chocá-los e espantá-los até serem completamente esmagados. Era imensa uma desproporção de forças. Desde sempre houve ideais em nome dos quais exércitos foram colocados em marcha, seres humanos mortos, países devastados, cidades destruídas. A última potência mundial e seus vassalos não constituem exceção alguma: junto com os porta-aviões, os tanques e os helicópteros de batalha do exército de invasão ao Iraque, a idéia de direitos humanos foi novamente mobilizada para poder apresentar ao mundo um documento legitimador. Mas o notável é que os críticos desse processo apelam para os mesmos ideais. Os milhões que protestam no mundo todo contra os planos de guerra não falam uma língua ideológica diferente daquela do governo norte-americano. É em nome dos direitos humanos que cai a chuva de bombas; e é em seu nome que as vítimas são assistidas e consoladas. Usualmente os críticos dizem que a realidade não concorda com os ideais. Se há um direito à vida e à integridade física, como se pode aceitar, então, que as intervenções militares ocidentais matem mais pessoas inocentes que as atrocidades dos ditadores e dos terroristas? Todos esses argumentos empregados não são de modo algum falsos, no que concerne aos fatos: o problema reside na interpretação desses fatos. 48 Em 25 de outubro de 1939, pouco antes de invadir a Polônia, Adolf Hitler, falando ao Alto Comando da Wehrmacht, disse: “Darei uma razão propagandística para começar a guerra, não importa se é plausível ou não. Ao vencedor não se pergunta depois se ele disse ou não a verdade” . Ele sabia que uma propaganda para ser efetiva necessita de feitos. E para provar que a Polônia não aceitava suas propostas de paz, ordenou a alemães das SS e Gestapo, fardados como soldados poloneses, atacaram uma estação de rádio em Gleiwitz, fronteira de Alemanha. O atentado terrorista contra o World Trade Center e o Pentágono (11/09/2001), que a CIA e o FBI, apesar de terem informações, nada fizeram para impedir, permitiu que o governo Bush se legitimasse; seis dias depois (17/09/2001), o presidente americano assinou um documento de duas páginas e meia, classificado como Top Secret, no qual delineou a campanha no Afeganistão, como parte da guerra global contra o terrorismo, e ordenou ao Pentágono que iniciasse o planejamento de opções militares para a invasão do Iraque. Em abril de 2002, George W. Bush proclamou então seu propósito de derrubar Saddam Hussein e mudar o regime político no Iraque, em aberrante desrespeito ao princípio de não-intervenção nos assuntos internos de outros países, acordado no Tratado de Westphalia, de 1648. Não foi sem razão que, quando o presidente americano intensificou os preparativos para atacar o Iraque, em setembro de 2002, Herta Däuber-Gmelin, ministra da Justiça no governo de Gerhard Schröder, comparou seus métodos com os que Hitler usou, nos anos 30, antes de deflagrar a II Guerra Mundial. Evidentemente, o contexto é outro, a retórica, diferente, mas a essência é a mesma. O atentado terrorista contra as torres gêmeas do World Trade Center e o Pentágno ofereceu a Bush a razão propagandística para declarar a guerra permanente contra o terror. Em assim sendo, para melhor entender quais fatos e atos que ensejaram e impulsionaram a primeira guerra do séc. XXI faremos no capítulo baixo transcrito a distinção entre terrorismo e a criminalidade organizada. 49 1.3 Entre o terrorismo e a criminalidade organizada O perfil da criminalidade, no transcorrer da história das sociedades, tem sido alterado. Mas, sem dúvida, a partir da segunda metade do séc. XX, ela adotou contornos de macrocriminalidade transnacional. Os crimes individuais, acolhidos pelo direito penal clássico, pela teoria finalista e pela análise do tipo subjetivo da conduta típica estão voltados para uma criminalidade e uma responsabilidade penal individual, que não é atualmente o maior foco de preocupação do sistema repressivo formal. A vulgarização do uso do tóxico e abertura de mercados clandestinos, com a anuência velada de alguns Estados, recrudesceu a violência urbana. Ademais, o volume do movimento financeiro e das atividades comerciais geradas pela criminalidade organizada faz operar uma transferência significativa parcela de poder econômico dos estados para este tipo de atividade subterrânea, sendo que em alguns países da América Latina este movimento financeiro é tão alto que, se saneada a criminalidade, o estado quebra. Este novo espaço da criminalidade organizada, parlamentada com todas as espécie de assessoramento técnico e tecnológico, desenvolveu um novo ambiente, sobre o qual as instituições formais do estado não detêm o poder repressivo, pois quem o detém é esse estado paralelo que as usa para fomentar e sustentar com bases bélicas seu poder repressor contra os cidadãos comuns. O crime organizado nos países da América Latina está, de certa forma, imune aos meios clássico de investigação (observações, interrogatórios, estudos dos vestígios deixados). Ademais, o ordenamento jurídico, na sua grande maioria está voltado a responsabilização penal individual, não estando instrumentado para a apuração da criminalidade organizada. A evolução da criminalidade há muito supera a capacidade operativa das tradicionais organizações de delinqüentes, possuindo pessoal capacitado e treinado para a realização dessa atividade e material tecnológico e bélico à disposição, muito além das possibilidades estatais, que, na América Latina, são sucateadas e falidas. Por outro lado, é impossível fazer menção ao crime organizado, fingindo ignorar que a sociedade da qual todos fazemos parte, é pródiga em gerar múltiplos fatores criminógenos. A estrutura, a instrumentalização opressiva, fragmentalizada, setorizada e desigual da sociedade propicia desequilíbrios, deles nascendo, então, a 50 violência e a corrupção, a degradação dos costumes e o crime. Deve-se considerar, sem receio de exagerar, que se assiste, neste início de terceiro milênio, a um aumento dessa criminalidade. Daí por que é inevitável a indagação: a origem do fenômeno dessa criminalidade patológica não está radicada exatamente nessa mesma sociedade que dela reclama posturas? Com o acesso a capitais significativos, abrigados nos paraísos fiscais, essa espécie de delinqüência quase foge ao controle formal. Utiliza armamento pesado, corrompe, domina mercados, impõe regras. È quase uma guerra perdida para o Estado de direito que, ameaçado e em total descrédito diante de sua inoperância em equacionar esse problema, não ataca as causas, mas tenta de maneira inócua sustar as conseqüências não vem às custas do recrudescimento dos direitos e garantias individuais. Isso se torna ainda mais agudo no caso das garantias processuais, como o direito de defesa, contraditório, manutenção de sigilo, vista do inquérito, etc. O direito penal transforma-se, então, em um direito de guerra, em que a intervenção legalizada é anuída pela sociedade. O combate ao crime organizado, como ao terrorismo, encontra muitos óbices, pois esse gênero de criminalidade, diferentemente da individual, é difusa em sua atuação criminosa, não atingindo alvos/vítimas individuais, conhecidas, determinadas, porém maculando todo o tecido social, restando ao poder público o rastreamento da extensão das lesões causadas, tarefa essa de difícil concretização, frente à morosidade da estruturação do estado em relação à celeridade das possibilidades tecnológicas e econômicas deste tipo de atuação. Entende Capeller que a compreensão da criminalidade transnacional supõe a apreensão de uma nova economia delitiva. Precisamos abandonar as categorias estreitas da criminologia convencional que são incapazes de responder às interrogações que surgem neste novo campo de estudos. Trata-se de fato da transformação de um paradigma: o fenômeno criminal não é mais enfocado individualmente e localmente, mas em termos de rede e globalmente. O novo quadro teórico ultrapassa assim as categorias criminológicas biológicas, individuais e psicosociais que se tornaram completamente inadequadas para explicar este fenômeno emergente. Por outro lado, a criminalidade transnacional só pode ser pensada de maneira transdisciplinar, para além 51 dos territórios disciplinares tradicionais. Neste sentido, o interesse demonstrado pela ciência política a respeito desta problemática é bastante eloqüente. “Se tomarmos o exemplo do tráfico de drogas, constatamos que estamos diante de um problema de "múltiplas faces". Este crime "à facettes" questiona não apenas a criminologia clássica, mas também a economia convencional. Assim, no mercado internacional da droga existem "zonas escuras" entre o "comércio legítimo" e o "comércio ilegítimo". Isso mostra que o mercado da droga, apesar de suas especificidades, não é diferente dos outros mercados. Nos espaços da droga, a interação entre o mercado "legítimo" e o mercado "ilegítimo" atinge tais proporções que o mercado legal, quando lança mão de procedimentos ilegais, pode ser considerado como um setor subsidiário do crime organizado. O tráfico de drogas transita por esferas semi-legais, e recebe apoio logístico e subsídios financeiros de uma parte da industria "legal" que opera conjuntamente com ele. Os mercados ilegais penetram assim nos sistemas econômicos legais. O tráfico de drogas traduz-se de fato pela existência de um sistema complexo, organizado, e que funciona como uma empresa comercial em escala internacional.”.31 As organizações criminosas possuem, em relação ao terrorismo, outro ponto em comum: ambas organizam-se de forma itinerante com características mutantes, pois utilizam-se de empresas de fachada, terceiros (laranjas) e contas bancárias específicas, como meios impeditivos de visibilidade de sua atuação pelo poder público. O estado formal atua estruturado na solidificação, inclusive física, das suas instituições, que permanecem décadas instaladas nos mesmos lugares. Ao contrário, tanto a criminalidade organizada quanto o terrorismo são mutáveis quanto ao espaço físico de atuação, alternando inclusive sua estrutura administrativa, mudando as empresas, removendo as pessoas para lugares diversos e criando outras contas bancárias. Aspecto relevante nesse contexto de criminalidade organizada é também o fato de que, no âmbito nacional e internacional, esses grupos, por não deterem um espaço físico detectável sob o qual respondam civil e criminalmente, não encontram grandes obstáculos para se integrarem em suas atividades criminosas, apropriando-se ainda de ferramentas tecnológicas e do desenvolvimento do processo de globalização da economia, para transacionarem e tornarem lícitos os lucros obtidos pela atividade criminosa.32 31 CAPELLER Wanda de Lemos. Crime e controle na era global: o outro lado da moeda européia, Revista Eletrônica da Universidade do Rio de Janeiro endereço (www2.uerj.br/~direito/publicacoes/ mais_artigos/crime_e_controle.html, acesso em 1/3/2006) 32 Como exemplos, os cartéis colombianos expandiram seu negócio de comércio de cocaína para o cultivo do ópio e a comercialização da heroína. A Máfia japonesa, além de comercializar entorpecentes, passou a atuar no mercado de ações e na exploração de atividades ligadas à pornografia. A Máfia russa explora o 52 O volume de dinheiro transacionado por essas organizações criminosas é de tão grande monta, que não fica difícil em populações de baixo poder aquisitivo, cuja única expectativa de vida é a sobrevivência, recrutar pessoas que queiram se agregar a criminalidade. Ademais, as condições e o lucro obtido pelo trabalho ilícito são imensamente maiores que o que Estado formal pode oferecer. Então, esse o recrutamento incide, na maioria das vezes, sob populações que não tem nada a perder, dada a premência do suprimento de suas necessidades básicas e o abandono a que o estado as relegou. O recrutamento dessa parcela segregada da população dá-se de maneira pacífica, angariando as organizações a simpatia das comunidades, por melhorias sociais que lhe são atribuídas. Aproveitando-se da omissão do aparelho do estado, criam à prática de um verdadeiro estado paralelo. 33 34 O crime organizado possui peculiaridades: (a) os integrantes das organizações criminosas acumulam poder econômico, pois manipulam, com seus ganhos, boa parte tráfico de componentes nucleares, além de armas, entorpecentes e mulheres. Os grupos brasileiros também diversificaram suas atividades, as quais constituem em roubo a bancos, extorsão mediante seqüestro, resgate de presos, tráfico de armas e entorpecentes, com conotações internacionais. 33 O conceito de crime organizado abrange: (a) a quadrilha ou bando (288), que claramente (com a Lei 10.217/01) recebeu o rótulo de crime organizado, embora seja fenômeno completamente distinto do verdadeiro crime organizado; (b) as associações criminosas já tipificadas no nosso ordenamento jurídico (art. 14 da Lei de Tóxicos, art. 2º da Lei 2.889/56 ) assim como todas as que porventura vierem a sê-lo e (c) todos os ilícitos delas decorrentes ("delas" significa: da quadrilha ou bando assim como das associações criminosas definidas em lei). 34 CAPELLER Wanda de Lemos. Crime e controle na era global: o outro lado da moeda européia, Revista Eletrônica da Universidade do Rio de Janeiro endereço (www2.uerj.br/~direito/publicacoes/ mais_artigos/crime_e_controle.html, acesso em 1/3/2006).“ A história mostra-nos que o tráfico de drogas multinacional é dificilmente controlável, e que os interesses econômicos dos países implicados neste tráfico - sejam eles exportadores ou receptores de drogas - encontram-se na base desta dificuldade. Desde o início do século, houve inúmeras tentativas de concentração entre os países para controlar o tráfico de drogas, principalmente as rotas do sudeste da Ásia e da América latina em direção aos países industrializados. Sob a pressão dos Estados Unidos, vários encontros internacionais foram realizados, mas eles estavam condenados ao fracasso na medida em que os conflitos de interesse entre as nações não permitiram chegar a nenhum acordo neste terreno. É preciso ter em mente a importância do tráfico de drogas na "economia legítima" dos países industrializados para compreender a divergência entre as nações no que concerne o controle de drogas. No século XX, com efeito, os países centrais utilizaram este tráfico como meio de financiar suas colônias, por exemplo, que a França permitiu o tráfico de drogas na Indochina, pois este garantia 50% das despesas coloniais nesta região, a Inglaterra, igualmente, financiou com o tráfico de drogas as despesas da colonização na Índia. (...) A responsabilidade das nações em relação ao tráfico de drogas é evidente. Nos anos 1960, depois da retirada das tropas francesas da Indochina e da entrada dos Estados Unidos no sul da Ásia: o tráfico de drogas desenvolveu-se muitíssimo nesta região. Instala-se, neste momento, o sistema conhecido como o Triângulo de Ouro que permitiu as alianças políticas mais espúrias entre os americanos e os autóctones anti-comunistas. Esta política devastadora dos Estados Unidos na região asiática teve como conseqüência o desenvolvimento de uma estrutura mafiosa que, depois de guerra do Vietnam, inflitrou-se em outras regiões para aí depositar os excedentes da droga. A Austrália, país relativamente protegido deste tráfico até os anos 1976, será invadida pelas drogas”. 53 da estrutura social e econômica, aferindo seus benefícios por atuarem à mercê de qualquer regra de mercado, quaisquer tributos e no vácuo de alguma proibição estatal; (b) os ativos financeiros movimentados pelas organizações criminosas são de tão grande monta que alicerçam muitas vezes a economia de certos estados, tendo em vista a dependência dos mesmos dessa atividade subterrânea; (c) a acumulação de ativos financeiros por parte dessas organizações criminosas obriga tornar lícito, pela lavagem do dinheiro, o lucro obtido, no que são auxiliadas pelos paraísos fiscais (Panamá, Ilhas Cayman, Uruguai, Ilhas Virgens Britânicas, Andorra, dentre outros); (d) o nível de tensão social e desigualdade econômicas abre arrestas para a corrupção, fator relevante para o fomento da criminalidade organizada, maculando assim o poder executivo, poder legislativo e as instâncias formais de controle do direito (polícia judiciária, ministério público e poder judiciário). Ora, a dificuldade de combate aos crimes sofisticados cria um espaço vazio de poder cada vez maior que está sendo ocupado pelos criminosos do colarinho branco, manipulando a realidade em especial pela instrumentalização das pessoas jurídicas para ludibriar qualquer sistema de controle estatal. Esses segmentos da criminalidade organizada funcionam como uma "holding", já que grupos que traficam drogas freqüentemente vinculam-se a outros responsáveis pelo tráfico de armas, na medida em que o negócio não envolve somente dinheiro, mas também mercadorias. Assim, conseguem-se armas em troca de substâncias entorpecentes e vice-versa. Daí mais um ponto de consonância entre a criminalidade organizada e o terrorismo: ambos trabalham com uma economia subterrânea de mercadorias clandestinas e fazem uso dessas como objeto de troca. 35 As operações em dinheiro, movimentadas pelas corporações criminosas, bem como a lavagem de dinheiro para conferir legitimidade a essa economia informal objetivam fazer desaparecer o rastro dessas transações. A crescente utilização de 35 CALLEGARI, André Luís. Direito penal – econômico e lavagem de dinheiro – aspectos criminológicos. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. "a característica da internacionalização da lavagem de dinheiro relaciona-se com a própria natureza dos bens ou serviços que constituem objeto do delito, cujo lugar de origem pode encontrar-se a uma distância enorme de seus destinatários finais"². Também possuem essa característica as "redes dedicadas ao tráfico de armas, pedras preciosas, animais exóticos etc”. 54 complexas estruturas corporativas e intrincadas transações negociais envolvendo bancos, trust companies, empresas imobiliárias e outras instituições financeiras, por traficantes e seus associados, trouxe dificuldade adicional à apreensão de ativos originados pelo tráfico de drogas, que trabalha livremente fazendo uso desses ativos financeiros. Nas arrestas legais, oriundas das variações nacionais existentes na legislação bancária, fiscal e financeira, traficantes abrem brechas legais, para uma rápida adaptação da criminalidade aos meios de lavagem e técnicas para esconder seus ganhos ilícitos. 36 Aliadas a esse quadro de criminalidade tem-se as políticas públicas tão ineficazes no combate à violência. A população que necessita da segurança da ordem instituída fica à mercê de grupos criminosos como Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV). Tudo isso torna o urgente desbaratamento dessas quadrilhas que estão a ameaçar o poder instituído, único titular da força repressiva autorizado em um estado democrático. E o estado tem o dever de administrar a insegurança existente, de modo a propiciar ao cidadão o mínimo de dignidade humana quando for à rua ou ao trabalho.37 As organizações terroristas, a seu turno, também oferecem a uma população carentes de ideais, algo por que lutar, objetivos. Além disso, nos locais onde são feitos os treinamentos de combate, aqueles que lá se agregam recebem além de alimento a respeitabilidade de um herói. Prevalece também no caso do terrorismo, a lei do silêncio 36 CALLEGARI, André Luís. Direito penal – econômico e lavagem de dinheiro – aspectos criminológicos. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. “Essa característica oferece aos lavadores de dinheiro três vantagens. A primeira delas é a possibilidade de elidir a aplicação de normas estritas e, com isso, a jurisdição de paises que mantêm políticas severas de controle da lavagem de dinheiro. A segunda é a captação de vantagens pelos ‘problemas de cooperação judicial internacional e de intercâmbio de informações entre paises que possuem leis diferentes’, bem como peculiaridades distintas tanto na área penal quanto nos procedimentos administrativos de cada país. Por fim, André Luís Callegari afirma que ‘permite aos lavadores que se beneficiem das deficiências da regulação internacional de sua aplicação, desviando os bens objetos da lavagem àqueles paises com sistemas débeis de controle e persecução do dinheiro”. 37 O processo de crescimento e nivelamento social dá-se a longo prazo dentro de um contexto de uma sociedade democrática e de um estado formal que atente para os direitos e garantias individuais. As agências repressoras em um estado democrático têm feições muito diferentes que no estado Ditatorial, sendo necessário para o controle eficaz da criminalidade pela prevenção geral e especial da criminalidade que não dispense em seus planos executivos uma política de nivelamento social e a total e irrestrita observância dos direitos e garantias individuais. Este processo de construção democrática não é nada fácil e depreende esforços comunitários e políticos tendo em vista que no Rio de Janeiro e em São Paulo, os índices de criminalidade podem ser equiparados a uma guerra civil. 55 e a anuência e o apoio da população que ceifada de alternativas vê, nesse tipo de crime, sua única salvação. Poder-se-iam apresentar números sobre o crime organizado, dados sobre o seu poder de fogo, exemplos terríveis de suas ações cada vez mais escancaradas. Mas este não é aqui o propósito. O importante deve ser a consciência de que o crime organizado nasceu no interior de uma sociedade em decomposição, precisamos, entretanto, de uma sociedade organizada, que saiba perceber e enfrentar os sintomas da criminalidade moderna. Essa luta, atualmente, é absolutamente desigual, porque entre ficar no Olimpo de privilégios falazes (atitudes contraídas pelo executivo, ainda que seus membros advenham de classes populares) e enfrentar a dura realidade das ruas, existe uma considerável diferença. Insolúvel o problema não é. Fazendo a comparação entre a atividade criminosa gerada pela criminalidade organizada e a oriunda do terrorismo, verificando seus pontos de convergência e de divergência, apontamos para o fato de que, em ambos os casos, esse tipo de violência gera a cultura do medo, servindo, assim, como sustentáculo para legislações expansionistas e um discurso jurídico penal discriminatório e segregador. Analisaremos, então, o que dá suporte a produção de legislações expansionistas e um discurso jurídico penal discriminatório e segregado: a cultura do medo. 56 1.4 Cultura do medo Tanto a criminalidade organizada como aquela oriunda do terrorismo produzem um pânico social que muitas vezes é usado para impor ideologias. No caso do terrorismo, o campo de batalha é o lugar designado ao cidadão comum, que tem invadido seu espaço público por atentados terroristas, nos quais, na maior parte das vezes, a vítima desconhece a origem e motivos que deram azo a este tipo de violência. Não menos prejudicial, porém, mostra-se o tráfico de substâncias tóxicas ou entorpecentes, que polui a economia com o dinheiro sujo, infiltrando-se nos negócios com manipulação criminosa das instituições públicas e de todo o espaço público, gerando uma espécie de violência urbana cruel, constituída pelo submundo da criminalidade que estende seus tentáculos a toda ordem de atividade ilícita e violência. Ora esse tipo de criminalidade representada tanto pelo terrorismo como pelo crime organizado fazem com que o cidadão vivencie a cultura do medo, sustentando o discurso de que os meios justificam os fins para diminuir a vulnerabilidade da população em relação a esse tipo de criminalidade. Esse discurso e as ações restritivas dele decorrentes são assim respaldados pela própria população, pois o alto poder de intimidação a que estão colocados os cidadãos faz com que qualquer ato que diga oferecer a segurança não obtida pelo estado, seja acolhido pela sociedade. Em contrapartida, detectar os membros dessas organizações não é tarefa fácil, já que existe um código comportamental velado, a chamada lei do silêncio, imposta aos membros do crime organizado, impondo sanções à comunidade que os violar, pelo emprego de meios cruéis de violência, mantendo assim a clandestinidade dos mentores intelectuais dessas quadrilhas. 38 39 40 41 38 SILVA SANCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 31. “A sociedade pós-industrial é além da sociedade do risco tecnológico, uma sociedade com outras características individualizadoras que contribuem a sua caracterização como sociedade de “objetiva” insegurança. Desde logo, deve ficar claro que o emprego de meios tecnológicos, a comercialização de produtos ou a utilização de substâncias cujos possíveis efeitos nocivos são ainda desconhecidos e, em última análise, manifetar-se-ão anos depois da realização da conduta, introduzem um importante fator de incerteza na vida social. O cidadão anônimo diz estão nos matando, mas não conseguimos ainda saber com certeza saber, nem quem, nem como, nem a que ritmo. Em realidade faz tempo que os especialistas descartam a excessivamente remota possibilidade de neutralizar os novos riscos, significando que é preferível aprofundar-se nos critérios de distribuição eficiente e justa dos mesmos – existentes e em princípios não neutralizáveis. O problema, portanto, não radica mais nas decisões humanas que geram os riscos, senão também nas decisões humanas que os distribuem. E se é certo que são muitos que propugnam a máxima participação pública nas correspondentes tomadas de decisão,não é menos certo que, de momento, as 57 O direito penal emergencial e as guerras preventivas que têm sido empreendidas contra o crime organizado e o terrorismo fundam-se nessa cultura do medo: trata-se de uma violência simbólica que escolhe, ao ser praticada, atores sociais e discrimina parcelas da sociedade. Esses discursos reduzem-se, porém, a falas eufemísticas, sem o verdadeiro propósito de encontrar soluções para o direito penal: são formas de aplainamento e conformação de todos que não têm acesso ao sistema capitalista, mantendo-os estáticos pelo medo. Assim, a cultura do medo constrói um poder simbólico capaz de fazer ver e crer, de confirmar ou de transformar visões de mundo. 42 mesmas têm lugar em um contexto de quase total obscuridade. Tudo isto evidencia que, inegavelmente, estamos destinados a viver em uma sociedade de enorme complexidade, na qual a interação individual – pelas necessidades de cooperação e de divisão funcional – alcançou níveis até agora desconhecidos. Sem embargo a profunda correlação das esferas de organização individual incrementa a possibilidade de que alguns destes contatos sociais redundem na produção de conseqüências lesivas, Dado que, no mais, tais resultados se produzem em muitos casos a longo prazo e, de todo modo, em um contexto geral de incertezas sobre a relação causa-efeito, os delitos resultado/lesão se mostram constantemente insatisfatórias como técnica de abordagem do problema”. 39 PASTANA, Débora Regina. Cultura do medo: reflexões sobre a violência criminal, controle social e cidadania no Brasil. São Paulo: Método, 2003. p. 9. “Não estamos tratando do medo individual, ou seja, do medo que aflige as pessoas isoladamente. No sentido literal da palavra, medo individual significa choque, freqüentemente precedido de surpresa, provocado pela tomada de consciência de um perigo presente. Trata-se de uma emoção desencadeada por diversas reações físicas que, por sua vez, são responsáveis por comportamentos somáticos. Tal quadro clínico não se aplica no nível coletivo, embora em certa medida o pânico de uma multidão possa conter uma soma de emoções–choques pessoais”. 40 O sentimento de vingança parece ser um universal humano. O nacionalismo norte-americano é exacerbado com o impulso vingativo, surgindo uma tremenda coesão interna face a ameaça do inimigo – partidos que se digladiavam aprovaram rápida e consensualmente decisões orçamentárias, políticas e militares a este respeito. Segundo a visão maniqueísta do governo dos EUA, a retaliação americana aos ataques terroristas é uma luta da “liberdade” contra o mal. Em essência, tanto o patriotismo norteamericano e o sentimento de vingança que toma conta da nação como o terrorismo suicida são fenômenos aparentados, que estão fundados no mesmo mecanismo da mente humana que garantiu aos nossos antepassados a continuidade evolutiva. Fomos programados para defender nosso território e a cultuar os valores de nosso grupo social, reagindo com indignação e contra-atacando ao que é percebido como ameaça. Quanto mais se multiplicam os meios de comunicação tanto mais opera-se a ideologia incidindo sobre a psique multiplicando-se o contágio mental daqueles que são expostos a idéias e ideologias de uma maneira sub-reptícia. O contágio mental é tão poderoso que suscita os pânicos que podem conduzir as suas vítimas aos mais diversos comportamentos psicopatológicos, escravizando, portanto, inteligências. Os grandes movimentos funestos da história foram sempre o resultado do contágio mental. O contágio mental é exercido por diversos meios de propagação e com o advento da televisão sua incidência se dará através de um número inimaginável de pessoa que tem acesso a este meio de comunicação. A sua ação jamais se exerceu tanto quanto na nossa época, primeiramente porque, com o progresso das idéias democráticas, o poder cai, cada vez mais, entre as mãos das multidões, e depois, porque a difusão rápida dos meios de comunicações permite que os movimentos populares se espalhem quase instantaneamente.. As extravagantes fantasias das multidões tornam-se, para eles, dogmas tão respeitáveis quanto o eram outrora, para os cortesãos das monarquias absolutas, as vontades dos soberanos. 41 ARENDT, H. Sobre a violência. Trad. André Duarte. 1.ed. Rio: Relume-Dumará, 1994. “A escalada da violência pode significar a deterioração do poder do estado, uma vez que ‘poder e violência são opostos; onde um domina absolutamente, o outro está ausente’; outros opinam que a violência tem causas difusas, como racismo, intolerância, desigualdades sociais, processos de exclusão, ineficácia da lei/impunidade, omissão do estado entre outras. Ainda há os que acreditam que a mídia, em especial a televisão, gera ou potencializa comportamento agressivo e contribui para o incremento da violência na sociedade”. 42 PASTANA, Débora Regina. Reflexões sobre a violência criminal, controle social e cidadania no Brasil. São Paulo: Método, 2003. p. 91. “Entendemos medo neste estudo, como forma de exteriorização cultural, 58 Dessa forma, esse medo tão difundido pela mídia serve de suporte à grande parte do discurso do direito penal emergencial, ao fomento de guerras preventivas e ao recrudescimento da legislação penal. Atualmente, não se pode pensar o direito ignorando a influência da mídia como formadora de consenso de valor fomentador do discurso legislativo: não se pode ignorar que os mídias são fatores centrais na sociabilidade contemporânea, bem como detém um enorme poder como formadores de opinião. 43 A difusão do discurso do medo tem por objetivo a implementação dos interesses de determinados setores ou facções, respaldando os grupos a quem a mídia pretende promover, o que gera uma parcialidade na informação veiculada, uma neutralização e disciplinamento das camadas empobrecidas da sociedade: camuflar e manipular informações permite que a incidência e a estruturação do direito penal aconteçam apenas para poucos, geralmente a clientela do direito penal sob a qual incide, com mais veemência, a influência da cultura de medo imprimida na mídia. Nessa perspectiva, a violência não é apenas um instrumento para se chegar a um fim, mas uma estratégia, porque ela possui racionalidade política específica e está direcionada a um objetivo. A violência veiculada na mídia cria e participa das redes de poder, inserindo-se no cotidiano das relações interpessoais. Por isso, se é impossível principalmente se levarmos em conta as transformações que ele desencadeia (...) há uma mudança no comportamento do indivíduo na casa e na rua, um cuidado maior com os bens (consumo de apólices de seguros, por exemplo) a produção e o consumo dos mais variados produtos de segurança privada )alarmes, vidros brindados e aulas de defesa pessoal por exemplo) uma desconfiança generalizada entre os indivíduos . Ao trabalharmos com o medo, como exteriorização cultural, utilizaremos o conceito antropológico de cultura, que, segundo Marilena Chauí, se traduz como um conjunto de práticas, comportamentos, ações e instituições pelas quais os hum,anos se relacionam entre si e coma natureza e dela se distinguem. Este conjunto funda a organização social e sua transformação. Para Pastana cultura é [...] a expressão das necessidades historicamente condicionadas de um grupo social e de seus indivíduos, e com referência à totalidade de características de uma sociedade. Vale ressaltar que a cultura não pode ser concebida como estática e imutável, ao contrário, mostra-se como uma expressão dinâmica das ações e interpretações do grupo social. Nesse sentido, a cultura é traduzida como reflexo das mudanças nas relações sociais, desde a esfera da produção econômica até a esfera do imaginário individual e coletivo e das representações de ordem”. 43 THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicações de massa. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1995. p. 285: “O surgimento da comunicação de massa, e especialmente o surgimento da circulação em massa de jornais no século XIX e a emergência da difusão por ondas no século XX, teve um impacto profundo no tipo de experiência e nos padrões de interação característicos das sociedades modernas. Para a maioria das pessoas hoje, o conhecimento que nós temos dos fatos que acontecem além do nosso meio imediato é, em grande parte, derivado de nossa recepção das formas simbólicas mediadas pela mídia”. 59 pensar o direito penal ignorando esse contexto simbólico da cultura do medo, é interessante discutir questões referentes a essa mídia como formadora, produtora e difusora de valores, fomentadores do discurso legislativo. O mundo contemporâneo, tecnológico e globalizado, sofre grande influência das mídias, cuja atuação ultrapassa de muito a área econômica, interferindo nos comportamentos sociais, nos valores culturais, na criação de novas modalidades discursivas e conceituais. Para muitos, a ação midiática é responsável mesmo pela implementação de novas formas de racionalidade e pensamento, com influência na própria produção de sentido e percepção moral, promovendo, assim, alterações profundas de caráter ético, estético e ideológico: novas linguagens, códigos, posturas e hábitos são difundidos através do discurso midiático contemporâneo. Mas o que a mídia exibe, é preciso que se diga, não é o real – sofisticados aparatos tecnológicos colaboram na construção de uma representação da realidade de caráter discursivo, que se apresenta tecnicamente consumada como real. Essa simulação da realidade escolhe os eventos produtores de imagens fortes – violências, guerras catástrofes – para construir seus espetáculos. A heterogeneidade de imagens – composições e colagens multimidiais – a multiplicidade de significados, a diversidade de sons, a intertextualidade feita de citações, alusões, as metalinguagens e apropriações, o acúmulo de informações são organizados pelas mídias num grande cenário onde a informação intercambia seus signos com os da ficção, numa totalidade definida a partir de determinados padrões que tudo igualam e banalizam. A mensagem veiculada na mídia materializa-se em textos, lugares de construção da significação e da manifestação de estratégias discursivas de caráter manipulatório. Os sentidos informativos assumem um papel secundário em relação a outros que passam a primeiro plano, atualizando temas que constituem o imaginário da humanidade desde que o homem é homem. Tais temas, diz Barthes, aludem a experiências de imagens muito antigas, a obscuras sensações corporais, a contatos íntimos entre a natureza e o homem, a formas de aniquilamento e religação, enfim aos grandes mitos da humanidade 60 E a arma da mídia contemporânea é utilizá-los para veicular as informações interessantes ao receptor fazendo com que as demais sejam ignoradas. 44 45 A televisão, por exemplo, hoje tem condições de apresentar, ao vivo e instantaneamente, imagens de qualquer ponto do planeta, com sua exibição provocando as mais variadas reações, intensificando ou amenizando a importância dos fatos, confirmando ou negando sua gravidade. 46 Assim, a influência exercida pelos avanço dos mídias junto à sociedade, determinante na formação da chamada opinião pública, provoca marcantes alterações no quadro comportamental dos cidadãos, que passaram a enxergar a lei penal como tábua de salvação da sociedade contra os criminosos. Pode-se dizer mesmo que há uma espécie de pânico mundial em relação ao chamado auge delitivo. Os programas políticos eleitorais consagraram boa parte de suas promessas a tranqüilizar os organismos colegiados da indústria e do comércio, oferecendo medidas drásticas – sempre repressivas e nunca preventivas – para conter uma maré que se anuncia como monstro crescente.47 Absorvendo os efeitos dessa influência, os sistemas legislativo e judicial dispõem-se a atender o clamor público, que exige o endurecimento do aparato repressivo no combate à criminalidade. Esse quadro coloca em choque o respeito pelas 44 BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Difel, 1987. Mas, ao convocarem certos temas como forma de manipulação, substituindo o aspecto interesseiro pelo espetáculo de um mundo onde comprar é reencontrar a origem – do prazer, do bem-estar, da harmonia – as publicidades não o podem fazer sem sobre eles se posicionarem. Assim, é por isso que toda a manipulação se assenta sobre um sistema de valores: nenhuma publicidade deixa de ser veiculadora de ideologia. 46 LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. Rio de Janeiro: Lúmen-Juris, 2004. p. 183-184. “Outro aspecto fundamental é a influência da ‘ideologia do ao vivo’, que encontra abrigo na lógica dominante do tempo curto e na cultura do instantâneo. Como conseqüência, está reduzido o tempo da análise e da reflexão, fazendo com que sejam ‘ as sensações que primam...o jornalista reage com paixão, instintivamente’. Mas ‘não são os olhos ou os sentidos que permitem compreender; é a razão, só ela. Enquanto os sentidos enganam, o cérebro, o raciocínio, a inteligência são mais confiáveis. Portanto, o sistema atual só pode conduzir à irracionalidade ou ao erro”. 47 Em virtude dessa equivocada tentativa de “combate” à criminalidade, a inflação legislativa faz com que nos encontremos em um estado de exceção, pois em nome da “lei e da ordem” começaram a ser desconsiderados direitos fundamentais expressos na Constituição Federal, e o que até então era tido como medida excepcional acabou tornando-se prática normal da relação Estado e cidadão. Ou seja, no nosso país o estado de exceção já perdura há 15 anos (Lei 8.072/90), e o que os cidadãos pensam que é uma prevenção da desordem acaba se tornando uma banalização das prisões temporárias e preventivas. 45 61 garantias individuais e clama pelo dever de resposta do estado quanto a essa demanda por segurança social. Em virtude disso, o delírio legislativo chegou ao ponto de criminalizar condutas que não têm o menor potencial lesivo, o que, segundo Zaffaroni, pode provocar uma catástrofe social, pois “se o sistema penal tivesse realmente o poder criminalizante programado produzir-se-ia o indesejável efeito de se criminalizarem várias vezes toda a população. Diante da absurda suposição de criminalizar reiteradamente toda a população, torna-se óbvio que o sistema penal está estruturalmente montado para que a legalidade processual não opere e, sim, para que exerça seu poder com altíssimo grau de arbitrariedade seletiva dirigida, naturalmente, aos setores vulneráveis. 48 49 É importante ressaltar que a absorção desses papéis e sua a integração ao cotidiano das pessoas se dá através do processo chamado domesticidade. Nesse processo, os produtos midiáticos e sua ideologia são consumidos e apropriados pela esfera familiar e absorvidos nas rotinas do dia-a-dia: daí a incidência da cultura do medo e de qualquer ideologia que se pretenda fazer chegar ao expectador. Esse processo de domesticação do eu interior de cada cidadão, aterrorizado pela cultura do medo é impresso de tal forma que as conquistas históricas de direitos fundamentais da humanidade são esquecidas, privilegiando-se um estado primitivo de coação individual e coletiva, muitas vezes propagada e incentivada pela mídia que elege bodes expiatórios, desgarrando-se assim do questionamento das imensas privações a que são submetidos às camadas mais baixas da sociedade. Ao mesmo tempo, essa mudança de foco operada pela mídia que fomenta a cultura do medo, torna difusa a discussão a respeito das razões efetivas dessa criminalização. Segundo Guedes & Paula, nesse processo de domesticidade, existem ansiedades a serem trabalhadas: a revolução tecnológica e, por conseguinte a “sociedade de informação”, com todas as suas contradições, deve ser vista também com todo seu conteúdo ideológico e sua influência na dimensão do ser. Pimenta sugere que, para 48 Um exemplo que tem sido motivo de chacotas no meio jurídico e que demonstra o despreparo de nossos legisladores, foi a aprovação da lei que pune de 2 a 5 anos de prisão qualquer sujeito que ouse “molestar” um cetáceo. Afinal, o que seria dos cetáceos se não fossem nossos eminentes legisladores? Assim, é mais coerente não correr o risco de perturbar o sono de um golfinho, ou até mesmo tomar cuidado para não abusar sexualmente de uma baleia sob pena de ser preso. 62 enfrentar os desafios impostos pelo novo ambiente tecnológico, é preciso pensar os processos sígnicos de uma forma radicalmente nova: conceber esse fenômeno sustentado em regularidades externas ao homem, criadas em um espaço virtual, projetado numa perspectiva muito mais ampla e analógica que a dos eventos percebidos sem a intermediação técnica. 50 51 O poder simbólico é quase mágico; através dele é possível obter o equivalente àquilo que é obtido pela força física, graças ao seu efeito de se fazer legitimado e ignorado como arbitrário. Ora, a cultura do medo age, cumprindo a sua função política de instrumento de imposição ou legitimação da dominação, pois o processo manipulatório realizado pela mídia opera o chamamento da sociedade para a assunção de determinadas ideologias, convoca sujeitos que irão reproduzir esse discurso do medo e que depois estarão à sua mercê, anuindo assim para a supressão de direitos e garantias individuais, para a efetivação dos propósitos administrativos que convocaram essa comoção social. Para Pastana, em uma sociedade como a contemporânea, que se estrutura pela dominação de alguns grupos sobre os outros, é evidente que diversos graus de violência são exercidos sobre os grupos dominados. Uma das formas de toda esta dominação é criar toda uma ideologia justificadora, que faz com que essa situação de autoritarismo seja vista como algo circunstancial e necessário. É diluir a opressão em contextos instáveis, convencendo oprimido de que ele está numa situação não porque existem outros que o oprimem, mas porque vive em um ambiente hostil em que o preço da segurança é a arbitrariedade e o autoritarismo. 52 Evidentemente, quanto mais convincente e estratificada é a opressão, mais sofisticado e mais profundo é o emprego e o papel da ideologia justificadora, que é 49 Cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. A perda de legitimidade do sistema penal. Tradução: Vânia Romano Pedrosa, Almir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 2627. 50 PIMENTA, Francisco José Paoliello. Novo conservadorismo e o ambiente hipermídia. Revista Fronteiras -Estudos Midiáticos, Unisinos, Vol. 1 nº 1 -m dezembro de 1999. 51 GUEDES, Olga & PAULA, Silas de. Sociedade de informação: o futuro (im) perfeito. Revista Fronteiras -Estudos Midiáticos. Unisinos, Vol. 1 nº 1 -m dezembro de 1999, p.139. 52 PASTANA, Débora Regina. Reflexões sobre a violência criminal, controle social e cidadania no Brasil. São Paulo: Editora Método, 2003, p. 94. 63 perfeitamente introjetado pelo oprimido, contribuindo de maneira fortíssima para a manutenção do status quo e servindo também de suporte para os casos em que é preciso recorrer a uma violência mais direta e mais explícita como forma de controle. Neste sentido, pode-se dizer que a ideologia do grupo dominante é hegemônica. O direito surge em dado momento histórico, numa dada formação social, por uma dada classe que manipula os instrumentos normativos e políticos necessários à manutenção de um padrão específico de dominação. As diretrizes dadas pela classe dominante que, em um dado momento, dita valores, provoca a alienação dos demais cidadãos, que são levados a crer na utopia de uma ordem legal equilibrada e harmoniosa, na qual os conflitos sócio-econômicos são mascarados e resolvidos pela força retórica das normas e diluídos por diversos estratagemas que visam não tornar tão visível esta falta de equidade, esta injusta social. Se assim não o fosse, se o jogo capitalista ficasse exposto e suas brechas ideológicas fossem desmascaradas, a sociedade perderia o controle de seus engendramentos, não operando com a mesma eficácia esta ideologia justificadora que ilude todo aquele que não está no ápice da pirâmide social, fazendo-o aceitar como verdade, pela cultura do medo, que o preço a ser pago por segurança seria retirar-lhe mais uma parcela de seus direitos. É, assim, a cultura do medo quem estrutura muitos discursos políticos que se valem da mídia como veículo de difusão para gerar, no campo jurídico, a idéia de que a solução para uma criminalidade cada vez mais intensa é o apenamento severo para determinados crimes. Acoberta-se, com a cultura do medo, os reais problemas causadores da criminalidade, dando a aparência de que a solução está na instituição de um direito penal altamente repressivo. A disseminação do medo transforma-se em um mecanismo de dominação por meio da cultura – cuja base está assentada na incidência da violência simbólica, sendo que seu sucesso está atrelado não somente na forma como é externado, mas também em seu grau de eficácia em exprimir ansiedades culturais profundas. O medo nunca é ente autônomo, ele sempre vem atrelado a um conjunto valorativo e um conhecimento apriorístico a seu respeito que lhe dá guarida. O sistema penal apresenta-se como uma reprodução do sistema de estratificação social, amparado justamente em uma eficácia simbólica, porque, ao mesmo tempo que declara determinadas condições de igualdade 64 social, não luta efetivamente para cumpri-las e passa a contribuir para a reprodução de relações sociais desiguais. A preocupação com a segurança é legítima, mas ela não pode afrontar os direitos constitucionais e humanos, os quais são violados hoje em dia das mais diversas formas. A assertiva de que direitos humanos só servem para proteger bandidos, de tão repetida, acaba por ser aceita como verdadeira, quando na realidade, é fruto de profunda ignorância, acarretando a fragilização de conquistas democráticas que a humanidade levou séculos para firmar.53 Nesse sentindo, a omissão da realidade dos sistemas e agências penais leva a uma redução da possibilidade de soluções dos desafios, funcionando apenas como um analgésico e um estupefaciente. Medidas como as de exceção que vem se tornando regras, têm demonstrado efeitos típicos dos regimes totalitários, nos quais são estigmatizados e marginalizados determinados tipos de classes sociais, acarretando a disseminação de regras e técnicas vagas, abertas e ilegítimas de controle social punitivo, nas quais o oprimido torna-se presa fácil ao aniqüilante sistema de exclusão social. 54 Há uma necessidade urgente de se (re)valorizarem os princípios penais e constitucionais, diante do clima de terror imposto pelos meios de comunicação de massa, incentivados pelas doutrinas repressivistas, ao entronizarem a criminalidade como tema destaque em todas as suas manifestações. As conseqüências negativas são evidentes, eis que provocam uma tensão social que justifica o apelo da sociedade por segurança. Mas, hoje a pena pública e infamante do direito penal pré-moderno foi ressuscitada e adaptada à modernidade, mediante a exibição pública do mero suspeito nas primeiras páginas dos jornais ou nos telejornais. Essa execração ocorre não como conseqüência da condenação, mas da simples acusação, inclusive quando esta ainda não foi sequer formalizada pela denúncia, quando, todavia, o indivíduo ainda deveria estar 53 SCAPINI, Marco Antonio Bandeira. Execução penal: controle da legalidade. In: CARVALHO, Salo. Crítica à execução penal: doutrina jurisprudência e projetos legislativos. Rio de Janeiro: Lúmen-Juris, 2002. p. 387. 54 Nesse sentido ATHAYDE, Celso. BILL, MV. SOARES, Luiz Eduardo. Cabeça de porco. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. p. 131. 65 sob o manto protetor da presunção de inocência. Existem, porém outros interesses que pautam essas inquisições sumárias, a par de outras tantas motivações que buscam silenciosamente aniquilar os meros suspeitos por representam uma classe que certas sociedades visam “esconder”. 55 A cultura do medo é vista como mecanismo de alerta para a sociedade em geral, porém sua veiculação torna vulneráveis os direitos e garantias individuais e faz com que a sociedade anua à prática de ações erigidas ao arbítrio de um estado formal e democrático de direito, ganhando legitimidade perante uma sociedade amedrontada e insegura. Segundo Pastana, a cultura do medo reflete, dessa forma, a crença de que se vive em um momento particularmente perigoso devido ao aumento da criminalidade violenta o que legitima posturas autoritárias que, de acordo, com interesses políticos, são difundidas como capazes de solucionar estes problemas. 56 A cultura de medo torna-se, assim, instrumento de dominação política que se concretiza na medida em que o medo social ligado ao crime é colocado como problema social emergente e preponderante: os argumentos políticos que se manifestam a este respeito apontam a administração do momento como ineficaz no combate a criminalidade e de forma messiânica sugerem a próxima administração como meio para resolver este tipo de problema. Segundo Andrade, a expansão punitiva, a maximização do espaço da pena, é apresentada em espetacular orquestração jurídica, política e midiática, com o mesmo absolutismo com que a globalização neoliberal se apresenta, como o único caminho, seja como pretensa solução ao combate à maximização da criminalidade e obtenção de segurança; seja como solução para uma infinidade de problemas complexos e heterogêneos entre si. 57 O crime é construído como espetáculo e nesse espetáculo se alicerçam os atos dos poderes públicos no combate à criminalidade, mascarando todos os problemas 55 Nesse sentido LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. Rio de Janeiro: Lúmen-Juris, 2004. p. 181. 56 PASTANA, Débora Regina. Cultura do medo, reflexões sobre violência criminal, controle social e cidadania no Brasil. São Paulo: Método, 2003. p. 95 66 sociais e o agravamento das injustiças sociais, tornando difusos as omissões e violências perpetradas contra o cidadão na falta de concretização de seus direitos. A maximização do medo e da insegurança congela qualquer manifestação criativa e abafa as manifestações de insatisfação com a estruturação social como está posta, abrindo espaço para medidas emergenciais cada vez mais expansionistas em termos penais, verificáveis pela edição de leis penais cada vez mais severas e legitimadas por demandas sociais de proteção, principalmente, da elite. A exceção de instaura como regra, respaldando a supressão gradativa dos direitos e garantias fundamentais. A sensação de impotência do estado no combate a criminalidade organizada e o terrorismo propicia um avanço sem precedentes na internalização da necessidade de medidas emergenciais e autoritárias. O poder simbólico oriundo do pânico camufla a efetiva causa da criminalidade, operando um desvio da atenção da população para a fonte da problemática do crime. A população imbuída na busca de soluções para medos ilusórios ou estrategicamente projetos, não reivindica então a inoperância do estado em promover os direitos fundamentais que são parcela de sua função como instituição. Pastana entende que a cultura do medo apresenta-se como uma soma de valores e comportamento associados à violência criminal que cria uma idéia de hegemonia da insegurança que perpetua a dominação autoritária, apresentando como conseqüência a degradação da sociedade e o enfraquecimento da cidadania na medida em que essa cultura do medo tem suas raízes fundadas num individualismo que vem promovendo o distanciamento entre os sujeitos. O medo e a insegurança, no atual período democrático, permitem ao estado tomar medidas simbólicas cada vez mais autoritárias, que podem ser percebidas, especialmente, pela edição de leis penais cada vez mais severas e legitimadas por demandas sociais de proteção, principalmente, da elite. O resultado disso é uma justificação da dominação autoritária com o isolamento gradativo e voluntário das vítimas prováveis. 58 57 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 23 58 PASTANA, Débora Regina. Cultura do medo, reflexões sobre violência criminal, controle social e cidadania no Brasil. São Paulo: Método, 2003. p. 95. 67 Os mídias ao operarem essa manipulação da problemática da violência, descartam e maquilam que dentre suas causas está a terrível faixa de exclusão a que está condenada grande parte da população mundiais, ignoram a não disponibilização do estado ao acesso à educação e à saúde; a fome, a miséria, a concentração de riqueza nas mãos de uma minoria. O medo serve então de instrumento de manutenção de uma ordem social injusta que se mantém sustentada pelo autoritarismo institucionalizado. A não disponibilização de políticas públicas para dar eficácia aos direitos fundamentais previstos constitucionalmente, a carência de projetos sociais de saúde pública, de educação e de cultura, ficam mascarados, pois o pânico veiculado na mídia entra em cena como parte dos mecanismos estratégicos para manter a população alienada dos reais problemas sociais. Por todos os engendramentos que estão por detrás da violência institucional do Estado e pela violência oriunda da criminalidade organizada é mister fazer uma análise do discurso jurídico penal, sua deslegitimição pela não operacionalidade do sistema penal e carcerário e os mecanismos e falas que objetivam camuflar e maquilar esse processo de ausência de efetividade prática. 68 2 O DISCURSO JURÍDICO PENAL Os seres humanos não produzem mensagens no vazio: comunicam-se em meio à, de determinados lugares e para outros sujeitos que também estão inseridos no processo e a ele respondem, assumindo a comunicação, nesse percurso, sentidos, a cada vez privativos de um dado processo comunicativo. A instância de enunciação é o espaço de geração do discurso, desencadeador de operações seletivas que elegem, dentre as combinatórias de unidades discursivas virtuais, as que estão em condições de produzir efeitos de sentidos desejados. A esse conjunto de deliberações tomadas pelo enunciador dá-se o nome de discursivação. Assim, os processos de produção de significação não se desencadeiam por si só: não são as coisas que dizem o que significam; fora da relação com o espírito, com o sujeito, elas permanecem inteiramente mudas. O processo de construção do discurso implica uma série de escolhas operadas pelo enunciador, concernentes ao modo como pretende organizar o que diz em qualquer linguagem, levando em conta valores culturais, intenção comunicativa, meios empregados para a veiculação da mensagem e linguagens privilegiadas para sua manifestação. E o lugar onde o discurso se manifesta, é o texto, a única realidade palpável. Considera-se, dessa forma, o texto como produto material do processo de produção de significação - o discurso. O texto é, pois, o produto da semiose, isto é, da função contraída entre expressão e conteúdo, podendo utilizar-se das mais diversas substâncias para sua expressão. 59 59 DUARTE, Liza Bastos. Hermenêutica Jurídica: uma análise de temas emergentes. Canoas: Ulbra, 2003, p. 54 “Saussure pensa que a linguagem tenha um lado individual e um lado social; por isso distingue na linguagem a língua da fala (uso individual). A língua nesse nível seria o objeto científico da lingüística, não se constituindo em síntese das diferentes linguagens naturais do mundo, mas em seu significado como sistema; a fala, no ato de seu conhecimento, existe no interior da língua, ou seja, a realidade sígnica é reconstruída na língua, que nasce por oposição à fala. Dentro da linguagem, define a língua como seu objeto de estudo. Pensa que no cérebro humano, os fatos da consciência chamados conceitos se acham associados a representações dos signos lingüísticos. Salienta, além disso, a existência de uma faculdade de associação e coordenação dos signos, que desempenha papel fundamental na organização da língua enquanto sistema. Acredita o citado autor que todos os indivíduos unidos pela linguagem, reproduzem, não exatamente, mas aproximadamente, os mesmos signos aos mesmos 69 Mas, de que falam os textos? Os textos referem-se a uma realidade, não necessariamente coincidem com ela. O mundo se nos apresenta por todos os sentidos; nos textos, somente algumas dessas propriedades são transpostas para a superfície artificial do papel. Essa alteração constitui-se numa redução muito grande dos atributos do mundo representado, pois, a rigor, somente alguns traços são explicitados, e tais traços, assim selecionados e transpostos, pouco dizem em relação à riqueza do mundo material: são figuras, não objetos do mundo. Todo discurso nada mais é do que uma representação do imaginário, e as configurações discursivas, por possuírem uma coerência interna, fabricam seus próprios índices de verdade e realidade. Essa ilusão referencial substitui erradamente o real por sua representação. 60 O direito penal é constantemente relacionado à idéia de simbolismo que ele próprio encerraria. É preciso compreender que esse simbolismo a que as teorias do direito fazem menção diz respeito a um fenômeno bastante conhecido das ciências das linguagens, em especial da semiótica, nas quais apenas ganha outras denominações. Ele refere-se do fato de que os signos e os textos têm muitos sentidos. O ilustre lingüista e semioticista Louis Hjelmslev, que introduz nas ciências das linguagens, o conceito de conotação, diz que o conteúdo dos textos nunca têm apenas um sentido único, referencial. Essa é a grande impossibilidade de qualquer linguagem e também sua maior riqueza diz que o conteúdo dos textos têm, no mínimo, três níveis de sentidos – os referenciais, os intersubjetivos e os de apreciação coletiva, ligados à cultura e aos sistemas de valores que lhe são subjacentes. Mais ainda, considera que esse último nível – o da apreciação coletiva – subsume os demais.61 conceitos. Assim, isolando a parte física e psíquica, o lado executivo individual, a fala, atinge o liame social constituído pela língua. Trata-se, segundo Saussure, de um tesouro depositado pela prática da fala em todos os indivíduos pertencentes à mesma comunidade, sistema gramatical que existe virtualmente em cada cérebro, ou no conjunto de cérebros de um conjunto de indivíduos. É isso que faz com que o dicionário ou uma gramática possam representar a língua fielmente.”. 60 Nesse sentido BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. São Paulo: Cultrix, 1997, 15ª. Edição. 61 Nesse sentido HJELMSLEV, L. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 80. 70 É por isso que se diz, aliás, que nenhum discurso é inocente. Traz, junto com as informações que contêm intenções de ordem subjetiva, e intencionalidades da ordem da cultura e da ideologia. Daí por que, é preciso ter presente que, se todo ato comunicativo se manifesta em um texto, então esse texto é palco de um confronto de quereres e poderes que se submete ao princípio da eficácia: eis por que a atualização das escolhas feitas pelo enunciador frente ao repertório de possibilidades virtuais são estratégicas. Todo ato comunicativo visa ao convencimento: os participantes não só querem vencer um ao outro, como obrigar ao outro a partilhar de sua vitória. Dessa forma, a noção de estratégia contraria o ponto de vista objetivista e determinista do sistema, pois ela é da ordem prática do uso, não implicando a obediência mecânica às regras explicitamente codificadas. A estratégia é simultaneamente (1) o conhecimento das regras para a elaboração de um programa de ação – seleções, combinações, rupturas – que conduza ao êxito; (2) a competência interpretativa da performance do interlocutor, permitindo ao sujeito ir dos atos às intenções do outro de forma a construir uma representação global de seu ser, seu querer e seu possível fazer; (3) a competência manipulatória com vistas a fazer o interlocutor agir no quadro e em proveito do programa de ação por ele estabelecido. Ora, com o discurso penal não se passa diferentemente. Ele nasce da tentativa de o estado combater os crimes que ameaçam a sociedade, de um lado, penalizando os culpados; de outro, contém uma intenção explícita: advertir o cidadão das conseqüências concretas de seus atos criminosos. Nessa perspectiva, subjacente a ele, há sem dúvida, todo um processo persuasivo.62 63 62 ARNAUD, André-Jean. O direito traído pela filosofia. Tradução Wanda de Lemos Capeller, Luciano Oliveira. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1991. Arnaud critica a virtualidade do seu discurso e demonstra o seu conteúdo manipulatório, senão vejamos: "Se a existência de uma crise contemporânea de nossas sociedades é bem real, e se o impacto que ela pode ter sobre o direito é inegável, fica também claro que o mal-estar sentido por um certo número de juristas assenta-se, na verdade, sobre uma simulação de crise.(...)A fronteira entre o real e o jurídico só pode, por outro lado, ser transpassada por intermédio de um discurso. De tal forma que a crise da sociedade não é mais, em matéria jurídica, do que o discurso da crise. No final de contas, podemos perguntar se, no momento de ser examinada pelo jurista, a crise real não se viu substituída por um certo arranjo de signos que transpunham a crise em um modelo jurídico".(...)Uma das armas prediletas do poder consiste na utilização de uma doutrina pronta a persuadir que o discurso que ela mantém é real e apelar para a noção de crise para manter sua sobrevivência. Bastaria, portanto, que a crítica denunciasse a simulação e a aparência hiper-realista 71 É, assim, impossível desconsiderar o fato de que o direito penal se manifesta em textos, recorre a signos; é impensável ignorar que a própria cultura constitui-se em um emaranhado de sistemas simbólicos que se servem das linguagens como elementos de mediação e expressão suas representações. A harmonização social e a efetivação dos direitos fundamentais não estão diretamente relacionadas ao direito penal; não é recrudescimento das penas ou o tratamento dispensado ao cárcere que irá melhorar as desigualdades sociais de países como os de terceiro mundo. Ocorre que o direito penal atua, quase que exclusivamente, na condição de falácia simbólica, sendo usado, muitas vezes, para aplacar insurreições populares pela não efetividade do estado. Daí por que o ordenamento penal é constantemente relacionado com o simbolismo que ele próprio encerra. Os fenômenos como a neocriminalização ou recrudescimento exacerbado das coações penais se fomentam a partir de discursos que apregoam a necessidade de mitigação dos direitos e das garantias individuais, sustentados pela criação de falácias como a efetividade do direito penal enquanto símbolo de mediação e coação entre as vivências instintuais do homem e aquelas introjetadas pela cultura, pela adesão que implica o pertencimento a uma sociedade que se pauta pelas relações do direito. Assim, quando se fala de simbolismo em relação ao direito penal faz-se referência ao alargamento de sua destinação e de seus sentidos. O direito penal, tal qual aqui se compreende, não se reduz à mera explicitação das normas penais e/ou à coação desta última para que, através da sugestão a uma volta ao real e sua aceitação, pusesse termo a constante regeneração da ordem estabelecida pelo que a maioria considera como a crise e que não é mais, nesta fase, do que um modelo de crise. Assim, ao mesmo tempo, desapareceria toda a causa do mal-estar". 63 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2001, p.40. "É aqui que se faz necessário o exercício de uma crítica da ideologia, que revele vinculações políticas e éticas, subjacentes a posições assumidas por doutrinadores, juízes e legisladores, no campo do direito. Com isso, evita-se uma politização exacerbada da teoria jurídica, que a torna desprovida de um mínimo de objetividade, outro requisito necessário para que se possa considerá-la científica. [...] Na verdade, a ciência jurídica - como toda ciência, aliás - não tem como escapar completamente das influências ideológicas. É certo, também, que para ela é particularmente difícil uma "neutralização axiológica", e podemos mesmo duvidar de que isso seja desejável, pois se perseguimos esse já tão desgastado ideal com demasiada obstinação, terminamos por não cumprir um dos principais compromissos que se deveria assumir, ao fazer a ciência jurídica: o compromisso com a democracia e emancipação social". 72 penal ao seu infringir, pois ordenamento penal não encerra, em seu corpo, somente as normas punitivas, permissivas, explicativas, contempladas pelos códigos; também está implícito neles todo um conjunto de simbolismos (outros sentidos) que atuam concomitante e paralelamente às normas, cuja finalidade é operar estrategicamente, tendo em vista os objetivos pretendidos pelo texto legal. Dentre os simbolismos subjacentes ao direito penal, estão aqueles que lhe conferem funções a maior do que é sua proposta explícita, e que permitem que ele seja usado como medida de reforço ao combate à violência, ou de prevenção geral, em detrimento da específica da tutela penal. Na verdade, o direito penal constitui-se muito mais na forma, através da qual finalidades político-criminais são transferidas para uma sede teórica dogmática, do que um foro de efetividade de uma política social de prevenção geral e especial. A dogmática abstrata-conceitual, herdada dos tempos positivistas, opera um divórcio entre construção dogmática e acertos político-criminais de efetivação dos direitos e a garantias individuais. Por isso, quando se diz que eficácia dissuasória do direito penal não pode ficar sustada no efeito meramente simbólico do direito penal, faz-se referência a um dos sentidos contidos em seu discurso, aquele de caráter intimidatório, que funcionaria como forma de prevenção. Mas, o que se lhe cobra, portanto, é que comporte reais condições de ressocialização e reintegração dos apenados. Daí por que, para Sanchez, a história do direito penal moderno é muito mais aquela da confrontação entre direito penal vigente e a reforma do direito penal, em que são tomadas as considerações utilitaristas relativas ao menor dano social e à observância de outros princípios, tais como os de proporcionalidade, humanidade e igualdade. O balanço que essa oposição dialética deveria comportar é a redução da violência, do dano social causados pelas instituições penais, sem diminuir substancialmente o nível de prevenção do direito penal. Andrade, manifestando-se a respeito do engodo no que se constitui o direito penal simbólico, alerta para o fato de que se trata precisamente de uma posição entre o manifesto e o latente; entre o verdadeiramente desejado e o diversamente acontecido, 73 conseqüências reais do direito penal, do qual se pode esperar que realize, através da norma e de sua aplicação, outras funções instrumentais, diversas das declaradas, associando-se nesse sentido com o engano. 64 A norma jurídico-penal, além de pretender a tutela os bens jurídicos para a manutenção das relações interpessoais e a efetivacão da contenção de reações instituais que coloquem em risco a em vida em sociedade, realiza uma seleção de comportamentos relevantes, tipificando aqueles que lesionam ou expõem a perigo a sociedade, julgando-os adequados ou inadequados à convivência social. Possui então o direito penal uma função seletiva e garantidora da ordem jurídica. Segundo Rogério Greco e Fernando Galvão, “Além da função garantidora, podemos dizer também que ao tipo cabe uma outra, qual seja, a função de selecionar as condutas que deverão ser proibidas ou impostas pela lei penal, sob ameaça de sanção. Nesta seleção de condutas feitas através do tipo penal, o legislador, em atenção aos princípios da intervenção mínima e da adequação social, traz para o âmbito da proteção do direito penal somente aqueles bens considerados de maior importância, deixando de lado, ainda, as condutas consideradas socialmente adequadas. Desta forma a seleção das condutas a serem 65 proibidas ou impostas caberá ao tipo pena”. Vê-se daí que o direito penal não se encerra na letra fria da lei e de suas sanções; existe um simbolismo, isto é, a co-presença de outros sentidos, que emanam do direito penal e da própria pena que se constituem primeiramente no fim intimidatório da prevenção geral; e, em segundo lugar, na tentativa de reeducação e socialização do delinqüente, com vistas à para a tentativa de obtenção de um ideal de justiça, levando-se em conta uma intricada soma de fatores, para qual se conta com o caráter simbólico do direito penal para a minimização da delinqüência. Porém, o simbolismo do direito penal encobre questionamentos maiores que deveriam levar à sociedade a considerar o delito não somente enquanto fenômeno individual ou coletivo, encerrando-o na prevenção geral e especial, mas preocupar-se, isto sim, com a prevenção social ou primária que 64 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 293. 65 GALVÃO, Fernando, GRECO, Rogério. Estrutura Jurídica do Crime. Belo Horizonte: Mandamentos Livraria & Editora, 1999, p. 142. 74 ocorre devido à não disponibilização por parte do estado, da eficácia dos direitos fundamentais, como o direito à educação, à saúde. 66 A questão central não se resume, portanto, no caráter preventivo do direito penal ou em qualquer outro de seus simbolismos. O problema reside antes no fato de o discurso penal ficar, muitas vezes, restrito ao simbolismo, isto é, não ultrapassar o nível de construção de linguagem, não assumir sua performatividade. A esse respeito, Zaffaroni e Pierangeli dizem ser lógico que a pena, ainda que tenha em relação aos fatos uma função preventiva especial, sempre desempenha também uma função simbólica; no entanto, quando ela só cumpre essa última função, é irracional e antijurídica, por que se vale do homem como imagem e instrumento para a sua simbolização, o Estados Unidos como um meio e não como um fim em si; enfim, coisifica o homem. Em outras palavras, desconhece-lhe abertamente o caráter de pessoa, com o que viola o princípio fundamental em que se assentam os direitos humanos. 67 A prevenção e punição funcionam como partes autônomas e distintas e subsidiárias do direito penal, pois a finalidade maior do direito penal é assegurar a paz social, sendo a prevenção e punição derivações ou materializações, utilizadas pelo estado, para fazer cumprir seu desiderato. Para Carnelutti si la finalidad Del derecho en general consiste em asegurar la paz a la sociedad, la finalidad; del derecho penal está en excluir la resolución de los conflictos de intereses mediante la guerra (y, a su vez, la finalidad del derecho civil en garantirzar un modo de resolución de los conflictos diverso de la guerra); reflexionando que, en cuanto está prohibida por el derecho, la guerra se convierte en delito, la finalidad del derecho penal está, pues, en excluir o en combatir el delito”. 68 Muñoz Conde classifica as teorias da pena em absolutas, relativas e da união. A teoria absoluta, que teve, entre seus maiores defensores, Kant, entende a pena como 66 Nesse sentido diz WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. 2a versão. Porto Alegre: SAFE, 1995, p. 19. Conforme cita Warat: “Quando o legislador introduz estereótipos nas normas gerais está autorizando os juízes a produzirem, em suas sentenças, definições persuasivas. Então, há que ser levado em conta um critério de decidibilidade e a idéia da finalidade ética da sanção. Desta forma, por meio do processo de estereotipação são criadas as condições discursivas do senso comum teórico dos juristas”. 67 ZAFARONI, Eugênio Raul, PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, São Paulo Revistas dos Tribanais, 2005, p. 45. 68 CARNELUTTI, Francesco. Lecciones sobre el proceso penal. Buenos Aires: ediciones jurídicas Europa América Bosch y cia editores, 1950. vol. I 75 uma reação, uma imposição imperativa, conseqüência justa, necessária e lógica contra aqueles que atentaram contra a lei – seria a retribuição pura e simples, ou seja, poena absoluta ab effectu; A teoria relativa (Feurbach), que subdividia os fins da pena em duas espécies distintas, voltadas a prevenção especial e a teoria da prevenção geral, acredita que, para cumprir seu papel de proteção e manutença da paz social, o direito necessita ter em seu poder instrumentos hábeis que proporcionem o fiel cumprimento de suas disposições e não somente conferir à sociedade que lhe outorgou esta incumbência, o que seria uma resposta simbólica no que se refere ao combate à criminalidade. 69 Para as teorias da prevenção geral, o fim da pena consistiria na intimidação dos cidadãos, para que se afastem da prática de crimes (Feurbach): trata-se de uma coação psicológica sobre os cidadãos. Os pensadores das teorias da prevenção especial consideram que a finalidade da pena é o afastamento do delinqüente da prática de futuros crimes, mediante sua correção e educação, através de seu distanciamento da sociedade e de sua colocação sob a custódia do estado que ficaria então responsável pela sua socialização (Von Liszt). 70 A teoria da união apresenta-se como um divisor de águas. Trata-se de uma posição intermediária entre as duas teorias precedentes: centra-se na finalidade da pena tanto no sentido de prevenção geral como de prevenção especial, unindo assim os estágios ou fases da pena, com vistas a que a mesma cumpra funções distintas: no momento da ameaça da pena (legislador), é decisiva a prevenção geral, no momento da execução da pena, prevalece a prevenção especial, porque então se pretende a reeducação e socialização do delinqüente. 71 Confirmando as assertivas antes mencionadas, Canotilho argumenta que a teoria da constituição defronta-se com problemas de simbolização. Tais problemas são agitados por três correntes teoréticas: (1) a sociologia crítica; (2) a teoria sistêmica; (3) a arqueologia mítico-retórica. A sociologia crítica insiste na simbolização da constituição, 69 MUÑOZ CONDE, Francisco. Teoria Geral do Delito. Trad. de Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1998, p. 70. 70 Nesse sentido LUISI, Luiz. O Tipo Penal, A Teoria Finalista e A Nova Legislação Penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. 1987, p. 80. 71 ALBERGARIA, Jason. Das penas e da execução penal. Belo Horizonte: Del Rey, 1992, p.45. “Parte da idéia da retribuição como base, acrescentando os fins preventivos e gerais. Aparece como uma solução 76 realçando a incapacidade das normas para obter eficácia real; sua eficácia é enunciativa. Em muitos casos, existe uma clara dissociação entre a prática de dizer e a prática de fazer o direito. No que respeita à constituição, existiria mesmo uma relação inversamente proporcional entre o caráter ideológico das normas e sua eficácia, entre a prática criadora e a prática aplicadora do direito constitucional.72 Numa posição próxima, mas alicerçada em pressupostos teorético-sistémicos, a constitucionalização simbólica compreende que, ao texto constitucional, numa proporção muito elevada, não correspondem expectativas congruentemente generalizadas e, por conseguinte, consenso suposto na respectiva sociedade. Nessa perspectiva, a constituição não se desenvolveria como instância reflexiva do sistema jurídico. Por fim, a arqueologia mítico-utópica articula constituição, constitucionalismo e codificação, a fim de denunciar o artificialismo do sistema constituinte como assente num pacto fundador, mesmo quando esse sistema se esconde atrás de teorias de consenso, teorias contratualistas, teorias comunicativas ou teorias processuais. Aqui, o alvo da crítica não é tanto o divórcio do discurso constitucional em relação aos discursos reais no seio da sociedade, mas o projeto da modernidade ao qual o constitucionalismo está indissoluvelmente ligadoe que esquece os mitos fundadores das comunidades políticas. 73 O direito penal meramente simbólico, isto é, que não ultrapassa a mera construção de linguagem carece de legitimidade por tornar a norma penal instrumento manipulatório a serviço do medo e da insegurança da sociedade, sustentando seu poder. Num rigor desnecessário, desproporcional e ineficaz, que sabendo-se inútil ou impossível na sua efetividade, opera a médio prazo descrédito no próprio ordenamento, mina o poder intimidatório de suas sanções. Por outro lado é preciso ter claro que qualquer que seja o simbolismo contido no discurso penal, ele é da ordem do ideológico. de compromisso na luta das escolas. Retribuição e prevenção são dois pólos opostos de uma mesma realidade, que se coordenam mutuamente, e não podem subordinar-se um ao outro”. 72 CANOTILHO J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Livraria Amedina, 2001, p. 1260. 73 Nesse sentido CUNHA Paulo Ferreira, Constituição, Direito e Utopia. Do Jurídico-Constitucional nas Utopias Políticas, Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 251 e ss e 349 e ss. 77 Daí reafirmar-se que o direito é uma ciência humana parcial que traduz a vontade política encerrada em determinada dimensão valorativa. Se a classe dominante dita as regras do jogo, o ordenamento legal por ela projetado está impregnado de ideologia e de privilégios. A técnica do direito é fazer crer a aquele que sofre sanções ou que tenha seus direitos ofendidos deve buscar individualmente o reconhecimento de um direito e ou de interesses coletivos. Mas, se a lei e o direito estão a serviço da classe dominante, na defesa dos interesses da sociedade capitalista, servindo como instrumento de garantia da segurança de suas expectativas, nada mais coerente que as normas sejam uma projeção de seus valores. Logo, a lei nem sempre revela o direito, pelo contrário, muitas vezes consagra privilégios. Assim, embora o direito e, em particular, o sistema legislativo, seja a expressão dos valores da classe dominante, faz parte de sua função atenuar pressões e conflitos existentes na sociedade, pois só assim a classe dominante se sustentará no poder. Por isso lhe cabe dirimir as lides existentes e garantir ao cidadão um mínimo de credibilidade, segurança e certeza, necessárias à sustentação do poder instituído. Mas, como afirma Nery Júnior, o discurso jurídico é, acima de tudo, uma consciência valorativa social, verdadeira ordem hierárquica que, na dinâmica econômica e social da formulação da ordem jurídica, não se presta objetivamente a neutralidades axiológicas.74 Assim, neutralidade proposta pelo positivismo jurídico ignora que as normas jurídicas estão inseridas em um contexto, cuja ação e comportamento elas devem regrar, privilegiando de tal forma o ordenamento, que acaba por relegar o social a um segundo plano, reafirmando, pelo seu tecnicismo acrítico o caráter restritivo e limitativo do positivismo jurídico-filosófico, o que implica a desconsideração do processo histórico global e sua evolução. Kelsen, em sua Teoria pura do direito, tampouco foi neutro; ao contrário, desenvolveu um discurso indicador de visível manobra ideológica, com intuito de justificar o afastamento dos juristas da problemática social. Essa supressão 74 SILVEIRA, José Néri da. A Função do Juiz. Palestra proferida na AJURIS. 78 voluntária do sentido social da lei pode ser testemunhada pela convicção professada por ilustres teóricos do direito, que, posicionando-se na trilha da escola kelseniana, sustentam a neutralidade e objetividade da ciência jurídica. 75 76 Não obstante, esse rigor formal não é por acaso; ele serve aos propósitos dos detentores do poder, na medida em que confirma e legitima a ideologia da norma original, adaptando-a, interpretando-a no mais das vezes em função dos interesses dos detentores do poder.77 Segundo Severo, na verdade, a descontinuidade entre a teoria e práxis é aparente. É exatamente a dialética entre estes dois pólos que proporciona ao direito à obtenção de seus efeitos na materialidade social. O direito, enquanto teoria, só tem razão de ser se voltado a uma prática e vice-versa. Com efeito, tanto a teoria quanto a práxis jurídicas não são autônomas, nem determinadas mecanicamente pelo estado ou pela sociedade. O direito é parte constitutiva da complexidade das relações sociais, sendo influenciado por suas relações de força, em um dado momento histórico, e tendo, por sua vez, papel decisivo na determinação hegemônica dessa configuração de poder. Assim possui, contraditoriamente, componentes legitimadores da dominação social.78 75 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 78 Quando os juristas identificam, acompanhando o pensamento kelseano, o Estado e o direito, suprimem a vida privada delegando aos órgãos encarregados de produzir as significações jurídicas o poder absoluto para ler a história das normas jurídicas. Assim, o estado adquire o monopólio da memória jurídica e provoca a purificação da memória coletiva sobre o passado e presente das normas. Certamente controlando-se o passado e o presente das normas, controla-se também o passado e o futuro da sociedade. Desse modo resulta difícil aceitar que a democracia se realize reconhecendo aos encarregados da produção dos significados jurídicos, como única instância habilitada para reescrever a história da lei. Uma história ‘pura’ que é sempre uma história elaborada pelo desejo do esquecimento: as normas são válidas se pertencerem a um sistema sem memória, que em sua totalidade é ineficaz. A instituição da sociedade precisou, até a hora, de um conjunto de significações imaginárias, organizadas e constituintes. Elas são sempre uma resposta aos caos, são sempre sua negação simbólica. Visam dar uma significância ao ser, ao mundo e a sociedade pela própria sociedade. Devem mascarar o caos, e, em particular, ao caos constituído pela própria sociedade. Elas o mascaram reconhecendo-o como falso por sua omissãoocultação, fornecendo-se uma imagem, uma figura, um simulacro que preserva o homem da dolorosa experiência de enfrentar o abismo de sua existência, sem compensações imaginárias. 77 ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do estado. Rio de Janeiro: Graau, 1983,. p. 33. “Mas, dentro dos parâmetros estabelecidos, o microlegislador pode desenvolver uma tarefa normativa que chega a desfigurar o teor normativo original, ultrapassando os parâmetros estabelecidos. Essa ultrapassagem pode-se dar ou no sentido da radicalização do teor normativo ou no sentido de libertação do conteúdo legal; é, pois, um duplo movimento de exacerbação ou libertação do que a lei geral dispõe e é sempre um ato político, pois está interimplicado com o exercício do próprio poder ou do próprio saber enquanto poder.” 78 ROCHA, Leonel Severo, Epistemologia Jurídica e Democracia. São Leopoldo: Unisinos, 1998, 48. 76 79 Argumenta o autor que nem seria aceitável erigir a ordem jurídica positiva em si mesma, como exclusiva medida do justo, sob pena, desde logo, de renúncia à realização do valor da justiça, naqueles convívios sociais, em que não se garantem a liberdade ou o livre desenvolvimento da personalidade, nem se dá eficaz proteção à pessoa humana, contra a exploração econômica, que humilha, por vezes, frações majoritárias de integrantes dessa mesma comunhão social. Quer se queira ou não, o discurso do direito configurara-se como um dos aparelhos mais eficazes de preservação dos valores de uma dada sociedade e cultura. Por isso é preciso que se diga, seu caráter é ideológico, e mais ainda, os operadores do direito não ficam imunes a influencia dessa ideologia. Assim, o direito não é neutro. Basta analisar o momento histórico de seu surgimento, o contexto dos interesses que direcionam a feitura da norma jurídica e a realização e efetivação da justiça. As normas surgem em dado momento histórico, numa dada formação social, oriundas de uma determinada necessidade, de uma dada classe que manipula os instrumentos normativos e políticos necessários à manutenção de um padrão específico de dominação. As diretrizes emanadas dessa classe dominante, que, em um dado momento, dita valores, provocam a alienação dos demais cidadãos, que são levados a crer na utopia de uma ordem legal equilibrada e harmoniosa, na qual os conflitos sócio-econômicos são mascarados e resolvidos pela força retórica das normas. 79 79 Nesse sentido PASUKANISE. B; Teoria geral do direito do trabalho e o marxismo.. Rio de Janeiro: Renovar, 1989. op. cit. nota 32. p. 58. “O direito enquanto fenômeno social objetivo não pode esgotarse na norma, seja ela escrita ou não. A norma como tal, isto é, o seu conteúdo lógico, ou é deduzida diretamente de relações preexistentes, ou então representa, quando promulgada como lei estatal, um sintoma que nos permite prever, com certa verossimilhança, o futuro nascimento de relações correspondentes. Para afirmar a existência objetiva do direito não é suficiente conhecer o seu conteúdo normativo, mas é necessário saber se esse conteúdo normativo é realizado na vida pelas relações sociais. A fonte habitual de erros neste caso [e o modo de pensar dogmático que confere, ao conceito de norma vigente, uma significação específica que não coincide com aquilo que aquilo que o sociólogo ou historiador compreendem por existência objetiva do direito. Quando o jurista dogmático deve decidir se uma forma jurídica determinada está em vigor ou não ele não busca estabelecer genericamente a existência ou não de um fenômeno social objetivo determinado, mas, unicamente, a presença ou não de um vínculo lógico entre a proposição normativa dada e as premissas normativas mais gerais. Não existe, para o jurista dogmático, no interior dos estreitos limites de sua atividade puramente técnica, verdadeiramente, nada além das normas; ele pode identificar, com muita serenidade, direito e norma. No que concerne ao direito costumeiro, ele deve, queira ou não, voltar-se para a realidade. Mas se a lei estatal é para o jurista o supremo princípio normativo, ou para empregar a expressão técnica, a fonte do direito, as considerações do jurista dogmático acerca da existência do direito vigente nada significam para o historiador que queira estudar o direito efetivamente existente. O estudo científico, vale dizer, teórico só pode levar em consideração realidades de fato. Se certas relações constituíram-se em concreto, isto significa que um direito correspondente nasceu; mas se uma lei ou decreto forem editados sem que nenhuma relação correspondente tenha aparecido, na prática, isto significa que foi feito um ensaio de criação de direito, sem nenhum sucesso.. Este ponto de vista não equivale à negação da 80 Assim, o discurso da cultura se faz presente acima de tudo, impondo aos interlocutores à submissão forçada a uma dada estrutura. Só ao e por aceitá-la, o indivíduo pode sobreviver. A esse corpo sistemático de representações e normas que ensinam a conhecer e a agir, chama-se de ideologia. Ela responde a um pânico metafísico de desagregação e dá conta de uma estruturação social e política que possibilite a vida em comunidade. Todos precisam, a cada momento, pensar sua relação com a natureza e com os outros. Daí a função prático-social da ideologia. A estrutura da ideologia garante simultaneamente a interpelação dos indivíduos como sujeitos, a submissão ao poder, o reconhecimento mútuo dos papéis, bem como a manutenção da ordem, uma vez que faz com que tudo pareça coerente da maneira como está formulado. A ideologia recruta sujeitos entre os indivíduos através de uma operação precisa: a interpelação. E o interpelado sempre se reconhece. A ideologia, então, submete-o, ao fazê-lo reconhecer o seu lugar na estrutura. Essa sujeição não é conseguida somente através das idéias; ela existe materialmente através de um conjunto de práticas e rituais situados no seio de instituições concretas – os aparelhos repressivos e ideológicos do estado. Embora distintos, esses aparelhos funcionam de maneira compatível, agindo de forma a conseguir a unidade do efeito de sujeição sobre os agentes sociais ao seu alcance. Nessa direção, é preciso reconhecer não só que o próprio sistema legislativo também se submete à ideologia, como passa a atuar como aparelho repressivo: os textos legislativos sistematizam as regras que devem nortear a convivência dos homens numa dada cultura. Ora, se Marx tem razão, a ideologia dominante é sempre a da classe dominante que por deter o poder do estado, harmoniza e compatibiliza os aparelhos do estado. Há uma continuidade em seus textos que os esclarece e os completa. vontade de classe como fator da evolução ou a renúncia da intervenção consciente no curso do desenvolvimento. A ação política pode superar muitas dificuldades; pode realizar amanhã aquilo que não existe hoje, mas, não pode fazer existir subitamente, aquilo que não existiu no passado”. 81 Segundo Althusser, é uma forma de produção determinada e as relações por elas geradas o fator determinante, numa sociedade, de todas as outras as relações e produções geradas. Dessa forma, essa estrutura de produção dominante subordina e compatibiliza as outras. Mais do que isto, é nas outras, pelos seus efeitos, que pode ser percebida. Ela é imanente aos seus efeitos, consiste neles. Daí por que as idéias dominantes de uma época são as da classe dominante: pois essa, ao dispor dos meios de produção materiais, dispõe também dos meios de produção intelectual. 80 A partir dessas constatações, muitas das articulações das normas jurídicas com a cultura e a ideologia se esclarecem. Evidencia-se que a norma jurídica: (1) não é o discurso instaurador da ordem; há, não obstante, uma ordem, uma lei, para aquém do discurso legislativo, da qual ele fala e a qual ele regulamenta – a lei da cultura; (2) emana não da vontade geral, mas de um aparelho repressor do estado, uma instituição, sendo, portanto, compatível com outras estruturas e buscando sujeição ao poder; (3) tem por função preservar a ideologia, que é a ideologia dos dominantes; (4) não é neutro, medeia conflitos de interesses, privilegiando os interesses dos dominantes; (5) controla, mais do que a obediência à lei, quem deve obedecer; (6) estabelece prescrições e obrigações, definindo “como” se pode transgredir. A lei existe para ser transgredida; (7) só proíbe o que a própria sociedade suscita em termos de desejo; (8) deixa lacunas propositais, pois não pode desvelar suas intenções e incoerências. Segundo Zaffaroni conforme as opiniões mais generalizadas atualmente, a pena, entendida como prevenção geral, deve ser retribuição; entendida como prevenção especial, deve ser reeducação e ressocialização. “A retribuição deve devolver ao delinqüente o mal que este causou socialmente, enquanto a reeducação e a ressocialização devem prepara-lo para que não volte a reincidir no delito. Ambas as posições costumam ser combinadas pelos autores, tratando de evitar suas conseqüências extremas, sendo comum em nossos dias à afirmação de que o fim da pena é a retribuição e o fim da execução da pena é a ressocialização (doutrina alemã contemporânea mais corrente)”.81 . 80 ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do estado. Rio de Janeiro: Graau, 1983. 82 O equilíbrio do terror vincula-se à capacidade destrutiva dos armamentos humanos que, pelo medo, não seriam utilizados sob pena de destruição total. Prendia-se, quando da guerra fria, à situação de animosidade existente entre o bloco soviético e o bloco americano. Mesmo não havendo mais a polaridade de forças militares do passado continua atuante a possibilidade de destruição total apresentada no argumento de Bobbio: o medo continua, pois, sendo uma razão da paz. A mediação do conflito evita atividades extremadas e desarrazoadas da vítima estatal. Portanto, para se alcançar a paz perpétua, condição precípua para a existência de direitos fundamentais, deve a comunidade internacional comprometer-se tanto para evitar a ação terrorista, como para controlar os meios adequados para sua punição. A magnitude do poderio destrutivo da ação e da reação do terrorismo exige a busca de mecanismos preventivos e o cultivo da paz para a própria preservação da existência da humanidade. A civilização construída na idade moderna vincula-se, notadamente, à teoria contratualísta da formação do estado, que pressupõe a construção de um estado em que haja a redução da violência, no banimento da visão pré-estatal do "homo homini lupus". Toda violência constitui-se em ato de ataque universal aos direitos fundamentais, pois a sua negação é antecedente necessário à proteção estatal dos direitos fundamentais. O julgar ético deve, pois, preceder ao agir político internacional. A legitimidade das ações internacionais passa, conseqüentemente, a ser tópico imprescindível para a escolha do que pode e do que não pode ser feito na “guerra contra o terror”. O mundo, por meio da persuasão diplomática, deve ser convertido em pacífico pelos diversos atores internacionais, obrigando a efetiva proteção dos direitos humanos. Há, pois, necessidade de se combaterem as causas dos atos terroristas e a reação a esses atos, visto que a paz – elemento polar da violência – coloca-se como antecedente dos direitos fundamentais. No que concerne ao simbolismo do direito penal, há de ser observado que um dos efeitos decorrentes do atentado terrorista do 11 de setembro foi a potencialização da 81 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. A perda de legitimidade do sistema penal. Tradução: Vânia Romano Pedrosa, Almir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 26-27. 83 capacidade simbólica ínsita ao direito penal, operando uma expansão do direito penal sem precedentes na história das legislações democráticas do planeta.82 O Patriot Act é a expressão do expansionismo de legislação, ocorrida após o atentado às torres, a reação mais visível e imediata adotada pelo povo e o governo americano para combater os atos de terrorismo perpetrados no fatídico dia 11 de setembro de 2001. Assinada pelo presidente George Bush em 26 de outubro de 2001, após rápida e quase unânime aprovação do senado, a citada lei expande o nível de atuação de agências nacionais de segurança (FBI), bem como das internacionais de inteligência (CIA)), conferindo-lhes poderes até então inéditos. O texto, além da autorização de agentes federais a rastrear e interceptar comunicações de eventuais terroristas, torna mais rigorosas leis federais contra lavagem de dinheiro; faz com que leis de imigração sejam mais exigentes; cria novos crimes federais; aumenta a pena de outros crimes anteriormente tipificados; institui algumas mudanças de procedimento, principalmente para autores de crimes de terrorismo. 83 82 84 85 Logo, há inúmeras causas ensejadoras do ataque terrorista de 11 de setembro, ligadas à política externa e à hegemonia americana. Transpõem, nesse aspecto, as fronteiras das mortes ocorridas no próprio evento e passa a ser acontecimento de maior amplitude e temor, visto simbolicamente como expressão de intolerância radical ao modelo capitalista neoliberal e à política externa americana que a todo o momento submete os países de terceiro mundo a um imperialismo sem precedentes que mata exércitos de fome, Estados Unidos seres humanos como cobaias, enfim incide seu poderio indiscriminadamente sob todo aquele que não compactua de suas diretrizes. 83 Também conhecido como USA/SPA (United States Patriot Act, acrônimo para Uniting and Strengthening America by providing Appropriate Tools Required to intercept and Obstruct Terrorism e Lei Pública nº 107-56. Para acessar cópia eletrônica do mesmo: http://news.findlaw.com/cnn/docs/terrorism/hr3162.pdf. Deve-se, aqui, destacar o teor da sigla, que significa "unindo e fortalecendo a América ao conceder instrumentos adequados exigidos para interceptar e obstruir o terrorismo", tendo um caráter ideológico e emblemático da própria nomenclatura do ato. É inegável que há, mesmo que intrinsecamente, uma noção de união e luta da América para criar instrumentos para obstrução do terrorismo, retratadas nesta lei. 84 Império do medo, p.33 “Gastando mais em defesa nacional (350 bilhões de dólares, sem contar os gastos com a guerra no Iraque, e esses números tendem a subir) do que o conjunto dos 15 maiores gastadores mundiais nesse setor (os orçamentos de defesa nacional da totalidade dos aliados americanos somam 220 milhões de dólares) e dispondo de armamentos de alta tecnologia que nenhum outro país consegue ter, os Estados Unidos podem com facilidade arrasar qualquer nação que julguem ser inimiga. São formidável adversário, pronto para eliminar um terrorista qualquer em um remoto deserto, por meio de um míssil disparado de uma aeronave Predator não-tripulada, ou pronto para derrubar um regime hostil mediante ameaças de índole militar, ou ainda para desfechar em qualquer canto uma guerra preventiva antes mesmo que qualquer ato de agressão tenha sido cometido contra os interesses americanos”. 85 Nesta medida o ataque ao World Trade Center implicou na vulnerabilização do que parecia invulnerável: a hegemonia econômico, estratégica, bélica, imperialista da sociedade americana. O ícone da livre iniciativa, do capitalismo neoliberal (como tudo que isso implica) era ao World Trade Center, maior complexo comercial do mundo, sede de inúmeras empresas multinacionais. Com 415 metros de altura, as Torres Gêmeas eram as estruturas mais imponentes construções da época em termos imobiliários, uma das maiores do mundo, tendo sido construídas ao custo de US$ 750 milhões. Por outro lado, o Pentágono, alma da defesa estratégica americana, exibia o poder americano de domínio do mundo com sua sofisticada concepção e tecnologia. O Pentágono é o prédio em que funciona o Departamento de 84 O poder mundial não pode ser visto sob o prisma da individualidade de uma nação, por mais hegemônica que ela seja, mas sempre dependente de apoio dos demais. Em conseqüência, assim como o poder interno de determinado governo deve ser obtido por meio do apoio da maioria, no âmbito internacional, o poder deve ser obtido com o apoio das outras nações às ações governamentais internacionais daquele país, sob pena de uso de violência. A verificação da existência da hegemonia americana no mundo contemporâneo e dos conseqüentes conflitos mundiais, de forma direta ou indireta, decorrentes da política externa intervencionista americana, permite uma melhor abordagem para a questão, ao dar-se maior ênfase às causas do que às conseqüências da intolerância (atos terroristas). Aceitando o pressuposto de que os ataques de 11 de setembro foram planejados e implementados por rede de terroristas muçulmanos descontentes com a postura americana no oriente médio, há necessidade de a comunidade internacional atuar de forma preventiva para diminuir o descompasso político, social, econômico e cultural de oportunidades de diferentes países e grupos étnicos, notadamente com ênfase na questão Palestina. Diante do exposto, não surpreende, por exemplo, que os reflexos do atentado terrorista de 11 de setembro tenham acentuado uma tendência progressiva de expansão do direito penal, diante da evidente inoperância do estado em promover políticas preventivas de combate à criminalidade organizada. Essa expansão assumiu contornos inusitados, tendo em vista a tradição democrática de direitos fundamentais, estruturada durante todo o transcorrer da história da humanidade – direitos e garantias, hoje ameaçados, pela possibilidade de uso indevido de doutrinas jurídicas e de um discurso jurídico penal emergencial que, através da cultura do medo, promovida pelo mass mídia, operam e direcionam a violência de maneira discriminatória, pautando-se pela lógica do poder econômico. O atentado precipitou a configuração de novos bens jurídicos e de uma onda de flexibilização das estruturas dos princípios do direito penal, criando um discurso Defesa Americano na capital americana de Washington D.C. A construção, concluída em 1943, tinha sido realizada com o objetivo de integrar em cinco pentágonos concêntricos todos os setores governamentais militares. Todos esses ícones e suas representações foram abalados com o ataque de 11 de setembro, que propositadamente buscou tê-los como alvos simbólicos de seu poderio e de sua hegemonia econômica sobre as demais nações. 85 jurídico penal sustentado pela construção de efeitos de linguagem que endossam seu caráter preventivo, ineficaz e contraproducente, na tentativa de proporcionar ao cidadão a segurança jurídica que espera do estado. A ansiedade por proteção e assistência é tão urgente que passa a prestigiar o caráter instrumental do direito penal, em detrimento de seu perfil garantista. 86 87 Como já se viu, o que interessa ao senso comum é a segurança contra a criminalidade, ainda que, com ela, o cidadão se veja obrigado a abdicar de parâmetros existenciais, tais como a relativização da liberdade. A história da humanidade ensina que o pânico social é terreno fértil para assunção de determinadas ideologias, que fomentam e dão sustentação ao discurso jurídico penal. Aliás, a linguagem é matéria propícia para tornar propícia a carência de efetividade do direito penal, cuja progressiva deslegitimação abre arrestas sociais para a difusão de ideologias reacionárias que pretendem aniquilar ou anular todo aquele que não corresponde ao modelo apregoado pelo modelo econômico vigente ou não adere conformada e subservinientemente à imposição do consumo. Com isso, aumenta progressivamente os que estão fora. Mas o que fazer com esses contingentes, cada vez maiores de excluídos? Perpassam, então, a discussão a respeito do discurso do direito penal as questões referentes à legitimação do direito penal e de seus objetivos; à necessária teorização sobre a finalidade das penas e o seu papel no contexto de uma sociedade democrática 86 É impossível desconsiderar o fato de o pensamento humano recorre aos signos, de que a cultura constitui-se em um emaranhado de sistemas simbólicos e de as linguagens que servem de elementos de mediação e expressão dessas representações; e de que desde sempre decretou-se a impossibilidade de acesso direto ao real. Afinal, os textos não são o real. O mundo se nos apresenta por todos os sentidos; nos textos, somente algumas dessas propriedades são transpostas para a superfície artificial do papel. Essa alteração constitui-se numa redução muito grande dos atributos do mundo representado, pois, a rigor, somente alguns traços são imitados, e tais traços, assim selecionados e transpostos, pouco dizem em relação à riqueza do mundo material: são figuras, não objetos do mundo. Além disso, as parcelas de real não correspondem a seleções arbitrárias: não obstante, são essas seleções que determinam o que e como o real vai ser mostrado. Nessa perspectiva, está-se a frente a uma construção de linguagens: não mais ao real, mas a uma realidade discursiva. 87 Com efeito, a ausência do direito penal suporia o abandono do controle da desviação ao livre jogo das forças da sociedade: uma dinâmica de agressão-vingança, vingança agressão. Entre as maneiras de limitar a intervenção do Estado temos quanto à definição típica a exigência de uma definição mais taxativa possível dos comportamentos ao qual deve intervir o direito penal, assim como as sanções que o direito penal deve aplicar (garantia penal e criminal do princípio da legalidade ou reserva legal) e a exigência de um processo com os devido requisitos para que um juiz natural determine a sanção a aplicar (garantias jurisdicionais) e ao fim a execução da sanção da forma previamente estipulada e pretendida pelo juiz e pela lei correspondente ao caso (garantia da execução). Ademais progressivamente dentro do mesmo conceito amplo de formalização vão se assumindo pelo próprio estado, funções de autolimitação material, por exemplo, a atribuição da pena com efeitos ressocializadores, auto exigência da proporcionalidade. 86 que recepciona como norma fundamental os direitos e garantias individuais e a dignidade da pessoa humana, bem como àquela referente à legislação expansionista produzida após o 11 de setembro e às mudanças que dela decorreram no ordenamento jurídico mundial. 88 A ampliação do sistema penal, reforçada pelo discurso do medo, passou a exigir não somente uma função minimalista de tutela a bens jurídicos, mas uma função promocional de valores orientadores da ação humana na vida comunitária, implicando a inflação do sistema de intervenções penal com uma demanda que revela um déficit de eficiência dos seus métodos de segurança, o que agrava o medo. Para Warat, indagar sobre o modo de significar é realizar uma análise das alterações significativas que as expressões lingüísticas vêm sofrendo nos processos históricos de comunicação. Os significados socialmente padronizados possuem sentidos incompletos, são expressões em aberto que apenas se tornam relativamente plenas em um contexto determinado. Assim, é impossível analisar o significado de uma expressão sem considerar o contexto na qual se insere, ou seja, o seu significado contextual. Ora, toda expressão possui um número considerável de implicações não manifestas. A mensagem nunca se esgota na significação de base das palavras empregadas. O sentido gira em torno do dito e do não dito. Dessa forma, o êxito de uma comunicação depende das condições que o receptor tem de interpretar os sentidos latentes. As formas gramaticais e a linguagem, por vezes, em lugar de ajudar na busca do sentido latente, servem, isto sim, para encobri-lo.89 O discurso jurídico penal, como qualquer fala humana, materializa-se em textos. Mas, todo o texto tem um sujeito produtor particular que, ao produzi-lo, possui uma intenção, um projeto de dizer; assim, cada vez que a atividade lingüística se realiza, 88 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de Derecho Penal, parte general, I. Argentina: Ediar,1987, p. 50 “el derecho penal tiene la función de proveer a la seguridad jurídica mediante la tutela de bienes jurídicos, previniendo la repetición o realización de conductas que los afectan en forma intolerable, lo que ineludiblemente, implica una aspiración ético- social. Cabe consignar que en este sentido xxx ‘ético’ para denotar lo que hace al comportamiento social, expresión que nada tiene que ver con la moral, que la entendemos como cuestión que incumbe a la conciencia individual y que, por ende, es autónoma. En este sentido, la ‘aspiración ética’ del derecho, es la aspiración que éste tiene de que no se cometan acciones prohibidas por afectar bienes jurídicos ajenos. La coerción penal busca materializar esta aspiración ética, pero la misma no es un fin sí misma, sino que su razón, su ‘ por qué’ ( y también su ‘ para qué’) es la prevención especial de futuras afectaciones intolerables de bienes jurídicos.” 89 WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. 2a versão. Porto Alegre: SAFE, 1995, p. 65. 87 tem-se, antes de tudo, um complexo ato social para o qual concorrem paralelamente duas ordens de elementos: um conjunto de mecanismos formais e uma gramática das condições de produção e um contexto no qual esse texto ganha sentidos. Ora, esse projeto de dizer, no que concerne ao direito penal, abarca não somente um complexo de leis a serem seguidas e as sanções a elas relativas, como uma proposta de silenciamento sobre todas as questões referentes às soluções não encontradas para as desigualdades sociais, decorrentes de um capitalismo predador e imperialista. Também Zaffaronni entende que a racionalidade que preside o discurso jurídico penal não pode esgotar-se em sua coerência interna. Ainda que pareça difícil imaginar, em razão da interpendência recíproca dos extremos configuradores dessa racionalidade, pode-se pensar em um discurso jurídico penal que, embora esteja antropologicamente fundamentado e respeite a regra da não contradição, não seja racional por ser sua realização social impossível ou totalmente diferente em sua programação. A projeção social efetiva da planificação explicitada no discurso jurídico penal deve ser minimamente verdadeira, ou seja, deve poder realizar-se em alguma medida. O discurso jurídico penal é elaborado sobre um texto legal, explicitando, mediante os enunciados da dogmática, a justificativa e o alcance de uma planificação na forma do dever-ser, ou seja, como um ser que não é, mas que deve ser, ou, o que é o mesmo, como um ser que ainda não é. Para que este discurso seja socialmente verdadeiro, são requeridos dois níveis de verdades sociais: a) um abstrato, valorizado em função da experiência social, de acordo com o qual a planificação criminalizante pode ser considerada como meio adequado para obtenção dos fins propostos (não seria socialmente verdadeiro um discurso jurídico penal que pretendesse justificar a tipificação da fabricação de caramelos entre os delitos contra vida; b) outro concreto, que deve exigir que os grupos humanos que integram o sistema penal operem sobre a realidade de acordo com pautas planificadoras assinaladas pelo discurso jurídico penal (não é socialmente verdadeiro um discurso jurídico penal quando os órgãos policiais, judiciais, do ministério público, os meios massivos de comunicação social, etc..., 90 contemplam passivamente homicídio de milhares de pessoas). O nível abstrato do requisito de verdade social poderia chamar-se de adequação do meio ao fim, ao passo que o nível concreto poderia ser denominado de adequação 88 operativa mínima, conforme planificação. Dessa forma, o discurso jurídico penal que não satisfaz a esses dois níveis é socialmente falso, porque se desvirtua da planificação do dever ser de um ser que ainda não é, para converter-se em um ser que nunca será, ou seja, que engana , ilude ou alucina. O discurso jurídico-penal não pode desatender-se do ser e refugiar-se ou isolar-se no dever ser, porque para que este dever ser seja um ser que ainda não é, deve considerar o vir-a-ser. Do contrário, converte-se em um ser que jamais será, isto é, em um embuste. Mais ainda, esse discurso jurídico penal socialmente falso é perverso: torce-se e retorce-se, tornando alucinado um exercício de poder que oculta ou que perturba a percepção do verdadeiro exercício de poder. A racionalidade que hoje preside o discurso jurídico penal, de forma bastante evidente, não cumpre os requisitos da legitimidade: atualmente, a racionalidade do discurso jurídico penal tradicional e a conseqüente legitimidade do sistema penal tornaram-se utópicas atemporais; não se realizam em lugar algum em tempo algum. Em uma sociedade livre e igualitária, deve-se substituir a gestão autoritária por uma gestão social que controle o desvio. Infelizmente, hoje, o próprio conceito de desvio perdeu, progressivamente, a sua conotação estigmatizante; não obstantem recuperou funções e significações diferenciadas que, é preciso que se diga, não são exclusivamente negativas. Aplicando-se um conceito positivo, poder-se-ia dizer que uma sociedade igualitária é aquela que deixa o máximo espaço ao desvio positivo, pois, nesse sentido positivo, desvio quer dizer diversidade. Já a sociedade desigual é aquela que teme e reprime o diverso, porque a repressão do diverso, em todos os sistemas normativos particulares em que ocorre, do direito à religião, à escola, à família, é uma técnica essencial para a conservação da desigualdade e do poder alienado. Eis por que, quanto mais uma sociedade é desigual, maior é a inflação de definições negativas de desvio. O sistema penal é excessivamente repressivo; e sua violência não se cinge frente à violência de leis inconstitucionais que se omitem em relação aos direitos humanos ou que os mitigam. Essa violência acontece também como resultado de pautas de conduta de setores sociais formados por distintos seguimentos do sistema penal que agem alicerçados em práticas de violência institucionalizada. 90 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. A perda de legitimidade do sistema penal. Tradução: Vânia Romano Pedrosa, Almir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 19. 89 Para Coppeti, as tensões, os homicídios, as sevícias, os tormentos, as torturas os castigos físicos, as violências sexuais praticadas, quando os perseguidos se encontram nas mãos do estado, revelam a existência de uma violência institucionalizada, cujo ocultamento se torna, cada vez mais, uma atividade de extrema dificuldade para os componentes do establisment estatal penal; dentre essas formas de violência, a mais notória é a morte. Assim, a deslegitimação do discurso e do sistema penal ultrapassa os limites teóricos, não só por sua fácil percepção, mas principalmente porque ela atinge diretamente a consciência ética humanista: existe ainda um processo de aniquilamento sem o devido processo legal de todo aquele que não adere ao modo de vida capitalista, que configura um sistema paralelo de aplicação de penas de morte sem qualquer processo. Esse é um expediente nada novo e freqüentemente empregado na América Latina.91 92 Para Roxin, o direito penal é muito mais a forma, através da qual as finalidades político-criminais podem ser transferidas para o modo da vigência jurídica. Se a teoria do delito for construída nesse sentido, teleologicamente, cairão por terra todas as críticas que se dirigem contra a dogmática abstrata-conceitual, herdada dos tempos positivistas. O divórcio entre construção dogmática e acertos político-criminais é um projeto impossível; da mesma forma o tão querido procedimento de jogar o trabalho dogmáticopenal e o criminológico um contra o outro perde o seu sentido. Deve-se ter presente que transformar conhecimentos criminológicos em exigências político-criminais, e essas, 91 COPETTI, André. Direito penal e estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 68. 92 TELES, Edson Luis de Almeida. A anistia e os crimes contra a humanidade. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, v.55, 2005, p. 322 “Os crimes contra a humanidade, as prisões, as torturas, o desaparecimento de opositores, foram técnicas empregadas na tentativa de calar o passado. Por sua vez as transições e os sistemas democráticos de organização políticas que sucederam os regimes autoritários, na maioria dos casos, de forma gradual, contribuíram para o velamento da memória política, porém, não com a eliminação, mas condenando a memória ao exílio da esfera pública, restrita à lembrança das testemunhas e familiares em suas relações privadas. Por meio de uma sociedade sem intimidade com os eventos do passado, a herança de tais regimes impõe aos seus cidadãos celebrarem o esquecimento e se contentarem com a consumação do instantâneo, do que vive a cada momento, sem acesso as idéias formadoras da cultura. Nas democracia pósautoritarismo, a memória é ameaçada pela eliminação das eliminação das informações, mas também por sua perda de valor. Dessa forma com uma ação menos brutal, porém com maior eficiência, cada cidadão torna-se o agente consentido da política do esquecimento, implicando uma deteriorização profunda no diálogo público. Com o esfriamento das relações democráticas, o deslocamento de problemas públicos para a esfera de assuntos privados pressupõe a imposição do esquecimento de conflitos e cisões geradores dos ressentimentos de um passado autoritário. Juntamente com o esquecimento, que objetiva a estabilização da sociedade”. 90 por sua vez, em regras jurídicas, da lex lata ou ferenda, é um processo cujas etapas são necessárias e importantes para a obtenção do socialmente correto. 93 Daí por que, para Coppetti, diante do desrespeito às garantias dos cidadãos, não só pelos próprios cidadãos, mas também e principalmente, pelos poderes públicos, o direito do ponto de vista positivista-crítico-garantista, é concebido como um sistema artificial de garantias, possível pela específica complexidade de sua estrutura formal, que é marcada, nos ordenamentos de constituição rígida, por uma dupla artificialidade: (1) o caráter positivo das normas produzidas, característica fundamental do positivismo jurídico; (2) sua sujeição ao próprio direito, não só formal, mas também substancialmente, característica específica do estado constitucional de direito. Leciona Coppeti que o exercício do poder penal revela um conflito entre distintos grupos sociais, surgindo da imposição de certas pautas de conduta pelos grupos que detêm o poder, mas que, paralelamente a isso, não são atingidos por tais exigências legais; a máquina de controle penal opera seletivamente, de forma a não atingir os setores privilegiados que a montam, a controlam, ou são úteis aos seus objetivos. Há, assim, no plano social, a criação de um estereótipo criminal que aponta para os sujeitos a criminalizar, incluindo os membros de extratos inferiores e excluindo os dos setores hegenômicos. O padrão de delinqüente está associado à imagem de classes mais pobres e da criminalidade convencional, passando estrategicamente ao léu dos crimes de colarinho branco, dos crimes fiscais, dos crimes contra a administração pública. Ao mostrar repetidamente notícias sobre homicídios, lesões, crimes contra os costumes, todos eles cercados de violência, a mídia de massa oculta a criminalidade contra o patrimônio, sede de manifestação das diferenças de classe, veiculando somente determinadas espécies de crimes, especialmente de delitos que atingem indistintamente a todas as classes, buscando, com isso, dar uma imagem de igualdade na proteção dos bens jurídicos pelo sistema penal. 94 Atuando o direito como um sistema artificial de garantias que endossa o estado, através do discurso jurídico penal simbólico, pode-se compreender facilmente o que o 93 ROXIN, Claus, Tratado de Derecho Penal – Parte General, Tomo I, Civitas, 1997, p.252. COPETTI, André, Direito Penal e Estado Democrático de Direito, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 61. 94 91 leva à relativização das garantias em prol de argumentos alarmistas que fomentam a cultura do medo: está-se preparando e ensinando a sociedade a aceitar o respeito aos direitos e garantias individuais apenas como uma falácia idealista, engodo garantista, crível apenas na letra fria da lei. Em verdade, ensina Wunderlich que a política criminal repressiva implantada na década de noventa, veio antecedida por limitações que ferem de forma inexorável às garantias fundamentais asseguradas pela Constituição Federal e que implementam um direito penal meramente simbólico, pontuado mais por seu simbolismo e menos efetividade instrumental. Perpassa a discussão a respeito do simbolismo que encerra o direito penal a necessária teorização sobre a finalidade das penas e o seu papel dentro do contexto de uma sociedade democrática que recepciona como norma fundamental os direitos e garantias individuais e a dignidade da pessoa humana.95 96 A partir dessas constatações, muitas das articulações das normas jurídicas com a cultura e a ideologia se esclarecem, evidencia-se que a norma jurídica: (1) não é o discurso instaurador da ordem; há, não obstante, uma ordem, uma lei, para aquém do discurso legislativo, da qual ele fala e da qual ele regulamenta - a lei da cultura;(2) emana não da vontade geral, mas de um aparelho repressor do Estado, uma instituição, sendo portanto compatível com outras estruturas e buscando sujeição ao poder; (3) tem por função preservar a ideologia, que é a ideologia dos dominantes; (4) não é neutro, medeia conflitos de interesses, privilegiando os interesses dos dominantes; (5) controla, mais do que a obediência à Lei, quem deve obedecer; (6) estabelece prescrições e obrigações, definindo "como" se pode transgredir; (7) só proíbe o que a própria sociedade suscita em termos de desejo; (8) deixa lacunas propositais, pois não pode desvelar suas intenções e incoerências. 95 WUNDERLICH, Alexandre. Escritos de direito e processo penal em homenagem ao Professor Paulo Cláudio Tovo, RJ: Lumen Juris, 2002, p. 511. 96 A discussão a respeito do direito penal e de sua legitimidade quando priva o indivíduo de liberdade ou suprime direitos e garantias individuais não podem dispensar a referência a duas correntes teóricas: a de cunho abolicionista que rechaça em totum a validez da pena e afirma a ausência de propósitos a justificar sua aplicação; e as justificacionalistas que empreendem razão a aplicação da pena, não dispensando a visão do direito penal como instrumento/meio de controle social. A análise do aspecto temporal da aplicação da pena (o quando castigar) evidencia um problema de legitimação do próprio direito penal, de fato, a possibilidade do estado repreender determinadas condutas é, em outras palavras, a própria justificação do jus puniendi; qualquer análise, pois, que se faça as respeito do tema finalidade da pena, sempre dever-se-á ter em mente a finalidade do próprio Estado. 92 A paz perpétua pressupõe certa homogeneidade dos estados-contratantes do pacto federativo – com respeito ao seu regime interno (forma de governo), que não deve ser despótico, pois deve haver simetria dos estados – podendo se manifestar na necessidade de igualdade de voz no tratamento das questões mundiais globais, tal qual o terrorismo, não obstante a dificuldade de ser alcançada nas atuais circunstâncias, com a existência de estados não-democráticos. 93 2.1 A interpretação da lei frente ao discurso jurídico penal Interpretar é dotar de sentido qualquer fenômeno cultural que, enquanto objeto de interpretação, passa a ser concebido como um texto. É, portanto, indagar-se sobre a natureza de seu conteúdo e sobre o papel do receptor nesse processo de produção de sentidos. Mais ainda, é definir as possibilidades e os limites dessa interpretação.97 E o fato de um mesmo texto poder ser lido e interpretado de modos diversos nos diferentes contextos sócio-culturais de sua recepção acentua o jogo semiótico de interpretações. Mas, segundo Eco, existe uma apropriação perversa do conceito de semiose ilimitada que licencia o receptor a produzir um fluxo ilimitado e incontrolável de leituras. Mas a verdade é que todos os sentidos seriam nenhum sentido, impossibilitando qualquer tentativa de comunicação; daí por que é indicado explorar formas de limitar o alcance das interpretações admissíveis e de identificar certas leituras consideradas unânimes. Para quem pretenda investigar sentidos e significação e acredite que é no plano da projeção da linguagem que as condutas humanas aparecem como significando algo, que até mesmo os mecanismos involuntários possuem um sentido e que, nos objetos, nos ritos, nos discursos, o homem deixa atrás de si toda uma esteira de rastros que constitui um conjunto coerente e um sistema de signos, o texto é objeto de análise, por excelência. Os textos não estão aí simplesmente para que se acredite neles. Eles apontam, trazem marcas, rastros de seu processo de “imprensão”. E, se há marcas, deve haver aquilo de que são marcas. Trata-se, pois, de reconstituir os outros discursos que eles subjugam, de descobrir as palavras mudas, murmurantes, inesgotáveis. Trata-se de restabelecer os textos paralelos, de recuperar os pressupostos, de resgatar as recorrências que perpassam e percorrem o texto na sua totalidade. 97 HJELMSLEV, L. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 50 “...Considerado isoladamente, texto algum tem significação. Toda significação nasce de um contexto, quer entendamos por isso um contexto de situação ou um contexto explícito, o que vem a dar no mesmo; com efeito, num texto ilimitado ou produtivo (uma língua viva, por exemplo), um contexto situacional pode sempre ser tornado explícito”.. 94 Na verdade, a tarefa de quem interpreta é buscar, sob o que está manifestado, a conversa semi-silenciosa de outros discursos que, além de restituir ao enunciado sua singularidade de acontecimento, resgatam a instância do acontecimento enunciativo: o contar ideológico, o contar individual. O texto aparece então em sua pureza, livre para mostrar suas relações internas, suas relações dentro do sistema de significação, suas relações inter-semióticas. Dessa forma, para interpretar um texto é necessário considerar que: (1) todo texto contrai relações internas, entre os elementos que o constituem, isto é, entre os seus dois planos, conteúdo e expressão; (2) todo texto contrai relações externas com outros textos do inventário ao qual ele pertence, com os quais tem semelhanças e dessemelhanças; (3) todo texto contrai relações externas de caráter dialógico com outros textos que o precedem e sucedem na cadeia sintagmática; (4) todo texto, enquanto processo de significação, só pode ser compreendido em seu contexto. Conhecer os mecanismos de produção de sentido implica ultrapassar os limites do texto e mergulhar no discurso, lugar em que emergem as possíveis significações. Dessa forma, mais do que saber o que o autor quis dizer, interessa saber o que o texto diz, como ele diz, em que condições ele diz, e como ele faz para dizer o que diz. Não há mais espaço, na hermenêutica jurídica moderna, para sentidos apenas objetificantes, que dêem as costas a uma visão interpretativa da realidade, voltada à evolução histórica e social, pois o intérprete não está isolado da pré-cognição dessa realidade - da qual inexoravelmente faz parte. A compreensão do conteúdo da norma e a possibilidade de ajustá-la ao caso concreto pressupõem a postura crítica de um sujeito engajado ao ambiente sócio cultural que deu origem à mesma, ou, pelo menos, que dela tenha conhecimento. A filosofia hermenêutica não acontece sem o debruçar-se em uma crítica à ideologia subjacente norma, não podendo o intérprete se colocar à mercê da história efectual, distanciado do objeto, pela impossibilidade imposta por uma análise apenas racional. 98 99 100 98 SILVA, Kelly Alflen da. Hermenêutica jurídica e concretização judicial. Porto Alegre: SAFE, 2000. p. 444-445 “Enquanto a compreensão, a interpretação e a exploração hermenêutica permanecerem limitadas ao âmbito dos enunciados lingüísticos, por meio de um processo dedutivo de justificação que se 95 Segundo Rocha, pode-se dizer que o direito, enquanto teoria possui duas finalidades principais: a primeira, voltada à constituição de uma episteme, um sistema lógico-dedutivo de conhecimentos, apto a solucionar as lides privadas da sociedade; a segunda, direcionada ao estabelecimento de uma político-legislativa, preocupada com a justificação do ordenamento jurídico, que, por sua vez, centra-se, fundamentalmente, na elaboração legal, na origem legítima da lei. Com esse raciocínio, escamoteia-se qualquer possibilidade de discussão acerca de aspectos políticos-ideológicos da norma jurídica após a sua vigência, quando essa for considerada legítima em sua gênese. Assim, a lei tem um momento político, o de sua constituição; mas, a partir de sua vigência, sofre um processo de neutralização que coloca, em torno da validez jurídica, todo o tipo de questionamento.101 Sustenta Azevedo que o positivismo cumpre a função ideológica de congelar e petrificar as instituições e os conceitos jurídicos, consagrando, à sombra da indiferença ética, a desconformidade entre o direito e a realidade histórica. Nessa perspectiva, um intérprete que se paute pelo positivismo, menosprezando a evolução histórica, acaba por substituir a realidade pelo jogo conceitual, terminando por desconsiderar a realidade social sob o argumento de obediência ao rito metodológico positivista, negando, por via de conseqüência, o engajamento social e a realização da justiça. 102 completa na norma-decisão, estar-se-á possibilitando a legitimação da rejeição da responsabilidade políticas e função de decisões cada vez mais anautênticas em relação em relação à coletividade e à sociedade e das conseqüências efetivas destas decisões na realidade social”. 99 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p.234- 235. “O interprete do direito é um sujeito inserido/jogado, de forma inexorável, em um (meio) ambiente cultural-histórico, é dizer, em uma tradição. Quem interpreta é sempre um sujeito histórico concreto mergulhado em uma tradição. Para se ter acesso a um texto (e compreendê-lo), é impossível ao interprete fazê-lo como se fosse uma mônoda psíquica, utilizando o herdado da filosofia da consciência. O interprete é já, desde sempre, integrante de um mundo lingüístico”. 100 AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito, poder e opressão. São Paulo: Alfa-Ômega, 1990, p. 17. “Se tomarmos a expressão bem comum, sem qualquer esforço poderemos entendê-la como bem de todos, como bem de todos os membros de uma sociedade. Mas a observação dos fatos não possibilita chegar-se a essa conclusão, pois, sendo a lei a emanação normativa de um poder, e sendo esse poder instrumento de domínio de grupos sociais sobre outros, dificilmente esses grupos iriam legislar contra si mesmos, sob pena de se constituírem, pela primeira vez na História, em detentores suicidas do poder. Por isso, os grupos detentores do poder não vão permitir uma normatividade que venha ferir seus interesses, sua ideologia, seu modus vivendi. Ora, uma normatividade que favoreça dados grupos ou classes, necessariamente irá ferir os interesses, a ideologia e o modo de viver de outros grupos ou classes; logo, o bem legal não pode ser comum, pois emana de grupos para incidir sobre outros grupos. O bem comum, empiricamente observável, é o bem particular dos detentores das decisões.” 101 ROCHA, Leonel Severo, Epistemologia Jurídica e Democracia. São Leopoldo: Unisinos, 1998, p.48. 102 AZEVEDO, Plauto Faraco. Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica. Porto Alegre: Fabris, 1989. p.62. 96 Para Streck, a autenticidade da interpretação só pode surgir da possibilidade de o jurista/intérprete apropriar-se do compreendido. Essa apropriação dos sentidos compreendidos passa a ser a condição para que possa fazer uma interpretação que supere o conteúdo reprodutor/reprodutivo e objetificante, representado por esse habitus dogmaticus, que é o sentido comum teórico dos juristas. Essa apropriação é a chave para escancarar as portas do mundo inautêntico do direito e abri-las para as múltiplas possibilidades de desvelamento do ser dos entes (jurídicos). 103 Silva acredita que o direito é produto, origem e fruto, e fragmento de um todo comunicante-simbólico e semântico-pragmático: omne symbolum de symbolo. Como a esfinge de Emerson, só a linguagem pode dizer ao homem: de teu olhar eu sou um olhar. Ora se o direito for assim encarado, ficara evidente que quem legisla é o grupo social que detém o poder, por deter igualmente o controle da vida econômica e, conseqüentemente, política de uma sociedade. O grupo social ou grupos sociais instauram-se no poder como legisladores, pois, para subsistirem, tem que desenvolver um ideário, que um fundamente sua coesão, de continuidade e mesmo justifique sua conduta, internamente, em relação a si mesmo, e, externamente, em relação a outros grupos. Em termos mais simples, esses grupos tem de desenvolver um sistema de valores, uma visão do mundo segundo a ética de sua situação. Essa ideologia, é então, transfundida e destilada no teor das normas jurídicas emanadas desse grupo, o que evidencia que qualquer legislador nada mais é senão porta-voz do grupo a que pertence. “Mesmo se tomarmos os denominados órgãos colegiados, ainda assim, será o grupo majoritário nos colégios que imporá sua visão de mundo, sua moralidade como padrão fundamental da lei”.104 105 As normas jurídicas, como expressão do direito positivado, referem-se aos papéis sociais, funcionando como expectativas comportamentais de pessoas concretas, da determinação de papéis ou da relevância certos valores. Assim, os julgamentos sobre a preferibilidade de certas ações, traduzidas normalmente em termos tão abstratos, 103 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p.234. 104 SILVA, Patrícia Bressan da. Semiologia e direito: manifesto indagações epistemológicas para qualquer debate científico-jurídico. Jus Navigandi. Teresina: a. 8, n. 446, 26 set. 2004. 105 AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito, poder e opressão. São Paulo: Alfa-Ômega, 1990. 97 impossibilitam a hierarquização desses valores, que considerados em si mesmo, não podem justificar qualquer ação. Para compreender essas deliberações, é necessário, que elas sejam inseridas no seu contexto social, de origem, e, conseqüentemente, num espaço ideológico. Acontece, porém, que a desejável elasticidade legal, imposta por esse relacionamento da norma com o seu sentido social e ideológico, não se coaduna com a função estabilizadora que se exige do direito. Daí por que é necessária a investigação de outros recursos, ínsitos à dimensão axiológica, que possibilitem o exercício dessa função social. Para Streck, o intérprete do direito é um sujeito inserido inexoravelmente, em um ambiente cultural-histórico. Quem interpreta é sempre um sujeito histórico concreto mergulhado em uma tradição. Para ter acesso a um texto (e compreendê-lo), o intérprete não pode fazê-lo como se fosse um autômato que se utiliza da herança de uma filosofia da consciência. 106 107 Na verdade, reitera-se, a significação plena da norma jurídica é obtida no contexto das relações de forças das decisões jurisdicionais. Cada decisão é fundamentalmente política. Desconhecer os aspectos políticos-semiológicos da norma, aceitando o mito da univocidade significativa da lei, é procurar impedir a participação política da sociedade civil nas relações jurídicas. Se o objetivo da lei fosse realmente à harmonia social, isto é, a mediação neutra dos conflitos emergentes numa dada sociedade, seria contraditória a assertiva de que o direito, na realidade, representa os valores de determinados grupos, que, por meio do poder, detêm o manus de legislar. Mas o direito é ciência comprometida: não é imparcial; ao contrário, ele é sempre parcial por traduzir a ideologia do poder.108 Mais ainda, enquanto práxis, o direito procura encobrir, através de seus procedimentos, a contestação política das desigualdades sociais por ele mediatizadas e solucionar as lides provocadas pelos desacordos valorativos da sociedade; proporciona a 106 SOUZA, Luiz Sérgio Fernandes de. O papel da ideologia no preenchimento das lacunas do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p.204. 107 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 234. 108 AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito, poder e opressão. São Paulo: Alfa-Ômega, 1990, p. 7. 98 individualização dos conflitos e o conseqüente distanciamento das suas implicações com as relações de classe da sociedade. A práxis jurídica materializa a legitimidade das soluções dos conflitos sociais, por meios de procedimentos tidos como tecno-racionais, escamoteadores das assimetrias sociais capitalistas. Assim, na elaboração judicial, ocorre uma relação de forças, cuja resultante, apesar de redefinível contextualmente, determina os limites das discussões jurídicas. Por outro lado, convém ressaltar que existe uma produção jurídica não estatal, essencial como elemento de participação social, devido à sua capacidade de extrapolar o quadro legal de discussão, gerado pelo direito estatal. Entender os antagonismos próprios da materialidade jurídica de cada formação social é crucial para a determinação da especificidade do direito nas relações de poder que compõem as sociedades. O ato de interpretar implica, pois, uma visão do direito como inserido no interior do processo histórico global, A consideração do contexto histórico-social, em que se insere e se realiza o processo interpretativo, é indispensável para perceber-se (e eventualmente para modificar-se) o substrato teórico e orientar o raciocínio na aplicação das normas jurídicas, o papel ideológico da formação jurídica, e os efeitos satisfatórios e insatisfatórios desse processo.109 Mas, se a consideração ao contexto é necessária, isso se deve ao fato de que refletir a respeito da interpretação em direito é considerá-lo como uma construção de linguagem, na qual está implícita uma ideologia, aqui entendida como conjunto de crenças adotadas por um grupo social e que são convocadas para justificar seus atos e opiniões, sendo elemento motivador de determinados comportamentos sociais. Aliás, a função da ideologia é interpelatória e manipulatória. Ela embasa decisões e opiniões, criando, para tanto, um conjunto de representações ideologicamente estereotipadas, com vistas a persuadir o interlocutor, convencendo-o dos argumentos apresentados. Todo processo persuasivo sustenta-se, assim, no reconhecimento ideológico. Ora, esse efeito de reconhecimento se dá também no interior do raciocínio interpretativo que justifica uma determinada interpretação do sentido da norma, que, por sua vez, convencer como argumento, opera a persuasão. 99 Segundo Warat: A persuasão realiza-se sempre a partir de um reconhecimento ideológico; ora, esse efeito de reconhecimento produz-se no interior de um raciocínio que justifica uma determinada interpretação do sentido da norma, da prova dos fatos ou da aplicação técnica jurídica elaborada pela dogmática do direito.110 Para Warat, o discurso jurídico é persuasivo, porque, a interpretação da lei implica a produção de definições eticamente comprometidas, nas quais estão presentes determinadas premissas fundadas em critérios de relevância, destinados a convencer o receptor a compartilhar o juízo valorativo postulado pelo enunciador. O discurso jurídico é, então, persuasivo e manipulatório, na medida em que carrega consigo toda a proposta ideológica que sustenta seus juízos valorativos, com vistas a direcionar o comportamento dos outros de acordo com os seus próprios interesses. 111 112 Dessa forma, interpretar é compreender: a ontologia hermenêutica da compreensão baseia-se na tradição, na qual reside a pré-compreensão. Mas o ponto de partida adotado pelo processo interpretativo contemporâneo é considerar que o julgador está inserido no acontecer histórico e com ele interage, quando está julgando, através de sua pré-cognição da realidade. Entende Streck que a compreensão, condição de possibilidade de interpretação, pressupõe uma antecipação de sentido, consistindo em processo de aproximação ou direcionamento ao indivíduo, à história e ao contexto de suas tradições sociais. Nesse sentido, é impossível desconsiderar a participação da visão individual do julgador e de seu arcabouço de valores no ato de julgar. 113 Dessa forma, só a aceitação da premissa da inexistência de uma compreensão neutra, pois qualquer visão de verdade se mescla com a realidade personalíssima do 109 16. 110 PASUKANISE. B; Teoria geral do direito do trabalho e o marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. 2a versão. Porto Alegre: SAFE, 1995, p. 31 WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. 2a versão. Porto Alegre: SAFE, 1995, p. 33. 112 WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. 2a versão. Porto Alegre: SAFE, 1995, p. 35. “Assim, as definições persuasivas têm a finalidade de cobrir com um manto descritivo um desacordo valorativo, que fica encoberto pela utilização de uma definição com pretensões persuasivas. A definição persuasiva, é uma armadilha verbal dirigida ao receptor da mensagem”. 113 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 380. 111 100 sujeito que julga, permite avançar em direção à imparcialidade. A hermenêutica jurídica deve ser instrumento para uma superação da opressão instituída. Interpretarconsiste em primeiro lugar em considerar que o direito funciona como técnica de controle social, que se mantém com o estabelecimento de certos hábitos de significação. Eis por que interpretar o direito é conviver com espaços de dúvidas e ambigüidades e questionar o caráter político e econômico das estratégias mitificadoras, classificadoras, esteriotipantes, criadas pelo capitalismo para serem projetadas em todas as manifestações sociais. O discurso da lei joga estrategicamente com esses elementos ocultos para justificar decisões que privilegiam certas camadas sociais e que propagam, dissimuladamente, padrões culpabilizantes, com o objetivo de encobrir a enorme carga ideológica que perpassa todo o processo de interpretação da lei. 114 115 Quando se questiona a relação entre direito e linguagem, muitos apontam reiteradamente para o fato de a linguagem jurídica possuir esse caráter veladamente ideológico já citado. Diz-se então, que, na base de determinadas interpretações do texto normativo, encontra-se, muitas vezes, a pretensão de identificar a realidade com determinados ideais valorativos e que, em se tratando de juízos valorativos, o intérprete, ao recorrer às definições reais, propõe, em termos de essência, aquilo que reputa importante do ponto de vista prático, operando com um mecanismo de projeção ativado com a finalidade de transformar a subjetividade da posição sustentada em possibilidades objetivas. Todo esse trabalho do intérprete é necessário, pois a dinâmica da realidade que não consegue ser aprisionada pelas classificações jurídicas estanques; daí porque o interesse se vê na contingência de ter que forjar um discurso de adaptação da norma à realidade social. Vale observar que, ao denunciar o substrato ideológico da norma, os aplicadores e os intérpretes do direito instauram a possibilidade de reflexibilidade sobre os valores, ao mesmo tempo em que abrem a discussão sobre as escolhas de sentido por ele adotada 114 WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. 2a versão. Porto Alegre: SAFE, 1995, p. 22. “É pouco plausível o uso do direito como formador do sentido democrático de uma sociedade, se o mesmo não admite o valor positivo do conflito, se escamoteia, em nome de uma igualdade formal e perfeita, as desigualdades econômicas e culturais, se esquece que a lei é sempre expressão de interesses e práticas de poder”. 115 WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. 2a versão. Porto Alegre: SAFE, 1995, p. 25.“Os indivíduos se adequam psicologicamente às relações de dominação muito mais pelos efeitos culpabilizadores da ideologia jurídica do que pelo temor das sanções legais”. 101 em sua concepção e em sua aplicação, dispersando-se do consenso social que a fundou. Se o enunciador normativo, apesar do emprego de técnicas de neutralização, não conseguir desqualificar esse tipo de discurso, haverá ruptura no sistema, cuja estrutura demonstrará sua insuficiência para controlar seu elevado grau de contingência. Mas deve-se ter presente que se as incoerências não são percebidas de imediato, isso se deve à linguagem que é instrumento de mascaramento, que constrói “efeitos” de realidade, de coerência, que deixa lacunas propositais, servindo de instrumento de reitação ideologica e reafirmação do poder. A imprecisão dos conceitos, as normas vagas são muitas vezes elaboradas ou procuradas deliberadamente, pois é essa vacuidade a responsável pelas diferentes possibilidades interpretadas. A linguagem é o instrumento de construção dos efeitos de respeito, autoridade, ameaça. As palavras conferem credibilidade, produzem o mito do legal, criam a ilusão de uma relação constante e necessária entre fenômenos e suas causas e efeitos. Assim, trata-se de utopia pensar o direito positivo, a interpretação e seu estudo científico, com neutralidade em relação aos valores sociais e paradigmas históricos, filosóficos e psicológicos. Trabalha-se, isto sim, com verdades profundamente matizadas por diferentes valores e ideologias de uma dada sociedade que obrigam o discurso jurídico a uma constante busca de adequação. Na verdade, o intérprete precisa entender os processos de sedução, isto é, de linguagem empregados pela sociedade. Estão neles inscritos os interesses que opõem homens a homens, que reúnem e distinguem sujeitos, que limitam e reacendem conflitos. E não esquecer que, uma vez identificados, tais processos podem ser revelados. Curiosamente, o homem é o ser que produz a interdição, mas o que o define é a transgressão. E não há maior transgressão que revelar a palavra, subtendida, manipulada. Buscar os sentidos é sempre uma revolução, pois a mesma palavra que sujeita, que mente, que culpa, que constrói senhores, pode conferir flexibilidade aos conceitos da lei, permitindo-lhes adquirir novos sentidos no contexto do concreto da vida social. 102 O segredo da inexistência de sentido, ou da existência de muitos, quando desvelado, confere poder, poder de trapacear a língua de fazê-la instrumento do querer. Ela é o espaço de liberdade que resta, mas é o suficiente para descompatibilizar paulatinamente o sistema e operar as transformações que a realidade impõe. O papel desmistificador da operação semiótica é inegávelmente, de imensa valia: “... dos processos reflexivos resultarão duas atitudes diferenciadas de apreciar a realidade jurídica: uma revolucionária, a partir da dialética baseada no ímpeto transformador que se deseja impor ao direito; outra conservadora, a partir da hermenêutica que procurará realçar os substratos históricos e solidificados da cultural jurídica. 116 117 Evidentemente há necessidade periódica de revisão de normas e teorias jurídicas. Para Faria, o ponto de partida dessa revisão seria o questionamento da versão tradicional da dogmática do direito: a crença num pluralismo social redutível à unidade formal, capaz de equilibrar antagonismos e harmonizar interesses, mediante processos de construção de categorias conceituais, princípios gerais e ficções retóricas que depurem as instituições de direito do compromisso de preencher quaisquer antinomias ou lacunas. 118 Os tópicos ordem, paz, segurança, progresso, desenvolvimento e justiça, utilizados pelo estado moderno, não são representações objetivas, mas imaginárias, não palpáveis – são desejos, esperanças, nostalgias, enfim, ideologias que sobrevivem graças a um discurso lacunar, pois é a própria consistência discursiva da ideologia que oculta a divisão, a estruturação da sociedade em classes. Assim, os silêncios do discurso ideológico guardam sua consistência, através de um discurso latente, a ele implícito. O positivismo jurídico parece ignorar as questões antes levantadas, dando as costas à formulação ideológica que precede a feitura e a interpretação das normas jurídicas. Polarizada e distribuída em categorias de interesses antagônicos, a sociedade produz conflitos, não sendo igualmente neutra a decisão sobre tais conflitos; há sempre privilegio de um dado valor, de uma dada categoria. É inegável que todo o elemento do 116 SILVA, Patrícia Bressan da. Semiologia e direito: manifesto indagações epistemológicas para qualquer debate científico-jurídico. ( Jus Navigandi. Teresina: a. 8, n. 446, 26 set. 2004.) 117 MENDES, Antônio Celso. Direito: linguagem e estrutura simbólica. Curitiba: Champagnat, 1996. p. 48 118 FARIA, José E. Eficácia jurídica e violência simbólica: o direito como instrumento de transformação social. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988, p.14. 103 ato (humano em geral e jurídico em especial) se reporta a valores, o que descarta a pretensa ‘neutralidade’ jurídica. As normas gerais (impessoais) hierarquicamente dispostas, em verdade, são instrumentos operacionais para ‘desempenhar suas funções básicas no âmbito do estado capitalista e da ordem burguesa. Dessa forma como afirma Faria, as certezas jurídicas são mais um instrumento retórico cuja finalidade é garantir condições de reprodução do padrão de dominação vigente e, ao mesmo tempo, ocultar esse papel mediante a pretensa autonomia e exterioridade do direito. 119 120 121 122 123 O sistema legal tradicional baseia-se em representações ideais, tais como igualdade perante a lei, autonomia de vontade, certeza e segurança jurídica, usadas como instrumentos retóricos de exercício de uma função persuasiva, que, agindo por via do emocional, tem por finalidade a diversificação interna da estrutura ativa institucional. O questionamento a respeito das patentes desigualdades existentes no texto jurídico envolvem, entre outras coisas, indagações pertinentes à filosofia do direito que dizem respeito às relações entre o direito e o poder. Somente quando existir um real interesse de questionar os porquês de uma ordem legal injusta, haverá a possibilidade da transformação da sociedade, orientada pelo critério de eqüidade fática, e não apenas teórica. A relativização do conceito de justiça vem acontecendo com a evolução histórica, considerando-se, para tanto, as estruturas extrínsecas pelas quais se 119 PORTANOVA, Rui. As motivações ideológicas da sentença. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.44. 120 LYRA FILHO, Roberto. O Que é Direito. São Paulo, Editora Brasiliense, 1986, p.18. “A ideologia da classe no poder vai influenciar desde o conceito de ciência (em geral) até o direito (em particular) sem esquecer a lei e a atividade judicante. À ciência não é neutra. Em todas as ciências existem interferências ideológicas: “a ciência não só carrega elementos ideológicos no seu interior, mas até serve à dominação social dos donos do Poder, quando impõem aqueles falsos conteúdos à práxis social”. 121 FARIA, José E. Eficácia jurídica e violência simbólica: o direito como instrumento de transformação social. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988, p.24. 122 PORTANOVA, Rui. As motivações ideológicas da sentença. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.44. “Por sua vez, a segurança é valor que por si só se opõe ao valor justiça. O desejado de decisões mais previsíveis, mais uniformes, choca-se com os ideais de justiça. É que justiça tem que compreender o ineditismo da vida, a mudança continua. O valor justiça é mais importante que o valor segurança. Esta fundamentalmente garante a segurança das classes que fizeram a lei ou tiveram papel preponderante na sua feitura”. 123 Sempre o núcleo social desenvolverá um processo de insurreição ou acomodação no que se refere às disputas de poder entre os sexos, sendo que a pacificação global dessas tensões é inatingível. A sociedade, por ser desigual, não é harmônica, é fracionada em classes sociais que vivem em disputa de poder, tentando demarcar os espaços que a farão superiores ou inferiores na escala hierárquica. 104 desenvolvem a distribuição da justiça e os métodos lógicos aptos a julgar. Ambos encerram valores contingentes, que não são possíveis de serem determinados, a não ser pela valoração do momento histórico da feitura da norma jurídica e de sua interpretação pelos operadores do direito. Si les thèses de la sémiotique demeurent “sensibles” idéologiquement, elles sont également encore fragiles épistémologiquement, surtout pour leurs développements les plus récents. L´épreuve du temps consolidera ou au contraire éliminera comme illusoires ces vues qui ont mobilisé une part très active de la communauté des cherchers, au cours des vingt dernières années. Or, même si L´Histoire devait disqualifier (...) la définition reélle de la théorie sémiotique, c´est son histoire. Faut-il conclure, en paraphrasant Jean Cavaillès, qu´il pourrait bien y avoir une objectivité 124 fondée sémiotiquement, du devenir sémiotique?. As controvérsias que tangenciam o discurso jurídico penal e o próprio direito penal servem como pano de fundo para inúmeras interpretações equivocadas a seu respeito, pois quem quer usar o direito penal principalmente para reprimir, vai receber de bom grado um direito penal mais rígido e mais abrangente, só mudando de opinião quando percebe que mais direito penal promete menos efeito, puramente por motivos de efetividade. A esses se agregam aqueles que criticam e transformam o direito penal em repressor e aqueles que temem justa ou injustamente que o direito penal se volte contra eles.125 No tocante ao discurso jurídico penal, afirma Zafaroni que: (...) o discurso jurídico penal revela-se inegavelmente falso, mas atribuir sua permanência à má fé ou à formação autoritária seria um simplismo que apenas agregaria uma falsidade à outra. Estas explicações personalizadas e conjunturais esquecem que se colocam em posições progressistas e que se dão conta da gravidade do fenômeno também reproduzem o discurso jurídico penal falso- uma vez que não dispõe de outra alternativa que não seja esse discurso em sua versão de “direito penal de garantia_ para tentar a defesa dos que caem nas engrenagens do sistema penal com processados criminalizados ou vitimizados. O discurso jurídico penal falso não é um postulado de má fé nem de simples conveniência, nem o resultado da elaboração calculada de alguns gênios malignos, mas é 124 GREMAIS, Algirdas J. Sémiotique: dictionnaire raisonné de la théorie du langage. Paris: Hachette, 1979. v. 1; 1986“Le discours en sciences humaines, loin d´être linéaire, apparait comme se déroulant sur plusieurs niveaux à la fois qui, tout en étant reconnaissables commes dotés d´une autonomie formelle, s´interpénètrent, se succèdent, s´interprètent et s´appuient les uns sur les autres, garantissant de ce fait la solidité et la progression – toutes relatives, évidement – de la démarche à vocation scientifique”. 125 PRITTWITZ, Cornelius. O direito penal entre o direito penal do risco e o direito penal do inimigo – tendências atuais do direito penal e política criminal. São Paulo: Revista do IBCCRIM nº 47, 2004. 105 sustentado, em boa parte, pelo incapacidade de ser substituído por outro discurso em razão da necessidade de se deferem os direitos de algumas pessoas. Na verdade sempre se soube que o discurso jurídico penal latinoamericano é falso. A diferença qualitativa neste momento crítico reside no fato de que não é mais possível sair deste impasse com o argumento da transitoriedade desta situação e continuar apresentando-a como resultado de meros defeitos conjunturais de nossos sistemas penais, defeitos produzidos por nosso subdesenvolvimentos e recuperáveis mediante um desenvolvimento progressivo, semelhante em quase tudo, ao caminho empreendido pelos países centrais. (...) A crítica social contemporânea, a criminologia da reação social_ inclusive sua vertente mais prudente, ou seja, a chamada liberal_ a experiência do capitalismo periférico dos lustros que acabou com a teoria do desenvolvimento progressivo e centrífugo, aniquilam a ilusão da transitoriedade do fenômeno. Hoje temos a consciência que a realidade de operacionalidade de nossos sistemas penais jamais poderá adequar-se à planificação do discurso jurídico penal e de que os sistemas penais apresentam características estruturais próprias de seu exercício de poder que cancelam o discurso jurídico-penal e que,, por constituírem marcas de sua essência, não podem ser eliminadas sem a supressão dos próprios sistemas penais. A seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para maiores condutas lesivas, a corrupação institucionalizada, a concentração de poder, a verticalização social e a destruição das relações horizontais ou comunitárias não são características conjunturais, mas 126 estruturais do exercício de poder de todos os sistemas penais. É necessário elucidar a que preço o direito pretende reduzir seu potencial danoso, seu quantum de violência, sem implicar a perda da eficácia de sua dissuasória, isto é, o efeito integrador para quem acolhe uma concepção positivista da prevenção geral. Nessa direção, leciona Sanchez que a história do direito penal moderno é a da confrontação entre direito penal vigente e a reforma do direito penal, em que são tomadas as considerações utilitaristas, relativas ao menor dano social e à observância de outros princípios, como o da proporcionalidade, humanidade e igualdade. O balanço que essa oposição dialética deveria compreender é a redução da violência, do dano social causado pelas instituições penais, sem que haja diminuído substancialmente o nível de prevenção do direito penal. 127 128 126 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. A perda de legitimidade do sistema penal. Tradução: Vânia Romano Pedrosa, Almir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 15. 127 Sempre que o Estado interferir na vida social, buscando o disciplinamento, deverá fazê-lo de molde a preservar, com a lei, a conformidade desta com seu verdadeiro finalismo, isto é, não poderá ser nem insuficiente nem excessivo em sua tarefa punitiva, concretamente, proporcional à infração cometida e nos limites da culpabilidade, a fim de que seja justa e não encontre no castigo a possibilidade de arbitrariedade de quem irá aplicá-la. 128 MENDES, Antônio Celso, Direito: linguagem e estrutura simbólica, Curitiba: Champagnat, 1996. p. 48. “ “O segredo da inexistência de sentido, ou da existência de muitos, quando desvelado confere poder. É hora de trapacear a língua, faze-la instrumento do desejo do querer, É este espaço de liberdade que resta, mas é o suficiente para descompatibilizar paulatinamente o sistema e operar as transformações que a verdade impõe. O ato de conhecer e saber é ato de intelecção, sinestesia, sensualidade, percepção 106 A interpretação jurídica, contrariamente a uma interpretação puramente contemplativa/intransitiva, segundo a qual o entender é fim em si mesmo, tem em vista por meio do resultado intelectivo um êxito prático direcionado à assunção de uma proposição relativa a determinadas situações hipotéticas por antecipação, ela direcionase a um entendimento pré-ordenado a fim de regular a ação por meio da subsunção do critério de decisão ou da máxima da ação como princípio diretivo da ação ou da decisão dentro dos limites do marco jurídico e, especialmente, da conservação da perene eficácia na vida da sociedade das normas, dos preceitos, das valorações normativas por intermédio da integração, da adaptação, da adequação destas, conforme a exigência da atualidade e da natureza das relações disciplinadas. A interpretação jurídica não é mais do que uma espécie, a mais importante, do gênero a interpretação, pois tem a mesma natureza que seu objeto e o seu problema, o qual é estritamente correlacionado com a aplicação da norma e a vinculação prática do texto normativo. A autoridade vinculativa do texto normativo interpretado enquanto enuncia preceitos, dogmas, máximas, ensinamentos reconhecíveis pelo destinatário, confere à interpretação jurídica uma função normativa, pois, por interpretar, atribui-se ao jurista intérprete e ao juiz uma veste que os legitima, identificando-os institucionalmente com o autor originário do texto; a interpretação, ela mesma, assume uma então função normativa. entrecruzada pelas mediações da faculdade do racionar, ato que requer a pluralidade sinestésica como essência-primeira, ainda que não renegue as perspectivas parcializadas e particularizadas à substância/coisa/objeto legadas pela linearidade... não é necessariamente excludente das demais (contrariedade), mas antes sim abrangente das demais (complementaridade). O papel desmistificador da operação semiótica é inegável, de imensa valia, "... dos processos reflexivos resultarão duas atitudes diferenciadas de apreciar a realidade jurídica: uma revolucionária, a partir da dialética baseada no ímpeto transformador que se deseja impor ao direito; ou conservadora, a partir da hermenêutica que procurará realçar os substratos históricos e solidificados da cultural jurídica" 107 3 EXPANSÃO DO DISCURSO PENAL E DIREITOS FUNDAMENTAIS 3.1 O discurso da emergência e a relativização das garantias A discussão aqui apresentada a respeito do discurso jurídico penal centra-se em questões concernentes à legitimidade do direito penal, no binômio reducionismo vs expansão, pontuando em específico, o debate referente ao contexto e às exigências do que se costuma denominar modernização do direito penal. Essa modernização, defendida de modo enfático por alguns autores e qualificada como discurso da resistência, compreende, construções de hipóteses doutrinárias tais como as contidas na doutrina do Direito penal do inimigo, pretendendo despojar da categoria de cidadãos determinados sujeitos, que, segundo Jakobs, maior expoente na defesa dessa corrente, devem ser tratados como meras fontes de perigo e neutralizados a qualquer preço. A tese doutrinária professada Jakobs faz questionar a expressão modernização do direito penal, diante da qual cabe perguntar-se se uma tal concepção representa realmente uma evolução ou uma lamentável involução.129 130 O direito, como ciência social, espelha os processos históricos sociais por que passam à humanidade. A sociedade pós-industrial da qual somos entes integrantes, depara-se com a globalização, a transposição das barreiras nacionais, o predomínio do poder econômico sobre o político, o descrédito nas instâncias de proteção, o reforço da criminalidade organizada e o conseqüente surgimento de um direito penal hipertrofiado e essencialmente preventivo, fenômeno que já foi explanado em capítulos anteriores. Analisando os principais programas de política criminal praticada, nos últimos anos, no mundo, constata-se uma inflação legislativa que implica a expansão do direito penal, com o surgimento, em ritmo assustador, de múltiplas figuras delitivas, de setores inteiros de regulação acompanhados da reforma de tipos penais já existentes, mas que não produzem a eficácia esperada pelo Estado. Na contramão da tentativa das posturas doutrinárias que militam pelo reducionismo penal, tem-se, na prática, um direito penal cada vez mais punitivo, preventivo e hipertrofiado, acompanhado pela utilização 129 CRESPO, Eduardo Demetrio. Do direito penal liberal ao direito penal do inimigo. São Paulo: RT, Revista Brasileira de Ciências Penais n 55, 2004, p.61. 130 O direito penal do inimigo se caracteriza, entre outras coisas, por amplo adiantamento da punibilidade, pela adoção de uma perspectiva fundamentalmente prospectiva, por um incremento notável das penas e por relaxamento ou supressão de determinadas garantias processuais. 108 abundante de tipos penais de perigo abstrato, em contraposição aos de lesão e perigo concreto, paradigmas do direito penal clássico. 131 132 Para Meliá, o ponto de partida de qualquer análise do fenômeno representado pela expansão do ordenamento penal, reside, efetivamente, em uma simples constatação: a atividade legislativa em matéria penal, desenvolvida ao longo de duas décadas nos países ao nosso entorno, tem colocado, ao redor do elenco nuclear de normas penais, um conjunto de tipos penais que, vistos desde a perspectiva de bens jurídicos clássicos, constituem hipóteses de criminalização prévias a lesões de bens jurídicos, cujos marcos penais, ademais, estabelecem sanções desproporcionalmente altas. Em síntese, pode-se dizer que, na evolução atual, tanto no direito penal material, como no direito penal processual, há tendências que, em seu conjunto, fazem aparecer no horizonte jurídico criminal, traços de um direito penal com características antiliberais que coloca em risco seu próprio estatuto minimalista do direito penal e do entendimento de ser o mesmo a ultima ratio. 133 De acordo com Belli: 131 Exemplos desse direito penal excepcional têm existido sempre desde as origens da codificação penal no século XIX, quando desde o primeiro momento se teve que recorrer às leis penais excepcionais contrárias ao espírito liberal e constitucional que inspiraram os primeiros códigos penais. Exemplos deste tipo tem havido também durante todo o século XX em muitos países europeus, e, com certeza, em outras partes do mundo, especialmente durante períodos de graves crises econômica, política e social, em situações de guerra ou pós-guerra, e de um modo generalizado nos regimes totalitários de Hitler, Mussolini, Stalin ou Franco, ou nas ditaduras do Cone Sul americano (Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai, Brasil) durante os anos 70 e parte dos oitenta do século passado. 132 SILVA SANCHEZ. Jesus Maria. A expansão do direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 29. “Desde a enorme difusão da obra de Ulrich Beck, é lugar comum caracterizar o modo social pós-industrial em que vivemos como ‘sociedade do risco’ ou ‘sociedades de riscos’. Com efeito, a sociedade atual aparece caracterizada, basicamente, por um âmbito econômico rapidamente variante e pelo aparecimento de avanços tecnológicos sem paralelos em toda a história da humanidade. O extraordinário desenvolvimento da técnica teve, e continua tendo, obviamente, repercussões diretas em um incremento de bem estar individual. Como também, tem a dinâmica dos fenômenos econômicos. Sem embargo, convém não ignorar suas conseqüências negativas. Dentre elas a que interessa aqui ressaltar é a configuração do risco de procedência humana como fenômenos social estrutural. Isto pelo fato de que boa parte das ameaças a que os cidadãos estão expostos provém precisamente de decisões que outros cidadãos adotam no manejo dos avanços técnicos: riscos mais ou menos direitos para os cidadãos (como consumidores, usuários, beneficiários de serviços públicos) que derivam das aplicações técnicas dos avanços na indústria, na biologia, na genética, na energia nuclear, na informática, nas comunicações etc. Mas também, porque a sociedade tecnológica, crescentemente competitiva, desloca para a marginalidade não poucos indivíduos, que imediatamente são percebidos pelos demais como fonte de riscos pessoais e patrimoniais”. 133 Nesse sentido MELIÁ, Manuel Cancio. Direito penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 57. 109 A preocupação com a violência criminal faz parte hoje da agenda de prioridades dos principais dirigentes nos mais diversos países. O medo tem-se generalizado e, mesmo em sociedades com índices de criminalidade relativamente baixos, o discurso da lei e da ordem encontra grande ressonância. Talvez associada à própria configuração das sociedades contemporâneas, definidas por alguns como “sociedade de risco”, a sensação de insegurança se integrou na psique coletiva a ponto de a violência ser encarada como um espectro que, em tempos de globalização, parece assombrar o mundo inteiro. Além disso, a sensação de insegurança se democratizou de forma inaudita, afligindo não apenas as classes privilegiadas, mas também os que se encontram na base da pirâmide social. Independentemente das curvas estatísticas e dos dados empíricos sobre criminalidade, vive-se preso à expectativa de crescimento descontrolado da violência e dos riscos que a acompanham. Nos Estados Unidos, por exemplo, os índices de criminalidade têm baixado de forma consistente na última década sem que as políticas de segurança pública tenham perdido o “fascínio” que exercem junto ao público, à mídia e às autoridades 134 governamentais. Em tempos de guerra, a lógica democrática é invertida, abrindo espaço para a suspensão parcial ou total das trocas e da participação democráticas; o princípio democrático cede terreno a um princípio estritamente autocrático: todos devem prestar obediência incondicional ao gestor do estado de guerra. Porém, vale salientar que, na era moderna, a suspensão da política democrática, em tempo de guerra, geralmente é apresentada como temporária, já que a guerra é validada como uma condição excepcional, não uma constante nas relações interpessoais. O estado de guerra transformou-se, porém, de determinante excepcional em condição global permanente. A suspensão da democracia (e dos direitos e garantias fundamentais) sob essa ótica, tende também a tornar-se a regra e não a exceção. A guerra deixou de representar o ápice das impossibilidades de composição harmônica dos conflitos, força letal exercida como último recurso para o consenso e a submissão de poder de gestão do Estado, para tornar-se o primeiro e fundamental elemento/argumento, constituindo-se na base da própria política dos estados imperialistas e no fundamento de sua legitimação como império global. A aplicação constante e coordenada da violência torna-se condição necessária para o funcionamento da disciplina e do controle da supremacia, passando a desempenhar não somente o papel social e político fundamental de função constituinte ou reguladora: tende a tornar-se, ao mesmo tempo, uma atividade processual e uma atividade reguladora de ordenação, 134 BELLI, Benoni. Polícia e direito. São Paulo: Revistas dos Tribunais. Revista Brasileira de Ciências Penais n °39, 2002, p.231. 110 criando e mantendo hierarquias sociais, como forma de biopoder voltada à promoção da regulação da vida social. 135 As guerras revolucionárias eram fundadoras de um novo de poder constituinte; na medida em que derrubavam a velha ordem e impunham, do exterior novos códigos jurídicos e novas formas de vida; porém, contrario sensu, esse estado de guerra regulador que ora se estabelece na ordem internacional, através da atuação dos USA no cenário internacional, reproduz e regula a ordem vigente; ele cria a lei e a jurisdição no interior de seu próprio Estado, sendo que seus objetivos não estão voltados para a reestruturação de uma nova ordem jurídica; seus códigos jurídicos estão estritamente direcionados à constante reordenação dos territórios a serem submetidos ao seu poder imperialista. A “legitimidade” da guerra empreendida hoje pelos USA está então desgarrada da necessidade de justificação moral para os atos de violência e destruição limitados num espaço temporal previamente estipulado, como era tradicionalmente; está direcionada agora à permanente manutenção de uma supremacia de poder sobre a ordem global. Explica-se, assim, a função reguladora e ordenadora desta guerra imperial que adota os contornos de mandamento definitivo, descartando sua excepcionalidade temporal, idealizada pela doutrina e pelas ilusões democráticas. A soberania do estado moderno está alicerçada, entre outras coisas, no seu monopólio da violência legítima, tanto no espaço nacional como internacional. No interior da nação, o Estado não só dispõe de esmagadora vantagem material sobre todas as demais forças sociais em sua capacidade de violência, como é também o único ator social que pode exercer a violência em caráter legal e legítimo. Todas as demais formas 135 NEGRI, Antonio & HARDT, Michael. Multidão: guerra e democracia na era do império. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 44-52. “A guerra só se torna efetivamente absoluta com o desenvolvimento tecnológico de armas que pela primeira vez tornaram possível a destruição em massa e mesmo a destruição global. As armas de destruição global rompem a moderna dialética da guerra. A guerra sempre envolveu destruição de vida, mas no século XX esse poder destrutivo chegou aos limites da pura produção de morte, simbolicamente representada por Auschwitz e Hiroshima. A capacidade de genocídio e destruição nuclear atinge diretamente a própria estrutura da vida, corrompendo-a, pervertendo-a. O poder soberano que controla tais meios de destruição é uma forma biopoder neste sentido mais negativo e terrível da palavra, um poder que decide de maneira direta sobre a morte – não apenas a morte de um indivíduo ou grupo mas da própria humanidade e talvez mesmo de tudo que existe. Quando o genocídio e as armas atômicas colocam a própria vida no centro do palco, a guerra torna-se propriamente ontológica”. 111 de violência são a priori ilegítimas, ou pelo menos fortemente delimitadas e reprimidas. No cenário internacional, os diferentes Estados-nação, certamente dispõem de variados graus de capacidade militar, mas, em princípio, têm todos os mesmos direitos à violência, ou seja, de promover a guerra. A violência legítima exercida pelo estadonação baseia-se essencialmente em estruturas legais nacionais e, posteriormente, internacionais. A violência do policial, do carcereiro ou do carrasco dentro do território nacional ou a do general e do soldado fora dele não é legítima por causa das características específicas dos indivíduos, mas com base nas funções que desempenham. Está, porém, sempre limitada aos contornos legais, estando sujeita à prestação de contas, quando extrapola os limites legais. O estado é o gestor das tensões sociais, único ator social que pode exercer a violência em caráter legal e legítimo, porém, assim o fazendo, deve atuar, dentro dos limites legais, valendo-se de suas agências repressoras como mecanismos intimidatórios da criminalidade, atuando preventivamente a ocorrência do crime. A banalização cada vez maior dos métodos para obter confissões e informação através de tormentos físicos e psicológicos, técnicas para desorientar prisioneiros (como a privação do sono) ou mesmo as simples formas de humilhação (como as revistas corporais), que se constituem em armas comuns no arsenal contemporâneo da tortura, fazem do um “estado de direito” um “estado de exceção”: observa-se aqui um outra face do estado de exceção, aquele referente à tendência do poder político se furtar ao império da lei. Constata-se, então, uma intenção meramente semântica nas convenções internacionais contra a tortura, nas leis nacionais contra punições cruéis e inusitadas, dentre o rol de direitos e garantias individuais que é ofertado nas constituições democráticas. Para Negri & Hardt, a guerra global não só deve trazer a morte, como também produzir e regular a vida pelo biopoder, senão veja-se: Na segunda metade do século XX, no entanto, os mecanismos de legitimação da violência de estado começaram a ser seriamente desmobilizados. Os avanços do direito internacional e dos tratados internacionais, por um lado, impuseram limites ao uso legítimo da força por um estado-nação contra outro, assim como à acumulação de armas. (...) O discurso dos direitos humanos, juntamente com as intervenções militares e as ações legais neles baseadas, fazia parte de um movimento gradual para deslegitimar a violência exercida pelos estados-nação até mesmo no interior de seus territórios nacionais. Pelo fim do século XX, os estados- nação não 112 eram necessariamente capazes de legitimar a violência que exerciam, nem fora nem no interior de seus territórios. Hoje, os estados já não têm necessariamente o direito legítimo de policiar e punir suas populações ou de empreender guerras externas com base em suas próprias leis. Num mundo em que nenhuma forma de violência pode ser legitimada, toda violência pode afinal ser considerada terrorismo. Como observamos anteriormente, as definições contemporâneas de terrorismo variam muito, dependendo de quem defina seus elementos centrais: governo legítimo, direitos humanos e normas de guerra. A dificuldade de estabelecer uma definição estável e coerente de terrorismo está intimamente ligada ao problema do estabelecimento de um conceito adequado de violência legítima Muitos políticos, militantes e acadêmicos invocam atualmente a moralidade e os valores como base da violência legítima, fora da questão igualdade, ou, antes, como base de uma nova estrutura legal: a violência é legítima quando da sua fundamentação é moral e justa, mas ilegítima se sua fundamentação é imoral e injusta. Bin Laden, por exemplo, reivindica legitimação apresentando-se como o herói moral dos pobres e oprimidos do Sul global. De maneira semelhante, o governo dos Estados Unidos pretende a legitimação de sua violência militar com base em seus valores, como a liberdade, a democracia e a prosperidade. De maneira mais geral, numerosos discursos dos direitos humanos sustentam que a violência pode ser legítima em bases morais (e só assim). O conjunto dos direitos humanos, sejam considerados universais ou determinados por negociações políticas, apresenta-se como uma estrutura moral acima da lei ou como um sucedâneo 136 da própria estrutura legal. O direito foi utilizado durante o século XX, muitas vezes, apenas como instrumento para legitimar a violência. Trata-se de uma justiça seletiva que pune os menos poderosos, numa estratégia cada vez mais utópica de legitimação. O conselho de segurança da ONU, os tribunais internacionais interpretam, reproduzem e julgam com a parcialidade concernente com o comprometimento com determinados interesses políticos. A recusa dos Estados Unidos de submeter seus cidadãos e militares à jurisdição do tribunal penal internacional endossa essa desigualdade na aplicação das normas e estruturas legais e marca sua supremacia/privilégio sobre as demais nações as quais impõe subordinação a ordens que não aceitou acatar. O caso do encarceramento de 600 pessoas na baía de Guantánamo é um exemplo do tratamento desigual que pretende receber e de sua certeza de que está acima de qualquer jurisdição humana, não permitindo que seus cidadãos sejam submetidos a outros organismos jurídicos nacionais ou supranacionais. A violência pela falta de respaldo no seu exercício (ainda que haja tratados internacional tentando regulá-la) está destituída da legitimação que a história da humanidade construiu para regular o seu uso. 136 NEGRI, Antonio & HARDT, Michael. Multidão: guerra e democracia na era do império. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 76-78. 113 Para Ferrajoli a guerra como tem sido encetada modernamente, com o total aniquilamento do adversário, ao contrário do que acreditam a maioria dos pensadores, não existiu sempre. Para o autor, essa modalidade é um fenômeno rigorosamente moderno, produzido inclusive pelo desenvolvimento do aparato bélico. As guerras dos séculos passados apresentavam-se com enfretamentos circunscritos, formados por exércitos de profissionais, a mando de seus reis e generais. A população civil não participava. Ao contrário da guerra contemporânea em que se bombardeiam cidades, hospitais, museus, descumprindo as regras contidas nas convenções internacionais. Para essa guerra da modernidade, o paradigma de sanção ou reparação de um ataque sofrido é totalmente inútil e desnecessário. Ferrajoli salienta que não há dúvidas de que Saddam Hussein cometeu um crime gravíssimo quando invadiu o Kuwait, mas nenhum crime justifica outro mais grave como represália, que iria aniquilar com dezenas de civis inocentes, cuja única culpa consistia em serem dirigidos por um feroz ditador totalmente irresponsável. Não houve proporção entre a ofensa grave da ocupação do Kuwait, e os bombardeios de Bagdá e Basora, ou mesmo o massacre dos soldados iraquianos que se encontravam em fuga. 137 Segundo Negri & Hardt Num período de pouco mais de uma década, assistimos a uma total mudança nessas formas de legitimação. A primeira guerra do Golfo foi legitimada com base no direito internacional, já que oficialmente se destinava a restabelecer a soberania do Kuwait. Em contraste, a intervenção da Otan em Kosovo buscava legitimação em motivações morais e humanitárias. A segunda guerra do Golfo, uma guerra preventiva, invoca a legitimação essencialmente com base em seus resultados. Qualquer poder militar e/ou policial será investido de legitimidade somente na medida em que se mostrar eficaz na correção de desordens globais – não necessariamente restabelecer a paz, mas manter a ordem. Por esta lógica, um poder como as forças armadas americanas pode exercer uma violência que seja ou não legal ou moral, e enquanto esta violência resultar na reprodução da ordem imperial, será legitimada. Assim que a violência deixar de proporcionar ordem, no entanto, ou assim que se mostrar incapaz de preservar a segurança da atual ordem global, a legitimidade será retirada. Trata-se de uma forma de legitimação das mais precárias e instáveis. A presença constante de um inimigo e a ameaça de desordem são necessárias para legitimar a violência imperial. Talvez não deva surpreender o fato de que, quando a guerra constitui a base política, o inimigo se torna função constitutiva da legitimidade. Assim é que o inimigo deixa de ser concreto e localizável, tornando-se algo fugidio e inapreensível, com uma 137 FERRAJOLI, Luigi. Razones jurídicas del pacifismo. Trad. Andrés Ibánez, Gabriel Ignácio Anitua, Marta Manclús Masó e Gerardo Pi. Madri: Trotta, 2004, p. 87. 114 cobra no paraíso imperial. O inimigo é desconhecido e invisível, e no entanto está sempre presente, como se fosse uma aura hostil. O rosto do inimigo aparece na bruma do futuro e serve para amplificar a legitimação, lá onde ela recuou. Esse inimigo, na realidade, não é apenas fugidio, mas completamente abstrato. Os indivíduos invocados, como alvos principais – Osama Bin Laden, Saddam Hussein, Slobodan Milosevic, Muamar Kadafi e Manuel Noriega, entre outros – constituem por si mesmos ameaças muito limitadas, mais são amplificados e transformados em figuras gigantescas que servem de sucedâneo à ameaça mais geral e apresentam a aparência de objetos de guerra concretos e tradicionais. Eles talvez sirvam como ferramenta pedagógica (ou fachada mistificadora) ao permitir a 138 apresentação desse novo tipo de guerra sob a forma antiga. Para Ferrajoli, diferentemente das guerras anteriores, a intervenção dos USA ao Iraque apresentou mais uma característica, além da notória violação da Carta da ONU, da proibição da ameaça ao uso da força e da obrigação de resolver os conflitos internacionais por meios pacíficos: na verdade, o propósito dessa guerra, entre outros motivos, era dilapidar o poder representativo internacional da ONU e estabelecer uma nova ordem internacional, baseada somente no domínio norte-americano, legitimando a guerra como instrumento de governo do mundo e de solução de problemas e controvérsias internacionais. As intervenções públicas do presidente Bush, após o 11 de setembro, declararam a guerra infinita “para liberar o mundo do mal” (discurso em 14 de setembro), e até uma declaração de guerra preventiva “de duração indefinida” (documento de 17 de setembro de 2002), na tentativa de obter a legitimação da guerra como instrumento de governo do mundo. Saliente-se que o fato de o Conselho de Segurança não ter cedido ao desejo norte-americano de concordar com a invasão do Iraque, não só colocou em evidência a ilegitimidade da guerra, mas conferiu maior credibilidade à ONU, embora aponte a ausência de uma força cogente. 139 140 138 NEGRI, Antonio & HARDT, Michael. Multidão: guerra e democracia na era do império. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 63. 139 FERRAJOLI, Luigi. Razones jurídicas del pacifismo. Trad. Andrés Ibánez, Gabriel Ignácio Anitua, Marta Manclús Masó e Gerardo Pi. Madri: Trotta, 2004. “A ONU não se configuraria somente como uma instituição jurídica internacional, mas sim como um ordenamento supra-estatal. Deveria ser introduzido nesse ordenamento um sistema adequado de garantias capaz de assegurar a sua efetividade. Como diria Spinoza, da forma que se apresenta, configura uma leges imperfecta e por falta de sanção e de procedimentos para aplicá-lo. Visto sob esta perspectiva, o primeiro tipo de garantias que deveriam ser reforçadas são as relativas à paz. Tendo a ONU como objetivo primordial a busca da paz, qualquer guerra deveria configurar-se como ‘crime de direito internacional, e como tal deveria ser seriamente repelida. Uma grande reforma na ONU seria necessária, se fosse admitida uma ‘democracia internacional’, principalmente no que tange a uma jurisdição penal internacional. Atualmente ainda se observa a ineficácia do direito internacional nesse particular. Uma reforma nessa área comportaria pelo menos quatro grandes inovações: a) extensão da sua competência não somente às controvérsias entre estados, mas também aos juízos de responsabilidade em matéria de guerra, ameaças à paz e violação de direitos fundamentais; b) em segundo lugar, o caráter obrigatório da sua jurisdição deveria ser afirmado, pois hoje está subordinada a aceitação preventiva por parte dos estados, de acordo com o 115 De acordo com Belli: A busca frenética de soluções rápidas e mágicas é a marca de nosso desespero, sobretudo à luz de crimes de alta repercussão que afetam a própria auto estima nacional. Como o Brasil permite que crimes inomináveis continuem a ocorrer? A indignição – totalmente justificada – repercute com mais força quando personalidades públicas são vítimas de crimes graves. A elite percebe, então, que também ela, e não apenas os mais pobres, pode sofrer as conseqüências do descalabro na segurança das grandes cidades. O mais assustador, contudo, não é a busca totalmente compreensível de respostas e de medidas urgentes para superar a situação, mas a virtual omissão, no cardápio de soluções oferecidas, do reconhecimento de que é necessária uma transformação social profunda que leve à desconcentração do poder em todas as esferas (política, econômica, cultural etc). Trata-se de uma omissão nem sempre intencional, mas cujas conseqüências não são nada desprezíveis. Certamente a segurança pública carece de reformas institucionais urgentes: unificação das polícias, melhor treinamento e condições de trabalho para agentes e policiais (incluindo salários dignos e reformulações dos códigos disciplinares das polícias militares), modernização do equipamento, gerenciamento adequado de dados criminais e planejamento estratégico, ênfase na investigação e na inteligência, policiamento preventivo, aperfeiçoamento do controle interno e externo. Seria fundamental, além disso, combater a impunidade em todos os níveis, não apenas no nível do ladrão de galinhas, mas também no dos crimes de colarinho branco. O fortalecimento do Ministério público, coma função de conduzir a fase inicial da apuração de crimes, ao lado da modernização do Poder Judiciário, ambos submetidos ao controle externo, seriam passos igualmente importantes. Todas essas mudanças, e muitas outras em 141 discussão, são válidas e inadiáveis. São também insuficientes. O panorama do direito penal, não obstante a humanidade ainda se encontre imersa em uma conceituação moderna de homem e sociedade, já não mais obedece (se é que de fato algum dia o fez na realidade) aos direitos e garantias individuais. Está-se diante de uma hipertrofia legislativa, em que a produção de leis se encontra marcada pela ausência de qualquer critério de cunho utilitário, gerando, sem dúvida, uma sensação de absoluto desamparo social, combatido, pasmem, com a produção de mais leis que, novamente de nada servirão. A globalização do modelo econômico está provocando uma redução do estado social e um aumento do estado policial, penal e esquema dos juízos arbitrais; c) deveria ser legitimada, a Corte, para se estender às pessoas e não somente aos estados, uma vez que elas são as titulares dos direitos fundamentais, muitas vezes violados pelo próprio estado; em último lugar deveria ser introduzida a responsabilidade pessoal dos governantes por crimes de direito internacional, que deveriam ser codificados num código penal internacional”. 140 FERRAJOLI, Luigi. Razones jurídicas del pacifismo. Trad. Andrés Ibánez, Gabriel Ignácio Anitua, Marta Manclús Masó e Gerardo Pi. Madri: Trotta, 2004. 116 penitenciário. A idéia de tolerância zero não é mais que a expressão de um pensamento único sobre como proceder e prevenir a delinqüência, que se quer estender como modelo a todo o mundo, independentemente das diferenças econômicas, culturais e sociais de cada país. A aceitação desse tipo de proposta depende da evolução da economia e da sensibilidade social dos agentes políticos e econômicos que hoje dominam o mundo, bem como do nível de resistência intelectual que possam impor os criminólogos e penalistas comprometidos com a prevenção da criminalidade dentro das coordenadas do estado social e democrático de direito, e da capacidade de resposta política que possam dar os setores mais prejudicados pela globalização e a tolerância zero através de suas organizações, sindicatos, etc. 142 143 De acordo com Belli: A concepção de mundo que se tornou hegemônica, inclusive em parte da esquerda, tende a desqualificar os que alertam para as causas sociais, para o efeito perverso da extrema desigualdade e da falta de oportunidades em uma sociedade em que o apelo ao consumo e à fruição hedonista e predatória dos bens materiais se tornou uma espécie de mantra. Os novos técnicos da segurança pública dizem que esse discurso é demasiado abstrato, não fornece respostas para o dia-a-dia dos crimes e, em última instância, serve de desculpa para não reprimir os criminosos. É óbvio que o crime deve ser reprimido, mas eficiência no combate à criminalidade e respeito aos direitos humanos (para quem ainda se preocupa com esses direitos) não serão combinados com uma simples canetada, ou por meio tão somente de programas de segurança pública bem-intencionados. Aliás, muitos tentaram reformas ambiciosas do sistema de justiça criminal, mas foram poucos os que conseguiram produzir mudanças significativas. Não resta dúvida de que as reformas institucionais podem facilitar a superação da insegurança real e percebida, mas dificilmente serão 141 BELLI, Benoni. Polícia e direito. São Paulo: Revistas dos Tribunais. Revista Brasileira de Ciências Penais n °39, 2002 p.233-234. 142 SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. Dos crimes de perigo abstrato em face da Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p117 “O fator legitimador primeiro da intervenção penal está e, sua função tuteladora de bens ou interesses essenciais de dada sociedade, que são valores que se consagram em um certo período de sua história. A proteção destes valores é feita , no plano normativo, no âmbito dos vários ramos do direito , em que o direito penal figura como recurso a que o legislador deve lançar mão. O direito penal, portanto, não constitui-se sola ratio ou prima ratio, enquanto tutelador de bens jurídicos. Devido ao seu caráter fragmentário, deve ser utilizado de forma subsidiária, ou seja, como ultima ratio. A intervenção penal em um Estado Democrático de Direito somente poderá ser subsidiária, ou posto, doutra maneira, de intervenção mínima na medida que utilize o direito penal nos estritos limites de necessidade, quando outros meios de controle social não forem aptos a proteger os bens jurídicos valorados como essenciais. o mínimo aqui significa subsidiário, ultima ratio, nomeado pela necessidade.(...) O direito penal mínimo por nós identificado com um caráter subsidiário da tutela penal, respeita a dignidade da pessoa humana, tendo como efeito o fato de esta não ser penalmente constrangida, quando a mais grave forma de intervenção penal for desnecessária”. 143 Nesse sentido CONDE. Francisco Muñoz. Introducción al derecho penal. Barcelona: Bosch, 1975, p.70 117 sustentáveis no longo prazo na ausência de um esforço sério e persistente em múltiplas frentes, inclusive no que tange à eliminação da exclusão e da desigualdade social extrema. Isso porque, além das frustrações geradas pela desigualdade abissal brasileira em uma sociedade de consumo, as relações sociais hierárquicas contribuem para classificar de antemão os alvos preferenciais da vigilância, fazendo com que os agentes do estado sejam vistos com desconfiança, desprezo ou temor por aqueles considerados “perigosos/’ (que são via de regra os que trazem no corpo as marcas da exclusão). As reformas indispensáveis devem ser mais do que uma decisão de cima para baixo, precisam ser efetuadas coma participação da maioria, cuja organização ativa será fundamental para democratizar o poder no cotidiano 144 de seus contatos com o estado e com os “incluídos”. Os excluídos das práticas dos direitos são aqueles que não possuem capacidade monetária para o consumo de bens e serviços, cabendo-lhes o isolamento em guetos. A exclusão como preço pelo seu malogro (o de não possuir condições monetárias), faz com que os escolhidos passem a constituir-se numa ameaça àqueles que estão devidamente inseridos na sociedade de consumo e possuem bens passíveis de serem usurpados. A democratização do acesso aos capitais políticos, sociais, econômicos e culturais são condição para que as reformas propostas só funcionem para uma pequena parcela da sociedade. Por não ser equânime, a democratização é discriminatória, mantendo a co-existência de uma cidadania real e de uma, de segunda classe. Desqualificar o discurso das mudanças estruturais, taxando-o de utópico e desprovido de senso prático, tende a torná-lo inócuo, postergando ou anulando sua possibilidade de gerar consciência transformadora: descarta-se, assim, a responsabilidade coletiva pela exclusão de classe e pela produção da violência. Do ponto de vista econômico, a humanidade assiste a uma nova revolução tecnológica, com um fabuloso aumento de produtividade. Entretanto, após o avanço dessa onda neoliberal, ocorreu a exclusão de gigantescas parcelas da humanidade das condições elementares de subsistência e uma acumulação por parte de uma pequena maioria, da maior fatia da riqueza mundial, pois, é preciso que se diga, a globalização não beneficia a todos de maneira uniforme. Dessa forma, a atual fase do processo de globalização tem provocado o aumento da pobreza no mundo, acirrando o drama do desemprego, a marginalização urbana, a 144 BELLI, Benoni. Polícia e direito. São Paulo: Revistas dos Tribunais. Revista Brasileira de Ciências Penais n °39, 2002, p. 235. 118 degradação ambiental e a decomposição do tecido social. Pode-se destacar que tais fenômenos de exclusão são decorrências estruturais do sistema econômico capitalista vigente desde o século XVI e não apenas uma disfunção localizada de atraso de algumas de suas conformações em certas regiões do mundo, em relação a um pretenso processo de desenvolvimento e modernização. Ocorre uma sedimentalização das desigualdades, formalizadas juridicamente; ora, essa impunidade ideologizada dá azo a seu imperturbável prosseguimento, priorizando-se a segurança e abdicando-se da efetivação dos direitos fundamentais. Dessa forma, esse contigente de excluídos é aprioristicamente discriminado e esbuliado do “estado democrático de direito”. Essa prática de exclusão não é ocasional nem contingencial; integra um projeto de sociedade, baseado no extermínio dos desprivilegiados econômica e socialmente. A omissão, por parte das autoridades estaduais diretamente responsáveis pelas instituições de controle de violência (a polícia, tanto militar como civil, colocada sob a autoridade dos governadores), assume os contornos de tolerância (pela corrupção das agências executivas, pelo descrédito nas instituições punitivas, pela vizinhança com o delinqüente pela parca remuneração), quando não de estímulo, para com essas ações criminosas, enfraquecendo a vigência das garantias constitucionais, perpetuando o circulo ilegal da violência e dificulta o fortalecimento da legitimidade do governo democrático como promotor da cidadania. As diferenças sociais abrem uma brecha para que a grande maioria de excluídos de nosso país, por falta de alternativas, assumam essa comunidade criminógena como opção à sua total falta de perspectivas. O estado fomenta ou força, assim, um exército de excluídos a tomar as armas contra a comunidade nacional. 145 Por essa razão, a vontade política e fatores como desigualdade, pobreza e práticas policiais precisam ser vistos no contexto urbano da sociedade de consumo, da destruição dos laços comunitários pelo tráfico de drogas, da ausência de canais institucionais para solução de conflitos, da socialização em uma cultura que valoriza determinados objetos de consumo como símbolo de distinção social e poder, e da 145 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 258-260. 119 reprodução cotidiana de relações sociais autoritárias entre os agentes do estado e a população-alvo da vigilância. O que provoca esta política, no fundo, é, do ponto de vista de sua eficácia preventiva, uma irrelevante diminuição de algumas formas de criminalidade escassamente relevante desde o ponto de vista qualitativo em troca de um aumento da criminalização da pobreza. A globalização da economia tem trazido consigo em todo o mundo, inclusive nos países de maior nível econômico, um aumento de uma população sub-proletária, com grande número de desempregados, escassa qualificação profissional, imigração ilegal, etc, que logicamente está ligada à delinqüência, ou, pelo menos, a um certo tipo de delinqüência de sobrevivência. O problema do desemprego não se soluciona com um aumento da repressão penal e policial, nem com a construção de mais prisões, mas com uma inteligente política social e econômica, com uma mais justa redistribuição da riqueza, com maior gasto em ajuda e obras sociais. Desgraçadamente, isso parece hoje estar distante dos programas da maioria dos governos, incluindo os de esquerda, nos países de maior nível econômico. Um tal panorama permite compreender a razão pela qual o princípio isonômico oriundo do liberalismo jamais foi impeditivo de toda sorte de classificações e discriminações legislativas, significando tão apenas a exigência de igual tratamento jurídico para todos ou, ao menos, para todos quantos estejam na mesma circunstância fática. Tendo a regra igualitária resultado da explosão de liberdade vivida na virada do século XVIII, sua noção nasceu individualista, nada aduzindo, ipso facto, no tocante à distribuição da riqueza e dos meios de sobrevivência no convívio social. Bastava que a lei fosse igual para todos, ou igual para os iguais, sem a adoção dos privilégios vigorantes no antigo regime, para que ficasse satisfeito o cânone da igualdade jurídica. Sua função, destarte, não era outra senão a de permitir que a liberdade capitalista pudesse operar como força motriz do desenvolvimento sócio-econômico, de feição nitidamente individualista e liberal. O direito constitucional moderno, mormente no século passado, embutiu a idéia da igualdade no ideal prevalente da liberdade, de modo a exigir do estado uma atitude de omissão ou parcimônia na regulamentação da economia, que deveria organizar-se de acordo com a lei natural do laissez faire, laisser passer. Argumenta Castro que, para alcançar maior eficiência no combate à escalada da criminalidade, as instituições públicas repressivas acabam alterando seus mecanismos 120 de controle e prevenção de delitos, seja aumentando o caráter punitivo das normas penais, seja liberando o processo de persecução criminal das garantias investigatórias e processuais, incluídas na pauta constitucional dos direitos fundamentais do homem. Com isso, as liberdades civis ficam drasticamente comprometidas.146 147 Por outro lado, o grande contingente dos excluídos por força da indigência econômica, passam a sofrer um processo de criminalização sumária, que os transforma em autêntico grupo de risco nas ações policiais de combate à delinqüência. Tem-se aí a repressão ideologizada, à feição do colonianismo classista, que fez escola no período da ditadura militar, a ponto de deformar o conceito de ordem pública e transformar o papel das instituições incumbidas da segurança pública, notadamente as polícias civis e militares, em forças de arbítrio e de plantão a serviço do modelo econômico concentrador da riqueza e calcado na exacerbação egoísta da propriedade privada. Sob essa ótica proprietária e utilitarista do funcionamento das corporações encarregadas da prevenção e da repressão à criminalidade, as camadas desfavorecidas da população, sobretudo a gente das favelas e dos morros, é vista sob permanente suspeição, tornandose clientela da cotidiana violência policial. Os índices de violência não tem correlação direta com a violência; é necessário ressaltar que as regiões mais pobres não são necessariamente as mais violentas. A explosão da violência é mais evidente nas grandes cidades, nos aglomerados urbanos, em regiões que a carência se dá não em nível econômico, mas como meio total de privação, seja ela de oportunidade, de espaço, poder econômico e visibilidade das desigualdades sociais. Nas grandes cidades, o estigma da exclusão fica muito mais 146 Nesse sentido SILVA SANCHEZ. Jesus Maria. A expansão do direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.30. “A sociedade pós-indústria, é além da sociedade do risco tecnológico, uma sociedade com outras características individualizadoras que contribuem a sua caracterização como sociedade de objetiva insegurança. Desde logo deve ficar claro que o emprego de meios técnicos, a comercialização de produtos e a utilização de substâncias cujos possíveis efeitos nocivos ainda não são conhecidos e, última análise, manifestar-se-ão anos depois da realização da conduta, introduzem um importante fator de incerteza na vida social. O cidadão anônimo diz ‘estão nos matando’, mas não consegue saber com certeza nem quem, nem como, nem a que ritmo. Em realidade faz tempo que os especialistas descartaram à excessivamente remota possibilidade de neutralizar os novos riscos, o significado que é preferível aprofundar-se nos critérios de distribuição eficiente e justam dos mesmos existentes e em princípio não neutralizáveis. O problema, portanto, não radica mais nas decisões humanas que geram os riscos, senão também nas decisões humanas que os distribuem. E se é certo que são muitos que propugnam a máxima participação pública na tomadas de decisão, não é menos certo que, de momento, as mesmas tem lugar em um contexto de quase total obscuridade”. 147 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 259. 121 aparente e excludente. Sabe-se que sociedades mais desiguais que a brasileira possuem índices de criminalidade freqüentemente inferiores. Denota-se que, apesar das diferenciações próprias das atividades criminosas urbanas e transnacionais e o terrorismo, existe algo comum no tratamento que tem sido dispensado a essas categorias de criminalidade: uma legislação expansionista de viés inquisitório e um total recrudescimento dos direitos e garantias individuais. As características, detectadas no combate ao terrorismo no âmbito internacional, obedecem aos mesmos contornos das legislações brasileiras expansionistas. Como reação emergencial à total ineficácia do estado em garantir a segurança dos cidadãos, tem-se uma legislação com matizes totalmente expancionistas, que, na tentativa de romper a sólida estrutura econômica, bélica e tecnológica do crime organizado, empreendem uma dogmática doutrinária e jurisprudêncial de aplicação de medidas restritivas aos direitos e garantias individuais, que, muitas vezes, atenta aos limites constitucionais e ao princípio da proporcionalidade. 148 149 A história do direito penal é também a história de constantes e sucessivos movimentos de neocriminalização, sendo que, no Brasil, essa nova criminalidade está explicitada e oscila entre o reducionismo penal e sua expansão. Leciona Miranda que os 148 BECK, Francis Rafael. Perspectivas de controle: ao crime organizado e a crítica à flexibilização das garantias. São Paulo: IBCCRIM, 2004, p. 80. “Uma leitura atenta da bibliografia e da própria realidade leva a crer que não existe apenas um modelo de crime organizado. Assim, infere Minguardi que existem pelo menos duas espécies distintas, embora aparentadas, de organização criminosas: a ‘tradicional’ ou ‘ territorial’ e a ‘empresarial’. A primeira delas consistiria no grupo de pessoas voltadas para atividades ilícitas e clandestinas que possui uma hierarquia própria e capaz de planejamento empresarial, que compreende a divisão do trabalho e o planejamento de lucros. As suas atividades tem por base o uso da violência e da intimidação e os lucros se originam da venda de mercadorias ou serviços ilícitos, no que é protegida por setores do estado. Tem como características distintas de qualquer outro grupo criminoso um sistema de clientela, a imposição da lei do silencio aos membros ou pessoas próximas e o controle pela força de determinada porção de território. A segunda espécie por sua vez, é menos definida, mais difícil de diferenciar das simples quadrilhas ou de empresa legal. Sua característica mais marcante é transpor para o crime métodos empresariais, ao mesmo tempo em que deixa de lado qualquer resquício de conceitos como a honra, a lealdade ou a obrigação”. 149 “Embora parte dos traficantes use as favelas como escritórios e escudo, muitos deles, os mais poderosos, os quais trazem as drogas para os morros, não vivem onde nós vivemos. E a imensa maioria dos favelados não tem relação direta com o tráfico, para além do temor, necessário na vida sob qualquer poder armado. (...) Ficamos, então, entre a cruz e a espada, perplexos e impotentes diante de um estado que só aparece na forma de violência e da humilhação, e de um poder paralelo que, paradoxalmente, em determinadas ocasiões, até nos protege.(...) Como se bastassem o desemprego e a má qualidade de vida, as favelas têm esses inimigos internos poderosos. O crescente comércio de drogas forma o quadro mais triste de um conto de fadas ao avesso, em que os adolescentes são as grandes vítimas, iludidos com o dinheiro fácil e demais vantagens ilusórias”. Favelas: entre a cruz e a espada de autoria de Rumba Gabriel (Antonio Carlos Ferreira Gabriel, presidente da Associação de Moradores do Jacarezinho e 122 direitos fundamentais estão necessariamente sujeitos a limites, ainda que de natureza e grau muito diversos: não há liberdades absolutas; elas aparecem, pelo menos, limitadas pela necessidade de assegurar a liberdade dos outros. Mas isso não pode significar um vale tudo. 150 151 No Brasil, com a tônica do expansionismo penal, criam-se também decisões reafirmando a possibilidade de relativização dos direitos fundamentais, posicionando-se a jurisprudência no sentido de endossar a restrição aos direitos individuais em prol da sociedade e da eficiência no combate ao crime organizado. Veja-se decisão do E. Superior Tribunal Federal: “Os direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto” Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas - e considerado o substrato ético que as informa - permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros". (MANDADO DE SEGURANÇA, Relator (a): Min. CELSO DE MELLO, Julgamento: 16/09/1999) No mesmo sentido: "PROCESSUAL – HABEAS CORPUS – QUEBRA DE SIGILOS BANCÁRIO, FISCAL E DE COMUNICAÇÕES TELEFÔNICAS” (ART. 5º, X E XII DA CF) – I. Os direitos e garantias fundamentais do indivíduo não são absolutos, cedendo em face de determinadas circunstancias, como, na espécie, em que há fortes indícios de crime em tese, bem como de sua autoria. II. Existência de interesse público e de justa causa, a lhe dar suficiente sustentáculo. III. Observância do devido processo legal, havendo inquérito policial regularmente instaurado, intervenção do parquet federal e prévio controle judicial, através da apreciação e deferimento da medida. (TRF 2ª R – HC 95.02.22528-7 – RJ 3 ª T. – Rel. Dês. Fed. Valmir Peçanha – DJU 13.02.96). membro do Movimento Popular das Favelas), publicado na Seção Opinião do Jornal ‘O Globo’, do dia 23/8/2001, página 7. 150 A fase em que imperou o racionalismo-iluminismo, com seu empenho em torno da descriminalização, não deixou de ser vislumbrado um movimento neocriminalizador, sobretudo em relação aos crimes contra o patrimônio, a resguardar os interesses das novas classes abastadas em vias de afirmação. O período seguinte, por sua vez, sob a influencia cultural do romantismo e dos ensinamentos da s escolas históricas do direito, se caracterizou por elevar os valores religiosos e morais à categoria de bens jurídicos-penais, em reação ao direito penal iluminista que pouca (ou nenhuma) importância conferia a violação de tais valores. 151 MIRANDA, Jorge. Terrorismo e Direito. Os impactos do terrorismo na comunidade internacional e no Brasil: perspectivas político econômicas. Os Direitos Fundamentais perante o terrorismo, Rio de janeiro: Forense, 2003, p.160. 123 Criam-se novas legislações no intuito de abarcar esses espaços vazios, responsabilizando criminalmente a pessoa jurídica. Surgem novas maneiras de penalizar estes delitos, adaptando-se o processo penal para agir eficazmente a essa nova criminalidade. Afeta-se o direito à intimidade com quebra de certos sigilos, com base no postulado da proporcionalidade. A sociedade reage da mesma maneira emergencial como está sendo agredida, esquecendo-se que o crime é muito mais do que sua externalização fática. A doutrina expansionista que defende as tendências restritivas como possibilidade jurídica, sustenta-se no fato de que os direitos fundamentais do cidadão, o bem-estar da comunidade e a preservação e repressão criminal também possuem assento constitucional e não podem ser sacrificados por uma concepção puramente individualista, defendo então essa mitigação ou supressão como um meio legítimo de combate à criminalidade. Ao relativizar os direitos fundamentais, enquanto valores constitucionais, vincula-os à idéia de responsabilidade unicamente factual, não analisando e nem sequer questionando qual o referencial societário que permite e propaga essas sociedades criminosas, eximindo mais uma vez o estado de pensar e atuar como poder legítimo responsável pela minimização das desigualdades sociais e pela promoção de uma perspectiva de futuro para as novas gerações, que não sejam tão somente as atividades criminosas. A pauta que se coloca, quando que se fala de supressão de direitos e garantias individuais, é que esse tipo de procedimento, além de, na grande maioria das vezes, propiciar inquisições sumárias, destituídas do devido processo legal, acarreta eminente perigo de retrocesso na história de consagração desses direitos, podendo, inclusive, gerar retornos autoritários ou ditatoriais. Devido à dificuldade de responsabilização criminal das organizações criminosas, medidas radicais são tomadas com a finalidade de se buscarem provas dos ilícitos cometidos, como, por exemplo, medidas como interceptações telefônicas e ambientais, quebra de sigilo bancário e fiscal dos denunciados. Porém, vale salientar que todos esses 124 procedimentos narrados, permitidos pelo ordenamento jurídico de vários países para a obtenção de provas, só podem ser realizados através de um juízo de ponderação, oferecido pelo princípio da proporcionalidade e dentro de um contexto representado pelo devido processo legal; nunca essas provas poderão ser obtidas sob o signo de alguma arbitrariedade. Com a implementação das políticas neoliberais, em que o mercado aparece como novo critério de regulação social, instaurou-se hoje uma nova fase do capitalismo, sem limites territoriais para expansão das forças produtivas. Os detentores do poder econômico, esses novos dirigentes sem pátria ou território, surgem como membros de uma nova classe, totalmente descompromissada com a coletividade e com o trabalho. Assim, o discurso neoliberal consolida-se deslegitimando os direitos e garantias individuais e coletivas. O estado, como depositário desses valores universais, associados à idéia do público, passa a ser um empecilho ao desenvolvimento dessas relações numa concepção de mundo que se aproxima de uma noção hobbesiana de guerra total de todos contra todos.152 Mas, como esse salve-se quem puder não pode ser explicitado, pois feriria suceptibilidades morais e éticas, os discursos sociais, e o jurídico penal em particular, acabam por adotar estratégias de mascaramento da gradual ineficiência e deslegitimação do sistema penal, inclusive, das violações à sua legalidade penal e processual. Lidando com o direito penal, vê-se que são diversas as formas pelas quais o próprio sistema penal pratica seu aniquilamento institucional: pela ausência de celeridade nos processos; pela falta absoluta de critérios de formulação/execução de um sistema de penas; pela não individualização da pena e não separação dos apenados por grau de periculosidade; pela não disponibilização de trabalho ao preso; pelas inúmeras afrontas ao direito fundamental de dignidade da pessoa humana; pela própria segregação representada pelo cárcere; pela distorção incorrigível das tipificações, pela introdução de elementos moralistas na construção dos tipos penais; enfim, por um cem número de atrocidades que gravitam em torno do direito penal, agravando, ao invés de minimizar, o abismo social em que se encontram os excluídos, que são vítimas da arbitrária atuação das agências executivas do estado e do sistema penal. 152 COPETTI, André. Direito penal e estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p.70. 125 Nesse sentido, Zaffaroni afirma que se verifica, na operacionalidade social dos sistemas penais latino-americanos, um violentíssimo exercício de poder à margem de qualquer legalidade. A esse respeito, basta rever qualquer informe sério de organismos regionais ou mundiais de direitos humanos para comprovar o incrível número de seqüestros, homicídios, torturas e corrupção cometidos por agências executivas do sistema penal ou por seus funcionários. A essas violações, devem ser acrescentadas a corrupção, as atividades extorsivas e a participação nos benefícios, decorrentes de atividades como o jogo, a prostituição, o contrabando, o tráfico de drogas proibidas. 153 Mas essa crise do discurso jurídico penal e do próprio direito penal deve-se, sem dúvida, à adoção de soluções prementes para dar conta da visível ineficácia do estado em levar ao cidadão o mínimo de segurança jurídica frente à violência e à criminalidade generalizada e organizada que assola o mundo. O direito penal passou a assumir, desgarrado de seus objetivos precípuos, contornos emergenciais, na tentativa de responder aos múltiplos propósitos que lhe são exigidos. Tais contornos, expressos por uma legislação expansionista, são amparados por discursos jurídicos penais de urgência e pela profetização de soluções práticas e rápidas. 154 A Lei 8.072/90 é um exemplo de uma legislação simbólica, elaborada dentro da concepção de Law and Order, constituindo-se em referência significativa de uma posição político-criminal que expressa um punitivismo desgarrado dos reais questionamentos a que se deve responder. A fim de alcançar uma concepção jurídica aceitável de justiça, é preciso que a sociedade civil, estado e o direito trabalhem em comunhão de ideais; porém, ao contrário, o que se observa é que, diante da desenfreada escalada da violência, a sociedade acuada permite que o estado se utilize somente de seu caráter repressivo, abusando de leis mais severas e de impacto imediato e descuidandose dos aspectos preventivos. 153 RAUL, Eugenio. Sistemas penales y derechos humanos en América Latina. Buenos Aires: Depalma, 1984. p.28. 154 SILVA SÁNCHEZ, J. Mª. Aproximación al derecho penal contemporáneo. Barcelona: JM Bosch Editor AS, 1992. Nesse sentido preconiza o penalista espanhol Jesus Maria Silva Sanchez que “a corrente dogmática que hoje é denominada funcionalista ou teleológica não é mais que o produto da 126 Afirma Freire que, do ponto de vista normativo, a edição da Lei 8.072/1990 pode ser considerada como marco inicial da escala penalizadora, uma vez que, ao etiquetar algumas condutas como hediondas, elevou o patamar mínimo das penas, estabelecendo um regime carcerário integralmente fechado, aumentando o lapso temporal para a percepção do livramento condicional e obstruindo os direitos de indulto e comutação para tais delitos. Nesse sentido, a Lei 8.072/1990, além de exasperar as formas anteriores de execução da pena, criou um obste concreto para o sistema progressivo, delineando com isso futuros contornos da política penitenciária. 155 Para compreender o caráter simbólico contido na referida lei (8.072/90) dos crimes hediondos, podem-se analisar a proibição da liberdade provisória e a regra de que o juiz, ao proferir sentença condenatória em crimes hediondos ou a eles equiparados, deve, fundamentadamente, conceder o direito de apelar em liberdade, basta uma passagem por alguns princípios constitucionais. A lei dos crimes hediondos - Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990 - prescreve que: “a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de fiança e liberdade provisória” (art. 2.º, inciso II). Esta mesma lei, no § 2º, do art. 2º, reza que, em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade. Com isso, o legislador, ao editar a lei dos crimes hediondos, ampliou o rol das limitações às garantias constitucionais, prescrevendo que os crimes hediondos e equiparados seriam insuscetíveis de liberdade provisória, incorrendo assim em clara invasão das garantias fundamentais, arrebatando o texto constitucional, e impondo uma série de conseqüências ao acusado de um crime abarcado por ela, como a de ter que ficar, obrigatoriamente, durante toda a instrução no cárcere; ao colocar a obrigação do juiz fundamentar a concessão da liberdade, no momento de prolatar sentença condenatória por um crime hediondo, inverteu a ordem natural do tema em um estado acentuação dos aspectos teleológicos valorativos já presentes na concepção dominante, não constituindo, assim, algo absolutamente novo, e que como tal ameace destruir toda a dogmática tradicional”. 155 FREIRE, Christiane Russomano. A violência do sistema penitenciário brasileiro contemporâneo: o caso do regime disciplinar diferenciado. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p.120. 127 democrático de direito, pois coloca a prisão como regra, enquanto a liberdade figura como exceção.156 Rege o princípio da liberdade, contido no inciso LXVI do artigo 5º da Constituição, que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”. Esse direito fundamental à liberdade provisória está intimamente ligado aos princípios constitucionais antes referidos, merecendo especial menção o princípio constitucional da presunção de inocência, balizador no processo penal, expressamente consagrado no artigo 5°, LVII, da constituição federal. 157 158 159 É necessário repisar que a presunção de inocência deve ser sempre acolhido como preceito constitucional inarredável no tratamento processual que o juiz deve dar ao acusado: no processo de apuração da responsabilidade penal de recair sobre o acusado essa prerrogativa jurídico penal, impondo ao magistrado, a não manter uma posição negativa em relação ao suspeito considerando-o culpado mas sim, a ter uma 156 São princípios que regem o direito constitucional brasileiro, que, induvidosamente, foram cerceados pela imposição da proibição da liberdade provisória, tais como o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da liberdade, da não-culpabilidade prévia, da presunção de inocência, do devido processo legal, da necessidade da cautela, do contraditório e da ampla defesa. A liberdade provisória pode ser deferida no curso da instrução criminal, ou no momento de ser proferida a sentença condenatória recorrível. Se a Constituição Federal previu a possibilidade da liberdade provisória para qualquer tipo de crime, não pode uma lei infraconstitucional limitar esse direito, sem autorização expressa no texto constitucional. Com isto, certo que a liberdade provisória é a regra que impera no ordenamento brasileiro, sendo a prisão cautelar situação excepcionalíssima, não sendo cabível, pois, pensar-se em uma proibição generalizada da concessão de liberdade provisória. 157 Inciso LVII, Art. 5°CF: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. 158 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão – teoria geral do garantismo. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo, RT, 2002, p. 559. Nesse sentido FERRAJOLI defende a dignidade da pessoa humana e a necessidade de manutenção dos direitos e garantias individuais “Um princípio fundamental de civilidade, fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que para isso tenha-se que pagar o preço da impunidade de algum culpável. Isso porque, ao corpo social, lhe basta que os culpados sejam geralmente punidos, pois o maior interesse é que todos os inocentes, sem exceção, estejam protegidos”. 159 FREIRE, Christiane Russomano. A violência do sistema penitenciário brasileiro contemporâneo: o caso do regime disciplinar diferenciado. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p.120 “O processo de incremento punitivo envolve uma lógica seqüêncial que alcança as diversas dimensões do sistema penal. Dentro desta continuidade, surgem as Leis 7.960/1989, que (re) estrutura a prisão cautelar (prisão temporária), 7.716/1989, 8.072/1990, 9.034/1995 e 9.455/1997 (novas espécies de inafiançabilidade e vedação da liberdade provisória), bem como a Lei 8.038/1990 modalidade de execução sem trânsito em julgado da sentença condenatória (Lei 8,038/1990). Ainda sob o abrigo da idéia de combate ao crime organizado, serão introduzidas normas supostamente mais eficazes de investigação, como a que prevê a queda de segredos sobre dados pessoais (Lei 9.034/1995), a que faculta a interceptação de comunicações telefônicas, pra fins de investigação criminal (Lei 9.296/1996) e a que trata dos crimes de lavagem de capitais, reafirmando a quebra do sigilo dos dados pessoais (Lei 9.613/1998)”. 128 postura positiva, tratando-o efetivamente como inocente. Assim, caso uma pessoa seja condenada, em sentença de primeiro grau, pela prática de crimes hediondos ou a ele assemelhados, estabelece a lei que o juiz prolator deve decidir através de fundamentação se o réu pode apelar em liberdade. Vê-se aqui perfeitamente um exemplo do caráter simbólico do direito penal. 160 161 Assim, a própria violência contida no sistema penal afronta os mais elementares princípios constitucionais de garantia, notadamente o respeito à vida e à igualdade dos cidadãos. Privilegiando, através de normas jurídicas e posições político-econômicas, determinados cidadãos e dirigindo-se intencionalmente aos não cidadãos, que, como tal, se configuram muitas vezes devido a um contexto social em que o estado não assume suas responsabilidades, acaba o direito penal por externar uma discriminação operada sobre uma parcela da população que não têm direito aos direitos. O discurso jurídico penal opera, dessa forma, ele próprio colocando à margem dos direitos humanos toda sua clientela, aprioristicamente classificada e sancionada antes mesmo da apuração de sua culpa.162 160 WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. 2. ed. rev. Porto Alegre: SAFE, 1995, p. 73-74. Para Warat, há a indicação de algumas opiniões jurídicas generalizadas provocadas pelos estereótipos jurídicos quais sejam: a idéia de que a ordem jurídica nos fornece segurança; a noção de que o sistema do direito positivo é a garantia da paz social; a necessidade de adaptação ao modelo de ordem que os discursos jurídicos insinuam; a idéia de que o direito circunscreve as tensões sociais dentro de um marco de pequenos conflitos; a superação dos problemas sociais através de mecanismos equilibrados do sistema social; o direito é o árbitro neutro das disputas entre os homens (neutralidade do direito e do Estado); a transformação da força em legalidade e a dominação em dever; a identificação do poder à lei; identificação da obrigação de obedecer a certos valores aceitos como “essencialmente justos”; a idéia da finalidade ética da sanção. 161 “EMENTA: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. PRISÃO EM FLAGRANTE. CUMPRIMENTO DE MANDADO DE BUSCA E APREENSÃO DE 90 GRAMAS DE CRACK E QUANTIA EM DINHEIRO. LIBERDADE PROVISÓRIA. RECURSO MINISTERIAL. Nesta etapa processual, não deve o Magistrado antecipar seu posicionamento, muito menos tecer comentários quanto à capitulação do delito ou regime prisional. Apenas verificar a legalidade do Auto de Prisão em Flagrante e, por conseguinte, a presença dos pressupostos autorizadores da prisão cautelar. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. CRIME EQUIPARADO A HEDIONDO. PRESENÇA DOS REQUISITOS ENSEJADORES DA PRISÃO PREVENTIVA. O delito de tráfico de drogas recebeu, por equiparação, tratamento idêntico aos crimes hediondos, aplicando-se a ele a vedação da concessão de liberdade provisória, expressa no art. 2°, inc. II, da Lei n.º8.072/90. Ademais, dadas as circunstâncias da prisão em flagrante, cumprindo Mandado de Busca e Apreensão para este fim, na residência do flagrado, aliado à gravidade do delito e alta lesividade social, merece ser garantida a ordem pública. À unanimidade, deram provimento ao recurso. (Recurso em Sentido Estrito Nº 70010806917, Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Elaine Maria Canto da Fonseca, Julgado em 19/05/2005.” 162 SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. Dos crimes de perigo abstrato em face da Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.94 “Com efeito, o Estado democrático de direito caracteriza-se, entre outros traços, pelo respeito a dignidade da pessoa humana e pelo respeito à liberdade, não tendo um fim em si mesmo, ao contrário, devendo estar a serviço do bem estar da população, n]ao devendo intervir na vida de seus súditos de modo arbitrário, proibindo condutas por mero dever de obediência, ou pretender conformar seus cidadãos a um determinado posicionamento político ou moral, com a ameaça de pena. 129 Segundo Coppeti, os esgualepados são duplamente atingidos: por um lado, por não terem acesso aos direitos sociais, pois se encontram constantemente em luta pela sobrevivência, o que muitas vezes os leva ao cometimento de delitos, especialmente contra o patrimônio; por outro, porque, não possuindo qualquer capacidade de articulação frente ao sistema, ao cometerem os delitos, são vítimas fáceis da repressão estatal, que deles se vale para justificar sua imprescindibilidade à sociedade. 163 Dessa forma, esse direito penal, intitulado empiricamente moderno, de inarredáveis tendências expansionistas, pretende enxertar novas funções ao direito, objetivando dotá-lo de atribuições que não lhe dizem respeito. Trata-se de discursos descomprometidos com a técnica e as possibilidades jurídicas, impregnados de conotações políticas, que defendem a idéia de que o direito penal deve servir como instrumento de solução de conflitos sociais, encarregando-se do dever de sustar as necessidades e a insurreição dos excluídos, diante do abismo social de desigualdades em que esses se encontram no mundo globalizado. Essa narrativa é instaurada na tentativa de minimizar a insegurança e de promover a segurança jurídica não alcançadas pelo estado, tendo como expectativa que o direito penal assuma um funcionalismo a que ele não se propõe, visto que tais atribuições não lhe dizem respeito e são ilusórias no controle dos novos perigos representados pela criminalidade contemporânea e organizada. Toda e qualquer intervenção estatal, e especialmente intervenção penal, somente se justifica quando for estritamente necessária adefesa de valores eleitos pelas comunidades como essenciais em face de agressões intoleráveis”. 163 COPETTI, André, . Direito penal e estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 90. 130 3.2 Contextualização da expansão Como já se referiu, o discurso jurídico penal vem assumindo, nas sociedades contemporâneas (e democráticas), tendências expansionistas; trata-se de um discurso em que está implícita e anuída socialmente a intervenção penal legalizada. A democratização das sociedades modernas trouxe consigo a perspectiva de uma sociedade baseada na livre iniciativa econômica que desenha o direito penal como a ultima ratio, assentada na anterioridade da lei penal e na intervenção mínima do estado como meio de coibir que o poder punitivo seja exercido arbitrária e ilimitadamente. Para ser legal, a intervenção estatal deve limitar-se ao um direito positivado. 164 Muita coisa mudou no mundo contemporâneo. O poder, que antes passava necessariamente pelo estado-nação, hoje não tem mais condições de controlar um conjunto de variáveis que atinge, à sua revelia, duramente as populações. Lugar de política, mas esvaziado do poder, o estado-nação tem sua soberania ameaçada pela descentralização do poder. Assim, a impossibilidade de circunscrever o poder, que deixa de existir enquanto espaço definido, nomeável, pode, mais que o tornar obsoleto, decretar mesmo o seu desaparecimento. Com isso, pretende-se dizer que, quer formalmente ou não isso aconteça, quer configure-se ou não como situação de direito, de fato, isso já está acontecendo. A proposta de globalização pretende a derrubada das barreiras dos estados e a promoção do mercado internacional como esfera básica do contrato social, criando-se a partir dele, uma sociedade global. Salientam os neoliberais, defensores da globalização, que a abertura indistinta dos mercados internais livremente criaria uma riqueza econômica que seria multiplicada para melhor atender às necessidades humanas. Argumentam os neoliberais que a globalização econômica irá trazer à humanidade uma nova era de paz e prosperidade: respeitando-se as leis do mercado o bem-estar social estaria garantido a todos os seres humanos. Ocorre que a eficácia da globalização econômica – essa nova etapa de dependência dos mercados emergentes em relação ao grande capital internacional, cuja lógica não é de associação, mas de dominação – está também relacionada ao fato de ela 164 CONDE. Francisco Muñoz. Introducción al derecho penal. Barcelona: Bosch, 1975. 131 não ficar circunscrita à área econômica. As novas tecnologias permitem um fluxo constante de informações. Ultrapassa-se o nacional em direção ao internacional, ao transnacional. Mas, se sob o aspecto econômico, a humanidade assiste a uma nova revolução tecnológica, com um fabuloso aumento de produtividade; há hoje, todavia, demanda de menos trabalho vivo para a produção de uma mesma quantidade de mercadoria, gerando um volume maior de excedente tanto de mercadorias quanto de mercado e de mão-deobra trabalhadora. Como conseqüências desse modelo globalizador, têm-se então o desemprego e o aumento de capitais voláteis, que giram no mundo em busca de valorização à base de taxas de juros elevadas. Segundo Sanchez, a sociedade atual caracteriza-se, basicamente, por um âmbito econômico rapidamente variante e pelo aparecimento de avanços tecnológicos sem paralelos em toda a história da humanidade. O extraordinário desenvolvimento da técnica teve, e continua tendo, obviamente, tanto repercussões diretas no incremento de bem-estar individual, como, também na dinâmica dos fenômenos econômicos. Dentre elas, a que interessa aqui ressaltar é a configuração do risco de procedência humana como fenômeno social estrutural: boa parte das ameaças a que os cidadãos estão expostos provém precisamente de decisões que outros cidadãos adotam no manejo dos avanços técnicos: riscos mais ou menos direitos para os cidadãos – como consumidores, usuários, beneficiários de serviços públicos – que derivam das aplicações técnicas dos avanços na indústria, na biologia, na genética, na energia nuclear, na informática, nas comunicações etc. Além disso, a sociedade tecnológica, crescentemente competitiva, desloca para a marginalidade não poucos indivíduos, que imediatamente são percebidos pelos demais como fonte de riscos pessoais e patrimoniais. 165 A percepção do homem enquanto mola mestra do sistema social tem como fundamentamento lógico a transação das relações interpessoais expressas no contrato social e na figura do estado moderno; a limitação dessa intervenção constitui-se nos direitos de primeira geração, que encontram, no princípio da legalidade penal, sua mais real exemplificação, eis que impõe ao estado o dever de agir, tão somente, nos casos 165 SANCHEZ. Jesus Maria Silva. A expansão do direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 29. 132 prévia e especificadamente explicitados na lei, devendo a mesma incidir somente nos casos não alcançados pela razão, frente aos quais se estaria diante do dano. Por isso, inclusive, um dos vários adjetivos impostos ao direito penal é o de ultima ratio, eis que, saída a razão, resta o uso da força. O direito penal é então primeiramente pensado e projetado para entes que detêm pleno controle de suas ações (livre arbítrio) e, ainda mais, possuem plena capacidade de racionalizar o seu agir, mediando seus impulsos pela temperança. Para esse contexto de subjetividade e aprimoramento do ser humano, tem-se o direito penal, representado por uma intervenção mínima, fragmentária e subsidiária, eis que, como foi afirmado, ele deve alcançar os casos – raros – em que à solução racional para o conflito não foi encontrada. A crise que se abateu sobre o estado nacional e o enfraquecimento da democracia e do estado de direito, obriga a repensar não somente a eficácia da gestão da coisa pública e dos interesses e do bem estar coletivo, como também a competência institucional e coercitiva dos organismos internacionais (que apesar de albergados por tratados e convenções de direitos fundamentais) não possuem mecanismos para evitar o uso desmedido da violência como meio de implantação da ordem e legitimação de guerras. Esse vazio no direito público, numa sociedade global cada vez mais frágil e interdependente, não se sustenta por muito tempo e certamente conduzirá a violências cada vez mais atrozes contra populações carentes (sem poder de reação econômico, intelectual e bélico), às guerras e ao terrorismo permanente A ausência de uma esfera pública mundial traz como conseqüência um crescimento exagerado da desigualdade, significante de um novo racismo que se dá por conta da miséria, da fome, das doenças e da morte de milhares de seres humanos que carecem de valor. É uma desigualdade sem precedentes. No livro Multidão: guerra e democracia na era do império, Hard e Negri assim se manifestam a respeito do estado de exceção: Hoje, no entanto, em vez de nos movermos em direção à paz na realização deste sonho, parece que fomos catapultados no tempo de volta ao pesadelo de um estado de guerra perpétuo e indefinido, com a suspensão do império internacional do direito e sem uma distinção clara entre a manutenção da paz e os atos de guerra. Como retrocederam o espaço e o 133 tempo isolados da guerra nos conflitos limitados entre estados soberanos, fica parecendo que a guerra começou a vazar de volta, inundando todo o terreno social. O estado de exceção tornou-se permanente e generalizado; a exceção transformou-se em regra, permeando tanto as relações internacionais quanto o espaço interno. O “estado de exceção” é um conceito da tradição jurídica alemã que se refere à suspensão temporária da constituição e do império da lei, semelhante ao conceito de estado de sítio e à noção de poderes de emergência nas tradições francesa e inglesa. Uma longa tradição de pensamento constitucional considera que em épocas de graves crises e perigo, como no tempo de guerra, a constituição deve ser suspensa temporariamente, conferindo-se poderes extraordinários a um executivo forte ou mesmo a um ditador, para proteger a república. O conceito constitucional de “estado de exceção” é devidamente contraditório – a constituição precisa ser suspensa para ser salva-, mas esta contradição é resolvida ou pelo menos atenuada pelo entendimento de que o período de crise e exceção é breve. Quando a crise deixa de ser limitada e específica, transformando-se numa onicrise generalizada, quando o estado de guerra e, portanto o estado de exceção tornam-se ilimitados ou mesmo permanentes, como acontece hoje em dia, a contradição manifesta-se 166 plenamente, e o conceito adquire um caráter completamente diferente. Os Estados Unidos, imbuídos de uma suposta base ética que lhe avoca o poder de liderar o destino histórico do mundo, vem tornando a exceção regra, ao empreender seu poderio excepcional e sua capacidade de dominar a ordem global como máxima a toda a ordem mundial. O conceito de estado de exceção, pautado na temporariedade permite a suspensão temporária de direitos, conferindo-se poderes extraordinários ao executivo para equacionar situações de emergência, nas quais prevalecem à mitigação de garantias jurídicas e liberdades por um tempo limitado. A lógica que preside a ação americana vem pretendendo a infinitude desse estado de emergência (pela abrangência da violência institucionalizada que o mesmo comporta), na qual é permitido que as agências repressoras do estado ajam posicionando-se acima da lei; trata-se de uma questão de pura força, e não de direito. A primeira guerra mundial foi um conflito entre estados-nação europeus que se estendeu a muitas partes do mundo basicamente devido ao alcance global de suas estruturas imperialistas e coloniais. A segunda guerra mundial em grande medida repetiu a primeira, já agora centrada tanto na Ásia quanto na Europa, mas foi resolvida 134 pela intervenção dos soviéticos e dos norte-americanos, que posteriormente determinaram os lados de um novo conflito global. A guerra fria consolidou essa alternativa global de tal maneira que a maioria dos estados-nação foi obrigada a se alinhar com um lado ou outro. No atual estado de guerra imperial, no entanto, os estados-nação soberanos já não definem basicamente os lados do conflito. Existem hoje novos protagonistas no campo de batalha, e sua clara identificação constitui uma das principais tarefas no delineamento dessa genealogia.167 Atualmente, com o avanço dessa onda neoliberal, vivencia-se a exclusão de gigantescas parcelas da humanidade, hoje apartadas de condições elementares de subsistência, bem como se verifica uma acumulação e concentração de bens por parte de uma pequena minoria que disputa disfarçadamente a maior fatia da riqueza mundial. Uma coisa é certa: a globalização não beneficia a todos de maneira uniforme. Uns ganham muito, outros ganham menos, muitos perdem. Na prática, a globalização exige menores custos de produção e maior tecnologia. A mão-de-obra menos qualificada é descartada. Mas o que fazer com esse contingente humano? O problema não é apenas individual. Trata-se do drama dos países mais pobres, que perdem com a desvalorização das matérias-primas que exportam e com o seu atraso tecnológico. Pode-se destacar que tais fenômenos de exclusão são decorrências estruturais do sistema econômico capitalista vigente desde o século XVI e não apenas uma disfunção localizada de atraso de algumas de suas conformações em certas regiões do mundo em relação a um pretenso processo de desenvolvimento e modernização. Mas é inegável que a atual fase do processo de globalização tem provocado o aumento da pobreza no mundo, acirrado o drama do desemprego, a marginalização urbana, a degradação ambiental e a decomposição do tecido social. A globalização é comandada pelas grandes corporações transnacionais que procuram abrir novos mercados para sua produção e, ao mesmo tempo, recuperar as taxas de lucro, reduzindo seus custos pelo aumento da exploração dos trabalhadores, 166 NEGRI, Antonio & HARDT, Michael. Multidão: guerra e democracia na era do império. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 26-27, 29, 38-42, 44-52, 54-57, 63, 65, 72-74, 76-78, 82, 85, 252 e 253. 167 NEGRI, Antonio & HARDT, Michael. Multidão: guerra e democracia na era do império. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 72. 135 através do das jornadas de trabalho e eliminação dos direitos dos trabalhadores, do ataque sistemático às conquistas sindicais e trabalhistas obtidas na era de ouro do sistema e do desmantelamento do chamado estado de bem-estar social. Ao concentrar a renda, a globalização faz dos países ricos, mais ricos, e dos pobres, mais pobres. Entre os motivos para isso, está a redução das tarifas de importação que beneficia muito mais os produtos exportados pelos mais ricos. Com a disputa por mercados se acirrando internacionalmente, têm-se, então, uma concentração de capital cada vez maior – com certos grupos incorporando os grupos rivais ou dominando seus mercados – e uma internacionalização desse do capital, forçando as economias dependentes a uma inserção subordinada no mercado internacional. Por enquanto, os efeitos positivos da globalização só são sentidos por uma minoria: entre os beneficiados, podem-se citar as instituições financeiras, as empresas de informática e de telecomunicações, os grupos de criminalidade organizada, os grupos terroristas e os demais beneficiários diretos da vertigem global. Por outro lado, não existe a possibilidade de designação de sujeitos individuais nesse processo de abertura econômica, pois a tecnologia faz desaparecer os indivíduos, considerando apenas números e códigos. Assim, os fenômenos de transferência de capitais acontecem como naturais: o capital, o trabalho e toda e qualquer atividade humana é vista como um dinheiro sem pátria, alocado conforme a produtividade das máquinas, da tecnologia e dos trabalhadores. A rentabilidade é um resultado automático, que sai do outro lado da equação matemática e determina a parcela justa de cada um. Eis o neoliberalismo: cada indivíduo deve buscar sua satisfação sem restrições, e, qualquer divisão que resulte, será a melhor possível. Os estados constitucionais democráticos enfrentam, então, seu maior desafio: efetivar a justiça, não comprometendo os direitos fundamentais dos seres humanos, mas conciliando-os com sociedades de classes heterogêneas e conflitivas. Mas, a proposta de um estado democrático, tal como está posta formalmente, nesse contexto torna-se de difícil efetividade frente aos interesses sectarizados e justapostos a serem ajustados por normas e princípios selados com antinomias seculares que pretendem a funcionalidade e a arbitragem pacificadora entre interesses dicotômicos e em permanente conflito: 136 capital/trabalho, indivíduo/ambiente, mercado interno/mercado externo, público/privado, pobres/ricos, etc. Ora, nesse contexto, a desesperança e o pânico coletivo frente à ineficácia da justiça em promover a efetivação de um estado democrático de direito, fundado no princípio basilar da justiça, ameaça o projeto democrático: as reações irracionais e reacionárias em face da questão da violência preconizam a adoção da pena de morte, operações militares violentas e indiscriminadas em favelas e núcleos de pobreza da população civil, e até a utilização banal de providências extraordinárias de estabilização da ordem pública, como o estado de sítio e o estado de defesa previstos nos artigos 136 e 137 da constituição federal. É, nesse contexto que se passou a apregoar mesmo a adoção da doutrina do direito penal do inimigo, da qual Estados Unidos da indiscriminadamente, sem a observância aos princípios de dignidade da pessoa humana vem-se utilizando. Ora, essa doutrina sabidamente vem acompanhada da supressão de direitos e garantias fundamentais. A reserva legal obriga a anterioridade da lei, impedido a resolução arbitrária de crimes e sua punição a não ser que estejam previamente estipulados em uma lei. Com isso, a intenção é exatamente limitar o arbítrio do estado, oferecendo segurança e certeza jurídica dos efeitos das condutas realizadas pelos cidadãos que estão sob a égide do contrato social. 168 169 Não obstante, diante da inoperância do estado em proteger o cidadão e efetivar a justiça, que perde sua eficácia normativa na medida em que é morosa o suficiente para que precluam os direitos postulados e ineficaz o bastante a ponto de converter-se em um engodo garantista que dá ao infrator uma total impressão de impunidade – a população passa a dar respaldo a medidas limitadoras das liberdades e garantias individuais. É que o aumento da criminalidade violenta veio novamente avivar o debate a respeito da missão exercida pelo direito penal na proteção dos bens jurídicos, considerados essenciais ao desenvolvimento pacíficos das sociedades democráticas. Se as medidas de exceção, porém, se tornam regra, abrem-se espaços para que um novo consenso normativo venha 168 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2003. 169 Em certas regiões brasileiras a instauração de um estado paralelo a um estado de direito é a regra, esse espaço carrega ínsita a sua formação regras, códigos comportais específicos e sanções a quem não cumpre o convencionado. Nesse estado toda ficção de um vínculo entre a violência e o direito desaparece: instaura-se definitivamente uma zona de anomia em que prevalece a pura violência sem nenhuma cobertura dos órgãos estatais e onde inexiste a possibilidade de intervenção jurídica 137 à tona. Dessa forma, em consonância com essa tendência de olhar o direito penal como a ultima ratio, detecta-se uma progressiva expansão do direito penal. Nessa perspectiva, o direito penal passou a adotar, como já se referiu, contornos emergenciais, expressos numa legislação expansionista, amparado por discursos jurídicos penais de urgência e pela profetização de soluções práticas e rápidas. Essas inarredáveis tendências expansionistas pretendem enxertar novas funções ao direito, objetivando dotá-lo de papéis que não lhe dizem respeito, fundadas em narrativa discursiva, instaurada na tentativa de minimizar a falta de segurança jurídica não alcançada pelo estado. Espera-se hoje, esperando do direito penal um funcionalismo a que ele não se propõe, visto que essas atribuições não lhe dizem respeito e são ilusórias no controle dos novos perigos da criminalidade contemporânea e organizada. Ora, esses discursos expansionistas descomprometidos com a técnica e com as possibilidades jurídicas e impregnados de conotações políticas, defendem a idéia de que o direito penal deve servir como instrumento de soluções de conflitos sociais, esperando que o mesmo consiga sustar a necessidade e a insurreição dos excluídos diante do abismo social de desigualdades em que se encontra o mundo globalizado. Perpassam toda essa discussão a respeito do discurso do direito penal, questões referentes à legitimação do direito penal e seus objetivos, à necessária teorização sobre a finalidade das penas e ao seu papel no contexto de uma sociedade democrática que recepciona como norma fundamental os direitos e garantias individuais e a dignidade da pessoa humana. 170 171 170 WARAT, Luís Alberto. O direito e sua linguagem. 2.v. Porto Alegre: SAFE, 1995. p. 69 “Observa Warat que a organização coerente de um discurso, por vezes, permite silenciar problemas; através de tais silêncios, os discursos cumprem funções políticas na sociedade, tornando-se, a partir desta coerência, um discurso ideológico. Por outro lado, a coerência discursiva força, explicitamente, os sujeitos a dizerem ou reprimirem certas coisas. Por tais razões, pode-se afirmar que o discurso das ciências sempre terá uma dimensão ideológica ineliminável pela metalinguagem. Afirma o autor que Kelsen foi o primeiro que utilizou, para o campo jurídico, as noções de linguagem objeto e metalinguagem, ainda que sem mencioná-las expressamente. A distinção que efetua entre as normas e as regras de direito correspondem às mesmas necessidades que levaram Wittgestein a falar de uso e menção e Russel de linguagem objeto e metalinguagem.” 171 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de derecho penal, parte general I. Argentina: Ediar, 1987. p. 50 “el derecho penal tiene la función de proveer a la seguridad jurídica mediante la tutela de bienes jurídicos, previniendo la repetición o realización de conductas que los afectan en forma intolerable, lo que ineludiblemente, implica una aspiración ético- social. Cabe consignar que en este sentido usamos 138 Essa discussão a respeito da legitimidade direito penal, no que concerne à privação de liberdade do indivíduo ou à supressão dos direitos e garantias individuais, não pode dispensar a referência a duas correntes teóricas: a de cunho abolicionista que rechaça em totum a validez da pena e afirma a ausência de propósitos para justificar sua aplicação; e a de caráter justificacionalista, que atribui sentido à aplicação da pena, não dispensando a visão do direito penal como instrumento/meio de controle social. 172 Segundo Krebs, “A análise do aspecto temporal da aplicação da pena (o quando castigar) evidencia um problema de legitimação do próprio direito penal, de fato, a possibilidade do estado repreender determinadas condutas é, em outras palavras, a própria justificação do jus puniendi; qualquer análise, pois, que se faça as respeito do tema finalidade da pena, sempre dever-se-á ter em mente a finalidade do próprio estado”. 173 As controvérsias que tangenciam o discurso jurídico penal e o próprio direito penal servem, ainda, como pano de fundo para inúmeras interpretações equivocadas a seu respeito, pois quem quer usar o direito penal principalmente para reprimir, vai acolher de bom grado um direito penal mais rígido e abrangente, só mudando de opinião quando percebe que mais direito penal promete menos efeito, puramente por motivos de efetividade. Porém aqueles que criticam e transformam o direito penal ainda repressor e aqueles que temem justa ou injustamente que o direito penal se volte contra eles podem ser reunidos em um único grupo. 174 ‘ético’ para denotar lo que hace al comportamiento social, expresión que nada tiene que ver con la moral, que la entendemos como cuestión que incumbe a la conciencia individual y que, por ende, es autónoma. En este sentido, la ‘aspiración ética’ del derecho, es la aspiración que éste tiene de que no se cometan acciones prohibidas por afectar bienes jurídicos ajenos. La coerción penal busca materializar esta aspiración ética, pero la misma no es un fin sí misma, sino que su razón, su " por qué" ( y también su " para qué") es la prevención especial de futuras afectaciones intolerables de bienes jurídicos.” 172 CANOTILHO J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Livraria Amedina, 2001, p. 39. “A discutível - mas ao mesmo tempo absolutamente indispensável-teoria do bem jurídico passou a constituir, especialmente na experiência legislativa dos últimos anos, um dos ‘pretextos’ para uma intervenção” máxima do direito penal, e isso tanto no direito penal acessório como no direito penal tradicional. A sociedade complexa atual obrigou a intervenção do direito penal para a tutela de novos bens jurídicos. “Porém, a atividade legislativa penal foi muito além do necessário.” 173 KREBS, Pedro. Teorias a respeito da finalidade da pena. Rev. Ibero-Americana de Ciências Penais. Cidade: Editora, Ano, p. 99 174 PRITTWITZ, Cornelius, O direito penal entre o direito penal do risco e o direito penal do inimigo: tendências atuais do direito penal e política criminal.São Paulo: Revista dos Tribunais. Revista do IBCCRIM nº. 47 , 2004. 139 É de se perguntar, então, a que preço, o direito penal pretende reduzir seu potencial danoso, seu quantum de violência, sem implicar a perda da eficácia de sua dissuasória. Assim, a história do direito penal moderno é aquela da confrontação entre direito penal vigente e a reforma do direito penal, em que são retomadas as considerações utilitaristas, relativas ao menor dano social e à observância de outros princípios como o da proporcionalidade, humanidade e igualdade. Observa-se, porém, que a ansiedade por proteção e assistência é tão urgente que passa a prestigiar o caráter instrumental do direito penal em detrimento de seu perfil garantista. O que interessa ao senso comum é a segurança contra a criminalidade mais sofisticada, ainda que o cidadão perca seus parâmetros existenciais, com relativização da liberdade. Não é surpresa para ninguém, e a história da humanidade ensina, que o pânico social traduz-se em terreno fértil para assunção de determinadas ideologias. 175 A quesitação a respeito da missão exercida pelo direito penal e sua proteção aos bens jurídicos, considerados essenciais ao desenvolvimento pacífico das sociedades democráticas, passa necessariamente pela certeza de que as constituições, ao fixarem valores fundamentais a que devem obedecer ao estado e a ordem jurídica, estão, também, automaticamente a definir quais os bens jurídicos essenciais a que os estados fica obrigado a defender. Assim, os direitos, liberdades e garantias, constitucionalmente considerados como valores fundamentais, são base da política criminal, que deve inspirar não só a atividade de juizes e intérpretes , mas, sobretudo, a dos próprios legisladores penais. 176 177 178 175 Com efeito, a ausência do direito penal suporia o abandono do controle da desviação ao livre jogo das forças da sociedade: uma dinâmica de agressão-vingança, vingança agressão. Entre as maneiras de limitar a intervenção do estado temos quanto à definição típica a exigência de uma definição mais taxativa possível dos comportamentos ao qual deve intervir o direito penal, assim como as sanções que o direito penal deve aplicar (garantia penal e criminal do princípio da legalidade ou reserva legal) e a exigência de um processo com os devido requisitos para que um juiz natural determine a sanção a aplicar (garantias jurisdicionais) e ao fim a execução da sanção da forma previamente estipulada e pretendida pelo juiz e pela lei correspondente ao caso (garantia da execução). Ademais progressivamente dentro do mesmo conceito amplo de formalização vão se assumindo pelo próprio estado funções de autolimitação material, por exemplo, a atribuição da pena com efeitos ressocializadores , auto exigência da proporcionalidade. 176 SARDINHA, José Miguel. O terrorismo e a restrição dos direitos fundamentais no processo penal. Coimbra, Coimbra Editora, 1989, p. 26. 177 COPETTI, André. Direito penal e estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, P. 100. “Instigados fanaticamente pela contradição entre a liberdade do liberalismo e a escravidão social em que viviam, e teoricamente nas doutrinas socialistas utópica e científica, de Saint Simon e Marx, a massa proletária ao arrebatar o sufrágio universal, não se contentando apenas com a concessão formal desse direito, mas utilizando-o em seu próprio benefício, deu início ao processo de instituição do Estado Social. Cede assim o Estado liberal-burguês às exigências dos trabalhadores. Entrega os anéis 140 Os estados, impotentes e sem recursos suficientes para reprimem a criminalidade, respondem à sua impotência com a maximização em matéria penal. Incapazes de combater as causas da geração da criminalidade, apostam num aumento do aparato legal e policial, o que, pelo seu custo social, tem sérias implicações na realização do estado social e, reflexamente, na (im) possibilidade de realização do estado democrático de direito. Essa maximização do sistema penal se revela, num primeiro momento, pelo aumento da edição de normas penais com leis destituídas, no mais das vezes, de um filtro constitucional, que, ao precipitarem condutas impensadas, podem violar conteúdos de princípios, afrontando direitos fundamentais de primeira geração, seja por seus conteúdos processuais inquisitivos, seja pela criminalização de uma série de infindável de condutas, gerando uma situação de incerteza para os cidadãos e invertendo a função originariamente cunhada para os tipos penais, que, ao invés de servirem como uma garantia aos membros da sociedade civil contra a atuação arbitrária do estado, possibilitam, contrariamente, uma atuação estatal penal desmesurada e, não raras vezes, ilegal. Pode-se constatar que a tentativa de conferir real legitimidade ao discurso jurídico penal e ao sistema penal não consiste verdadeira intenção social e, sim, expressão doutrinária e política, ideologicamente conduzida com a finalidade de maquilar o arbítrio seletivo e a aniquilamento de todos àqueles que não respondem aos para não perder os dedos, vendo-se forçado a conferir, constitucionalmente, direitos do trabalho, da previdência, da educação, a ditar o salário, a manipular a moeda, a intervir na economia como distribuidor, a comprar a produção, a regular preços, combater o desemprego, proteger o trabalhador, controlar as profissões, enfim, passa a intervir na dinâmica socioeconômica da sociedade civil.” 178 COPETTI, André. Direito penal e estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 57. “mesmo ultrapassada a ditadura militar e restabelecido constitucionalmente o estado de direito, ainda observamos a manutenção de todo um aparato repressivo, nos mesmos moldes de um regime autoritário, com prisões e aparelhos policiais intocados e com a aplicação de métodos abusivos pelas forças policiais no relacionamento com o preso, especialmente a tortura, para não falar na morte. Aparece, assim, a polícia como uma instituição que executa a função de testa-de-ferro de todo o sistema de políticas criminais destinadas à repressão violenta dos ‘inimigos’ da sociedade, mas que, mascaradamente, mediante uma retórica aparentemente democrática, manifesta-se como um sistema de segurança pública, destinado ao tratamento do delinqüente”.(...) “Enquanto no estado de direito o fenômeno do exercício do poder é por definição circunscrito e delimitado no seu conteúdo constitucional, no Estado Social há um extravasamento dessas limitações porque nele as possibilidades de extensão das formas de domínio são imensas, podendo atingir intensidades sutis e, num certo sentido, até fora de controle do ponto de vista do estado de direito”. 141 apelos de uma sociedade capitalista e estigmatizante. O discurso que profana a efetividade do sistema penal e sua legitimação ou é ingênuo em suas assertivas, ou desconsidera que esse tipo de discurso constrói-se a partir de uma estruturação semântica racional, que serve para silenciar o exclusivo pragmatismo de suas intenções: o sistema penal não está montado para a funcionalidade, e, sim, para uma nãooperacionalidade, com a intenção nítida e real do exercício de um poder fundado na arbitrariedade voltada para a clientela do direito penal. 179 180 As teorias que pretendem sustentar a efetividade do sistema penal, esvaziam-se de sentido; a ausência de finalidade também é percebida na pena que não cumpre seus objetivos precípuos: não é preventiva, não é retribuitiva, não ressocializa, não alcança sequer uma legalidade formal, eis que deslegitimada em seu mero exercício, pelo simples fato de sua existência não cumprir a finalidade a que se destina. Para Zafarroni, um discurso dessa natureza somente poderia pretender omitir a pergunta sobre a legalidade do sistema penal – ou desacreditá-la como pergunta –, remetendo sua 179 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001. “Da pluralidade semântica da expressão legalidade pode-se extrair outro sentido: a operacionalidade real do sistema penal seria ‘legal’ se os órgãos para que ele convergem exercessem seu poder de acordo com a programação legislativa tal como a expressa o discurso jurídico-penal. ‘Legalidade’ no sentido ora utilizado, é um conceito do que o discurso jurídico penal retira fundamentalmente dois princípios: o da legalidade penal e o da legalidade processual. O da legalidade penal exige que o exercício do poder punitivo do sistema penal aconteça dentro dos limites previamente estabelecidos para a punibilidade. O princípio da legalidade processual (ou da legalidade da ação processual) exige que os órgãos do sistema penal exerçam seu poder para tentar criminalizar todos os autores de ação típicas, antijurídicas e culpáveis e que o façam de acordo com certas pautas detalhadamente explicitadas. Isto significa não apenas que o sistema penal somente exercia seu poder na medida estrita da planificação legal, como também o sistema penal sempre – em todos os casos – deveria exercer este poder”. 180 CARVALHO, Amilton Bueno de. Magistratura e direito alternativo. 6 ed. Rio de Janeiro: Lumem júris, 2003, p. 27-28. “(...) b) dirão alguns que a lei penal tipifica aqueles comportamentos que ofendem mais à moralidade média. Será verdade? Vejamos o que nos causa maior desagrado: a ofensa à honra (injúria), a ofensa ao corpo (lesão leve), ou a ofensa ao patrimônio (uma pessoa com grave ameaça que subtraia um relógio- roubo)? Evidente que a ordem de desagrado é em primeiro lugar a honra, após o corpo e depois o patrimônio. Quais as penas? Detenção de uma a seis meses ou multa (art. 140 do CP); detenção de três meses a uma ano (art. 129); reclusão de quatro a dez anos (art. 157), respectivamente. Surge uma questão básica: quem pratica o roubo, ou seja, a subtração de coisa móvel mediante grave ameaça? Evidente que é o pobre. Os outros dois delitos os não-pobres praticam, o de roubo não! Para quem foi feito o dispositivo legal com tamanha pena? c) outro exemplo é mais chocante: imaginemos o mesmo delito de roubo (mediante grave ameaça subtraiam um relógio) em confronto com o delito de esbulho possessório (mediante grave ameaça invadam um imóvel – art. 161 do CP). Os crimes são praticamente idênticos, só diferem que num o objeto é móvel, noutro é imóvel. Como valoramos mais o imóvel, este deveria ser melhor protegido. Mas não é. A pena daquele é de quatro a dez anos, e este é de uma a seus meses. Pergunta-se: quem comete roubo de relógio? Algum latifundiário? Ora, a subtração de móvel é crime do pobre, o esbulho possessório é do rico. Logo, as penas são diferentes, absurdamente diferentes. Todavia, como atualmente o povo (= pobre) está invadindo terras, aparecem democratas preocupados com a segurança do país e propõem a elevação das penas do esbulho, o que por certo logo 142 desclassificação relegatória à categoria pejorativa dos pseudo-problemas. No entanto, é importante lembrar que não existem construções acabadas de discurso que pretendam suprimir a legitimidade do sistema penal com a legalidade do mesmo. Deve-se reconhecer que, freqüentemente, realiza-se um emprego parcial e incoerente desse tipo de tentativa em regiões marginais latino-americanas, contexto no qual essa espécie de discurso se mostra particularmente alienante. 181 182 Os argumentos que tentam dar sustentação ao direito penal são, na grande maioria das vezes, seletivos, tendo como ponto nodal uma discriminação oriunda de uma suposta inferioridade biológica; trata-se de um apartheid social, em que os desprovidos de capital são vistos como impurezas da sociedade, que, pacificamente, acolhe teses segregadoras e põe à margem a clientela do direito penal antes mesmo de que ela venha integrar o cárcere. Vale, ainda, transcrever trecho da lição de Juarez Cirino dos Santos, quando expõe, como fins da pena privativa de liberdade: 1) o controle repressivo dos inimigos de classe do estado capitalista (as classes dominadas, em geral, e os marginalizados do mercado de trabalho, em especial); 2) a garantia da divisão de classes, mediante a separação força de trabalho/meios de produção, origem das desigualdades sociais, característica das relações de produção capitalista; 3) a produção de um setor de marginalizados/criminalizados (reincidentes e rotulados como criminosos, em geral), marcados pela posição estrutural (fora do mercado de trabalho) e institucional (dentro do sistema de controle), como amostra do que acontece aos que buscam a socialização pelo trabalho assalariado. Em síntese, os objetivos da pena criminal (e do aparelho carcerário) podem ser definidos por uma dupla reprodução: reprodução das desigualdades sociais, fundadas na divisão da sociedade em classes sociais antagônicas; virá; d) o pobre que não trabalha é contraventor, pois não coloca no mercado de trabalho a sua força para ser explorada (art. 59 da LCP). E o rico?” 181 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001. 182 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Sistemas penales y derechos humanos en América Latina. Buenos Aires: Depalma, 1984, p. 7. “Valendo-se de metáfora exemplificativa, o pensador argentino traduz o desconforto generalizado a respeito do sistema penal ‘os órgãos legislativos, inflacionando as tipificações, não fazem mais do que aumentar o arbítrio seletivo dos órgãos executivos do sistema penal e seus pretextos para o exercício de um maior poder controlador’. Continua o mestre numa inteligente ironia, ao dizer que "ninguém compra um apartamento impressionado por uma bela maquete apresentada por uma empresa notoriamente insolvente; no entanto, compramos a suposta segurança que o sistema penal nos vende, que é a empresa de mais notória insolvência estrutural em nossa civilização”. 143 e reprodução de um setor de marginalizados/criminalizados (no circuito da reincidência criminal), cuja função é manter a força de trabalho ativa integrada no mercado de trabalho, como força produtiva dócil e útil, intimidada pela inferiorização social resultante da insubordinação à disciplina do trabalho assalariado.183 Os técnicos do direito, a quem caberia, denunciar essa condução ideológica do direito penal, na grande maioria das vezes, endossam essa postura segregadora. Eximindo-se da possibilidade de conferir legitimação ao direito penal; dando às costas à sua atribuição humana; coisificando a lide, o processo e, principalmente, os sujeitos processuais que o integram –, os operadores do direito, acabam fazendo do discurso jurídico penal algo etéreo e a-ético, que renuncia a possibilidade ínsita a cada processo de reeditar/promover o direito penal. Essa atitude propõe um discurso jurídico penal que não se interessa nem mesmo por (re) legitimá-lo, com qualquer argumento do direito penal, mas que, ao contrário, perde o interesse por sua legitimidade. Manifestando-se a respeito desse tipo de postura dos operadores do direito, ironiza Zafaronni dizendo que a sua atitude é a mesma que a assumida pelo bom torturador, que se limita a cumprir sua tarefa como um profissional correto, passando a responsabilidade ao órgão judicial e ao exercício do poder dos juristas. 184 185 183 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal. Porto Alegre: Forense. 1985, p. 291. Nesse sentido BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e crítica do direitopenal: introdução à sociologia di dreito penal. Rio de Janeiro: Revan, 1997. BARATTA procura dar sustentação à adoção do ponto de vista das classes subalternas como garantia de uma práxis teórica e política alternativa, afirmando que “enquanto as classes hegemônicas pretendem conter o desvio dentro de limites não muito perturbadores, as classes subalternas estão empenhadas numa luta radical contra os comportamentos socialmente negativos (por comportamentos negativos entendem-se a criminalidade econômica, a poluição, a criminalidade do poder, a máfia, etc)”. Para tanto, BARATTA reclama uma ciência que não se limite à descrição da mera desigualdade jurídica no campo penal, mas que compreenda a função real do sistema penal na sociedade tardo-capitalista, como reprodutor das relações sociais de desigualdade, e que explicite que estas relações não se baseiam na distribuição desigual de bens e valores, mas nas próprias relações de produção. 185 STRECK, Luiz Lenio & COPETTI, André. O direito penal e seus influxos legislativos pósconstituição de 1988: um modelo normativo eclético consolidado ou em fase de transição? São Leopoldo: Unisinos. Programa de Pós Graduação em direito, 2002. p.260. Afirma Streck & Copetti “que inobstante a aprovação e entrada em vigor de uma série de novas leis e da adoção de medidas localizadas do combate à criminalidade, esta, sem retrocessos, tem assumido posições estatísticas cada vez mais assustadoras. Muitos criminólogos, especialmente os que fundamentam teoricamente suas pesquisas e estudos no paradigma da ‘reação social’, poderão afirmar que o aumento da criminalidade tem ocorrido exatamente em função da ampliação do sistema normativo repressor, mas esta afirmação é de difícil sustentação e cuja validade é altamente questionável e duvidosa. Ela pode ser tomada como verdadeira para as condutas que passaram, por exemplo, a ser consideradas delituosas, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, por forças de normas incriminadoras que surgiram como instrumentos jurídicos de regulamentação infraconstitucional penal de dispositivos presentes na Carta Magna brasileira. Entretanto a mesma afirmação não pode ser alçada a uma condição equivalente de veracidade quando referente. A criminalidade tradicional, à econômica, à tributária, e as violação criminais a uma série de outros bens que já eram anteriormente protegidos pela legislação penal. Estes 184 144 Para Copetti, no estado social, há uma nova concepção de democracia: a social, que ultrapassa o mero formalismo da democracia representativa, e dispõe de todo ordenamento jurídico voltado à sua realização. Saliente-se que algumas parcelas do ordenamento devem contribuir mais do que outras. Nesse aspecto, entende-se que o direito penal, pela gravidade das sanções que impõe, deva ser a parte do ordenamento jurídico menos utilizada para tal fim, pois uma exacerbação do ordenamento e da atuação estatal penal para a realização do estado social, implicaria, necessariamente, uma violenta redução das liberdades individuais que são, sem dúvida alguma, um dos pilares fundamentais do estado democrático de direito. 186 A derivação dessa perspectiva repousa na observância dos demais princípios penais e processuais penais, em especial os que seguem: (a) a reserva legal; (b) a determinação taxativa; (c) a irretroatividade da lei penal. A inobservância desses princípios desvia os estados da observância dos direitos e garantias fundamentais, abrindo precedente para juízos de exceção nos quais postulados como nullum crimen, nulla poena sine lege praevia; nullum crimen, nulla poena sine lege scripta; nullum crimen, nulla poena sine lege stricta; nullum crimen, nulla poena sine lege certa, que, se não adotados de forma veemente, restam em prejuízo da democracia. 187 188 189 A constituição federal brasileira declara, expressamente, ser o Brasil um estado democrático de direito e considerar os direitos, liberdades e garantias como valores fundamentais, sendo à base dos princípios da política normativa que deve inspirar não só a atividade do juiz e do intérprete mas, sobretudo, a do próprio legislador. Desse nichos de condutas delinqüenciais já previstos normativamente como tais, e que tiveram um salto quantitativo nos últimos anos, têm suas causas numa pluralidade de fatores que as mais diversas ciências, que se imbricaram com o direito penal no estudo do crime, têm buscado apontar. Se não poucas dúvidas e hesitações já existem em relação ao papel que possa a legislação penal cumprir nesse processo histórico de enfrentamento da criminalidade, também não são poucas as dificuldades de definição acerca de qual caminho deva ser tomado pelas reformas legislativas que ocupam um lugar de destaque em todos os debates que envolvem o fenômeno contemporâneo de combate a criminalidade”. 186 COPETTI, André. Direito penal e estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. 187 PALAZZO, Francesco. Valores constitucionais e direito penal. Porto Alegre: Fabris, 1989. 188 LUISI, Luiz: Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre: Fabris, 1991. 189 Assim o estado de exceção introduz no direito uma zona de anomia, onde é confundido os atos do poder executivo e do poder legislativo, definindo-se como um regime no qual os atos que não possuem valor de lei adquirem sua força. O estado de exceção é um espaço vazio de direito, não podendo ser entendido, porém, como novo conceito embasando um ordenamento jurídico extraordinário e excepcional, mas sim num estado 145 modo, o poder estatal encontra-se vinculado e controlado pela ordem jurídica. A atividade legiferante e jurisdicional encontra-se, pois, atrelada aos direitos fundamentais, assegurados na constituição. 190 Segundo Castro, esse fenômeno, que, em maior ou menor escala, tem hoje, feição mundial, revela a expansão do movimento Law & order, que se assenta na deterioração generalizada do tecido social, na violência urbana e na ineficiência do estado para enfrentá-la, na expansão mundial do terrorismo, do crime organizado, do narcotráfico e das operações de lavagem de dinheiro (money laundery), obtido por meios ilícitos. 191 Não se ignora, por evidente, que a escalada da violência nos centros urbanos brasileiros, especialmente aquelas gerada pelas facções estruturadas, tem atingido proporções extremas e insuportáveis. Para Zaffaroni, “en esta etapa el poder se planetariza y amenaza con una dictadura global; el potencial tecnológico de control informativo puede acabar con toda intimidad; el uso de ese potencial controlador no se limitaría a investigar a terroristas, como toda la experiencia histórica enseña; la comunicación masiva, de formidable poder técnico, está lanzada a una propaganda völkisch y vindicativa sin precedentes; el poder planetario fabrica enemigos en serie. Por ende, por mucho que se atavíe como jurídica, la reacción inusitada es política, porque la cuestión que plantea es – y 192 siempre fue – de esa naturaleza”. em que aprioristicamente existe a desobediência a anterioridade da lei, sendo considerado como zona de anomia na qual todas as determinações jurídicas são desativadas. 190 COPETTI, André. Direito penal e estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. “A ordem jurídica transforma-se em instrumento de atingimento de metas sociais concretas, dentro de uma lógica distributivista de satisfação de direitos humanos sociais, igualitários, destinados a organizar a sociedade de forma mais justa. O Estado de Direito deixou, assim, de ser formal, neutro e individualista, para transformar-se em Estado material de Direito, com a pretensão de realização da justiça social (...) os regimes constitucionais ocidentais prometem, explícita ou implicitamente, realizar o Estado Social de Direito, quando definem um capítulo de direitos econômicos e sociais, mas a efetivação desses direitos não tem encontrado um caminho tão pacífico quanto possamos imaginar. Ainda existem vacilos teóricos, hermenêuticos e operativos que impedem a extração de efeitos jurídicos mais concretos das normas constitucionais de natureza social”. 191 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 259. 192 ZAFFARONI Eugenio Raúl. La legitimación del control penal de los extraños. (acessado em 20.1.2006, electivas/criminologia/cronogramateoricos.htm)- 146 Nos crimes de grande comoção popular, os direitos e inviolabilidades constitucionais, considerados intocáveis quando aplicados às pessoas da classe média e alta da sociedade brasileira, notadamente as garantias da presunção de inocência e do devido processo legal, que devem obrigatoriamente condicionar os procedimentos investigatórios e de prisão, tornam-se difusos no que diz respeito às classes desfavorecidas, configurando um autêntico e explosivo apartheid social. A parcialidade, no que concerne aos privilégios da classe dominante no tratamento legal e jurisdicional, devido às próprias contingências do processo, sedimentaliza as desigualdades, formalizando jurídicamente uma impunidade ideologizada. Dessa forma, um contigente cada vez maior de excluídos é aprioristicamente discriminado e esbuliado do estado democrático de direito: essa prática da exclusão não é ocasional nem contingencial – integra um projeto de sociedade, baseado no extermínio dos desprivilegiados econômica e socialmente. Segundo Dimenstein, no Brasil, essa violência de caráter endêmico, implantada no sistema de relações sociais profundamente assimétricas, não é um fenômeno novo: é a continuação de longa tradição de práticas de autoritarismo, cuja expressão foi dissimilada pela repressão formal da democracia. Quando a omissão por parte das autoridades estatais diretamente responsáveis pelas instituições de controle de violência assume os contornos de tolerância, quando não de estímulo para com essas ações criminosas, enfraquece a vigência das garantias constitucionais, perpetua o círculo ilegal da violência e dificulta o fortalecimento da legitimidade do governo democrático como promotor da cidadania. 193 194 195 193 DIMENSTEIN, Gilberto. Democracia em pedaços: direitos humanos no Brasil. Porto Alegre: Companhia das Letras, 1996. p 7-9. 194 DIMENSTEIN, Gilberto. Democracia em pedaços: direitos humanos no Brasil. Porto Alegre: Companhia das Letras, 1996. p 7-9. 195 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 258-260. “Isso nos permite compreender a razão pela qual o princípio isonômico oriundo do liberalismo jamais foi impeditivo de toda sorte de classificações e discriminações legislativas, significando tão apenas a exigência de igual tratamento jurídico para todos ou, ao menos, para todos quantos estejam na mesma circunstância fática. Tendo a regra igualitária resultado da explosão de liberdade vivida na virada do século XVIII, sua noção nasceu individualista, nada aduzindo, ipso facto, no tocante à distribuição da riqueza e dos meios de sobrevivência no convívio social. Bastava que a lei fosse igual para todos, ou igual para os iguais. Sem adoção dos privilégios vigorantes no ancien régime, para que ficasse satisfeito o cânone da igualdade jurídica. Sua função, destarte, não era outra senão a de permitir que a liberdade capitalista pudesse operar como força motriz do desenvolvimento sócio-econômico, de feição nitidamente individualista e liberal, o Direito Constitucional moderno, mormente no século passado, embutiu a idéia 147 A história brasileira conta de um passado de esbúlio do patrimônio dos cidadãos, através da administração pública a das elites corruptas. Não honrando a função pública o estado desconsidera a eficácia da justiça, entregando as forças da ordem à corrupção. As diferenças sociais abrem uma brecha para que a grande maioria de excluídos do País, por falta de alternativas, assumam essa comunidade criminógena como opção à sua falta de perspectivas. O estado fomenta ou força um exército de excluídos a tomar as armas contra a comunidade nacional. Segundo Castro, para alcançar maior eficiência no combate à escalada da criminalidade, as instituições públicas repressivas acabam alterando seus mecanismos de controle e prevenção de delitos, seja aumentando o caráter punitivo das normas penais, seja liberando o processo de persecução criminal das garantias investigatórias e processuais incluídas na pauta constitucional dos direitos fundamentais do homem. Com isso, as liberdades civis ficam drasticamente comprometidas. De outro lado, o grande contingente dos excluídos, por força da indigência econômica, passa a sofrer um processo de criminalização sumária, que os transforma em autêntico grupo de risco nas ações policiais de combate à delinqüência. 196 Tem-se aí a repressão ideologizada, à feição do colonianismo classista, que no Brasil, fez escola no período da ditadura militar, a ponto de deformar o conceito de ordem pública e transformar o papel das instituições incumbidas da segurança pública, notadamente as polícias civis e militares, em forças de arbítrio e de plantão a serviço do modelo econômico concentrador da riqueza, calcado na exacerbação egoísta da propriedade privada. Sob essa ótica proprietária e utilitarista do funcionamento das corporações encarregadas da prevenção e da repressão à criminalidade, as camadas desfavorecidas da população, sobretudo a gente das favelas e dos morros, é vista sob permanente suspeição, tornando-se clientela da cotidiana violência policial. da igualdade no ideal prevalente da liberdade, de modo a exigir do Estado uma atitude de omissão ou parcimônia na regulamentação da economia, que deveria organizar-se de acordo com a lei natural do laissez faire, laisser passer”. 196 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 258-260. 148 Dentro da seara do direito penal mínimo, contra a criminalidade de menor potencial, a reação social adota contornos de coloração privatística, perdendo a norma seu caráter de retribuição: reparado o dano estaria restabelecido o status quo ante, sendo desnecessária outra providência oficial. A despenalização de crimes de menor potencial ofensivo se impõe no contexto de um direito penal mínimo, ao contrário de tendências americanas atuais de extremada reação criminal, compatíveis com um policiamento ostensivo que não existe na maioria dos países. 197 E o que mais fomenta o debate científico é exatamente a necessidade de preservação do sistema de garantias que inspirou o direito penal moderno. Embora a sociedade atual, muitas vezes motivada pela mídia, demande um direito penal cada vez mais intervencionista para equilibrar a insegurança das relações complexas, o correto seria minimizar o universo das normas punitivas. O princípio da intervenção mínima do direito penal impõe a necessidade de que o estado intervenha na sociedade somente quando todos os outros meios de controle falharam, revelando o caráter subsidiário, acessório e fragmentário do direito penal. Na contramão de toda a construção doutrinária a respeito da subsidiariedade do direito penal moderno, o que se constata nos estados contemporâneos, cada vez mais, é a expansão do direito penal como meio de controle social, sem que antes se esgotem todas as outras possibilidades. 198 199 197 LUISI, Luiz: Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre: SAFE, 1991. p. 25 “A lógica Iluminista era posta no sentido de reduzir a legislação em geral e, especialmente, a penal, estendendo-se este raciocínio a princípio orientador e limitador na criação de delitos e penas, inaugurando o princípio da intervenção mínima, só legitimando a criminalização de um fato se o mesma constitui meio necessário para a proteção de um determinado bem jurídico, existindo outras sanções que se revelam suficientes a criminalização foi inferida de maneira incorreta, somente se justificando legitimamente (sanção penal) se servir de instrumento indispensável de proteção jurídica. Portanto, a tipificação penal de uma conduta deve constituir-se no meio único, último e necessário para a proteção de um bem jurídico, conceito que exprime a idéia de algo valioso para o indivíduo e a sociedade, cuja tutela deve ser a tarefa do direito penal” 198 O liberalismo econômico inaugura a noção de direito penal mínimo, século XVIII, tratando-se de estratagema para afirmação política da classe burguesa que através do movimento Iluminista, questionou seriamente as instituições vigentes. A noção de pena eminentemente retribuitiva, com penas desumados e meios inquisitoriais de formação da culpa foram gradativamente substituídos pela noção de direito mínimo, com a intervenção mitigado do Estado nas relações sociais, dispensar o grande número de leis e valorizando a educação como base da harmonia e prosperidade social. 199 KIST, Dario José.. Fundamentos do direito penal democrático. Porto Alegre: Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, nº 45, 2001.“O respeito ao princípio da intervenção mínima exige do estado que intervenha através do direito penal, como mecanismo regulador da vida em sociedade, somente em última instância. Ou seja, trata-se da última e mais enérgica manifestação do poder estatal, aplicável só e exclusivamente ante a ataque de real gravidade ao conglomerado social, em assuntos que vulnerem princípios básicos do sistema jurídico. além disso, deve ser xxx somente tanto quanto for estritamente necessário, e nos casos em que já não é possível lançar mão a outro meio menos drástico, 149 Vê-se que inúmeros são os fatores que podem ser apontados como causas da expansão do direito penal, sendo que a institucionalização da insegurança, a contrario sensu do dever do estado em proporcionar segurança jurídica ao cidadão, é elemento que deve ser considerado. Vive-se sob o império do medo, e o estado proporciona poucas respostas para a sensação da multiplicação dos riscos existente. Chamado a tomar providências no cumprimento de seu papel no pacto social, o estado nem sempre tem respondido democraticamente a esses reclames: a legalidade exige dos operadores do direito a definição das controvérsias a eles apresentadas com base nas prescrições legais inscritas em normas legislativas, limitando sua atuação aos domínios previstos e permitidos pelas leis e ficando alheio a arbitrariedades e ao ferimento de preceitos constitucionais. 200 Afirma Sanchez que é inegável que a população experimenta uma crescente dificuldade de adaptação a uma sociedade em contínua aceleração. Desse modo, depois da revolução dos transportes, a atual revolução da comunicação dá lugar uma perplexidade derivada da falta – sentida e possivelmente real – de domínio sobre o curso dos acontecimentos, que não pode traduzir-se senão em termos de insegurança. Por outro lado, as pessoas acham-se ante a dificuldade de obter uma autêntica informação, em uma sociedade caracterizada pela avalanche de informações. Essas, de modo freqüente, mostram-se contraditórias, dificultando sua integração em um contexto significativo que proporcione alguma certeza. E essa aceleração não é somente uma questão da técnica, mas, precisamente, também da vida. Afirma o autor que a lógica do mercado reclama indivíduos sozinhos e disponíveis, pois esses se encontram em melhores condições para a competição mercadológica e laborativa. Essas novas realidades econômicas, a que se somaram importantes alterações ético-sociais, vem ou seja, quando não cabe mais nenhum outro provimento de índole civil ou administrativo. é, portanto, um critério limitador do direito de punir, notando-se que a criminalização se justifica por um critério de necessidade, isto é, sua função é induzir o indivíduo a determinado comportamento, fundamentalmente necessário para a convivência” 200 SANCHEZ, Jesús-Maria Silva. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: Revista dos Tribunais: 2002. p. 33“(...) nossa sociedade pode ser melhor definida como a sociedade da ‘insegurança sentida’(ou como a sociedade do medo), como efeito um dos traços mais significativos das sociedades da era pós industrial é a sensação geral de insegurança, isto é o aparecimento de uma forma especial e aguda de viver os riscos. É certo que desde logo que os novos riscos – tecnológicos e não tecnológicos – existem. Tanto é assim que a própria diversidade e complexidade social, com sua enormidade pluralidade de opções, com a existência de uma abundância informativa a que se soma a 150 dando lugar a uma instabilidade ético-familiar que produz uma perplexidade adicional no âmbito das relações humanas. Este contexto de acelerações e incertezas, de obscuridade e confusão produz uma crescente desorientação pessoal que se manifesta como perplexidade da relatividade. 201 202 No ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da legalidade está previsto no inciso II do art.5 da Constituição Federal, em que expressamente está consignado que ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude da lei e no art.5, inciso XXXIX da Constituição Federal, que reitera que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. A reserva legal e o respeito às garantias e liberdades individuais alicerçam e dão condições de legitimidade ao exercício do poder do estado, na medida em que asseguram ao cidadão a certeza da norma (pois expressa no ordenamento jurídico) e de sua aplicação somente quando o fato concreto subsimir-se aos estritos termos da norma enunciada, possibilitando ao cidadão prever as conseqüências das suas ações, libertando-o da insegurança proveniente das ordens arbitrárias, específicas e excepcionais, impedindo tratamentos preferenciais entre indivíduos ou grupos. O uso democrático do princípio da legalidade contempla de fato a efetivação da separação dos poderes que compõem o estado, impedindo a intervenção de um poder na seara do outro. A edição de sucessivas medidas provisórias, por exemplo, faz com que o executivo passe desregradamente a legislar, cabendo ao legislativo o trabalho de referendar tais atos. Mas, ao fazer isso, o legislativo acaba por endossar uma distorção que, na área penal, pode gera novas e mais refinadas formas de derrogação do princípio da legalidade penal. falta de critérios de decisão sobre o que é bom e o que é mal, sobre o que se pode ou não se pode confiar, constitui uma fonte de dúvidas incertezas e inseguranças”. 201 SANCHEZ, Jesús-Maria Silva. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 202 Todo o drama reside no fato de conciliar um direito penal garantista com um direito penal da prevenção contra os riscos. As posições mais extremadas apregoam a teoria do risco, ou seja, no exercício de atividades perigosas os agentes ficariam submetidos à imputação em vista da tipificação de certas condutas. Seria a responsabilidade objetiva em decorrência da realização da conduta típica. O simples atuar em determinadas áreas acarretaria a assunção dos riscos da resposta penal. Essa maneira de solucionar o problema do risco tem explicação num Estado ineficiente, sem condições de administrar a realidade de certas atividades, preocupado em criminalizar para agradar os eleitores, visando à 151 Conceitos genéricos e imprecisos na tipificação, normas penais com diversos verbos nucleares a ponto de tornar difusas as condutas incriminadas, bem como do abuso das ditas normas penais em branco com preceitos indeterminados quanto ao seu conteúdo, estão a serviço de estados pseudo-democráticos, em que a legalidade, quando não negada, é utilizada para justificar e legitimar um distanciamento do direito penal mínimo e endossar a expansão do direito penal. Efetivamente, o respeito ao princípio da legalidade faz com que a punição de alguém esteja condicionada à existência prévia de lei incriminadora da respectiva conduta. Esse princípio, entretanto, é incapaz de evitar que o legislador, observando a legalidade, crie figuras delitivas iníquas ou desnecessárias, bem como penas desproporcionais e que desrespeitem a dignidade humana. Para impedir tais anomalias é imprescindível a afirmação de um critério limitador do poder legiferante e do arbítrio legislativo, fornecido pelo princípio da intervenção mínima. Para que tal princípio se realize, é necessário que sejam criminalizadas somente as condutas ofensivas a um bem jurídico, aquelas indispensáveis para a convivência humana e que devem ser protegidas pelo poder coativo do estado através da pena pública, como é o caso da vida, da integridade corporal, da liberdade, da propriedade, do patrimônio, entre outros. Afere-se da Constituição que são invioláveis os direitos à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade (artigo 5º, caput), sendo que o estado democrático de direito e o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III) são os fundamentos que alicerçam a carta magna nacional. Inegavelmente, da explícita adoção desses princípios se segue que a restrição ou privação desses direitos invioláveis somente se legitima se a sanção penal for estritamente necessária para a tutela de bens fundamentais do homem, assim como a de bens instrumentais indispensáveis para sua realização social. Portanto, embora não esteja expresso no texto constitucional vigente no Brasil, o princípio da intervenção mínima deduz-se de normas explícitas da constituição, sendo, inegavelmente, um postulado nela existente. 203 204 eternização no poder e, em especial, carente de pessoal habilitado em razão de uma orientação neo-liberal de configuração do estado mínimo. 203 Por outro lado, o princípio da intervenção mínima também deve orientar o legislador na cominação das penas, tanto a sua tipologia, quanto a sua quantidade. Nestes termos, a pena privativa de liberdade, em vista dos deletérios efeitos que sua execução impõe ao condenado, deve ser a última a ser cominada e reservada para os 152 Nesse sentido, argumentam os autores, as interpretações das normas constitucionais, que dizem respeito às garantias individuais, devem ser feitas de maneira mitigada. A permissão dessa atuação de maneira dita mitigada é reconhecida ao estado diante da existência de justa-causa e ordem judicial que a embase. Aliás, a doutrina e praticamente unânime em reconhecer a natureza relativa do não intervencionismo do estado nos direitos individuais do cidadão no intuito de cerceá-los. Os pressupostos básicos para a realização da referida ponderação, conforme lecione Steinmetz pressupõe: a) a colisão de direitos fundamentais e bens constitucionalmente protegidos, na qual a realização ou omitização de um implica na afetação ou restrição ou até mesmo a não realização do outro; b) a inexistência de uma hierarquia abstrata a priori entre os direitos em colisão, isto é a impossibilidade de construção de uma regra de prevalência definitiva ex ante, prescindido das circunstâncias do caso concreto. 205 Depois do fatídico 11 de setembro, a democracia americana e a planetária talvez nunca mais seja a mesma. Ocorreram nos Estados Unidos inúmeras prisões, diversas contas bancárias foram violadas, inúmeros direitos constitucionais foram desobedecidos. Aconteceram discriminações patentes sob o manto protecionista do estado e censuras aos os meios de comunicação. Houve um aumento das medidas extraordinárias em Nova York. Como reação ao atentado terrorista, instalou-se o chamado grand jury, um júri federal de inquisição responsável pelo agilizamento do trabalho dos policiais na busca por suspeitos do atentado, podendo ser concedidos, em tempo recorde, mandados de busca, prisão ou escuta telefônica sem que se tivesse que convencer o juiz de uma causa provável ou achar evidências incriminatórias. 206 207 208 209 210 crimes mais graves e, em vista do princípio constitucional da individualização da pena, somente o limite máximo é que deveria ser previsto pelo legislador, possibilitando-se ao magistrado uma maior flexibilidade quando da fixação da pena. Além disso, impõe-se a crescente utilização das denominadas penas alternativas que, sem ensejar a nefasta impunidade, impedem o contato do condenado com os estabelecimentos penais, permitindo, também, que este mantenha-se no meio social em que vive, em contato com a família, emprego, etc. 204 LUISI, LUIZ: Os princípios constitucionais penais. Cidade: Porto Alegre: Fabris, 1991. p. 26. 205 STEINMEZ, Wilson Antônio. Colisão de Direitos Fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2001. p.139. 206 Vê-se então que estas medidas foram realizadas na urgência que o momento histórico americano requeria, a título temporário e provisório, pois como é notório na legislação americana o direito a livre expressão é um mandamento constitucional basilar nos Estados Unidos. É sabido que o mandamento constitucional que garante direito à liberdade, à intimidade, senta suas bases no direito que goza toda a pessoa de não sofrer ingerências, sendo preservado de tudo e de todos sua vida privada. O desdobramento desse direito consiste na não intromissão, seja de quem for, na essência da privacidade das pessoas. 153 É inegável que o legislador constituinte de 1988 deliberou explicitamente a respeito da tutela da vida privada das pessoas, bem como de vários aspectos seus como intimidade, honra e imagem, etc, obstando ao estado a intromissão na vida privada e familiar dos cidadãos, assim como o impedindo de ter acesso a informações sobre a privacidade de cada um. Não há sombra de dúvidas de que o direito constitucional à privacidade deve ser analisado de forma relativa, quando sua manutenção torna obscuras informações que, se não vierem à tona, implicam a impunidade de criminosos e a lesão ao bem-comum. Mas, para que a quebra desses direitos individuais seja lícita, é indispensável o devido processo 207 Deve haver uma conformação, um ajustamento de valores e a minimização do rigor formal de um dos valores protegidos pela norma jurídica, que vai sofrer restrição legal, desde que seja no intuito de salvaguardar outros direitos fundamentais, observando-se, é claro, as limitações delineadas no próprio texto constitucional e pela doutrina. Daí justificada, em parte, a restrição das liberdades individuais pelo princípio da proporcionalidade. Busca-se, quando do uso do princípio da proporcionalidade, uma otimização entre os direitos balizados, para que se possa estabelecer uma concordância prática (praktische konkordans), sendo mantida a identidade daquele que teve seu rigor formal comprometido: o critério não será a prevalência absoluta de um valor sobre o outro, mas a tentativa de aplicação simultânea e compatibilizada de normas, mesmo que no caso em exame se torne atenuada uma delas. 208 No art. 38 § 4 º da Lei 4595/64 existe a previsão da possibilidade do poder legislativo, através das CPIs, 209 GOMES, Luiz Flávio. Crime organizado: enfoque criminológico jurídico (Lei 9.034) e políticocriminal. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 131 “É absolutamente impossível, hoje, que possam as autoridades administrativas (fiscais, sobretudo) determinar a quebra do sigilo bancário. Por envolver um direito constitucional fundamental (direito à privacidade), estamos convencidos dessa impossibilidade. Só a autoridade judicial e o Poder legislativo é que possuem esse autorização. É que o devido processo legal é impostergável. Dir-se-ia que o processo administrativo fiscal, por exemplo, satisfaz tal exigência. Ainda que se admita tal conclusão, restaria prejudicada a necessidade de uma fundamentação judicial para a quebra de tal sigilo. O juiz primordialmente, não as autoridades administrativas, é o garante dos direitos fundamentais, por ele, por isso, mesmo deve passar qualquer providência que implique afetação de tais direitos”. 210 A reserva da lei ajuda no estabelecimento de um critério de ponderação, pois aqueles direitos sujeitos a reserva de lei restritiva tem nos preceitos constitucionais sua garantia e seus limites pré-estipulados, cabendo ao magistrado a tarefa de conformação dos direitos fundamentais o legislador e o hermeneuta não poderão disponibilizá-los, sendo que as normas legais conformadoras caberá a tarefa de apenas completar, concretizar ou definir o conteúdo e o limite de proteção de um determinado direito fundamental: as decisões da administração que afetem direitos e interesses dos cidadãos, só devem ir até onde seja imprescindível para assegurar o interesse público, não se devendo utilizar medidas mais gravosas quando outras, que o sejam menos, forem suficientes para atingir os fins da lei. Para o princípio da proporcionalidade o aplicador do direito deverá sopesar entre dois direitos conflitantes, de mesma hierarquia legal, optando, excepcionalmente, em aplicar aquele que vai ao encontro do bem comum. Este método subjetivo de análise nunca deve deixar de lado o critério da razoabilidade. 154 legal, através de prévia autorização judicial, garantindo-se, assim, a irrestrita observância do estado constitucional de direito. 211 Nesse sentido, o devido processo legal é condição para a restrição de quaisquer garantias individuais juridicamente tuteladas. São notórios os estratagemas utilizados pela criminalidade organizada tendo como pano de fundo as garantias constitucionais. Em assim sendo, vale questionar as posturas doutrinárias arraigadas no rigor formal, que não interpretam a norma à luz de um critério de razoabilidade que busca a obtenção de informações indispensáveis à apuração de certos crimes, em casos excepcionais. O chamado right of privacy deve ser interpretado de maneira temperada, diante do argumento de que inexiste direito fundamental absoluto, cedendo, quando for o caso, em atenção ao princípio da proporcionalidade. Mas, independentemente da primazia a que deve ser alçada à norma constitucional garantidora do direito a intimidade e suas matizes, são necessárias provas a fim de que sejam incriminadas certas condutas. Nessa seara, destaca-se a importância do principio da proporcionalidade. Observe-se que, sob o manto do critério de proporcionalidade é permitido caráter excepcional e, em casos extremamente graves, o emprego de provas ilícita, baseada no equilíbrio entre valores fundamentais contrastantes. É importante observar que o princípio alemão da proporcionalidade recorda a construção jurisprudencial da razoabilidade, tão importante e significativa nas manifestações da Suprema Corte americana. Embora reconhecendo que o subjetivismo incito no princípio da proporcionalidade pode acarretar sérios riscos, alguns autores têm admitido que sua utilização poderia transformar-se no instrumento necessário à salvaguarda de valores conflitantes, desde que aplicado única e exclusivamente àquelas situações tão extraordinárias que levariam a resultados desproporcionais, inusitados e repugnantes, se inadmitida a prova ilicitamente colhida. Para Guerra Filho, só se fundamenta a inscrição de 211 A perfectibilização dos direitos fundamentais só acontece validamente diante de direitos fundamentais instituídos diretamente pela Constituição. É um método ou procedimento que permite a satisfação da unidade da Constituição, da concordância prática e da otimização (máxima efetividade possível) dos direitos fundamentais. A discussão sobre conflito de direitos fundamentais (Grunrechtskollision) é fonte de constantes indagações e questionamentos, debruçando-se a doutrina sobre seu conceito e seus limites legais. A colisão de direitos fundamentais ocorre no mais das vezes quando o exercício de um direito fundamental de um titular de direitos fundamentais tem conseqüências negativas sobre os direitos fundamentais de outros titulares de direitos fundamentais, criando-se a necessidade de um cotejamento entre os direitos conflitantes, sendo desconsiderado um deles, através de um juízo ponderação que exija o sacrifício mínimo de ambos os direitos de modo a eliminar (ou pelo menos amenizar) o estado de tensão mútua existente. 155 um principio no plano constitucional se deduzido da opção por um estado de direito ou, então, dos próprios direitos fundamentais, não restando dúvida quanto da sua inserção à base do ordenamento jurídico. 212 213 Vivemos sob a égide da globalização que, concomitantemente a desigualdade social, leva a transnacionalização dos espaços econômicos nacionais, rompendo com os limites fronteiriços do capital financeiro. Superando-se a noção de território físico e geográfico, avança-se em direção à denominada flexibilidade mundial, com índices enormes de miséria, criminalidade e violência urbana. 214 212 GRINOVER, Ada Pellegrini, FERNANDES Scarance Antonio e Filho Antonio Magalhães Gomes. As nulidades no processo penal. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p.137. 213 FILHO, Willis Santiago Guerra. Direitos fundamentais, processo e principio da proporcionalidade: dos direitos humanos aos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 27. 214 LEAL, Rogério Gestam. Globalização, urbanismo e os operadores do direito Santa Cruz do Sul: Editora da Universidade de Santa Cruz do Sul, 1995, p 92. 156 3.3 Discurso penal do inimigo A doutrina do direito penal do inimigo é um novo marco histórico na doutrina do direito penal e o pensa totalmente desgarrado do direito penal contemporâneo, reducionista por natureza. Em assim sendo, o estudo aprofundado do discurso do direito penal do inimigo é de suma importância. Observe-se que é diante do contexto de globalização econômica, de profunda desigualdade social, de níveis de criminalidade altíssimos, decorrentes de um número infindáveis de injustiças infringidas sobre a grande massa de excluídos que floresce a doutrina do direito penal do inimigo. Trata-se de uma visão doutrinária expansinista que figura na contra-mão do direito penal garantista e reducionista. Para a doutrina do direito penal inimigo, o direito penal opera com dois pólos ou tendências em seus regulamentos: (1) o trato com o cidadão, do qual se espera que exteriorize sua conduta para reagir com a finalidade de confirmar a estrutura normativa da sociedade; (2) o trato com o inimigo, que deve ser interceptado muito antes, em estágio prévio à ação e combatido pela sua periculosidade.215 Acontece, como já se viu, que o direito penal foi projetado para ser acolhido por uma sociedade idealizada, com o nível cultural e racional compatível com a conferência de sentido à norma (o livre arbítrio existe para quem tem possibilidades de escolher não para quem não tem escolhas), efetivando seu cunho coercitivo somente pela possibilidade de consciência potencial da ilicitude e pela capacidade de escolha do infrator de infringir ou não a norma penal. Em uma sociedade em condições anárquicas são a práxis e pauta cotidiana, em que estados paralelos ao estado de direito se instalam com regras e coações próprias e na qual parte da população vive à margem do contrato social, ao abandono de suas vivências instituais, o direito penal não opera seu sentido precípuo, tampouco, oferece essa capacidade de escolha projetada pelo direito penal: escolhe quem não passa fome, escolhe quem tem outas opções, alternativas e projetos que não a adesão ao estado paralelo. 215 PRITTWITZ, Cornelius. O direito penal entre direito penal do risco e o direito penal do inimigo. São Paulo: Revista Brasileira CCRIM Nº 47, 2004. p.41. Segundo PRITTWITZ “o direito penal do inimigo é um direito penal por meio do qual o Estado confronta não os seus cidadãos, mas os seus inimigos; em que isto se faz visível?. Primeiramente afirma o autor, tomando-se a lei concretamente o código penal e a legislação processual penal, o que se vê é que , onde se trata de punição de inimigos, se pune antes de 157 A esse respeito, afirmam Jakobs: “neste sentido que a doutrina do Derecho penal del enemigo es indicativo de uma pacificación insuficiente (...) en primer lugar, está la coacción en cuanto portadora de un significado, portadora de la respuesta al hecho: el hecho, como hecho de una persona racional, significa algo, significa una desautorización de la norma, un ataque a su vigencia, y la pena también significa algo, significa que la afirmación del autor es irrelevante y que la norma sigue vigente sin modificaciones, manteniéndose, por lo tanto, la configuración de la sociedad. En esta medida, tanto el hecho como la coacción penal son medios de interacción simbólica, y el autor es tomando en serio en cuanto persona; pues si fuera incompetente, no sería necessario 217 contradecir su hecho”.216 Na terminologoia o termo inimigo, do latim inimicus (hostil, adversário), na terminologia jurídica é empregado para indicar a pessoa que mantém contra outros sentimentos de animosidade ou malquerença, impregnados de rancor e ódio. Um não amigo, sendo hostil e adversário da pessoa, a quem, longe de desejar bem, quer o malefício, configura-se como um inimigo. A condição de inimigo assenta-se, pois, na falta de estima; na linguagem do direito internacional, assim se diz do país, povo ou tropas, quando se está em luta armada ou guerra. Para Jacokbs, o inimigo é aquele delinqüente que infringe o contrato social de maneira tão ostensiva que já não deve participar de seus benefícios: a partir desse momento, já não vive com os demais dentro de uma relação jurídica. Essa definição de inimigo apóia-se na concepção rousseauniana que considera como malfeitor todo aquele que ataque ao direito social, deixando por/com isso, de ser membro do estado, posto que se encontra em guerra contra esse, como demonstra a pena pronunciada contra o malfeitor. 218 Analisando a conceituação desenhada por Jacokbs, vê-se claramente a distinção estabelecida por seus argumentos entre aqueles que aderem ao contrato social, e que, portanto, devem estar abrigados pelos direitos e garantias individuais, e aqueles que se forma mais rígida, do ponto de vista de direito material, a liberdade do cidadão de agir e (parcialmente) de pensar é restringida; ao mesmo tempo, subtraem-se direitos penais do inimigo”. 216 GÜNTER, Jakobs . Derecho penal del enemigo. Madrid: Civitas, 2003. 217 GÜNTER, Jakobs. Derecho penal del enemigo. Madrid: Civitas, 2003. 218 Nesse sentido JACOKBS Günther. Direito penal do inimigo: noções e críticas, org. e trad. André Luis Callegari, Nereu José Giacomolli, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. 158 mostram alheios ao contrato social, devendo, segundo a teoria do direito penal do inimigo, ser tratados não cidadãos. Argumenta Jacokbs quem abandona o contrato cidadão no ponto em que, no contrato, se contava com a sua prudência, seja de modo voluntário ou por imprevisão, em sentido stricto, perde todos os direitos como cidadão e como ser humano e passa a um estado de ausência completa de direitos. Curiosamente, mediando seus próprios argumentos, afirma Jacokbs que um ordenamento jurídico deve manter dentro do direito também o criminoso por uma dupla razão: por um lado, porque o delinqüente tem o direito a voltar a ajustar-se à sociedade, e, para isso, deve manter seu estado de pessoa, de cidadão; por outro, porque o delinqüente tem o dever de proceder à reparação e também tem deveres pressupostos pela existência da sua própria personalidade. Dito de outro modo, ele próprio admite que o delinqüente não pode despedir-se arbitrariamente da sociedade. Mas, certamente, esse despedir-se arbitrariamente da sociedade foi pensando no contexto de uma sociedade realmente comprometida com o bem-estar social, que alcançasse ao ser humano grande parcela de efetivação dos seus direitos fundamentais, que proporcionasse ao mesmo meios de sobrevivência: direito ao trabalho, à moradia, à educação, à assistência médica e psicológica, a uma previdência social que não abandone o trabalhador, aposentado-o à mingua depois de uma vida inteira de trabalho. Argumenta Jacokbs todo delinqüente é per si um inimigo, para Hobbbes, é, ao menos o réu de alta traição. 219 Kant, já havia entabulado semelhante noção argumentando que faz uso do modelo contratual como idéia reguladora de uma fundamentação e limitação do poder do estado, situa o problema na passagem do estado de natureza (fictício) ao estado estatal, no sentido de que aquele ser humano ou povo que se encontra em um mero estado de natureza, privado da segurança necessária, lesiona, já por esse estado, aquele 219 JACOKBS Günther. Direito penal do Inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. 159 que está ao seu lado, mesmo que não seja de maneira ativa, pela simples ausência de legalidade de seu estado (status iniusto), que ameaça constantemente os demais. Em assim sendo, argumenta o autor deve ser obrigado a entrar em um estado comunitário legal ou abandonar a vizinhança.220 Conseqüentemente, quem não participa na vida de um estado comunitário legal, deve retirar-se, o que significa ser expelido (ou impelido à custódia da segurança); em todo caso, não há que ser tratado como pessoa. Pode, não obstante, ser tratado, como anota expressamente Kant, como inimigo. Frente a essa concepção do outro, como diferença, restaria questionar quem seriam hoje os inimigos? E a teoria responde: podem ser considerados inimigos os criminosos econômicos, os terroristas, os delinqüentes organizados, os autores de delitos sexuais e outras infrações penais perigosas, ou todos aqueles que se afastam de modo permanente do estado de direito, não oferecendo à sociedade garantias cognitivas mínimas de que venha saldar eventual sanção, quando do descumprimento da norma. O inimigo, pensado por Jacokbs, não é um sujeito processual, sendo-lhe suprimido o gozo dos direitos e garantias individuais, do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, da vedação de obtenção de prova ilícita ou obtida por meios ilícitos, cabendo ao estado, segundo o imperativo dessa tese doutrinária, uma postura de não reconhecimento de seus direitos. O procedimento, argumenta Jacokbs, a ser adotado contra o inimigo seria um procedimento de guerra, não se justificando a adoção de um procedimento penal legal, acobertado pelos direitos e garantias individuais. O raciocínio entabulado em relação ao inimigo faz crer que quem não oferece segurança cognitiva suficiente, demonstrada por um comportamento pessoal que corresponda às exigências de um estado de direito, não só não deve esperar ser tratado como pessoa, senão que o estado não deve considerá-lo como pessoa, pois, do contrário, vulneraria o direito à segurança das demais pessoas. 220 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2003. 160 Há, não obstante, uma pergunta diante da qual insistemente todos se calam. Aquela referente às responsabilidades, isto é, às razões que levam alguém a portar-se como inimigo. A história da humanidade, em sua construção cultural, realizou-se sempre no sentido da existência de práticas de submissão dos indivíduos em nome do bem comum. Argumentos que pretendem isolar, a tal ponto que implique o aniquilamento daquele que se mostrar alheio ao contrato social, não são práticas novas de uma sociedade em crise: esse procedimento, nominado de outras formas, sempre foi erigido em nome da saúde e do vigor das populações, da segurança pública. Dos desmandos do poder. Os argumentos daqueles que pretendem dispor dos corpos humanos como objetos de manejo político são construídos a partir de um discurso que contempla e que pretende legitimar a existência de dois mundos: um regido por leis e normas éticas; e outro ao qual essas normas não se aplicam. 221 E é, nesse contexto de vida matável, vida sobre a qual o estado tem ingerência, que o direito penal do inimigo é acolhido: aniqulia-se todo aquele a quem o Estado elege como desviante_ não cidadão. Essa construção teórica, aliás, nada mais é do que um exemplo de direito penal de autor, que pune o sujeito pelo que ele é, opondo-se ao direito penal do fato, que pune o agente pelo que ele fez. Esta proposta, na verdade, pouco se distancia do nazismo. O direito penal do inimigo reporta-nos a esse trágico período, pois opera uma nova demonização de alguns grupos de delinqüentes. Demonizando o inimigo, fazendo-o com que o mesmo figure como conseqüência de todas as inações do Estado, implica em vê-lo como ser destituído de direitos: não se reprova, segundo o direito penal do inimigo, a culpabilidade do agente, sim, sua periculosidade, não se reprova o que ele fez e sim o que ele é. 222 A distinção desenhada com direito penal para/do inimigo, porém não é práxis somente da contemporaneidade: a dicotomia no tratamento dos corpos foi delineada sob diversos argumentos no transcorrer da história, porém a distinção realizada sempre 221 No fim o século 20 (1998-2000) foram conduzidas as pesquisas sobre HIV na África a partir de um estudo com mulheres grávidas portadoras do vírus. Esses estudos suscitaram críticas da comunidade científica às quais os pesquisadores responderam defendendo a necessidade de aceitar a existência do chamado “relativismo ético” ou “duplo standartd”. Argumenta-se que é possível não aceitar as normas que constam na Declaração de Helsinque (1996) por tratar-se de pesquisas realizadas em sociedades pobres, sem condições de ministrar assistência à população, cujos governos se manifestam favoráveis à realização das mesmas. 161 enquadrou a sociedade, marcando a existência de corpos cuja saúde exige cuidados, que devem ser maximizados, melhorados, otimizados, e a existência de populações de indivíduos, considerados postos fora da jurisdição humana, que merecem ser adestrados para servirem aos fins a que a sociedade política os relegou.223 224 No século XVIII, inicia-se uma nova administração dos corpos e uma nova gestão calculada da vida. Essa nova forma de administração permite a emergência de uma rede de saber sobre as populações que inclui estudos estatísticos sobre demografia; taxas diferenciais de mortalidade; registros de nascimento e doenças; conhecimento da distribuição, concentração e controle das epidemias. Então, e pela primeira vez na história, o biológico ingressa no registro da política: a vida passa a entrar no espaço do controle de saber e da intervenção do poder. O sujeito, na qualidade de sujeito de direitos, passa a ocupar um segundo plano em relação à preocupação política por maximizar o vigor e a saúde das populações: a vida paara a ingressar no domínio dos cálculos explícito do Estado, sendo que este estrutura seu poder na gestão da omitização dos corpos. As políticas públicas a partir desse momento histórico estavam voltadas, inclusive, para a omitização ou não dos corpos, para seu gerenciamento, higinização, a disponibilização do direito a saúde em certas regiões e sua desconsideração em outras. 225 É a idéia de que é preciso definir e redefinir o normal em contraposição àquilo que se lhe opõe, isto é, a figura dos anormais, incorporada logo à categoria de degeneração que se inscreve nas margens do jurídico. Esses sujeitos se definem, como afirma Agamben, por seu caráter de exceção: são aqueles que o estado mais sujeita 222 Nesse sentido GÜNTER, Jakobs. Derecho penal del enemigo. Madrid: Civitas, 2003, p. 59 AGAMBEM, Giorgio. Homo sacer O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002. 224 FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1989, p.23. “Foucault aponta esse deslocamento significativo nas estratégias de poder, o controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade bio política.” 225 Os estudos e as estratégias eugênicas são as que melhor definem as características dessa biopolítica da população que, ao mesmo tempo em que se propõe ao melhoramento da raça e da espécie, parece precisar do controle e da submissão de corpos sem direito, que se configuram como simples vida nua, vida que se mantém nas margens, vida que pode ser submetida e aniquilada, vida de qual o estado se vale para seus experimentos, a vida submetida a tortura, a vida número, massa de manobra passível de ser atacada por uma bomba nuclear, como aconteceu em Hiroschima. 223 162 explicitamente, pois maneja com seus corpos de maneira a otimizá-los ou a aniquilá-los, conforme os objetivos políticos a que se propõe.226 Assim, sempre houve no transcorrer da história da humanidade seres humanos tidos como inimigos e assim tratados com delitos atrozes e uma discriminação que se operou a priori: esse também é o caso do direito penal do/para o inimigo. Tomando emprestadas as palavras de Giorgio Agamben em Homo Sacer, pode-se afirmar que: a questão correta sobre os horrores cometidos não é, portanto, aquela que pergunta hipocritamente como foi possível cometer delitos tão atrozes para com os seres humanos; mais honesto e sobretudo mais útil seria indagar atentamente quais procedimentos jurídicos e quais dispositivos políticos permitiram que seres humanos fossem tão integramente privados de seus direitos e de suas prerrogativas, até o ponto em que cometer contra eles qualquer ato não mais se apresentava como delito.227228 Na visão do direito penal do inimigo os indivíduos deixam de ser sujeitos de direito e passam a ser encarados como corpos-espécies, isto é, corpos limitados não só a seu estatuto vital, respondendo, também, aos desmandos dos Estados: é trazido à tona, como formulação doutrinária, construção jurídica que pretende legitimar o tratamento de qualquer pessoa humana como não cidadão, sujeito que não tem direito a direitos. 226 AGAMBEM, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p.43 “Para se compreender melhor esse raciocínio, convém lembrar com Agamben, que a exceção se situa em posição simétrica em relação ao exemplo, com o qual forma um sistema. Esta constitui um dos modos pelos quais um conjunto procura fundamentar e manter a própria coerência. Mas, ela tem uma função estratégica, ela auxilia na conformação da identidade de um grupo, pois a relação de exceção é uma relação de bando. Aquele que foi banido não é, na verdade, simplesmente o que foi posto fora da lei ou é indiferente a esta, mas o que foi abandonado por ela, ou seja, exposto e colocado em risco no limiar em que vida e direito, interno e externo se confundem.” 227 AGAMBEM, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002. 228 Vale considerar quando se pensa em direito penal do/para inimigo que os novos dispositivos políticos que aqui entram no jogo já não dizem respeito a sujeitos de direito, nem a cidadãos que pertencem a uma determinada nação ou estado. No registro da biopolítica da população, as leis são substituídas pelo império dos fatos, pela urgência e o imediatismo dos governantes que pretendem domar os corpos aos seus propósitos políticos, transformando-os em objeto de manipulação direta da ideologia. O que entra em jogo aqui já não é o direito à vida ou à saúde dos pacientes, membros de uma comunidade política; o que se converte em objeto de pesquisa é, nas palavras de Foucault, o corpo espécie, aquilo que Agamben denomina de vida nua, algo semelhante ao que, para Hannah Arendt, representa o espaço da necessidade vital muda e silenciosa. Nessa perspectiva, o sujeito político é identificado com o domínio das necessidades vitais; o corpo deixa de ser de alguém, para ser transformado em um elemento na mecânica geral dos seres vivos, que serve de suporte aos processos biológicos de nascimento, mortalidade, saúde, epidemias. 163 Volta-se novamente a pergunta formulada por Agamben quais dispositivos políticos que permitiram que essa ordem de coisas fosse aceita? Pode-se responder a essa questão fazendo referência ao estreito vínculo que, a partir do séc XIX, se deu entre a vida e a política. O autor questiona também quem são esses sujeitos que foram privados de seus direitos? Os sujeitos escolhidos são em geral a população (pobre) necessitada de assistência econômica, cultural, social, psicólgica e médica: a clientela do direito penal.229 O processo normal e quotidiano da socialização global pelos mercados implica o não reconhecimento permanente de inúmeras existências humanas, normalmente àqueleas que por circunstâncias econômicas estão à margem dos direitos e das possibilidades de consumo. Isso se confirma na prática (a descartabilidade e a não concessão de direitos a todos àqueles que se opõe ao mercado capitalista) quando os bombardeiros high-tech dos Estados Unidos largam a sua carga mortal estão, também, a utilizar, embora de maneira ativa e violenta, a mesma lógica que, no dia-a-dia, se aplica passivamente, sem ruído e numa escala bem maior, através do sistema econômico que flagela a fome todo o terceiro mundo. Todos os anos, milhões de seres humanos, entre os quais muitas crianças, morrem de fome e de doenças pela simples razão de não serem solváveis, isto é, não terem com o que/como pagar e assim sendo não tem direito aos direitos, vistos também como não cidadãos. 230 Claro que o universalismo ocidental sugere o reconhecimento sem limites de todos os indivíduos como homens a priori, porém são as regras do mercado que estão a constituir o fundamento de todos os direitos só atribui direitos àqueles que tem algo a dar em troca para o mercado capitalista. Não sendo assim nãoi serão sujeitos de direitos. 229 Assim, quando analisamos o modo como recentemente foram construídas certas pesquisas de uma das epidemias emergentes que mais desafios apresentam para os pesquisadores, a AIDS, vemos reiterarem-se os mesmos procedimentos e argumentos que caracterizaram os estudos médicos e epidemiológicos do século 19 e inícios do século 20. Hoje as pesquisas com seres humanos relativas à AIDS concentram-se na África, onde a incidência da doença atinge, em algumas populações, até 50% dos habitantes. 230 Observe-se que foi sempre em nome de princípios ideais, que exércitos foram postos em marcha, que se mataram homens, se devastaram países e se destruíram cidades. A mais recente potência mundial e os seus vassalos não fogem à regra: no Iraque, junto com porta-aviões, tanques e helicópteros de combate, foi mais uma vez mobilizada a idéia dos direitos do homem como legitimação para as atrocidades cometidas. Se existe um direito à vida e à integridade física, como se pode aceitar que as intervenções militares ocidentais matem mais inocentes do que os crimes dos ditadores e dos terroristas? 164 A contradição aparente dissipa-se quando se examina a definição de homem sob a ótica do mercado capitalista, na qual assenta este paradoxo. A primeira proposição desta definição diz: o homem é por princípio aquele que é solvável. O que, pela inversa, quer dizer que, por princípio, o indivíduo totalmente insolvável, isto é, que nada pode pagar, não pode ser um homem é não cidadão. Quanto mais um ser for solvável, mais se parecerá com um homem, e quanto menos preencher esse critério, mais se afasta desse estatuto.231 Pensando nessa ótica estritamente capitalista e utilitária do ser humano, premissa, aliás, na qual se pauta o direito penal do inimigo, só um ser capaz de ganhar dinheiro pode ser um sujeito de direito. A capacidade de participar de uma relação de direito está, assim, ligada à de participar, de uma forma ou de outra, do processo de valorização do capital. Segundo essa definição, o homem tem de ser capaz de trabalhar, tem de ter qualquer coisa para vender, no limite, até os órgãos do seu corpo. A sua existência deve preencher o critério da rentabilidade. É esta a condição silenciada do/pelo direito moderno em geral, e, por conseguinte, também dos direitos do homem faz questionar o próprio direito como marco evolutivo do ser humano.232 231 NEGRI, A.; HARDT, M. Império. São Paulo: Record, 2001, p.42 “Se o imperialismo diz respeito à soberania moderna, em que temos o Estado-nação como o poder central exercido em um território, o império, por sua vez, emerge em uma nova situação de soberania, marcada pelas fronteiras flexíveis, pelas novas redes de comunicação e controle surgidas com as novas tecnologias, pelo poder das corporações transnacionais, por novas formas pós- industriais de produção e de trabalho, por novas concepções de identidade e diferença, por novos racismos e controle da migração. Para situarem o biopoder, traçam algumas diferenças entre a sociedade disciplinar e a de controle. Em relação à primeira afirmam que: a sociedade disciplinar é aquela na qual o comando social é construído mediante uma rede difusa de dispositivos ou aparelhos que produzem e regulam os costumes, os hábitos e as práticas produtivas. Consegue-se pôr para funcionar essa sociedade, e assegurar a obediência a suas regras e mecanismos de inclusão e/ou exclusão, por meio de instituições disciplinares (a prisão, a fábrica, o asilo, o hospital, a universidade, a escola e assim por diante) que estruturam o terreno social e fornecem explicações lógicas adequadas para a ‘razão’ da disciplina. O poder disciplinador se manifesta, com efeito, na estruturação de parâmetros e limites do pensamento e da prática, sancionando e prescrevendo comportamentos normais e/ou desviados. 232 Nesse sentido NEGRI, A.; HARDT, M. Império. São Paulo: Record, 2001, p.42-43 “ Bio-poder: o poder voltado para a produção e reprodução da própria vida, mecanismos de comando e tornam cada vez mais ‘democráticos’, cada vez mais imanente ao campo social, distribuídos por corpos e cérebros dos cidadãos. Os comportamentos de integração social e de exclusão próprios do mando são, assim, cada vez mais interiorizados nos próprios súditos. O poder agora é exercido mediante máquinas que organizam diretamente o cérebro (em sistemas de comunicação, redes de informação etc.) e os corpos (em sistemas de bem-estar, atividades monitoradas etc.) no objetivo de um estado de alienação independente do sentido da vida e do desejo da criatividade. A sociedade de controle pode, dessa forma, ser caracterizada por uma intensificação e uma síntese dos aparelhos de normalização de disciplinariedade que animam internamente nossas práticas diárias e comuns, mas, em contraste com a disciplina, esse controle se estende bem para fora os locais estruturados de instituições sociais mediante redes flexíveis e flutuantes.. 165 Assim, o direito implica, na sua própria essência, uma relação de inclusão e de exclusão Como já se viu acerca do caráter aparente da solvabilidade, trata-se do domínio de uma abstração social, incarnada na forma monetária e, portanto, no direito. Essa forma abstrai precisamente a existência física, as necessidades biológicas, sociais e culturais dos homens para os reduzi-los à existência nua, enquanto unidades de dispêndio de energia, para o fim em si da valorização monetária. O homem, evocado nos direitos do homem, é exclusivamente o homem abstrato, portador e ao mesmo tempo servidor da abstração social dominante. E só este homem abstrato é universalmente reconhecido pelos direitos do homem, pois o homem que está em superlotação no cárcere ou tortura em Guantánamo, para essa acepção do direito é nãohomem, não cidadão, sujeito que não tem direito aos direitos. Contudo, isso significa que esse reconhecimento inclui, ao mesmo tempo, um não reconhecimento, uma exclusão, uma estigmatização. As necessidades materiais, sociais e culturais estão, precisamente, excluídas desse reconhecimento fundamental. O homem reconhecido pelos direitos do homem só o é enquanto ser reduzido à abstração social; primeiramente, como bem diz Agamben, começa-se por reduzi-lo a uma vida nua, definida por uma finalidade que lhe é estranha. O famoso reconhecimento não é mais do que uma reivindicação sobre a vida dos indivíduos, obrigados a sacrificar essa vida à função, tão banal quanto realmente metafísica, de valorização infinita do dinheiro pelo trabalho. Só depois disso, secundariamente, para um resto de vida que afinal só lhes serve para se regenerarem para o mesmo objetivo totalitário. Dessa forma, a satisfação das suas necessidades não passa de um subproduto deste movimento autônomo metafísico do dinheiro, ao qual eles são entregues precisamente pelo reconhecimento enquanto sujeitos abstratos do direito. Esse reconhecimento paradoxal do homem abstrato pelo não reconhecimento do homem concreto, social e real extrai sua singular força de persuasão do fato de que o pior é sempre possível. Isso porque o não reconhecimento relativo, contido neste reconhecimento exclusivamente abstrato, pode sempre transformar-se em não reconhecimento absoluto: os homens que são expulsos do fim em si totalitário capitalista, perdem, por esse fato, qualquer possibilidade de serem sujeitos e ficam então 166 completamente fora da capacidade de serem reconhecidos; saem completamente dessa definição do homem.233 Se o reconhecimento é apenas negativo e exige uma submissão, os excluídos escapam ainda menos à exigência totalitária do sistema. A submissão dos homens a essa forma abstrata tira os seus galões do fato de essa submissão se revelar vantajosa, se comparada com os que já não são sequer submissos, mas completamente extraídos da humanidade.234 Segundo essa definição, entre a simples existência humana e o direito de submissão cria-se esse vazio sistemático. Logo, os indivíduos não são naturalmente homens, só podendo tornar-se seres humanos e sujeitos de direito quando passarem por um processo de reconhecimento seletivo. Este processo de seleção pode ser objetivo, isto é, segundo as leis da valorização e a situação do mercado; ou ser conduzido subjetivamente, ou seja, segundo definições ideológicas ou estatais de amigo ou inimigo. A verdadeira existência dos indivíduos pode, por esse processo, ser rejeitada da mesma forma que uma mercadoria não reconhecida pelo mercado é considerada inútil. E, como último recurso, os bombardeamentos, ou, como ultima ratio, as armas nucleares põem definitivamente um termo ao processo de reconhecimento, transformando realmente os indivíduos, cujo reconhecimento já não se pode assegurar, em matéria inerte passível de explosão/implosão. Para isso, a promessa dos direitos do homem é, já em si mesma, uma ameaça: quando as condições não explicitadas que definem o homem na modernidade não podem ser preenchidas não há reconhecimento. Vale salientar, porém que todosw nós em algum momento poderíamos catalogados nessa categoria: nos dias que correm, a maioria dos humanos já não pode preencher esses requisitos, mesmo que se esforcem, até ao autosacrifício, por se submeter à forma abstrata do dinheiro e “do direito”. 233 KURZ, Robert. Os paradoxos dos direitos do homem. Publicado em 27/11/99, Caderno Mais, Folha de São Paulo. 234 KURZ, Robert. Os paradoxos dos direitos do homem. Publicado em 27/11/99, Caderno Mais, Folha de São Paulo. 167 Tudo parece ser permitido nessa lógica na qual os sujeitos necessitados podem ser utilizados em beneficio do melhoramento do vigor, da vida e da saúde das sociedades opulentas: um exercício de biopolítica da população, que reproduz as velhas estratégias de poder próprias do sec. XIX, tão utilizadas e bem aceitas quando as pesquisas se referiam aos sujeitos sem direito que habitavam as colônias pobres.235 236 237 A grande novidade que se produz no mundo moderno, da qual falam Foucault, Arendt e Agamben, está dada pela identificação entre o vital e o político. No mesmo momento em que o homem moderno conquista os direitos que se pretendem universais, é o domínio do vital que entra em questão. A vida, o corpo, a saúde, as necessidades, a reprodução, que antes faziam parte da esfera pré-política, transformam-se em questões políticas por excelência, então, passíveis de manipulação por quem detém o manus do poder. As estatísticas contribuem para dotar esse processo de maior objetividade: taxas de mortalidade e morbidade, taxas de natalidade, concentração de epidemias e doenças. Há todo um novo domínio de saber e de intervenção política que se refere exclusivamente ao espaço do vital e a seus fenômenos correlatos: de natalidade, reprodução e morbi-mortalidade. 235 De fato, a resposta dada à demanda internacional sobre um posicionamento ético dos esquisadores quando se questionou os limites os quais toda pesquisa deve respeitar foi a seguinte: Nossas pesquisas não são realizadas conforme as regras da ética? Pois bem, mudemos as regras da ética. A dificuldade está na nova posição geográfica dos pesquisadores americanos e europeus que até os anos 90 conduziam suas pesquisas com sujeitos de seus próprios países. O peso econômico e as restrições éticas e legais que são exigidas no Primeiro Mundo não são idênticas às exigidas nos países pobres. Aquilo que antes da Declaração de Helsinque (e ainda depois desta declaração como o evidencia o Caso Tuskegee) podia acontecer no interior de cada país com as populações consideradas marginais e que décadas de discussão impediram de continuar a acontecer, hoje foi deslocado dos indivíduos que estão nas margens da sociedade (loucos, delinqüentes) para as populações carentes dos países localizados nas margens do mundo: os países mais pobres do Terceiro Mundo. 236 Lembremos que a Declaração de Helsin-que, de 1964, afirma que o bem-estar de cada sujeito (pertença ou não a um grupo vulnerável) deve prevalecer sobre as necessidades da ciência ou da sociedade. No entanto, parece que quando passamos essa afirmação para escala planetária, ela tende a perder sua força. 237 Essas populações, situadas nas margens, deixam de ser pensadas como sujeitos de direito passando a ser consideradas, exclusivamente em termos de corpos vivos que, para poder contar com algum tipo de assistência, devem contribuir para a construção de um conhecimento aplicável a todos. Foucault considera fato determinante da construção das sociedades modernas o processo pelo qual a vida, isto é, a vida nua, a vida natural que compartimos com os animais, passa a ser investida por cálculos explícitos e por estratégias de poder. O momento em que a vida ingressa, como elemento privilegiado, no registro da política. 168 Mas existe outra face, obscura, desse mesmo processo: se a condição humana é definida pela vida política e pelo diálogo argumentativo entre iguais, isto é como zoon logon ekhon (como ser vivo capaz de fala), seu contrário, como afirma Arendt, o que caracteriza a vida nua e sem conseqüência política é o aneu logou (sem logos), é uma vida sem significação alguma, uma vida que se esgota no próprio fato da sobrevivência, na sua característica única de ser vivo. A esse corpo espécie não correspondem outros direitos mais que sua natalidade, sua reprodução e sua morte. Ela pertence inteira mente ao registro do biológico, da pura corporeidade. Conseqüentemente, suas conquistas e lutas prescindem de argumentos e devem estar fundados na aceitação passiva de ordens ou na violência e na força. Em outras palavras, se antes a pertinência às redes de sentido e de existência, aos modos de vida e aos territórios subjetivos dependia de critérios intrínsecos, tais como tradições, direitos de passagem, relações de comunidade e trabalho, religião, sexo, hoje, cada vez mais, esse acesso é mediado por pedágios comerciais, impagáveis para uma grande maioria. O que se vê então é uma expropriação das redes de vida da maioria da população, através de mecanismos cuja inventividade e perversão parecem ilimitadas.238 239 Assim, esses sujeitos não reconhecidos como cidadãos com direitos e deveres, mas como pura e nua corporeidade, passam a ocupar esse espaço politicamente perigoso e ambíguo de uma vida nua são apenas números nas estatísticas dos governos facilmente esquecíveis e deletáveis: esse é o perigo de nãoi colocar sob a jurisdição humana uma parcela dessas estatísticas os inimigos do estado, que devem ser tratados segundo as lições de Jackobs como não- pessoas. 238 MACHADO, Arlindo. Máquina e imaginário: o desafio das poéticas tecnológicas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996 “As máquinas de vigiar representadas por computadores, satélites, máquinas fotográficas, objetivas, microfones, visores, gravadores etc são olhos mecânicos que varrem de forma macro e micro continentes e corpos interligados em tempo real, que nos incitam a pensar e vivenciar o movimento se concluindo. Multiplicando-se em uma progressão geométrica, em todos os lugares, essas máquinas com seus olhares técnicos, impessoais e de forma indolor nos recortam e desvendam nossas intimidades com um voyeurismo automático e despudorado. O olho voraz e verossímil traz a imagem capturada pela câmera e se projeta com uma instantaneidade e com uma clareza de detalhes tamanhas que o nosso tempo torna-se o tempo de um movimento onde coisas são criadas. O momento ou lugar onde elas eram capturadas pelo sensível tornou-as, agora, obsoletas, descartáveis ou mesmo inverossímeis. 239 FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1989 169 Em contraposição à lógica colonialista, hoje resulta necessário enunciar e justificar o que antes não precisava ser justificado: a existência de dois mundos, o mundo dos direitos e aquele das exceções, o mundo dos corpos que devem ser cuidados e o mundo habitado por aqueles que têm o estatuto de vida nua, de vidas que foram postas fora da jurisdição humana de modo tal que a violência cometida contra eles não constitui nenhum sacrilégio. 240 “Homo sacer uma pessoa é simplesmente posta para fora da jurisdição humana sem ultrapassar para a divina”. De fato, a proibição da imolação não apenas exclui toda equiparação entre o homo sacer e uma vítima consagrada, mas, como observa Macróbio citando Trebácio, a licitude da matança implicava que a violência feita contra ele não constituía sacrilégio, como no caso das res sacrae (cum cetera sacra violari nefas sit, hominem sacrum ius fuerit occidi). Se isto é verdadeiro, a sacratio configura uma dupla exceção, tanto do ius humanum quanto do ius divinum, tanto do âmbito religioso quanto do profano. A estrutura topológica, que esta dupla exceção desenha, é aquela de uma dúplice exclusão e de uma dúplice captura, que apresenta mais do que uma simples analogia com a estrutura da exceção soberana.241 A margem de liberdade para dar respostas aos fatos é quase inexistente, fazendo com que os sujeitos envolvidos possam passar facilmente ao estatuto de cobaias, de não pessoas e vida matável, pois quando os Estados estão projetando seus palnos estratégicos não estão aparentemente a lidar com pessoas e sim com a representação delas através de números (o que faz com quem se opere facilmente essa abstração, essa coisificação do ser humano). Esses números definem nessa mjedida facimente os corpos exclusivamente como corpo espécie, como vida nua, destituídos de sua subjetividade inteclectual e sua objet6ividade física, figuram assim, como seres alheios a jurisdição humana, seres sem cidadania nem direitos, alguém que qualquer um pode matar impunemente. 240 ARENDT, Hannah. La condición humana. Siglo XXI, México: Benchimol, 1993 AGAMBEM, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002, 145. “A biopolítica, modalidade de exercício do poder própria dos estados modernos, no momento em que garante a sobreposição entre vida e política, possibilita que com um mesmo gesto, sejam definidas as populações que pertencem ao espaço da vida nua e aquelas que fazem parte da vida ativa, isto é, da condição humana que deve ser cuidada, estimulada, multiplicada. Atente-se ao fato de que, para multiplicar a vida e o cuidado com os cidadãos, para garantir seus direitos, seu vigor e sua saúde, pode resultar legítimo admitir como precondição o uso experimental de seres humanos sem que eles se beneficiem dos melhores meios diagnósticos e terapêuticos existentes, como é exigido pela Declaração de Helsinque 1996, ainda em vigor.” 241 170 Aquilo que define a condição do homo sacer, então, não é tanto a pretensa ambivalência originária da sacralidade que lhe é inerente, quanto, e sobretudo, o caráter particular da dupla exclusão em que se encontra preso e a violência à qual se encontra exposto. Esta violência – a morte insancionável que qualquer um pode cometer em relação a ele – não é classificável nem como sacrifício e nem como homicídio, nem como execução de uma condenação e nem como sacrilégio. Subtraindo-se às formas sancionadas dos direitos humano e divino, ela abre uma esfera do agir humano que não é a da ordem do sagrado e nem da ação profana. 242 Trata-se de uma esfera-limite do agir humano que se mantém unicamente em uma relação de exceção. Esta esfera é a da decisão soberana, que suspende a lei no estado de exceção e assim implica nele a vida nua. A politização da vida nua, a biopolítica faz interrogar tematicamente a relação entre vida nua e política que governa secretamente as ideologias da modernidade aparentemente mas distantes entre si poderá fazer sair o político de sua ocultação e, ao mesmo tempo, restituir o pensamento à sua vocação prática. Os atos de auto-imolação espetacularizada que esses jovens protagonizam em suas rebeliões, diante das tropas de choque e das câmaras de televisão, não seriam a tentativa de reversão a partir desse mínimo que lhes resta, isto é, o corpo nu, o corpo não cidadão, o corpo destituídos de direitos? E para impossibilidade do Estado em conter essa insurreição que foi criado o direito penal do inimigo. Ora, o direito penal do inimigo é uma construção doutrinária explicitamente expansionista, constituindo-se em um discurso jurídico penal voltado mais à segurança nacional do que ao respeito as liberdade individuais (aliás ignora esse preceito a uma parcela da população). É uma posição doutrinária suis generis, no qual são esquecidas ou mitigadas às liberdades individuais: os suspeitos são tratados como criminoso de guerra e a razoabilidade e o devido processo legal ficam em segundo plano, justificados pela urgência de um estado de segurança que, muitas vezes, não é garantido por tais atos. 242 243 244 245 246 AGAMBEM, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002, 145. 243 BOSCHI, Antonio Paganella. Das penas e de seus critérios de aplicação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. “No estágio atual de desenvolvimento da ciência penal, os estudiosos tendem a se distribuir entre dois grupos distintos e antagônicos: há de um lado, os que se propõem o uso preponderante do direito penal como instrumento de contenção das demandas sociais relacionadas com 171 No caso da teoria do direito penal do inimigo, não se segue um procedimento democrático, isto é, o devido processo legal, mas sim, um verdadeiro procedimento de guerra. Entretanto, essa lógica de guerra da intolerância, do “vale tudo” contra o inimigo não se coaduna com o estado de direito. O direito penal do inimigo não repele a idéia de que as penas sejam desproporcionais; ao contrário, como se pune a periculosidade, não entra em jogo a questão da proporcionalidade, em relação aos danos causados. Os autores do fatídico 11 de setembro de 2001 enquadram-se no perfil de inimigo, porque suas ações externam manifestação inequívoca de um ato típico de alguém que não pretende ingressar no estado de cidadania, não podendo, assim, segundo Jacokbs, participar dos benefícios do conceito de pessoa. Ora, o direito penal do inimigo corresponde à constatação da impotência do estado em dar sustentação a um estado formal de direito, em garantir sua soberania e em dar seguridade jurídica ao cidadão, tendo em vista que a criminalidade organizada e transnacional, agora com ênfase ao terrorismo, trabalha com um nível de lesividade social que exacerba todos os parâmetros. Esta criminalidade, perpetrada muitas vezes através de atos de terror, visa ao estabelecimento de um estado de guerra, criando um o crime e a criminalidade e, de outro, aqueles que advogam a tese de que o direito penal só serve só deve ser convocado a atuar como um soldado de reserva, se fracassarem os instrumentos oficiais de cunho político, administrativo ou social; direito penal mínimo ou minimalismo é uma proposta redutora da incid6encia do direito penal e simultaneamente maximizadora do Estado Social”. 244 GÜNTER, Jakobs. Derecho penal del enemigo. Madrid: Civitas, 2003. 245 Günter Jakobs, tido como um dos mais brilhantes discípulos de Welzel, foi o criador do funcionalismo sistêmico (radical), que sustenta que o direito penal tem a função primordial de proteger a norma (e só indiretamente tutelaria os bens jurídicos mais fundamentais). No seu mais recente livro (Derecho penal del enemigo, Jakobs, Günter e Cancio Meliá, Manuel, Madrid: Civitas, 2003), abandonou claramente sua postura descritiva do denominadodireito penal do inimigo (postura essa divulgada primeiramente em 1985, na Revista de Ciência Penal - nº 97, 1985, págs. 753 e seguintes), passando a empunhar (desde 1999, mas inequivocamente a partir de 2003) a tese afirmativa, legitimadora e justificadora dessa linha de pensamento.” 246 GÜNTER, Jakobs & MELIÁ Manuel Cancio. Derecho penal del enemigo. Madrid: Civitas, 2003 Por consiguiente, HOBBES y KANT conocen un Derecho penal del ciudadano – contra personas que no delinquen de modo persistente, por principio – y un Derecho penal del enemigo contra quien se desvía por principio; éste excluye, aquél deja incólume el status de persona. El Derecho penal del ciudadan es Derecho también en lo que se refiere al criminal ; éste sigue siendo persona. Pero el Derecho penal del enemigo es Derecho en outro sentido. Ciertamente, el Estado tiene derecho a procurarse seguridad frente a individuos que reinciden persistentemente en la comisión de delitos; a fin de cuentas, la custodia de seguridad es uma institución jurídica. Más aún: los cuidadanos tienen drecho a exigir del Estado que tome las medidas adecuadas, es decir, tienen un derecho a la seguridad, com base em el cual HOBBES fundamenta y limita al Estado: finis oboedientiae est protectio”. 172 campo de batalha no cotidiano do cidadão comum, às vezes vítima de uma ação, cuja origem e motivos desconhece. 247 Inquestionável é o fato de que, ao se fazer a distinção difusa, digamos de passagem, entre aquele que está disposto a integrar o contrato social e aquele que pretende negá-lo, necessárias se fazem algumas reflexões: não seria a própria inoperância do estado e da sociedade como um todo de dar perspectivas reais – sociais, econômicas, físicas, espirituais – de socialização aos cidadãos, que os fazem tão à margem desse contexto social? Os que distinguem os indivíduos, classificando-os, enquadrando-os, avocam para si um poder discricionário imenso, arma perigosa que pode por em risco a própria democracia, se se fizer dela uma utilização abusiva indiscriminada. É preciso ter presente que ingerências excessivas nos direitos fundamentais podem indicar uma decomposição do caráter democrático do estado de direito. É verdade que essa concepção expansionista do direito penal aparece como uma tentativa da abafar a proliferação de organizações criminosas nacionais e transnacionais e de estados paralelos ao estado de direito que governam vastos territórios no Brasil e no mundo. Mas, essa construção teórica, já adotada, na prática, por alguns países, defende também, a idéia da flexibilização do princípio da legalidade da lei, admitindo a possibilidade da existência de tribunais de exceção, a descrição típica obscura ou de uma maneira não precisa, ou seja, a apuração de processos regidos pelo inquisitório, sem o devido processo legal. Na mesma seara de desproporcionalidade entre os fatos e a atribuição das penas, o discurso do direito do inimigo dá ensejo a procedimentos não acobertados pelos direitos e garantias fundamentais, tais como a descabida e exagerada antecipação da tutela penal; a concessão de prêmios ao inimigo delator – delação premiada ou colaboração premiada –; e o uso e abuso de medidas preventivas ou cautelares como a interceptação telefônica sem justa causa, ou a quebra de sigilos sem autorização judicial. 173 Ora, em um regime democrático, pressupõe-se o pleno gozo das liberdades individuais e veda-se qualquer tipo de ingerência do estado, acontecida ao arrepio da lei. As limitações aos direitos fundamentais impostos por uma constituição são variáveis, conforme os direitos positivados naquela constituição e dependem do regime a regê-la. Em relação a uma sociedade democrática, é inadmissível a possibilidade de privação, restrição ou suspensão de direitos por exercício contrário à sociedade democrática ou às finalidades da constituição, impossibilitando a ocorrência de qualquer restrição que não esteja fundada na constituição, ou em princípios e preceitos constitucionais. Professa Miranda, ao se posicionar em relação à restrição dos direitos fundamentais, que se o princípio é a liberdade, a restrição não se lhe pode sobrepor. Assim: (a) nenhuma restrição podem deixar de se fundar na constituição, ou em princípio ou preceitos constitucionais, ou de se destinar a salvaguardar de direitos e interesses constitucionalmente protegidos; (b) nenhuma restrição pode ser definida ou concretizada senão por lei, não podendo haver regulamentos restritivos de direitos, não podendo a administração exigir para esse efeito a não ser com fundamento na lei e no exercício de um poder vinculado; (c) as leis restritivas tem se que se revestir de caráter genérico e abstrato; (d) as leis restritivas apresentam-se como inovadoras ou como interpretativas, não podendo ter efeito retroativo, porque as leis retroativas envolveriam pessoas e atos determinados ou determináveis e, por conseguinte, não revestiriam de caráter geral e abstrato e ofenderiam a confiança dos cidadãos; (e) as leis restritivas não podem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos direitos, não podendo transformar em causa a finalidade dos direitos ou retirar qualquer sentido prático ao seu exercício; (f) as restrição estão sujeitas ao princípio da proporcionalidade, só podendo ser estabelecidas quando os fins, os interesses e os valores constitucionais somente através deles puderem ser protegidos, devendo, em cada caso, realizar esses fins e não os outros e corresponder à justa medida, também em cada caso requerido por estes fins. 248 Pensa-se, como se vê em boa companhia, que esse tipo de construção, representada pela expressão Direito penal do inimigo é um retrocesso nas garantias e 174 direitos fundamentais. Trata-se de um antidireito que segrega a priori certos grupos e serve como emblema repressivo, puramente simbólico. O princípio da intervenção mínima e fragmentária do direito penal está insculpido, repete-se, no contexto do direito penal democrático e de garantias de um estado social a serviço do indivíduo, atitudes totalmente inconciliáveis com estados totalitários ou os regimes de exceção.249 Mas, esse fenômeno hoje se dá na contramão do garantismo e assume contornos globais. Nos Estados Unidos, à guisa de exemplo, projetos legislativos objetivam a mudança do conceito de tortura. Não sem propósito isso está acontecendo; basta se ter ciência de Gantánamo para entender a necessidade premente do governo americano de justificar suas ações perante a comunidade internacional. Convém lembrar que os Estados Unidos ratificaram convenção contra a tortura e maus-tratos, proposta pela Organização das Nações Unidas, em 1984, com o objetivo de se insurgir contra tratamentos cruéis e desumanos dos criminosos e proibir o emprego de técnicas de torturas. 250 Segundo Rosa, no Brasil, inserida nessa linha de normatização, extraordinária, está a Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003 que, entre outras coisas, alterou a Lei de execução penal, criando o chamado regime disciplinar diferenciado para a execução da sanção privativa de liberdade. O artigo 58 dessa lei limita a restrição de direitos aos presos, com uma ressalva: o isolamento, a suspensão e a restrição de direitos não podem exceder a trinta dias, resguardada a hipótese do regime disciplinar diferenciado. 251 248 MIRANDA, Jorge. Os direitos fundamentais perante o terrorismo: terrorismo e direito; Os impactos do terrorismo na comunidade internacional e no Brasil: perspectivas políticas-jurídicas; O desafio da comunidade internacional frente ao terrorismo. Forense: Rio de Janeiro, 2003, p.61 249 BOSCHI, Antonio Paganella. Das penas e de seus critérios de aplicação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 56 “Leciona Boschi que não é preciso muito esforço para demonstrar que o nosso país prioriza o direito penal e, desse modo, caminha na contramão do garantismo; basta lembrar que a inflação legislativa brasileira, ao tipificar intensamente novas condutas e ao aumentar exageradamente e desproporcionalmente as penas, culminou por evidenciar outro paradoxo de um país de paradoxos: o do avanço no sentido do aperfeiçoamento do direito penal comum nos períodos negros da ditadura – Estado Novo e Golpe de 64 – e os retrocessos depois de 1988, muito embora a redemocratização do país e o advento da Constituição Cidadã de 1988. 250 Essa Convenção define tortura como: qualquer ato pelo qual dores e sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos internacionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la. 251 ROSA, Fábio Bittencourt da. Da vingança de sangue ao direito penal do inimigo. In: Derecho penal online (Revista electrónica de doctrina y jurisprudencia en línea, citado el 6/3/2005). Disponible en Internet: http://www.derechopenalonline.com) 175 A perda de alguns os direitos civis da população norte americana foi elaborada a partir da perspectiva definida pelo movimento conhecido por Lei e ordem, que apregoa a maximização do direito penal, em prol da segurança nacional. Essas normas, entretanto, não se coadunam com a construção centenária e gradativa de preservação dos direitos civis dos cidadãos e de um estado constitucional e democrático de direito. Segundo o que se tem notícia, carecem de transparência inúmeros fatos ocorridos em Guantánamo, sendo que a instauração de corte militar não respeita ao direito internacional, nem está prevista na convenção internacional de direitos políticos e civis de 1966, ratificada pelos Estados Unidos. 252 Nenhum criminoso pode ser punido sem o devido processo legal. Sobretudo quando as mais drásticas sanções do direito penal – privação da liberdade, privação de direitos fundamentais etc – devem ter incidência: o estrito respeito a todas as garantias é de fundamental relevância. Porém, é fato notório, via mídia global, que a nomeação pelo presidente George W. Bush em 2001 de uma comissão militar foi responsável pelo julgamento dos acusados – supostamente pertencentes à rede terrorista Al-Qaeda. A legalidade dos referidos julgamentos baseia-se em uma decisão da Suprema Corte Americana do ano de 1942, que serviu de base jurídica para que Franklin D. Roosevelt pudesse julgar sabotadores alemães nos Estados Unidos. Entre os argumentos que servem de sustentáculo de tais ações, há aquele definido pela teoria do direito penal do/para o inimigo de que o indivíduo que não se enquadra no contexto do contrato social, que não está congregado a um estado de cidadania, não deve, portanto, usufruir, por sua voluntária exclusão social, das liberdades e garantias individuais asseguradas pelo estado. Não participando dos deveres em relação ao estado, negando sua cidadania, não é um sujeito processual, logo, não pode contar com as garantias oriundas a um processo legalmente instituído: cabe ao 252 A quinta emenda da Constituição Federal norte-americana diz que “nenhuma pessoa será tida como responsável por um crime capital ou infame, a menos que sob acusação ou processo perante o grande júri, exceto em casos originados quando crimes militares ou em serviço em tempo de guerra ou perigo público; nenhuma pessoa será sujeita a mais de um julgamento pelo mesmo fato; ninguém será compelido em nenhum caso criminal a fazer prova contra si mesmo (princípio da não incriminação própria), nem ser privado da vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal; ninguém será privado de sua propriedade para uso público sem a devida indenização. A sexta emenda diz que “em todo processo penal o acusado usufruirá o direito de ter um julgamento público e célere, por um júri imparcial do estado ou circuito federal, previamente competente pela lei e ser informado sobre a 176 estado não reconhecer seus direitos, ainda que de modo juridicamente ordenado, devendo dispensar ao mesmo não um procedimento penal legal, mas sim, um procedimento de guerra. 253 254 Ocorre que os contornos que configuram o inimigo são difusos, ainda que a sociedade norte-americana queira imprimir a ele sempre o rosto de Bin Laden. O terrorista pode ser qualquer pessoa que pisa o solo americano; então, a reação contra o presumido malfeitor pode, hipoteticamente, se voltar para qualquer um de nós. Nessa perspectiva, a incerteza em relação ao inimigo ameaça a todos, pairando sob qualquer cidadão, americano ou não. Todos se deparam hoje com a possibilidade de perda dos direitos civis, das garantias fundamentais, e de prisões e inquisições sem volta, como Gantánamo. Não foi isso que aconteceu com um pacífico brasileirinho, confundido com perigoso terrorista no metrô em Londres? É fácil compreender essa reação, pois a própria consciência da revolta enfraquece e dilui-se quando se perdem os contornos do alvo a ser atingido, não permitindo distinguir sobre quem se deve descarregar munições. Parece que os antigos modos repressivos deram lugar hoje a uma espécie de incorporação classificatória, nova ou renovada, que ordena, absorve e exclui, sem uma análise mais aprofundada, sem o devido processo legal: com a tomada de depoimentos sob tortura, qualquer pessoa, mesmo as classificadas politicamente corretas, confessaria crimes que não comenteu. Para legitimar essas seleções destituídas de critério, ondas repressoras defendem esse tipo de retrocesso no discurso jurídico. natureza e causa da acusação; bem como de contrariar as provas contra si e ter possibilidade de produzir provas a seu favor e obter assistência de advogado em sua defesa”. 253 JAKOBS, entende como características do direito penal do inimigo, as seguintes: (a) o inimigo não pode ser punido com pena, sim, com medida de segurança; (b) não deve ser punido de acordo com sua culpabilidade, senão consoante sua periculosidade; (c) as medidas contra o inimigo não olham prioritariamente o passado (o que ele fez), sim, o futuro (o que ele representa de perigo futuro); (d) não é um direito penal retrospectivo, sim, prospectivo; (e) o inimigo não é um sujeito de direito, sim, objeto de coação; (f) o cidadão, mesmo depois de delinqüir, continua com o status de pessoa; já o inimigo perde esse status (importante só sua periculosidade); (g) o direito penal do cidadão mantém a vigência da norma; o direito penal do inimigo combate preponderantemente perigos; (h) o direito penal do inimigo deve adiantar o âmbito de proteção da norma (antecipação da tutela penal), para alcançar os atos preparatórios; (i) mesmo que a pena seja intensa (e desproporcional), ainda assim, justifica-se a antecipação da proteção penal; (j) quanto ao cidadão (autor de um homicídio ocasional), espera-se que ele exteriorize um fato para que incida a reação (que vem confirmar a vigência da norma); em relação ao inimigo (terrorista, por exemplo), deve ser interceptado prontamente, no estágio prévio, em razão de sua periculosidade. 177 Tratar o criminoso comum como criminoso de guerra, ou melhor como não pessoa é tudo de que ele necessita, de outro lado, para questionar a legitimidade do sistema –desproporcionalidade, flexibilização de garantias, processo antidemocrático etc –: tratar os criminosos a partir de uma lógica da guerra, da intolerância excessiva, do vale tudo, conduz a excessos, destrói a razoabilidade e coloca em risco o estado democrático. É igualmente necessário advertir que o garantismo não pode ser confundido com a simpatia aos delinqüentes, nem com perspectivas radicais como o abolicionismo. Com efeito, o garantismo não se propõe a negar a nocividade do delito e a quebra da convivência social que o mesmo representa. O garantismo não postula que seja possível prescindir de maneira taxativa e absoluta da ferramenta punitiva do controle social e de cárcere, pois se trata de um mal necessário, tendo em vista não existirem outras formas de cumprimento dos mesmos objetivos com igual eficácia. O garantismo postula, isso sim, o uso limitado do direito penal, isto é, a redução dos espaços de intervenção da possibilidade punitiva na vida do cidadão e a submissão desses limites infranqueáveis a determinados princípios e garantias fundamentais que amparam o cidadão em relação às interferências abusivas do estado. O significado da democracia é a revalorização do homem, “en toda la complicada red de las instituciones procesales que sólo tienen un significado si se entienden por su naturaleza y por su finalidad política y jurídica de garantía de aquel supremo valor que no puede nunca venir sacrificado por razones de utilidad: el hombre”. Os direitos fundamentais, por sua vez, como tais, regulam a atuação no estado contra ingerências sobre seus cidadãos, e pertencem, por conseguinte, à seção que trata do amparo do indivíduo em relação ao estado. Prova disso é a quantidade de dispositivos que integram as constituições modernas, regulando o processo penal, com a finalidade de garantir a plena eficácia dos direitos fundamentais do acusado enquanto estiver sendo processado. Cabe ressaltar ainda que o processo penal constitui um ramo do direito público, e, portanto, tem como essência a autolimitação do estado. 255 A democracia é um sistema político-cultural que valoriza o indivíduo frente ao estado e que se manifesta em todas as esferas da relação estado-indivíduo, levando, por 254 GÜNTER Jakobs & MELIÁ Cancio, Manuel. Derecho penal del enemigo. Madrid: Civitas, 2003.p.45 Nesse sentido BETTIOL, Guiseppe. Instituciones de Derecho Penal y Procesal. Trad. Faustino Gutiérrez-Alviz y Conradi. Barcelona, Bosch, 1976. 255 178 conseguinte, a uma democratização do processo penal, e refletindo essa valorização do indivíduo no fortalecimento do sujeito passivo do processo penal. Pode-se afirmar, com toda segurança, que o princípio que primeiro impera no processo penal é o da proteção dos inocentes, ou seja, o processo penal enquanto direito protetor dos inocentes e como regulador dos procedimentos a serem adotados para a imputação da responsabilidade criminal. Esse status tem caráter constitucional e deve ser mantido até que exista uma sentença penal condenatória transitada em julgado. O processo, como instrumento para a realização do direito penal, deve realizar sua dupla função: de um lado, tornar viável a aplicação da pena; de outro, servir como efetivo instrumento de garantia dos direitos e liberdades individuais, assegurando os indivíduos contra os atos abusivos do estado. Nesse sentido, o processo penal deve servir como instrumento de limitação da atividade estatal, estruturando-se de modo a garantir plena efetividade aos direitos individuais constitucionalmente previstos, como a presunção de inocência, contraditório, ampla defesa, etc, pois não podemos correr o risco que acusar inocentes deixando à mercê do etado qualquer cidadão que não se ajuste a seu projeto político. O objeto primordial da tutela não deve ser somente a salvaguarda dos interesses da coletividade, mas também a tutela da liberdade processual dos imputados e o respeito à sua dignidade como pessoa, como efetiva parte do processo. O direito penal mínimo é uma técnica de tutela dos direitos fundamentais e configura a proteção do débil contra o mais forte; tanto do débil ofendido ou ameaçado pelo delito, como também do débil ofendido ou ameaçado pela vingança; contra o mais forte, que no delito é o delinqüente, e na vingança é a parte ofendida ou os sujeitos públicos ou privados solidários com ele. A proteção vem por meio do monopólio estatal da pena e da necessidade de prévio processo judicial para sua aplicação, e da existência, no processo, de uma série de instrumentos e limites, destinados a evitar os abusos por parte do Estado na tarefa de perseguir e punir. 256 Existe uma profunda relação entre o atual modelo de direito penal mínimo e seu correspondente processo penal garantista. O primeiro é condicionado e limitado ao 256 Nesse sentido FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão – teoria geral do garantismo. São Paulo, RT, 2002, p. 335. 179 máximo, correspondendo não só ao máximo grau de tutela das liberdades dos indivíduos em relação ao arbítrio punitivo, mas também a um ideal de racionalidade e de certeza. Existe uma clara vinculação entre garantismo e racionalismo. O sistema garantista está sustentado por cinco princípios básicos sobre os quais deve ser erguido o processo penal: (1) jurisdicionalidade - Nulla poena, nulla culpa sine iudicio: Não só como necessidade do processo penal, mas também em sentido amplo, como garantia orgânica da figura e do estatuto do juiz. Também representa a exclusividade do poder jurisdicional, direito ao juiz natural, independência da magistratura e exclusiva submissão à lei; (2) inderrogabilidade do juízo, no sentido de infungibilidade e indeclinabilidade da jurisdição; (3) separação das atividades de julgar e acusar - Nullum iudicium sine accusatione, configurando-se o ministério público como agente exclusivo da acusação, garantindo a imparcialidade do juiz e submetendo sua atuação a prévia invocação por meio da ação penal; (4) presunção de inocência, como a garantia de que será mantido o estado de inocência até o trânsito em julgado da sentença condenatória implica diversas conseqüências no tratamento da parte passiva, inclusive na carga da prova (ônus da acusação) e na obrigatoriedade de que a constatação do delito e a aplicação da pena será por meio de um processo com todas as garantias e através de uma sentença; (5) contradição - Nulla probatio sine defensione que consiste no método de confrontação da prova e comprovação da verdade, fundando-se não mais sobre um juízo potestativo, mas sobre o conflito, disciplinado e ritualizado, entre partes contrapostas: a acusação (expressão do interesse punitivo do estado) e a defesa (expressão do interesse do acusado em ficar livre de acusações infundadas e imune a penas arbitrárias e desproporcionadas). Para o controle da contradição e de que existe prova suficiente para derrubar a presunção de inocência, também é fundamental o princípio da motivação de todas as decisões judiciais, pois só ele permite avaliar se a racionalidade da decisão predominou sobre o poder. 257 O modelo acusatório também exige que o juiz se mantenha alheio ao trabalho de investigação e passivo no recolhimento das provas tanto da imputação como de descargo. O processo deve ser predominantemente oral, com plena publicidade e com um procedimento contraditório e de trato igualitário das partes (e não meros sujeitos). 257 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão – teoria geral do garantismo. São Paulo, RT, 2002, p. 732. 180 Com relação à prova, vigora o sistema do livre convencimento motivado e a sentença produz a eficácia de coisa julgada. Após os cidadãos terem aberto mão da sua autotutela em prol do pacto social, delegando ao estado o manus puniendi, este assumiu o monopólio da jurisdição. Como contrapartida a essa delegação de tutela, o estado conferiu aos particulares o direito de ação para que busquem a solução da lide. Decorre daí, a extrema importância, dentro de uma estrutura de estado democrático de direito, do princípio da jurisdição, pois vez que o particular delega poderes desta ordem ao estado, nada mais justo e coerente do que receba, na mesma proporção, direitos e garantias contra a abusividade do poder público.258 Nesta direção, obviamente, se sabe dos altos custos que são inerentes à pena, assinalando a ênfase de extrema ratio que deve ser dado ao direito penal, toda a vez que se defronta a possibilidade de fazer frente com outros meios coercitivos, que valer-se destes em detrimento da pena privativa de liberdade, que deve ser entendida como última opção a que se poderia acolher para tutelar bens jurídicos de grande valia para as sociedades humanas – devendo a mesma sempre ser pensada levando-se em contra o princípio da proporcionalidade e a proibição do excesso. Deve sempre existir uma relação entre as ações realizadas pelos indivíduos e as medidas a serem exercidas frente às mesmas. Assim quando fala-se de punitivismo, rechaça-se a idéia de excesso, frisando que apenas deve guardar uma necessária relação de equilíbrio com o crime 258 Nesse sentido ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. São Paulo: Cultrix, 1991, p. 9/10. “Eu imagino os homens chegados ao ponto em que os obstáculos, prejudiciais à sua conservação no estado natural, os arrastam, por sua resistência, sobre as forças que podem ser empregadas por cada indivíduo a fim de se manter em tal estado. Então esse estado primitivo não mais tem condições de subsistir, e o gênero humano pereceria se não mudasse sua maneira de ser. Ora, como é impossível aos homens engendrar novas forças, mas apenas unir e dirigir as existentes, não lhes resta outro meio, para se conservarem, senão formando, por agregação, uma soma de forças que possa arrastá-los sobre a resistência, pô-los em movimento por um único móbil e fazê-los agir de comum acordo. (...) Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, não obedeça portanto senão a si mesmo, e permaneça tão livre como anteriormente.” Tal é o problema fundamental cuja solução é dada pelo contrato social. (...) “Cada um de nós põe em comum sua pessoa e toda a sua autoridade, sob o supremo comando da vontade geral, e recebemos em conjunto cada membro como parte indivisível do todo. Logo, ao invés da pessoa particular de cada contratante, esse ato de associação produz um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quanto a assembléia de vozes, o qual recebe desse mesmo ato sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. A pessoa pública, formada assim pela união de todas as outras, tomava outrora o nome de cidade, e toma hoje o de república ou corpo político, o qual é chamado por seus membros: Estado, quando é passivo; soberano, quando é ativo; autoridade, quando comparado a seus semelhantes. No que concerne aos associados, adquirem coletivamente o nome de povo, e se chamam particularmente cidadãos, na qualidade de participantes na autoridade soberana (...) 181 cometido pelo sujeito ativo do delito. Finalmente, deve-se fazer referência à impossibilidade de se sustentar uma ideologia punitivista como a professada pelo direito penal do inimigo. A este respeito, é preciso fazer menção ao respeito à dignidade da pessoa humana, igualmente inegável em sua atualidade e cujo valor é incontestavelmente universal referendado e consagrado expressamente em tratados internacionais e nas diversas constituições democráticas do mundo. Efevitamente não se pode negar que no momento presente toda a pessoa e que esta é inerente a todo o ser humano e que implica, em definitivo, admitir que seja dispensado ao ser humano um tratamento compatível com os direitos e garantias individuais. Em tal direção pauta-se o uso da violência pelo estado nos estritos termos de coação da liberdade como sanção ao cometimento de crimes que a prevejam, nunca o uso de uma violência desnecessária sobre os cidadãos ou não prevista no ordenamento jurídico. As práticas sociais precisam ser revistas no contexto urbano da sociedade de consumo, pois muito mais do que a privação econômica, a destruição dos laços comunitários pelo tráfico de drogas, ausência de canais institucionais que dêem conta, encaminhem e propaguem motivações diversas a da criminalidade, uma socialização deficiente e acrítica que não contempla a diversidade e e valoriza determinados objetos de consumo como símbolo de distinção social e poder e da reprodução cotidiana de relações sociais autoritárias entre os agentes do Estado e a população-alvo da vigilância, ao invés de oferecer caminhos, conduzem de maneira inexorável a criminalidade, pela omissão. O legislador, porém, em seu afã de não deixar nenhum vazio deixa nas mãos do julgador perigosas armas que este pode utilizar para penalizar qualquer comportamento que, a seu juízo. A famosa “tolerância zero” tem tido eco também na política criminal_e seus efeitos negativos têm sido já denunciados repetidas vezes e são tanto de caráter jurídico, como criminológico. Desde o ponto de vista jurídico, supõem uma infração clara ao princípio de intervenção mínima e de proporcionalidade e a conversão do direito penal do fato, em um direito penal do autor” mais próprio dos sistemas penais autoritários e, inclusive, de caráter totalitário e racista. 182 A idéia de tolerância zero também conduz a criminalização de condutas como a mendicância ou a prostituição de rua, que certamente podem representar um mal estar ou incômodo para a segurança ou a tranqüilidade pública, mas que não são verdadeiramente condutas delitivas. A vítima individual apenas é tida em conta e a relação delinqüente/vítima é substituída pela idéia de que todos podemos ser vítimas e, portanto, o motivo de intervenção é a segurança de todos em geral, e não a possível lesão a um bem jurídico em particular. E tudo isto, não só como um fato isolado, ou uma reação desproporcionada explicável, ainda que não justificável, em função de circunstâncias extremas, senão como uma regra geral, como uma forma normal de proceder. Mas as principais objeções contra a «tolerância zero» provêem desde o ponto de vista de sua escassa eficácia na prevenção geral da delinqüência. Efetivamente, tem sido demonstrado que as políticas de «tolerância zero», que foram implantadas em muitas cidades americanas, seguindo o modelo da de Nova York a princípios dos anos noventa, ainda que momentaneamente tenham parecido reduzir algo nas cifras de criminalidade geradora de insegurança pública (furtos, roubos, danos, etc.), analisadas em um prazo mais longo foi constatado que não fizeram baixar de forma relevante o número de delitos, nem sequer o dos delitos menores, e sim, ao contrário, provocaram um aumento impressionante do gasto policial, o que, obviamente, conduz também a um aumento da atividade judicial e do número de condenações, com o conseqüente aumento da população penitenciária, já que a maioria destes delinqüentes é condenada a penas de prisão. Para Eugenio Raúl Zaffaroni, La legitimación del control penal de los “extraños” Con la abierta vuelta al inquisitivo operada por el positivismo criminológico, se teorizó todo el derecho penal como derecho administrativo y todas las penas como medidas de coerción directa frente a peligros. El principio inquisitorio en definitiva acaba con el derecho penal y lo disuelve en el administrativo. Cuatro siglos después del Malleus, el positivismo criminológico, con el mismo esquema integrado de criminología etiológica, derecho penal, procesal penal y criminalística, volvió desembozadamente al sistema inquisitivo. El extraño, tanto el criminal grave como el disidente, volvió a ser biológicamente inferior, no en razón de género como en el caso de las brujas, sino por patológico o perteneciente a una raza no suficientemente evolucionada (es un colonizado nacido por accidente en Europa) o por ser un degenerado (producto involutivo de una raza superior). La pena desapareció, reemplazada por medidas administrativas de coerción directa destinadas a contener el peligro que los infractores presentaban para la sociedad. Los jueces asumían la función de policías (como en el Malleus) 183 y, por supuesto, los extraños (reconocibles por el estereotipo) resultaban mucho más peligrosos que los iguales y, dada su inferioridad inmodificable, sólo cabía eliminarlos. El planteo teórico cancelaba el viejo trato diferencial de matriz hegeliana, los iguales también eran sometidos a medidas policiales, sólo que las destinadas a los extraños eran eliminatorias. Las expresiones más groseras de esta peligrosidad pertenecen a Rafael Garófalo, quien afirmaba que la ciencia penal tiene por objeto la defensa contra los enemigos naturales de la sociedad y que la indulgencia de los magistrados no es más que el triunfo de la lógica conseguido a expensas de la seguridad y moralidad sociale[. A los ojos del pueblo –escribía, en lo que parece el mejor tono de la publicidad vindicativa de comienzos del siglo XXI- los códigos, los procedimientos y el mismo Poder Judicial, parece que se han puesto de acuerdo para proteger al criminal contra la sociedad, más bien que a la sociedad contra el criminal]. Como seguidor de Spencer, afirmaba que la sociedad debe producir un equivalente a la selección natural de Darwin[38] y, por ende, los enemigos deben eliminarse, pues mediante una matanza en el campo de batalla la nación se defiende contra sus enemigos exteriores; mediante una ejecución capital, de sus enemigos interiores]. Los enemigos no se agotaban en los criminales graves, sino que abarcaba a los molestos (pequeños ladrones, prostitutas, homosexuales, ebrios, vagabundos, jugadores, etc.), caracterizados como clases peligrosas], luego bautizadas como mala vida y objeto de literatura con pretensiones de trabajos de campo[. Para ellos destinaban penas sin delito (medidas detentivas policiales ilimitadas. (...) En la variante más juridizante del positivismo, Franz von Liszt proponía la imposición de penas resocializadoras para los iguales un tanto equivocados y penas meramente intimidantes para los ocasionales (muy iguales), pero a los incorregibles (los verdaderos extraños, abarcando las categorías de criminales graves y molestos), ante la imposibilidad de matarlos o deportarlos, optaba por imponerles penas eliminatorias : La sociedad –escribía- debe protegerse de los irrecuperables, y como no podemos decapitar ni ahorcar, y como no nos es dado deportar, no nos queda otra cosa que la privación de libertad de por vida (en su caso, por tiempo indeterminado). Esta última categoría se dificultaba a medida que la doctrina volvía al idealismo y, por ende, al retomarse el esquema que puede remontarse a Hegel, su discípulo Karl Stooss la reemplazó con medidas administrativas policiales, inventando lo que hoy se conoce como medidas de seguridad. Desde el proyecto suizo de Stooss se teoriza un derecho penal para iguales y otro para extraños, destinando a los primeros penas retributivas y a los segundos medidas que están con un pie en el penal y otro en la coerción administrativa directa, pues responden a la peligrosidad positivista. En definitiva, son penas sin los límites ni garantías de las penas, 259 por lo cual desde temprano se denunció el embuste de las etiquetas”. Como exemplo de antecipação da intervenção do Direito penal a supostos afastados, inclusive da colocação em perigo do bem jurídico, temos os preceitos relativos à apologia do genocídio (art.607, 2) e a indireta do terrorismo, através de seu enaltecimento ou justificação (art.578), ou a penalização da convocatória de referendums ilegais (art.506 bis), e da concessão de ajudas ou subvenções a partidos políticos dissolvidos ou suspensos por resolução judicial (art.576 bis), introduzida de 259 ZAFFARONI Eugenio Raúl, La legitimación “extraños”.www.derechepenal.on line.Acessado em 5/2/2005 del control penal de los 184 forma sub-reptícia na Lei Orgânica 20/2003, de 23 dezembro 2003, aproveitando uma Lei de acompanhamento à Lei de Orçamentos. Até tal ponto se considerou que estes dois últimos preceitos constituem uma extrapolação do poder punitivo, que uma das primeiras reformas penais que pretende adotar o Governo saído das eleições de 14 de março de 2004, é as suprimir. Para Eugenio Raúl Zaffaroni, La legitimación del control penal de los “extraños”. El debate actual en torno del derecho penal del enemigo propuesto por Jakobs se hace referencia a otras explicaciones de la represivización actual, como el derecho penal simbólico, la expansión del derecho penal, el derecho penal a varias velocidades, etc., y se critica la tesis de este autor sosteniendo que se trata de introducir un derecho penal de autor260. Pero lo cierto es que la única forma de admitir un derecho penal del enemigo realmente limitado a los enemigos sería como un extremo derecho penal de autor, o sea, limitado a un grupo de personas identificables incluso por características físicas, pues de lo contrario, lo que se discute no es si se puede tratar a algunos extraños de manera diferenciada, sino si el estado de derecho puede limitar las garantías y libertades de todos los ciudadanos. Esto es así, porque al permitir la intervención de las comunicaciones privadas se afecta la intimidad de todos, al limitar garantías procesales se pone a todos en riesgo de ser indebidamente procesados y hasta condenados por terrorismo, al tipificar actos preparatorios equívocos se conmina con pena a todos por conductas que en la mayoría de los casos son inofensivas (comprar un precursor para pintar la casa o abonar el jardín, llevar dinero para comprar legalmente una propiedad, llevar cortaúñas en un avión, bromear sobre alguna medida de seguridad, omitir la declaración de una transferencia bancaria, etc.), o sea, que la pretendidamente novedosa anticipación de la tipificación sigue el camino casi dos veces milenario de la lex Julia contra crímenes de lesa majestad, con cuya ampliación se llegó a penar la tenencia y fabricación de tela púrpura, por implicar el riesgo de preparación de un magnicidio. (...) Por ende, la discusión es claramente política: primero, si es admisible en el estado de derecho la categoría de enemigo u hostis romano y, segundo, si en base a ella se pueden limitar los derechos y garantías de todos los habitantes. Estas preguntas políticas no son independientes, pues descartando que el hostis se refiera a un grupo étnicamente diferenciado, su admisión importa una limitación a la libertad ciudadana. Es decir que el tratamiento penal diferenciado del hostis implica una lesión a los límites del estado respecto del ciudadano, o sea, que es un tratamiento más represivo para todos, lo que se compagina mucho más con el estado absoluto que con el estado de derecho.261 260 GÜNTER Jakobs. Derecho penal del enemigo. Madrid: Civitas, 2003, p. 65. Zaffaron Eugenio Raúl i, La legitimación del control penal de los “extraños” .www.derechepenal.on line.Acessado em 5/2/2005 261 185 Ferrajoli pronunciando-se a respeito da expansão do direito penal expressa nos seguintes termos: O direito penal dos ordenamentos desenvolvidos é produto predominantemente moderno; os princípios sobre os quais se funda seu modelo garantista clássico – a legalidade estrita, a materialidade e a lesividade dos delitos, a responsabilidade pessoal, o contraditório entre as partes, a presunção de inocência – são, em grande parte, como se sabe, fruto da tradição jurídica do iluminismo e do liberalismo. Os filões que se misturam nessa tradição, maturada no século XVIII, são muitos e distintos: as doutrinas dos direitos naturais, as teorias contratualistas, a filosofia racionalista e empirista, as políticas da separação dos poderes e da supremacia da lei, o positivismo jurídico e as concepções utilitaristas do direito e da pena. Estes diversos filões, contudo, além de não serem filosoficamente homogêneos entre si, tampouco, são univocamente liberais. Por exemplo, as filosofias utilitaristas, podem fundamentar, como nas doutrinas da Escola Clássica italiana de Beccaria a Carrara, uma concepção da pena como mínima aflição necessária, mas também podem informar tecnologias penais autoritárias e antigarantistas, como as da prevenção especial ou as da defesa social, orientadas ao objetivo da máxima segurança possível. E o positivismo jurídico, se por um lado está na base do princípio da estrita legalidade, por outro também permite modelos penais absolutistas, caracterizados pela ausência de limites ao poder normativo do soberano, ao mesmo tempo em que se mostra, em todo caso, completamente neutro a respeito de todas as demais garantias penais e processuais. Sem falar das concepções contratualistas, que têm servido igualmente de base à teoria hobbesiana do estado absoluto, à lockeana dos direitos naturais e do estado de direito, à fichteana do estado pedagogo e à rousseauiana da democracia direta. Sem dúvida, para além da heterogeneidade e da ambivalência de seus pressupostos teóricos e filosóficos, é certo que os princípios mencionados, tais como se consolidaram nas constituições e codificações modernas, formam em seu conjunto um sistema coerente e unitário. A unidade do sistema, depende, segundo meu modo de ver, do fato de que os diversos princípios garantistas se configuram, antes de tudo, como um esquema epistemológico de identificação do desvio penal, orientado a assegurar, a respeito de outros modelos de direito penal historicamente concebidos e realizados, o máximo grau de racionalidade e confiabilidade do juízo e, portanto, de limitação do poder punitivo e de tutela da pessoa contra a arbitrariedade. Esse esquema, como se sabe, apresenta numerosas aporias lógicas e teóricas, que fazem dele um modelo ideal e em grande parte ideológico, e que em várias ocasiões tem provocado sua desqualificação científica e política por parte da cultura jurídica, com resultados indefectivelmente antigarantistas. Ademais, antes de empreender sua crítica e revisão teórica, é útil delinear, ainda que apenas esquematicamente, seus elementos constitutivos. Estes elementos são dois: um relativo à definição legislativa, e outro à comprovação jurisdicional do desvio punível. E correspondem a singulares conjuntos de garantias – as garantias penais e as garantias 262 processuais – do sistema punitivo que fundamentam. 262 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p.29. 186 Acontece que os personagens do Iluminismo pensando deter o total controle sobre a natureza e os riscos, plenos de consciência, racionais, objetivos, apostavam estado Liberal e Social para a estruturação da sociedade. Diante a inoperância do estado Liberal e Social, em proporcionar o bem-estar social idealizado e sustar a onda de delinqüência incrementanda por desigualdades sociais, favorece a formação de um direito penal hipertrofiado, prevencionista e expansivo, para aplacar as expectativas não conseguidas pelo estado liberal. Esta expansão dá-se com a acolhida de novos bens jurídicos (tais como meio ambiente, saúde pública, mercado de capitais, tributos, relações de consumo), um incremento na tipificação dos crimes de perigo, crimes comissivos por omissão, nãodistinção ente autoria e participação, inversão da carga de probatória, além da substituição do modelo clássico de justiça pela justiça negociada (ver o casos dos juizados especiais criminais e da delação premiada na lei de tóxicos), adaptado o direito penal para uma função de eminente instrumento de prevenção. Da análise destes pontos, vê-se que o direito tradicional-liberal-antropocêntrico (paradigma das sociedades democráticas industriais do fim do século XX) não pode fazer frente a esta nova ordem, pois o fenômeno global está a modificar a realidade de forma instantânea, imprimindo uma pressão capitalista que aniquila grande parcela das populações. A setorização das classes sociais e a hegemonia da classe dominante sobre a classe dominada, a concentração de riqueza nas mãos de poucos leva a eliminação da livre concorrência e livre iniciativa, demarcando a supremacia do poder econômico sobre o social e acentuando os limites alarmantes da miséria e outras formas emergentes de exclusão social. Para o aplacamento da insurreição dos excluídos reedita-se constantemente o direito penal para combater a crescente marginalidade. Vislumbra-se o fato de que as concessões sociais operadas durante o transcorrer do século XIX e XX aconteceram não por um projeto visionário da burguesia na busca de uma equidade na distribuição de renda, e sim para manter a possibilidade de um estado liberal e da livre exploração do capital. Nesta seara de concessões mitigadas com a classe operária o estado deixa a postura abstencionista onde não tinha nenhuma preocupação social e econômica e passa a intervir no domínio econômica regulando-o e em alguns casos, passando a professar um discurso estrutural (econômico e político) no 187 qual assume teoricamente a responsabilidade pela assistência destes excluídos do sistema social e econômico dando aos mesmos a ilusão de pertencimento (não de exclusão) a uma sociedade voltada para satisfazer suas necessidades. O estado Liberal não mais conseguindo conter ideologicamente a insureição dos excluídos adota uma gradativa mudança de postura perante as questões socioeconômicas, fazendo concessões as classes trabalhadoras e tutelando determinados direitos sociais como a limitação da jornada de trabalho, a regulamentação do trabalho do menor e a previdência social. Nos Estados Unidos, em 1890, temos a lei Sherman, modelo de legislação anti-truste, visava combater a concentração econômica que provoca a eliminação da concorrência e da livre iniciativa, estrutura básica do estado liberal: uma falácia ideológica estruturada no princípio da igualdade dos homens e das oportunidades. Podemos caracterizar esta terceira fase como um momento de transição entre o estado liberal e o estado social que nasceria com a primeira guerra mundial. Embora no final do século XIX e início do século XX as Constituições liberais mantivessem ainda a característica de ser essencialmente um texto político, sem a previsão de intervenção no domínio econômico e nas questões sociais, a legislação infra-constitucional incorpora estas mudanças, demonstrando a necessidade de urgente mudança de postura por parte do estado na tutela A primeira grande guerra mundial (1914 - 1918), é marco divisor de águas entre o estado abstencionista e o novo estado Social assistencialista, sendo que 1917 no México o mundo assiste a primeira Constituição Social, que mantendo o núcleo liberal de direitos individuais e políticos, amplia o catálogo de direitos fundamentais acrescentando dois novos grupos de direitos: os direitos sociais relativos ao trabalho, saúde, educação, previdência e os direitos econômicos que marcam a postura intervencionista do estado que passa a regular a economia e em alguns casos a exercer atividades econômicas.263 263 Entretanto a organização internacional de trabalhadores e a existência na segunda metade do século XIX, de uma proposta científica como alternativa ao Estado liberal, fazem com que, a elite que se afirmou 188 O estado liberal e a democracia representativa demonstram-se impotentes em oferecer respostas imediatas para o caos social e econômico em boa parte da Europa, especialmente Alemanha e Itália. O estado social-liberal diferentemente do estado liberal clássico (que objetivava preservar a idéia de uma econômica capitalista livre), passa a reestruturar a ideologia eminentemente liberal ensaiando uma preocupação social para preservar uma importante parcela do núcleo do pensamento liberal. A motivação se dá pela pressão dos trabalhadores e dos movimentos sociais; a grave crise social, abre a possibilidade para um o intervencionismo estatal, a fim de manutenção do status quo _ na intenção de dar continuidade do processo de concentração de riqueza, mantendo (com as ínfimas concessões barganhada com a classe operária) os privilégios econômicos, construídos durante o século XIX e XX. Dentro desta seara de aplainamento e silenciamento social que implicava a promessa da participação do estado na vida social e sua contra prestação pelo beneficiamento geral das condições de vida das populações as Constituições Sociais elevam os direitos sociais e econômicos ao nível de norma fundamental, havendo uma ampliação do leque de direitos fundamentais, somando-se estes ao núcleo liberal de direitos individuais e políticos. A manutenção dos Estados Unidos estruturado como grande potência global após a segunda guerra mundial, manterá os países periféricos sob seu domínio: o terceiro mundo recepcionarão Constituições sociais, porém seus governos autoritários ou ditaduras militares instrumentadas e financiados pelos Estados Unidos terão a finalidade de manter e consolidar seu poderio imperialista ainda que com isso fosse comprometida a soberania estatal pelo nível de comprometimento econômico (dívida externa) destes países para com o capital estrangeiro que acaba por ditar normas e políticas econômicas que incidirão diretamente nas escolhas e na economia destes países. com o modelo econômico construído neste século, percebesse a necessidade de gradativamente incorporar reivindicações dos trabalhadores e propostas dos socialistas, numa tentativa de atenuar as distorções sociais e econômicas e acalmar a tensão social. 189 Diz Zafarroni” Os Estados Unidos, A Europa, a União Soviética e o Japão disputaram entre si essas tenologias), Atualmente, encontramo-nos na terceira revolução tecnológica com conseqüências planetárias: a revolução técnico científica. Os países centrais lutam pelo domínio tecnológico em determinadas áreas_ disputam entre si estas novas tecnologias visando a obtenção de resultados produtivos imediatos e, ao não pouparem esforços nessse sentido, a velocidade de renovação nestas áreas é vertiginosa. A aceleração histórico-tecnológica já produziu efeitos até agora desconhecidos nas relações dos países centrais. Enquanto alguns –como no Japão e na Europa_ conseguem ameniza-lo, os Estados Unidos na década de oitenta, realizaram uma tercerização em sua economia que deslocou massas humanas enormes do setor secundário para os de serviços, evitando a desocupação, mas provocando, simultaneamente, grave baixa de salários médios e o aumento de uma polarização da riqueza. Ao mesmo tempo reduziu-se o orçamento do serviços sociais e deslocaram-se fundos para a máquina repressiva do estado, transformando-a em fonte considerável de trabalho em serviços, ao levar a prisionalização a limites incríveis: um preso para cada trezentos habitantes, em geral sendo que para cada vinte negros (entre 20 e 29 anos), um está preso. O impacto produz ou tende a produzir e redução das classes operárias centrais, ao mesmo tempo em que vai submergindo nossa região marginal em uma situação desesperadora.Os elementos que nos permitiam protestar por algum respeito no intercâmbio eram, basicamente, a mão-de-obra barata e a disponibilidade de matériasprimas e alimentos. No entanto, o primeiro elemento já não interessa ao poder central e o segundo tende a, rapidamente, perder o interesse, em decorrência de sua substituição por novas tecnologias. Os direitos e garantias fundamentais próprias do Estado de Direito, sobretudo as de caráter penal material (princípios de legalidade, intervenção mínima e culpabilidade) e processual penitenciária (direito à presunção de inocência, à tutela judicial, a não declarar contra si mesmo, etc), são pressupostos irrenunciáveis da própria essência do Estado de Direito. Caso seja admitida sua derrogação, embora seja em casos pontuais extremos e muito graves, tem-se que admitir também o desmantelamento do Estado de Direito, cujo Ordenamento jurídico se converte em um ordenamento puramente tecnocrático ou funcional, sem nenhuma referência a um sistema de valores ou, o que é pior, referido a qualquer sistema, embora seja injusto, sempre que seus protetores tenham o poder ou a força suficiente para impô-lo. Para Copetti, mesmo ultrapassada a ditadura militar e restabelecido constitucionalmente o estado de direito, ainda se observa no Brasil, por exemplo, a manutenção de todo um aparato repressivo, nos mesmos moldes de um regime autoritário, com prisões e aparelhos policiais intocados e com a aplicação de métodos abusivos pelas forças policiais no relacionamento com o preso, especialmente a tortura, 190 para não falar na morte. Aparece, assim, a polícia como instituição que executa a função de testa-de-ferro de todo o sistema de políticas criminais, destinadas à repressão violenta dos inimigos da sociedade, mas que, mascaradamente, mediante uma retórica aparentemente democrática, manifesta-se como um sistema de segurança pública, destinado ao tratamento do delinqüente. Incapazes de combater as causas de geração da criminalidade, os estados nacionais apostam num aumento do aparato legal e policial, o que, pelo seu custo social, tem sérias implicações na realização do estado social e, reflexamente, na (im) possibilidade de realização do estado democrático de direito. 264 Segundo Coppetti, essa maximização do sistema penal revela-se, num primeiro momento, com o aumento da edição de normas penais, fato que tem algumas conseqüências imediatas. A grande quantidade de leis penais não têm passado por um filtro constitucional, havendo, a partir disso, uma violação dos conteúdos principiológicos existentes na constituição. Com isso, são afrontados os direitos fundamentais de primeira geração, seja por conteúdos processuais inquisitivos, seja pela criminalização de uma série infindável de condutas, gerando uma situação de incerteza para os cidadãos e invertendo a função originariamente cunhada para os tipos penais, que, ao invés de servirem como uma garantia aos membros da sociedade civil contra a atuação arbitrária do estado, possibilitam, contrariamente, uma atuação estatal penal desmesurada e, não raras vezes, ilegal. Enquanto, no estado de direito, o fenômeno do exercício do poder é por definição circunscrito e delimitado no seu conteúdo constitucional, no estado social há um extravasamento dessas limitações, porque nele as possibilidades de extensão das formas de domínio são imensas, podendo atingir intensidades sutis e, num certo sentido, até fora de controle do ponto de vista do estado de direito. 265 266 264 COPETTI, André. Direito penal e estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. 265 COPETTI, André. Direito penal e estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. 266 Dentre as diversas origens de leis na democracia, encontram-se as constituições escritas, os estatutos e regulamentos, os ensinos religiosos e etnicos, bem como as tradições e práticas culturais; contudo, independentemente da origem, a lei deve preservar certas cláusulas fundamentais para a proteção dos direitos e liberdades dos cidadãos, quais sejam: a) No âmbito do requisito de proteção igualitária perante a lei, esta não pode ser aplicável unicamente a um indivíduo ou grupo; b) Os cidadãos devem ser protegidos da prisão arbitrária, da busca sem razão em seus lares ou da apreensão de seus bens pessoais; c) Os cidadãos acusados de crime têm direito a um julgamento rápido e público, bem como à oportunidade de confrontar e questionar seus acusadores. Se forem condenados, não podem ser sujeitos à castigo cruel ou excepcional; d) Os cidadãos não podem ser forçados a testemunhar contra si mesmos. Este princípio 191 O “Direito penal do inimigo” tem, portanto, duas questões básicas que responder, se é que quer ultrapassar a soleira de uma expressão brilhante e mais ou menos provocadora, mas tautológica ou vazia de conteúdo. Uma é de tipo conceitual e afeta a seu próprio conteúdo: Quem define ao inimigo e como lhe define? Que tipo de sujeitos autores de delitos se inclui no grupo dos cidadãos ou no dos inimigos? A outra está relacionada com o marco de referência: é compatível com o Estado de Direito e com o reconhecimento, sem exceções, a todos dos direitos humanos fundamentais? É compatível com o princípio de que todos somos iguais diante da lei? Jakobs não responde, então, satisfatoriamente a nenhuma das duas questões suscitadas. Limita-se a constatar uma realidade e alude à necessidade de uma “segurança cognitiva” como fundamento de sua existência. Esta “segurança cognitiva” que Jakobs descreve como aspiração fundamental do Direito penal do inimigo é, obvio, também uma aspiração de qualquer sistema jurídico; “por conseguinte, diz Jakobs, não pode tratar-se de contrapor duas esferas isoladas do Direito penal, mas sim de descrever dois pólos de um só mundo ou de mostrar duas tendências opostas em um só contexto jurídico-penitenciário” (itálicos no original). Mas uma segurança cognitiva total nunca pode ser garantida por nenhum sistema seja do tipo que seja. Poderá haver níveis maiores ou menores de segurança, e do que se trata é de determinar quando esses níveis são compatíveis com o exercício dos direitos fundamentais. O equilíbrio entre os dois pólos é difícil e, como já dissemos anteriormente, sempre se encontram em tensão. Mas se, como acontece em momentos de crise, a balança se inclina descaradamente e sem nenhum tipo de limites a favor da segurança cognitiva, a conseqüência imediata será a paz, mas a paz dos cemitérios. Uma sociedade em que a segurança se converte no valor fundamental, é uma sociedade paralisada, incapaz de assumir a menor possibilidade de mudança e de progresso, o menor risco. Finalmente, fica a questão: embora os discursos jurídicos penais varieem suas posturas ideológicas e jurídicas, sempre paira sobre eles, velada ou expressamente a pergunta: se a pena não cumpre suas funções e se o estado não tem vontade política para realiza um investimento a longo prazo para estruturar o sistema carcerário, como conter protege os cidadãos da coerção, do abuso ou da tortura e reduz significantemente a tentação da polícia em 192 a eclosão de todos esses apenados que vivem à berlinda de qualquer direito fundamental e tem a dignidade da pessoa humana violentada a todo momento? Se o cárcere, ao invés de ressocializar, torna o apenado mais perigoso, o que fazer com esse excedente humano que está sempre na iminência de insurreição e que aumenta em progressão geométrica? Qual é a parcela de responsabilidade de cada um nesta explosão que está prestes a acontecer? Qual é o papel do estado, da magistratura, dos operadores do direito na mudança do discurso jurídico penal e na responsabilidade de encontrar respostas para este dilema do capitalismo contemporâneo dos países de terceiro mundo? Para essas perguntas e tantas outras que podem ser feitas, o discurso jurídico penal não tem respostas suficientemente convincentes, pois, o enfretamento desse dilema não se detém a aspectos estritamente jurídicos, trata-se de uma questão multidisciplinar que deve ser enfrentada como tal. Resta então ao estado constitucional democrático enfrentar seu maior desafio: efetivar a justiça, não comprometendo os direitos fundamentais dos seres humanos e conciliando-os com sociedades de classes heterogêneas e conflitivas. A gravidade da questão e do momento histórico em que vive a sociedade contemporânea em nível planetário reforça o questionamento sobre as desigualdades sociais, principalmente econômicas: há muito por que lutar na direção de um mundo possível, fraterno, democrático, solidário. Destruir as causas da violência é trabalho interminável, enquanto os pontos nodais dos conflitos submersos travados no mundo contemporâneo não forem revelados, minimizados com educação e instrumentalização da sociedade para enxergar perspectivas, para poder sonhar, para poder projetar o futuro. empregar tais medidas. 193 3.4 Estado de exceção Os estados democráticos são estados de direito, assim, o estado de exceção, por sua origem de medida sui generis pressupõe uma violência para “fora” e para “além” do direito, quebrando com a dialética entre a violência que funda o direito e a violência que o conserva. O estado de exceção trata-se de um território difuso em que o ordenamento tem sua força mitigada ou suspensa. Acontece nessa zona de anomia uma espécie de gestão totalitária que se estatui pela instauração, por meio do estado de exceção, de uma entropia civil (instaurada na maioria dos casos pelo medo), responsável pela eliminação física de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema. O estado de exceção apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo. O estado de exceção instaura-se, no mais das vezes, sob o argumento de que a ordem constitucional de um país está ameaçada. Trata-se de uma proposta de governo transitório onde a legalidade formal de um país sob a égide de um estado direito é substituída por uma legalidade extraordinária que irá definir e reger esse estado de exceção. Diz-se, então, estado de exceção quando um estado democrático de direito é tomado por disputas de poder que num determinado momento assumem uma situação de crise que comprometem a soberania e a observância dos preceitos constitucionais. No estado de exceção é ilimitada a vigência da legalidade extraordinária. O estado de exceção sem a observância do critério da temporariedade e extraordinariedade é qualquer regime que não o democrático de direito. A definição do termo estado de exceção está no liame entre duas ciências encontrando seus limites entre a política e o direito. Em realidade, se as medidas excepcionais que denunciam o estado de exceção são frutos de períodos de crise política, e por essa razão, é preciso compreendê-las também no terreno da política, encontram-se elas na situação paradoxal de serem medidas jurídicas pouco questionadas dentro de uma perspectiva crítica. O estado de exceção apresenta-se então como forma instituída daquilo que tem uma aparência de legalidade, mas que na verdade afronta o estado de legalidade exigível a um estado de direito. Quando da instauração do estado de exceção em um território, verifica-se a suspensão da ordem jurídica vigente, afrontando-se, para tanto, os direitos fundamentais 194 pátrios que, se violados, subtraem do ordenamento toda a histórica construção jurídica a respeito dos direitos humanos. Instaura-se, então, um espaço vazio de direito, que decorrente da substituição da legalidade formal por uma outra ordem, assumindo o detentor do poder de exceção competência para impor e determinar de certas regras, dotadas de aparência de valor supremo, tal como as expressas pela assembléia representativa do povo. 267 O estado de exceção vale-se então do poder simbólico para exercer seus fins e legitimar-se como poder; trata-se de um poder invisível, que só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber se lhe estão sujeitos ou mesmo se o exercem: é um poder revestido de um discurso que o maquia de forma tão eficaz, que permite obter resultado equivalente àquilo que é obtido pela força (física ou econômica); sujeita sem aparentemente subjugar quem é sujeitado, só exercendo sua força quando ignorado como arbitrário. É um discurso de aplainamento social, eufêmico por natureza. 268 O conceito de estado de exceção, embora continue difuso entre os doutrinadores, interessa a essa pesquisa na sua relação com a expansão do direito penal. Para Agamben o totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos estados contemporâneos, inclusive daqueles ditos democráticos. Diante do incessante avanço do que foi definido como uma guerra civil mundial, o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como paradigma de governo dominante na política contemporânea. Esse 268 PASTANA, Débora Regina. Cultura do medo: reflexões sobre violência criminal, controle social e cidadania no Brasil. São Paulo: Método, 2003. p. 100 “os regimes autoritários procuram evitar o exercício da cidadania no âmbito social, e uma das formas de viabilizar isso é desviar a atenção do cidadão de seus reais problemas, disseminando a insegurança (...) Para o autoritarismo, deve-se eliminar as formas de organização da sociedade que possam atuar como grupos intermediários entre o indivíduo e o Estado. Uma das maneiras é justamente exacerbar alguns problemas sociais e, o mais importante, atribuir a determinados grupos a responsabilidade por eles. Isso fica claro no que se refere ao problema da violência criminal urbana, em que a insegurança pública é mostrada como um problema 195 deslocamento de medida provisória e excepcional, para técnica de governo ameaça transformar radicalmente – e, de fato, já transformou de modo muito perceptível – a estrutura e o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição. O estado de exceção apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo. 269 270 Historicamente, no que concerne ao estado de exceção, a doutrina tem demonstrando a dificuldade de encontrar um conceito para essa medida excepcional. Verifica-se que uma conceituação precisa a respeito do estado de exceção continua faltando no direito público, tanto para os juristas quanto para os historiadores do direito: o problema parece ser mais uma questão de fato (quæstio facti) do que um autêntico problema jurídico, o que também é271 272. A afronta à legalidade demonstra-se patente, quando por conseqüência da implementação de um estado de exceção, não se respeita o limite da temporariedade, crônico (daí o surgimento de uma cultura do medo), e o responsável direto, reconhecido pela imprensa e pelo discurso político, é o delinqüente”. 269 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 12-13. 270 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La legitimación del control penal de los extraños. Los crímenes de destrucción masiva e indiscriminada. Del 11-S, del 11-M y del 7-J.” Son expresiones de brutal violencia que configuran crímenes de lesa humanidad, pero que responde a otra violencia y así podríamos seguir regresando. No es necesario caer en el extremo de sostener dogmáticamente que a toda violencia debe responderse con la no violencia, para verificar que nunca un conflicto fue solucionado definitivamente por la violencia, salvo que se confunda solución definitiva con solución final (genocidio). Los que no terminaron en genocidio, se solucionaron por la negociación, que pertenece al campo de la política. Pero la globalización, empobreció la política hasta reducirla a su mínima expresión. Las decisiones estructurales actuales asumen en la práctica la forma premoderna definida por Carl Schmitt, o sea, del mero poder de señalar al enemigo. Esto va delineando dos frentes: el de los Derechos Humanos y la negociación por un lado, cuyo bastión más importante se halla en Europa y en el campo académico de casi todo el mundo (incluyendo el de los Estados Unidos) y, por otro, el de la solución violenta que arrasa con los Derechos Humanos y acaba en el genocidio. La conciencia de la disyuntiva es mayor donde las experiencias de terrorismo de estado permanecen en la memoria colectiva (Europa y América Latina), no así en los Estados Unidos, donde existieron otros abusos represivos, pero nunca su población padeció el terrorismo de estado. 271 WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. 2a versão. Porto Alegre: SAFE, 1995, p. 71-73. “ Para Warat, há a indicação de algumas opiniões jurídicas generalizadas provocadas pelos estereótipos jurídicos, quais sejam: “a idéia de que a ordem jurídica nos fornece segurança; a noção de que o sistema do direito positivo é a garantia da paz social; a necessidade de adaptação ao modelo de ordem que os discursos jurídicos insinuam; a idéia de que o direito circunscreve as tensões sociais dentro de um marco de pequenos conflitos; a superação dos problemas sociais através de mecanismos equilibrados do sistema social; o direito é o árbitro neutro das disputas entre os homens (neutralidade do direito e do Estado); a transformação da força em legalidade e a dominação em dever; a identificação do poder à lei; identificação da obrigação de obedecer a certos valores aceitos como “essencialmente justos”; a idéia da finalidade ética da sanção”. 272 Acredita-se que um dos elementos que tornam difícil a referida definição é a estreita relação existente entre guerra civil, a insurreição e a resistência que encontram em suas matizes conceituais, um ponto em comum: a instauração de um estado de exceção. 196 instaurando-se, com o passar do tempo, um também “legalizado/legitimado” (em sua excepcionalidade) tribunal de exceção. Esse tribunal de exceção, por situações contingentes, conta com a conivência da grande maioria dos operadores do direito para se otimizar, tendo em vista que quem detém o poder de se insurgir contra essa afronta mantém-se omisso na situação implementada. Dito de outro modo, verifica-se que, quando da instauração de um estado de exceção em um território, há a suspensão da ordem jurídica vigente, afrontando-se, para tanto, direitos fundamentais pátrios que, se violados, subtraem do ordenamento toda a construção jurídica a respeito da reserva legal. Acontece, pois, o estado de exceção quando a legalidade formal de um estado é substituída, por exemplo, por decretos do poder executivo que desrespeitam o dogma da temporalidade, assumindo a aparência de valor supremo dos atos expressos pela assembléia representativa do povo. A incerteza da definição do fenômeno corresponde exatamente a uma incerteza terminológica. A denominação estado de exceção implica em uma tomada de posição quanto à sua natureza e quanto à lógica mais adequada à sua compreensão, tendo em vista que, semanticamente, está-se a representar o caráter de excepcionalidade e temporalidade que deve assumir qualquer estado, quando da adoção de medidas de emergência. As relações com o estado de guerra, no qual está presente na noção de estado de sítio e de lei marcial são inadequadas para definir a estrutura própria do estado de exceção, necessitando essa definição de qualificativos como político ou fictício, também são um tanto equivocados. O estado de exceção encontra seu conceito limite no estado de guerra enquanto suspensão temporária da própria ordem jurídica, e nada mais que isso. 273 274 273 ALCORTA, Amancio. Las garantías constitucionales. Buenos Aires: Félix Lajouane, 1897. p. 145. “o governo pela lei marcial não é normal: é um extremo que surge quando o exercício da lei comum não se mostra suficiente para conjurar a tormenta, e o estado vê-se num imenso perigo de se ver envolvido pela anarquia. Não se trata de desgoverno nem arbitrariedade, mas de aplicação de normas severas, é a submissão sem contestações, é o procedimento breve e sumário, que retira da justiça ordinária seu império e assimila os tribunais ordinários”. 274 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 15-17. “a história do termo ‘estado de sítio fictício ou político’ é, nesse sentido, instrutiva. Remonta à doutrina francesa, em referência ao decreta napoleônico de 24 de dezembro de 1811, que previa a possibilidade de um estado de sítio que podia ser declarado pelo imperador, independentemente da situação efetiva de uma cidade sitiada ou diretamente ameaçada pelas forças inimigas. Prossegue o filósofo italiano argumentando que a origem do instituto do estado de sítio encontra-se no decreto de 8 de julho de 1791 da Assembléia Constituinte francesa, que distinguia entre état de paix, em que a autoridade militar e a autoridade civil agem cada uma em sua própria esfera. A história posterior do estado de sítio é a história de sua 197 O estado de exceção introduz no direito uma zona de anomia onde são confundidos os atos do poder executivo e do poder legislativo, definindo-se como um regime no qual atos que não possuem valor de lei, adquirem força coercitiva de uma legislação legítima. Existe no ordenamento jurídico brasileiro a previsão legal da decretação do estado de defesa e do estado de sítio que são instrumentos extraordinários de defesa do estado, colocados à disposição do presidente da república para manejar as situações de crises institucionais. É necessário lembrar, entretanto, que tanto o estado de defesa quanto o estado de sítio regem-se pelo princípio da provisioriedade e da necessidade, tendo um tempo pré-determinado para vigir, além de somente serem admitidos em seu caráter de indispensabilidade para se constituir. Quando quem rompe a legalidade de um estado democrático é o próprio executivo, que se propõe a governar sem os limites previamente estabelecidos na ordem constitucional, tem-se o dito estado de exceção na sua mais requintada acepção negativa. Esses estados de exceção visam especialmente a criar condições para a implantação de ditaduras, funcionando, no mais das vezes, como instrumento de preservação de poder de uma classe dominante.275 A partir do momento que o estado de exceção torna-se a regra, ele não só se apresenta muito mais como uma técnica de governo do que como uma medida progressiva emancipação em relação à situação de guerra à qual estava ligado na origem, para ser usado, em seguida, como medida extraordinária de polícia em caso de desordens e sedições internas, passando, assim, de efetivo militar a fictício ou político. Em todo caso é importante não esquecer que o estado de exceção moderno é uma criação da tradição democrático-revolucionária e não da tradição absolutista. Embora, de um lado (no estado de sítio) , o paradigma seja a extensão em âmbito civil dos poderes que são da esfera da autoridade militar em tempo de guerra, e, de outro, uma suspensão da constituição (ou das normas constitucionais que protegem as liberdades individuais), os dois modelos acabam, com o tempo, convergindo para um único fenômeno jurídico que chamamos de estado de exceção”. 275 Várias vezes no passado presenciamos a decretação de um estado de sítio, mas que no fundo objetivavam reprimir divergências político partidárias. A implementação do regime ditatorial de Vargas foi erguida sob a vigência de um estado de emergência em todo país. Não foi diferente o panorama histórico desenhado no Brasil de 1964/1978, onde se viveu num permanente estado de exceção, sob a normatividade excepcional instrumentadas por atos institucionais. 198 excepcional, mas também deixa clarificar sua natureza de paradigma constitutivo da ordem jurídica.276 Como explanado o estado de exceção na sociedade moderna tornou-se um paradigma normal, então a legislação, que deveria ser realizada pelo parlamento, é efetuada pelo poder executivo sob a forma de decretos-lei; isso significa que o parlamento tem somente poder de controle sobre a faculdade legislativa que foi apropriada pelo governo, ou seja, o poder executivo não executa, mas faz as leis. Essa parece ser uma prática de camuflagem legal em todos os estados democráticos modernos. A progressiva erosão dos poderes legislativos do parlamento, que hoje se limita, com freqüência, a ratificar disposições promulgadas pelo executivo sob a forma de decretos com força de lei, tornou-se durante as guerras mundiais uma prática comum. A primeira guerra mundial – e os anos seguintes – aparece, nessa perspectiva, como o laboratório em que foram experimentados e aperfeiçoados os mecanismos e dispositivos funcionais do estado de exceção como paradigma de governo. Uma das características essenciais do estado de exceção – a abolição provisória da distinção entre poder legislativo, executivo e judiciário – mostrou naquele contexto, sua tendência a transformar-se em prática duradoura de governo. Na doutrina, há uma divisão entre os que procuram inserir o estado de exceção no âmbito do ordenamento jurídico e aqueles que o consideram exterior a esse ordenamento, isto é, como um fenômeno essencialmente político ou, em todo caso, extra-jurídico. Os primeiros concebem o estado de exceção parte integrante do direito positivo, pois a necessidade que o funda age autônoma do direito. Divergem os segundos pensadores sobre esse tema considerando o estado de exceção e a necessidade que o funda como elementos de fato substancialmente extra-jurídicos, ainda que possam, eventualmente, ter conseqüências no âmbito do direito. 277 276 Nesse sentido AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 18. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 39. “Segundo a teoria objetiva do estado de necessidade todo ato realizado em estado de necessidade e fora ou em oposição à lei é contrário ao direito e, enquanto tal, juridicamente passível de acusação. A teoria subjetiva do estado de necessidade, por sua vez, considera que o poder excepcional se baseia num direito constitucional ou pré-constitucional (natural) do Estado, em relação ao qual a boa fé é suficiente para garantir a imunidade jurídica”. 277 199 A simples oposição topográfica (dentro/fora) implícita nessas teorias sobre o estado de exceção não são suficientes para dar conta de seu fenômeno como instituto jurídico e político – afere-se desse ponto uma questão mais complexa que é as conseqüências jurídicas advindas da suspensão temporária (que muitas vezes adota contornos definitivos) da ordem jurídica, um limbo normativo de faz uso o poder executivo para torna-se único e totalitário na gestão do estado. No dizer de Agamben278, o estado de exceção não é nem exterior nem interior ao ordenamento jurídico; o problema de sua definição diz respeito a um patamar, ou uma zona de indifereniação, em que dentro e fora não se excluem, mas se determinam. A suspensão da norma não significa sua abolição e a zona de anomia por ela instaurada não é (ou, pelo menos, não pretende ser) destituída de relação com a ordem jurídica. Daí o interesse por teorias como a de Schmitt que transformam a oposição topográfica em uma relação topológica mais complexa, no qual o que está em questão é o próprio limite do ordenamento jurídico. Em todo caso, a compreensão do problema do estado de exceção pressupõe uma correta determinação de sua localização (ou de sua deslocalização). Por outro lado, há posições que colocam como fundamento do estado de exceção o conceito de necessidade; assim, para que haja um estudo da estrutura e do significado do estado de exceção, pressupõe-se uma análise do conceito jurídico de necessidade. A teoria da necessidade não é outra coisa senão uma construção jurídica, uma arresta legal na qual existe a permissão de escusar-se à obrigação da observância da lei. A necessidade não é fonte de lei e tampouco suspende, em sentido próprio, a lei; ela se limita a subtrair, em casos particulares, a aplicação literal da norma: aquele que, em caso de necessidade, age além do texto da lei, não julga a lei, mas o caso particular em que vê a letra da lei não deve ser observada.279 Dessa forma o fundamento último da exceção não é a necessidade, mas o princípio segundo o qual toda lei é ordenada à salvação comum dos homens, e só por 278 279 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 41. 200 isso tem força e razão de lei; à medida que, ao contrário, sua faltar implica a perda de sua força de obrigação. No estado contemporâneo, o estado de necessidade tende a ser incluído na ordem jurídica e apresentar-se como verdadeiro estado da lei. A necessidade nesse caso constitui, por assim dizer, o fundamento último e a própria fonte da lei. 280 As conseqüências desse sentido emergencial conferido à lei sob o argumento do estado de necessidade são as justificativas de necessidade, não só para os interesses de um estado contra o outro, mas também para fundamentar a validade dos decretos com força de lei emanados do executivo no estado de exceção. Diante disso, Agamben analisa a posição do jurista Santi Romano, que exerceu extraordinária influência sobre o pensamento jurídico europeu entre as duas guerras. Romano concebia a necessidade não só como não estranha ao ordenamento jurídico, mas também como fonte primária e originária da lei. O autor opera a distinção entre os que vêem na necessidade um fato jurídico ou mesmo um direito subjetivo do estado que, enquanto tal, se funda, em última análise, na legislação vigente e nos princípios gerais do direito; e aqueles entendem a necessidade como mero fato, portanto, baseando-se os poderes excepcionais nessa realidade factual que não têm nenhum fundamento nos sistema legislativo. A necessidade é o esteio da lei; se se pode perceber a existência da lei é porque a necessidade dela se fez presente na sociedade, o que significa dizer que a necessidade é a fonte primária e originária do direito, sendo que as outras fontes de direito são dela derivadas, ademais existe de uma verdadeira fonte de direito além da legislação. Assim, o estado de exceção, enquanto figura da necessidade, apresenta-se por si só como medida ilegal, mas perfeitamente jurídica e constitucional, que se concretiza na criação de novas normas (ou de uma nova ordem jurídica). Desse ponto de vista, parece que a necessidade seria uma forma de suspensão da lei e dos direitos, estando à disposição sempre que necessário, como, por exemplo, nos casos de terrorismo, violência, segurança, etc. Verifica-se então que foi construído um 280 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 43. 201 aparato para intervir sempre que alguma desordem se produz, esquecendo que seria mais conveniente para os cidadãos que o estado efetivamente prevenisse as desordens. Assim, o conceito de necessidade que embasa e justifica o estado de exceção é um conceito volátil e vago, possibilitando sempre uma interpretação extensiva e assegurando assim, uma ampliação de caráter subjetivo nos seus limites conceituais e fáticos – o que não é nada prudente para um estado democrático de direito. O conceito/situação referente a um estado de necessidade é totalmente subjetivo; trata-se de algo sempre relativizado dentro do contexto do objetivo que se quer atingir ou promover. A necessidade para operar seus efeitos dentro de um contexto de estado de direito, para servir como causa justificante de determinadas ações ou restrições impõe a promulgação de uma dada norma que lhe dê guarida, recepcionando-a, porque, de outro modo, a ordem jurídica corre o risco desmoronamento. Afirma Agamben que a tentativa de tentar resolver o estado de exceção justificando-o pelo estado de necessidade choca-se, assim, com tantas e mais graves aporias, quanto com o fenômeno que deveria explicar. Não só a necessidade se reduz, em última instância, a uma decisão, como também aquilo sobre o que ela decide é, na verdade, algo indecidível de fato e de direito. 281 282 O estado de exceção apresenta-se, assim, como a abertura de uma lacuna fictícia no ordenamento jurídico, com o objetivo de salvaguardar a existência da norma e sua aplicabilidade à situação normal; tem como finalidade dissuadir seu caráter de excepcionalidade a fim de conferir uma aparência legitimadora à ordem legal e estatal. A representação elucidativa de Agamben leciona que é como se o direito contivesse uma fratura essencial entre o estabelecimento da norma e sua aplicação, que, em caso 281 Conforme ministra Warat no que se refere ao critério de decidibilidade: “... quando se estuda uma linguagem-objeto qualquer, a primeira preocupação metalingüística é a de contar com um critério de decidibilidade qualquer, isto é, com critério que nos permita decidir se qualquer enunciado ou proposição forma ou não parte da referida linguagem-objeto. Como esse critério de decidibilidade baseia-se em certas propriedades significativas, pode, por outro lado, ser também analisado como uma tentativa de definição da região temática que pretende descrever ou ordenar a linguagem-objeto (nesse caso a validez). Ela operaria como critério de decidibilidade das normas que podem ou não integrar um direito positivo, distinguindo-se de outros tipos de normas”. 282 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 47. 202 extremo, só pudesse ser preenchida pelo estado de exceção, ou seja, criando-se uma área onde essa aplicação é suspensa, mas onde a lei, enquanto tal, permanece em vigor. 283 No livro Teologia Política, de Carl Schimitt, propõe-se que os termos ditadura e estado de sítio desapareçam, sendo substituídos por estado de exceção. A razão da teoria do estado de exceção nas duas obras de Carl Schmitt é a inscrição do estado de exceção num contexto jurídico. Mesmo sabendo que o estado de exceção é a suspensão de direitos, o autor entende que o mesmo não pode ser comparado com a anarquia e o caos, pois, na medida excepcional, ainda existe uma ordem, mesmo que seja a inversão de uma ordem jurídica. O aporte específico da teoria schimittiana é exatamente o de tornar possível tal articulação entre o estado de exceção e a ordem jurídica. Trata-se de uma articulação paradoxal, pois o que deve ser inscrito no direito é algo essencialmente exterior a ele, isto é, nada menos que a suspensão da própria ordem jurídica. 284 285 286 Por outro lado, na Teologia política, o operador da inscrição do estado de exceção na ordem jurídica é a distinção entre dois elementos fundamentais do direito: norma e decisão. Suspendendo a norma, o estado de exceção revela, em absoluta pureza, um elemento formal especificamente jurídico: a decisão. Os dois elementos, norma e decisão, mostram aqui sua autonomia factual. Diante disso, a teoria do estado de exceção fica conhecida, na Teologia política, como doutrina da soberania. O estado de exceção pode até ser normatizado por legislação emergencial, e alicerçado e anuído pelo discurso do risco e do medo, optando o executivo por operar uma montagem legal que dê ancoragem a esse estado de exceção. Isso, porém, não legitima os atos totalitários empreendidos em nome da necessidade e do medo. É notório que a falta temperança se impõe sempre que o manus do estado está concentrado nas mãos de determinados interesses setorizados. 287 288 283 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 48-49. Carl Schimitt, por duas vezes, tentou de maneira mais rigorosa construir uma teoria sobre o estado de exceção, uma delas ocorreu no livro sobre a ditadura e posteriormente em uma obra sobre a teologia política. No primeiro deles, o estado de exceção é apresentado através da figura da ditadura, onde o contexto que se inscreve a medida excepcional distinguem-se a “ditadura comissária”, que visa defender ou a restaurar a constituição vigente, e a “ditadura soberana” na qual como figura da exceção, ela alcança sua massa crítica ou se ponto de fusão. 285 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 53. 286 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 54. 287 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 56-57 “O soberano, que pode decidir sobre o estado de exceção, garante sua ancoragem na ordem jurídica. Mas, enquanto a 284 203 Observe-se que a desesperança e pânico coletivo, frente à ineficácia da justiça em promover a efetivação de um estado democrático de direito e de seu princípio basilar de justiça, ameaçam o projeto democrático: as reações irracionais e reacionárias em face da questão da violência preconizam desde a adoção da pena de morte, passando por operações militares violentas e indiscriminadas em favelas e núcleos de pobreza da população civil, até a utilização banal de providências extraordinárias de estabilização da ordem pública, como o estado de sítio e o estado de defesa, previstos nos artigos 136 e 137 da Constituição Federal, sabidamente acompanhadas da conseqüente supressão de direitos e garantias fundamentais.289 A impossibilidade de efetivação de um estado de direito abre espaço para a implementação de estados de exceção. As brechas deixadas pela omissão do estado em prover a segurança jurídica a que se propõe o tornam vulnerável, pois a tentativa de dar real legitimidade ao discurso que decorre de estados de exceção e do discursos jurídico decisão diz respeito aqui à própria anulação da norma, enquanto, pois, o estado de exceção representa a inclusão e a captura de um espaço que não está fora nem dentro, “o soberano está fora da ordem jurídica normalmente válida e, entretanto, pertence a ela, porque é responsável pela decisão quanto à possibilidade da suspensão da constituição”. 288 Impulsionaram o regime militar de exceção de 1964 crises políticas fomentadas pelas articulação coordenada por três forças políticas que já haviam marcado sua posição no processo político na década de 50: o capital multinacional associado ao nacional, o capital de Estado e os militares . A ruptura de sua primeira experiência democrática brasileira iniciada com o fim do Estado Novo, em 1945, possibilitou que, em 1965 o Ato Institucional Nº 2, extinguir todos os partidos que haviam florescido durante o período de 1945. Encerrava-se assim o primeiro ciclo de uma experiência multipartidária efetiva onde a marca principal foi o surgimento de partidos com abrangência nacional e perfis ideológicos distintos, acompanhando o desenvolvimento urbano-industrial ocorrido na década de 50. Entretanto, as forças golpistas que haviam articulado a derrubada do governo João Goulart não eram fruto de uma ação política extemporânea, puramente movida pela emoção do momento. Pelo contrário, eram resultado de uma competente articulação político-ideológica movida pela Ideologia da Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento, cujo principal pólo irradiador era a ESG -Escola Superior de Guerra-, que, com o apoio do capital multinacional, do capital nacional, associado ao estrangeiro, e com a participação do governo norte-americano, através da CIA, conseguiram construir oportunidades sobre o aparente clima de caos político-social, favorecendo a queda do governo João Goulart. A Ideologia de Segurança Nacional foi transplantada para o Brasil após a 2ª Guerra Mundial, quando vários oficiais superiores foram treinados no National War College (centro de treinamento do alto escalão do exército norte-americano). O objetivo principal desta ideologia era garantir metas de segurança para implantar uma geo-política para todo o Cone Sul do Continente Americano, capaz de bloquear o perigo expansionista do comunismo internacional. A Ideologia da Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento representava uma completa weltanschauung que tinha como meta criar condições para, através do fortalecimento do Estado, construir um modelo de desenvolvimento econômico extremamente favorável à entrada do capital estrangeiro, pretendendo implantar uma infra-estrutura capaz de transformar o país em uma potência econômica. Para que isto pudesse ocorrer, era necessário manter sob controle o crescimento dos movimentos sociais organizados que, cada vez mais, ocupavam espaços no cenário político, criando um clima político-social de grande instabilidade, ameaçando os interesses da classe dominante nacional. 289 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira, A constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 78. 204 penal que intenciona legitimá-lo é expressão doutrinária e política ideologicamente conduzida com a finalidade de maquilar um arbítrio seletivo e um aniquilamento de todos aqueles que não respondem aos apelos de uma sociedade capitalista e estigmatizante. Assim, o discurso que propaga a efetividade do estado de exceção e sua legitimação ou é ingênuo em suas assertivas, ou desconsidera que se está frente a uma estruturação semântica racional que serve para silenciar o exclusivo pragmatismo de suas intenções. 290 291 Os argumentos empíricos que tentam dar sustentação ao estado de exceção são, na grande maioria das vezes, seletivos, tendo como ponto nodal uma discriminação e uma tentativa de extermínio de toda a fonte de ameaça ao sistema organizacional em sua dimensão gerencial, visando subornar e silenciar qualquer discurso de resistência; tratase de um apartheid social onde todos aqueles que não aderem aos interesses dos governantes são vistos como impurezas sociedade que pacificamente acolhe teses segregadoras. 290 CARVALHO, Amilton Bueno de. Magistratura e direito alternativo. 6 ed. Rio de Janeiro: Lumem júris, 2003, p. 27-28. Leciona Carvalho, que afirma: “(...) b) dirão alguns que a lei penal tipifica aqueles comportamentos que ofendem mais à moralidade média. Será verdade? Vejamos o que nos causa maior desagrado: a ofensa à honra (injúria), a ofensa ao corpo (lesão leve), ou a ofensa ao patrimônio (uma pessoa com grave ameaça que subtraia um relógio- roubo)? Evidente que a ordem de desagrado é em primeiro lugar a honra, após o corpo e depois o patrimônio. Quais as penas? Detenção de uma a seis meses ou multa (art. 140 do CP); detenção de três meses a uma ano (art. 129); reclusão de quatro a dez anos (art. 157), respectivamente. Surge uma questão básica: quem pratica o roubo, ou seja, a subtração de coisa móvel mediante grave ameaça? Evidente que é o pobre. Os outros dois delitos os não-pobres praticam, o de roubo não! Para quem foi feito o dispositivo legal com tamanha pena? c) outro exemplo é mais chocante: imaginemos o mesmo delito de roubo (mediante grave ameaça subtraiam um relógio) em confronto com o delito de esbulho possessório (mediante grave ameaça invadam um imóvel – art. 161 do CP). Os crimes são praticamente idênticos, só diferem que num o objeto é móvel, noutro é imóvel. Como valoramos mais o imóvel, este deveria ser melhor protegido. Mas não é. A pena daquele é de quatro a dez anos, e este é de uma a seus meses.” 291 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal, Rio de Janeiro: Revan, 2001. “da pluralidade semântica da expressão legalidade pode-se extrair outro sentido: a operacionalidade real do sistema penal seria ‘legal’ se os órgãos para que ele convergem exercessem seu poder de acordo com a programação legislativa tal como a expressa o discurso jurídicopenal. ‘Legalidade’ no sentido ora utilizado, é um conceito do que o discurso jurídico penal retira fundamentalmente dois princípios: o da legalidade penal e o da legalidade processual. O da legalidade penal exige que o exercício do poder punitivo do sistema penal aconteça dentro dos limites previamente estabelecidos para a punibilidade. O princípio da legalidade processual (ou da legalidade da ação processual) exige que os órgãos do sistema penal exerçam seu poder para tentar criminalizar todos os autores de ação típicas, antijurídicas e culpáveiis e que o façam de acordo com certas pautas detalhadamente explicitadas. Isto significa não apenas que o sistema penal somente exercia seu poder na medida estrita da planificação legal, como também o sistema penal sempre em todos os casos deveria exercer este poder”. 205 Os técnicos do direito, a quem caberia elucidar, denunciar essa condução ideológica que tenta dar legitimadade a legislações e estados de exceção, na grande maioria das vezes, endossam essa postura segregadora. Eximindo-se, por exemplo, da possibilidade de conferir legitimação ao direito penal, dando as costas à sua atribuição humana, coisificando a lide, o processo e, principalmente, os sujeitos processuais que a integram, os operadores do direito, assim, acabam recepcionando o reacionário discurso do estado de exceção, isto é, do totalitarismo e da imposição da supremacia do executivo sobre os demais poderes fazendo uso do discurso jurídico penal, transformando-o em algo etéreo e a-ético que renuncia a possibilidade ínsita a cada processo de reeditar/promover o direito na busca de uma sociedade mais eqüânime. O discurso do estado de exceção não pretende compor com os cidadãos uma sociedade mais justa que tenha possibilidade e espaço para recepcionar um ordenamento jurídico legítimo; almeja, isto sim, exterminar pela violência todo aquele que se opõe ao totalitarismo dessa legislação emergencial, que sempre suprime, incinera e cala pela fome, pelo gás, pela escopeta, pelos desmandos, pela corrupção, pelo abuso de poder, seus opositores. 292 293 O estado de exceção, pela exclusão que efetiva quando da sua implementação, propõe-se a executar a eliminação de categorias inteiras que pareçam não integráveis ao sistema político. Contudo, precisa-se ressaltar que o estado de exceção não se dá necessariamente em uma ditadura, mas em um espaço vazio de direito. De fato, o estado de exceção, em sua na sua forma moderna foi criado pela Revolução Francesa, pertencendo, portanto, à tradição da democracia e não àquela do absolutismo, ou, mais 292 A teoria de BARATTA procura dar sustentação à "adoção do ponto de vista das ‘classes subalternas’ como garantia de uma práxis teórica e política alternativa, afirmando que, enquanto as classes hegemônicas pretendem conter o desvio dentro de limites não muito perturbadores, as classes subalternas estão empenhadas numa luta radical contra os comportamentos socialmente negativos (por comportamentos negativos entendem-se a criminalidade econômica, a poluição, a criminalidade do poder, a máfia, etc.). Para tanto, BARATTA reclama uma ciência que não se limite à descrição da mera desigualdade jurídica no campo penal, mas que compreenda a função real do sistema penal na sociedade tardo-capitalista, como reprodutor das relações sociais de desigualdade, e que explicite que estas relações não se baseiam na distribuição desigual de bens e valores, mas nas próprias relações de produção. 293 FELDENS Luciano. A constituição penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 21. “O surgimento de uma Constituição projeta , a partir de seu nascimento e para o futuro, o novo modelo de Estado sob cujo os parâmetros deseja orientar-se a sociedade. A partir da superioridade político-normativa formata-se, em vários níveis essenciais, a legitimidade da atuação dos tradicionais Poderes de Estado, bem assim de outras instituições públicas que desfrutam de um perfil constitucional. Paralelamente, são-lhes fixados campos onde lhe será interdito adentrar, o que decorre não apenas da limitação constitucional de competências, mas do necessário respeito àquilo que se faz, com igual proeminência, matéria constitucional: os direitos fundamentais”. 206 apropriadamente, pertencendo a “um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo”. Hoje, o estado de exceção realiza-se como uma gestão de uma nova desordem mundial, modulável segundo dispositivos de vigilância. Dentre esses dispositivos, encontram-se, além dos olhares maquínicos das câmeras de monitoramento, presentes em espaços públicos e privados, fichamentos eletrônicos das impressões digitais e da retina, tatuagens subcutâneas, coleiras eletrônicas, práticas do confinamento e, até, coleira auditivas (microfones) que os participantes do reality shows são obrigados a usar, caso contrário serão punidos. O que está em jogo, assim, é o estatuto normal de cidadãos dos estados ditos democráticos, que são persuadidos a aceitar como naturais práticas de controle que sempre foram consideradas excepcionais e desumanas. Ou seja, o que está em jogo é uma nova relação biopolítica entre estado e indivíduo, o qual passa a ser considerado um corpo, assim como a idéia de povo, outrora sujeito político, torna-se sinônimo de simples população. Uma vez que a vida humana e o corpo biológico se tornam o alvo central dos difusos mecanismos de poder, todo o campo da política se transforma, e as oposições que anteriormente o definiam, tais como público-privado, esquerda-direita, democraciaabsolutismo começam a se atenuar. A princípio a oposição entre a norma e a decisão são irredutíveis, no sentido de que a decisão nunca pode ser deduzida da norma sem deixar rastro, sem ser motivada por uma decisão judicial que forneça no mínimo o enquadramento negativo que negue o dever ser de uma ação humana subsimindo-se a ela (reserva legal). Havendo do sujeito ativo de qualquer crime, um elemento acéfalo – porque qualquer pessoa que não se enquadre na expectativa do órgão gestor – e da ação humana possível de condenação, qualquer ato cotidiano, destituído do necessário comando não infringível: sem a tipificação precisa do delito, do bem jurídico tutelado, do sujeito ativo que infere a uma determinada conduta e que pode escusar-se a ela por uma excludente legal (legitima defesa, estado de necessidade). Na decisão sobre o estado de exceção, a norma é suspensa ou completamente anulada; mas o que está em questão nessa suspensão é a 207 criação de uma situação que torne possível a aplicação da norma. O estado de exceção separa a norma de sua aplicação para tornar possível a aplicação, mas cria é também um espaço anômico, onde o que está em jogo é uma força de lei sem lei. 294 Retoma-se então, Agamben que enuncia, sob a forma de tese, os resultados de uma pesquisa genealógica sobre o iustitium: (1) O estado de exceção não é uma ditadura (constitucional ou inconstitucional, comissária ou soberana), mas um espaço vazio de direito, uma zona de anomia em que todas as determinações jurídicas – e, antes de tudo, a própria distinção entre público e privado – estão desativadas. Portanto, são falsas todas aquelas doutrinas que tentam vincular diretamente o estado de exceção ao direito, o que se dá com a teoria da necessidade como fonte jurídica originária, e com a que vê no estado de exceção o exercício de um direito do estado à própria defesa ou à restauração de um originário estado pleromático do direito. Mas igualmente falaciosas são as doutrinas que, como a de Schmitt, tentam inscrever indiretamente o estado de exceção num contexto jurídico, baseando-o na divisão entre normas de direito e normas de realização do direito, entre poder constituinte e poder constituído, entre norma e decisão. O estado de necessidade não é um “estado do direito”, mas um espaço sem direito (mesmo não sendo um estado de natureza, mas se apresenta como a anomia que resulta da suspensão do direito). (2) Esse espaço vazio de direito parece ser, sob alguns aspectos, tão essencial à ordem jurídica que esta deve buscar, por todos os meios, assegurar uma relação com ele, como se, para se fundar, ela devesse manter-se necessariamente em relação com uma anomia. Por um lado, o vazio jurídico de que se trata no estado de exceção parece ser absolutamente impensável se reveste, para a ordem juríca, de uma relevância estratégica decisiva e que, de modo algum, se pode deixar escapar. (3) O problema crucial ligado à suspensão do direito é o dos atos cometidos durante o iustitium, cuja natureza parece escapar a qualquer definição jurídica. À medida que não são transgressivos, nem executivos, nem legislativos, parecem situar-se, no que se refere ao direito, em um não lugar absoluto. (4) É a essa indefinibilidade e a esse não-lugar que responde a idéia de uma força de lei sem lei. É como se a suspensão da lei liberasse uma força ou um elemento mísitico, uma espécie de mana jurídico, de que tanto o poder quanto seus adversários, tanto o poder constituído quanto o poder constituinte tentam apropriar-se. A força de lei separada da lei, a vigência sem aplicação e, de modo geral, a idéia de uma espécie de “grau zero” da lei, são algumas das tantas ficções por meio das quais o direito tenta incluir em si sua própria ausência e apropriar-se do estado de exceção ou, no mínimo, assegurar-se uma relação com ele. 295 296 294 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 58. Resumidamente, o Iustitium implica em uma suspensão não apenas da administração da justiça, mas do direito enquanto tal. É o sentido desse paradoxal instituto jurídico, que consiste unicamente na produção de um vazio jurídico. É a interrupção, a suspensão do direito. 296 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 78-80. 295 208 Em análise realizada sobre um debate entre Walter Benjamim e Carl Schmitt sobre o estado de exceção, Agamben tenta ler a teoria schmittiana da soberania como uma resposta à crítica benjaminiana da violência. Já de início afirma: 297 O objetivo do ensaio é garantir a possibilidade de uma violência absolutamente “fora” e “além” do direito e que, como tal, poderia quebrar a dialética entre violência que funda o direito e violência que o conserva. Benjamin chama essa outra violência de “pura” ou de “divina” e, na esfera humana, de revolucionária. O que o direito não pode tolerar de modo algum, o que sente como uma ameaça contra a qual é impossível transigir, é a existência de uma violência fora do direito; não porque os fins de tal violência sejam incompatíveis com o direito, mas pelo simples fato de sua existência fora do direito.298 Importante ressaltar que enquanto a estratégia benajamimana visava à existência de uma violência pura e anômica, em Schmitt, ao contrário, trata-se de trazer tal violência para um contexto jurídico. O estado de exceção é o espaço em que ele procura capturar a idéia benjaminiana de uma violência pura e inscrever a anomia no corpo mesmo do nomos. Segundo Schmitt, não seria possível existir uma violência pura, isto é, absolutamente fora do direito, porque, no estado de exceção, ela está incluída no direito por sua própria exclusão. O estado de exceção é, pois, o dispositivo por meio do qual Schmitt responde à afirmação benjaminiana de uma ação humana inteiramente anômica.299 Assim, Carl Schmitt elabora sua teoria da soberania, mais precisamente a violência soberana a qual responde à violência pura do ensaio benjaminiano por meio de uma figura que não funda nem conserva o direito, mas o suspende. No mesmo sentido, é em resposta à idéia benjaminiana de uma indecidibilidade última de todos os problemas jurídicos que Schmitt afirma a soberania como lugar da decisão extrema.300 Do ponto de vista schimittiano, o funcionamento da ordem jurídica baseia-se, em última instância, em um dispositivo – o estado de exceção – que visa a tornar a norma aplicável suspendendo, provisoriamente, sua eficácia. Quando a exceção se torna a regra, a máquina não pode mais funcionar. Nesse sentido, a indiscernibilidade entre norma e exceção deixa a teoria schmittiana em situação difícil. A decisão soberana não 297 Aqui o autor se refere ao ensaio benjaminiano “Crítica da violência: Crítica do poder” de 1921. BENJAMIN Apud AGAMBEN, Giorgio. op. cit. p. 85. 299 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 85-86. 298 209 está mais em condições de realizar a tarefa que a Teologia Política lhe confiava: a regra, que coincide agora com aquilo de que vive, se devora a si mesmo.301 O que está em jogo no debate entre Benjamin e Schmitt sobre o estado de exceção, é que a discussão se dá numa mesma zona de anomia que, de um lado, deve ser mantida a todo custo em relação com o direito e, de outro, deve ser também implacavelmente libertada dessa relação. O que está em questão na zona de anomia é, pois, a relação entre violência e direito – em última análise, o estatuto da violência como código da ação humana. Ao gesto de Schmitt que, a cada vez, tenta reinscrever a violência no contexto jurídico, Benjamin responde procurando, a cada vez, assegurar a ela – como violência pura – uma existência fora do direito.302 Cumpre salientar que violência pura é ilegítima sem um respaldo legal que autoriza a exercício do jus puniendi e sem o devido processo legal a dar sustentação a apuração da responsabilidade penal. A ação humana, por si só, não funda nem conserva o direito, só sendo relevante para o direito no momento em que momento em que é capturada e inscrita na ordem jurídica. Ela é apenas o que está em jogo no conflito sobre o estado de exceção, o que resulta dele e, que somente desse modo, é pressuposto ao direito.303 Nesse contexto, é importante observar que a relação entre violência pura e violência jurídica, entre estado de exceção e violência revolucionária, se faz tão estreita que os dois jogadores que se defrontam no tabuleiro de xadrez da história parecem mexer o mesmo pião. É decisivo, entretanto, que o critério para sua distinção se baseie, em todos os casos, na solução da relação entre violência e direito.304 O que parece é que o estado de exceção no universo do direito se apresenta como um campo de forças percorrido por duas tensões conjugadas e opostas: uma que vai da norma à anomia e a outra que, da anomia, leva à lei e à regra.305 300 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 86. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 90-91. 302 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 92. 303 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 93-94. 304 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 96. 305 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 110-111. 301 210 Daqui resulta um duplo paradigma que marca o campo do direito com uma ambigüidade essencial: de um lado, uma tendência normativa em sentido estrito, que visa a cristalizar-se num sistema rígido de normas cuja conexão com a vida é, porém, problemática, senão impossível (o estado perfeito de direito, em que tudo é regulado por normas); de outro lado, uma tendência anômica que desemboca no estado de exceção ou na idéia do soberano como lei viva, em que uma força de lei sem lei privada na norma age como pura inclusão da vida.306 Por fim, Giorgio Agamben faz uma análise do estado de exceção em Roma, e trabalha o conceito de auctoritas a qual se refere a uma fenomenologia jurídica relativamente ampla, que diz respeito tanto ao direito privado quanto ao público. No âmbito privado, a auctoritas é a propriedade do auctor, isto é, da pesso sui iuris que intervém para conferir validade jurídica ao ato de um sujeito que, sozinho, não pode realizar um ato jurídico válido. Assim, a auctoritas do pai “autoriza” isto é, torna válido o matrimônio do filho in potestate. De modo análogo, o vendedor é obrigado a assistir o comprador para validar seu título de propriedade durante um processo de reivindicação que o oponha a um terceiro. (...) Tudo se passa, então, como se, para uma coisa poder existir no direito, fosse necessária uma relação entre dois elementos (ou dois sujeitos): aquele que é munido de autoctoritas e aquele que toma a iniciativa do ato em sentido estrito. Se os dois elementos ou os dois sujeitos coincidirem, então o ato está perfeito. Se, ao contrário, houver entre eles uma distância ou uma ruptura, será necessário introduzir a auctoritas para que o ato seja válido. (...) No direito público, a auctoritas designa a prerrogativa por excelência do Senado. Sujeitos ativos dessa prerrogativa são, portanto, os patres: auctoritas patrum e patres auctores fiunt são fórmulas comuns para se expressar a função constitucional do Senado.307 A analogia realizada acima, não significa necessariamente que o povo deva ser considerado como um menor em relação ao qual os patres agem como tutores: o essencial é, sobretudo, que haja a dualidade de elementos que na esfera do direito privado, define a ação jurídica perfeita.308 O outro instituto em que a auctoritas mostra sua função específica de suspensão do direito é a hostis iudicatio. Em situações excepcionais, em que um cidadão romano ameaçasse, através de conspiração ou de traição, a segurança da república, ele podia ser declarado pelo Senado hosits, inimigo público. O hostis iudicatus não era simplesmente assimilado a um inimigo estrangeiro, o hostis alienígena, 306 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 111. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 117/119. 308 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 120. 307 211 porque este, entretanto, era sempre protegido pelo ius gentium; o hostis iudicatus era, antes, radicalmente privado de todo estatuto jurídico e podia, portanto, em qualquer momento, ser destituído da posse de seus bens e condenado à morte. O que é suspenso pela auctoritas não é, aqui, simplesmente a ordem jurídica, mas o ius civis, o próprio estatuto do cidadão romano. (...) A auctoritas do Senado aparece, pois, em sua forma mais pura e mais evidente quando é invalidada pela potestas de um magistrado, quando vive como mera escrita em absoluta oposição à vigência do direito. Por um instante, a auctoritas revela aqui sua essência: o poder, que pode “conferir a legitimidade” e, ao mesmo tempo, suspender o direito, mostra seu caráter mais específico no momento de sua ineficácia jurídica máxima. Ela é o que resta do direito se ele for inteiramente suspenso.309 O sistema jurídico do ocidente apresenta-se como uma estrutura dupla, formada por dois elementos normativo e jurídico em sentido estrito – que se pode inscrever aqui sob a rubrica de potestas –; e um elemento anômico e metajurídico – que se pode designar pelo nome de auctoritas.310 O que a arca do poder contém em seu centro é o estado de exceção – mas este é essencialmente um espaço vazio, onde a ação humana sem relação com o direito está diante de uma norma sem relação com a vida. O estado de exceção, hoje, atingiu exatamente seu máximo desdobramento planetário. O aspecto normativo do direito pode ser, assim, impunemente eliminado e contestado por uma violência governamental que, ao ignorar no âmbito externo o direito internacional e produzir no âmbito interno um estado de exceção permanente, pretende, no entanto, ainda aplicar o direito.311 Essa realidade fica especialmente clara após o 11 de setembro, a partir de quando diversos países começaram a promulgar legislações perigosas, com o objetivo de ampliar sua segurança. A preocupação com a segurança é legítima, mas ela não pode afrontar os direitos constitucionais e humanos, que são violados hoje em dia das mais diversas formas. Existem, inclusive, situações nas quais essas afrontas são usadas como forma de esconder outras violações aos direitos humanos, mais graves. Exemplo disso seria o caso das torturas cometidas nas prisões do Iraque. Elas são, de fato, grandes violações aos direitos humanos, mas sua publicidade acabou encobrindo uma outra violação, muito maior, anterior e responsável por aquela, que é a própria guerra do 309 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.p 122-123. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 130. 311 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 131. 310 212 Iraque. Mas essa, por algum motivo, não é considerada uma violação aos direitos humanos. Parece que a ordem jurídica encontra-se realmente num vazio com relação ao estado de exceção, e o curioso é que foi preciso um filósofo – muito embora com formação jurídica – preocupar-se com o assunto diante da inércia dos juristas e políticos. É, nesse contexto, que o pertencimento de decretos de urgência ao âmbito problemático do estado de exceção aparece com clareza, pois a partir de uma situação de necessidade a constituição poderá ser violada. Nessa perspectiva o próprio presidente Bush poderá produzir uma situação em que a emergência se torne a regra, podendo a partir daí violar ainda mais os direitos civis. A função do estado tem, portanto uma dupla face: por um lado, como detentor do monopólio da violência, o estado deve impor limitações a seus poderes e ações; por outro lado, como guardião da ordem pública, ele deve ser o protetor e o garantidor de todas as liberdades. O rumo tomado pelo processo penal emergencial, por exemplo, faz recear uma involução no progresso democrático do processo penal e suspeitar que a ideologia do estado de direito tenha capitulado cedo demais. Em certas regiões brasileiras, a instauração de um estado paralelo a um estado de direito é a regra. Esse espaço carrega ìnsita a sua formação regras, códigos comportais específicos e sanções a quem não cumpre o convencionado. Nesses estados, toda ficção de um vínculo entre a violência e o direito desaparece: instaura-se definitivamente uma zona de anomia em que prevalece a pura violência sem nenhuma cobertura dos órgãos estatais e onde inexiste a possibilidade de intervenção jurídica. Quando se abdicar da autotutela, da vingança privada, delega-se ao estado o direito de punir, sendo que o mesmo em contraprestação teoricamente daria a certeza normatizada da punição àqueles que violam a legislação e a seguridade jurídica da convivência harmônica em sociedade e da defesa do bem-comum. 213 4 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA O presente capítulo é dedicado a pesquisa da dignidade da pessoa humana como direito fundamental partindo da análise desse princípio como pressuposto de um estado democrático de direito e questionando a possibilidade da disponibilização da dignidade, visível em leis especiais e em doutrinas jurídicas que objetivam a flexibilização dos direitos e garantias individuais fundamentais frente a criminalidade organizada. É sabido que todos os valores que pautam as sociedades humanas de uma forma ou de outra giram em torno da pessoa humana, fonte e sustentáculo valorativo do direito. Sua importância avulta-se no mundo contemporâneo tendo em vista que muitas vezes é o próprio valor do ser humano que é posto em causa. Mas, independentemente das conquistas alcançadas no campo dos direitos humanos, o cotidiano tem mostrado que as vicissitudes e as constantes crises e guerras a que são submetidos diferentes povos, nações, ou agrupamentos humanos revelam que o processo de afirmação do homem como pessoa portadora de valores éticos insuprimíveis, tais como a dignidade, a autonomia, a liberdade, exige uma constante vigilância. 312 A dignidade da pessoa humana é um direito fundamental. Os direitos fundamentais podem ser entendidos, em sua acepção formal, como aqueles direitos básicos do indivíduo e do cidadão, reconhecidos pelo direito positivo de um estado e que exigem ou uma abstenção ou uma atuação no sentido de garanti-los. No Brasil, essa expressão engloba vários direitos, tais como: os individuais, os coletivos, os difusos, os sociais, os nacionais e os políticos.313 Saliente-se que a história dos direitos fundamentais está diretamente ligada ao aparecimento do constitucionalismo e da dignidade da pessoa humana, sendo que no 312 Os primeiros direitos reconhecidos surgiram contra a opressão do monarca e seus abusos de poder, assim, pela evolução histórica os direitos voltados ao valor liberdade foram inicialmente classificados como direitos negativos, na qualidade de limites constitucionais ao poder do Estado. Como corolário dessa visão, os direitos da liberdade seriam sempre eficazes, já que não dependeriam de regulamentação. Conquanto fosse admitida a regulação das liberdades, o gozo das mesmas decorreria da própria constituição, não do trabalho do legislador inferior. 313 Direitos do homem seriam os direitos referentes à condição do indivíduo enquanto ser humano, que, portanto, se estendem à toda humanidade, em todos os lugares, sem limitação temporal. Estes direitos se baseariam no conceito de direito natural, os quais não necessitariam de serem criados pelo direito positivo, mas tão somente de serem reconhecidos e declarados, em razão de serem verdadeiros direitos humanos, expressão esta utilizada como sinônima de direitos do homem. 214 final do século XVIII, sua maior expressão está na célebre Magna Carta, escrita na Inglaterra, em 1215, pela qual o Rei reconhecia alguns direitos dos nobres, limitando o poder do monarca. A Revolução Francesa, em 1789, promoveu vários documentos escritos que buscavam garantir aos cidadãos os seus direitos elementares em face da atuação do poder público, sendo que o que alcançou maior visibilidade foi a denominada Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, produto daquela revolução ocorrida em território francês. A Declaração de Virgínia, elaborada em 1776, procurava estabelecer os direitos fundamentais do povo norte-americano, tais como a liberdade, a igualdade, eleição de representantes etc. Logo após a 2a Guerra Mundial, em 1948, a Organização das Nações Unidas fazia editar a Declaração Universal dos Direitos do Homem, estendendo para praticamente todo o mundo o respeito e a proteção aos direitos fundamentais do ser humano. Defende Sarlet a ligação da dignidade da pessoa humana com os direitos fundamentais, afirmando que ao centrar-mos a nossa atenção na dignidade da pessoa humana, desde logo há de se destacar que a íntima e, por assim dizer, indissociável_ embora complexa diversificada_ vinculação entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais já constitui , por certo, um dos postulados nos quais se assenta o direito constitucional contemporâneo. Afirma o autor que se virtualmente incontroverso o liame entre a dignidade da pessoa e os direitos fundamentais, o consenso, praticamente se limita ao reconhecimento da existência e da importância desta vinculação, além disso, levando-se em conta que a dignidade acima de tudo diz da condição humana, deve ser tratado de assunto de perene relevância, vigilância e atualidade. Salienta o autor que apenas quando e (se) o ser humano viesse ou pudesse renunciar a sua condição é que se poderia cogitar da absoluta desnecessidade, todavia, justamente pelo fato de que a dignidade vem sendo desconsiderada (pelo menos para muitos e mesmo que não exclusivamente) constitui-se qualidade intrínseca e indissociável de todo e qualquer ser humano e certos de que a destruição de um implicaria na destruição de outro, é que o respeito e a proteção da dignidade da pessoa 215 (de cada e de todas) constitui-se uma meta permanente da humanidade, do Estado e do Direito. 314 315 Leciona Jorge Miranda: “ Nos séc. XVII e XIX dir-se-ia existir somente uma concepção de direitos fundamentais, a liberal. Não obstante as críticas de várias origens _legitimistas, socialistas, católicas _era o liberalismo que prevalecia em todas as Constituições e Declarações e não inobstante a pluralidade de escolas jurídicas jusnaturalistas a positivista e histórica era a ele que se reportavam de uma maneira ou de outra, as interpretações de liberdade individual. (...) A situação muda no séc.XX: não tanto por desagregação ou dissociação das três vertentes liberais (em especial pelo fato de o liberalismo político deixar de se fundar necessariamente, no liberalismo filosófico e se separar do liberalismo econômico) quanto por todas as grandes correntes _religiosas, culturais, filosóficas, ideológicas e políticas- se interessarem pelos direitos do homem e quase todas se afirmarem empenhadas na sua promoção e na sua realização. O tema dos direitos do homem deixou de ser no nosso tempo, uma exclusiva aspiração liberal. Assiste-se, por conseguinte, a um fenômeno de universalização dos direitos do homem não sem paralelo com o fenômeno da Constituição, e , como este, acompanhado da multiplicidade ou da plurivocidade de entendimentos_ porque a uniformidade das técnicas não determina a unidade das culturas e das concepções políticas. Se pode antever uma “civilização do universal” também no domínio dos direitos do homem equivalente ao “ideal comum a atingir” de que fala a Declaração Universal- e pelo menos por agora se afiguram irredutíveis a sensibilidades e valorações (como base religiosa ou não), que se situam nos diversos povos a respeito dos direitos e deveres do homem e do Estado. Isto não impede (nem tem impedido que se atinjam patamares e convergência de garantia e efetivação”. 316 Ssliente-se que o reconhecimento e a proteção dos direitos fundamentais do homem no mundo alcançou o seu estágio atual de uma forma lenta e gradual, passando por várias fases. Estas etapas da evolução desses direitos são chamadas de gerações, pois foram construídas em diferentes momentos históricos. Essas gerações, numa primeira análise, representariam a conquista pela humanidade de três espécies de direitos fundamentais, amparada nos ideais divulgados especialmente na Revolução Francesa, os quais se resumiam no lema “liberdade, igualdade e fraternidade”. Coincidentemente, cada uma dessas expressões representaria uma geração de direitos a ser conquistada. 314 SARLET, Ingo Wolfgang, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federa de 1988, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p.27. 315 Nessa evolução histórica, vieram as várias declarações de direitos do homem, como as já mencionadas Magna Charta Libertatum (1215), a Declaração americana (1776), a francesa (1789), e a Declaração da ONU (1948), que, certamente, influenciaram o surgimento das proteções jurídicas dos direitos fundamentais em outros países. 316 MIRANDA, Jorge. Terrorismo e Direito. Os impactos do terrorismo na comunidade internacional e no Brasil: perspectivas político econômicas. Os Direitos Fundamentais perante o terrorismo, Rio de janeiro: Forense, 2003, p.54 216 Considerando a maneira como os direitos fundamentais nasceram, bem como os valores que buscam garantir, eles podem ser analisados sob várias óticas e deles serem extraídas algumas características que lhe são comuns: a) a historicidade, pois são o resultados de um longo processo histórico, de uma lenta evolução, não nasceram em uma data específica e nem foram engendrados em um único país, sua evolução não é estanque posto que ainda encontram-se em andamento, pois à medida que a humanidade avança outros direitos necessitam ser garantidos e outras tantas violações desses direitos precisam ser coibidas; b) a universalidade pois destinam-se a todos os homens, sendo que sua essência por si própria já rejeita a idéia de discriminação na aplicação e garantia desses direitos básicos; c) a relatividade, característica que decorre da idéia de que os direitos fundamentais não podem ser tidos como absolutos, de aplicação ilimitada; c) a irrenunciabilidade que caracteriza-se pela não disposição deste direitos, pois os seus destinatários não podem a eles renuncia, têm a faculdade de escolher o momento de exercê-los, em certas hipóteses, mas nunca de dispor dos mesmos de forma definitiva. No transcorrer da história, o homem vem pensando sobre si mesmo e a respeito do lugar que ocupa no universo. Da evolução deste pensamento reflexivo do homem acerca de sua própria essência e de sua condição existencial, pode-se extrair traços que delineiam o conceito de dignidade da pessoa humana. No âmbito da filosofia, é no pensamento clássico que se encontram as origens da idéia de que a pessoa humana seria dotada de um valor intrínseco. Tal premissa, extraída da concepção de que todo ser humano possui um valor próprio, foi usada para realizar a distinção dos seres humanos dos demais elementos da realidade. Bem mais tarde, essa idéia evoluiria para a noção de que esse mesmo ser humano, na figura de uma só pessoa, representaria toda a humanidade. Em assim sendo, para adentramos na discussão da (im)possibilidade de relativização da dignidade da pessoa humana, prática que tem ocorrido (de maneira também normatizada) no Brasil e no mundo, necessário fazermos um breve histórico do conceito da dignidade da pessoa humana. 217 4.1 Histórico da dignidade da pessoa O princípio da dignidade da pessoa, segundo Goddard, fundamenta a grande diferença de tratamento entre as pessoas e as coisas. As coisas – qualquer ser corpóreo, incluindo seres vivos –, como não têm domínio de si, podem ser objeto do domínio de outros, e em conseqüência, objeto dos atos jurídicos: podem ser comprados e vendidos, arrendados, cedidos, doados etc. As pessoas, ao contrário, não podem ser objeto de domínio, nem de ato jurídico. Por isso, diz-se que a pessoa é inalienável. A dignidade que todos os homens possuem pelo simples fato de terem a natureza humana, independentemente de qual seja o grau de desenvolvimento ou de perfeição de cada pessoa em particular, funda-se no fato de ela constituir-se em ser corpóreo de natureza racional ou, como se tem preferido dizer, em um espírito encarnado. 317 Na antigüidade clássica, a dignidade (dignitas) da pessoa humana baseava-se na posição social ocupada pelo indivíduo: o conceito que gozava a pessoa humana estava atrelado à posição que a mesma ocupava na pirâmide social, cogitando-se a possibilidade de quantificação da dignidade e admitindo-se a existência de pessoas mais ou menos dignas, de acordo com o seu reconhecimento pelos demais membros da comunidade. Foi entre os filósofos sofistas que se deu o deslocamento do eixo reflexivo do pensamento físico (cosmos) para o pensamento humanista antigo (homem como indivíduo e como membro de uma sociedade), atribundo-se ao homem o paradigma valorativo, que o alçava a medida de todas as coisas ("homo mensura”) independentemente de sua origem, devendo então os mesmos serem tratados como iguais. 317 GODDARD, Jorge Addame. Naturaleza, persona y derechos humanos. Cuadernos Constitucionales México-Centroamérica, n° 21, 1 ed. Instituto de investigaciones jurídicas. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1996, p. 150-154 "Desde el punto de vista jurídico, la dignidad de la persona fundamenta la gran diferencia de tratamiento entre las personas y las cosas. Las cosas (cualquier ser corpóreo incluyendo seres vivos), como no tienen dominio de sí, pueden ser objeto del dominio de otros y pueden ser, en consecuencia, objeto de los actos jurídicos: pueden comprarse y venderse, arrendarse, cederse, donarse, etcétera; en cambio, las personas no pueden ser objeto de dominio ni pueden ser objeto de un acto jurídico. Por eso se dice que la persona es inalienable... Es una dignidad que poseen todas por el mero hecho de tener la naturaleza humana, independientemente de cuál sea el grado de desarrollo o de perfección de cada persona en particular. La tienen los varones lo mismo que las mujeres, los niños lo mismo que los adultos, los extranjeros al igual que los nacionales... en suma, la tiene cualquier ser humano, porque sea cual sea su desarrollo o perfeccionamiento es un ser corpóreo de naturaleza racional o, como se ha preferido decir, es un espíritu encarnado". 218 Para os estóicos, a dignidade era tida como qualidade inerente ao ser humano, aquilo que o distinguia das demais criaturas, resultando em um embate primordial com os demais pensamentos e conceitos supra citados, uma vez que, para ele, todos os seres humanos eram dotados da mesma dignidade: a dignidade apresentava-se, então, articulada, de forma intrínseca, com a noção da liberdade pessoal do indivíduo, na qual cada um é responsável por seus atos e livre para exercê-los como almejar. Observa Fábio Konder Comparato que muito embora não se trate de um pensamento sistemático, o estoicismo organizou-se em torno de algumas idéias centrais como a unidade moral do ser humano e a dignidade do homem, considerando-o filho de Zeus e possuidor, em conseqüência, de direitos inatos e iguais em todas as partes do mundo, não obstante as inúmeras diferenças individuais e grupais. 318 O valor intrínseco da pessoa humana está assim alicerçado no pensamento clássico e também no ideário cristão de respeito ao próximo, de compaixão, de sentido de justiça, de contemplação da vida em sua plenitude, uma vez que, tanto nos escritos do antigo testamento quanto nos do novo testamento, há alusões que classificam o homem como sendo uma criatura formada à imagem e semelhança de Deus. Contudo, mesmo diante da premissa cristã de ser o homem criado a partir de moldes de um ser superior, o cristianismo só reconhecia dignidade àqueles que endossavam e propagavam seus conceitos; os demais eram colocados à margem, relegados à condição de inimigos dos cristãos e submetidos a todo tipo de barbárie em nome da santa inquisição. Constata-se, pois, que o conceito de dignidade, para a doutrina cristã daquela época, estava atrelado aos valores cristãos, sendo que todos os que não compactuavam com esse paradigma valorativo eram relegados à discriminação, não contando com a dádiva divina da dignidade, ofertada somente aos escolhidos.319 318 Nesse sentido COMPARATO Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 11 a 30. 319 COMPARATO Fábio Konder, A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 11 “... parece inequívoco que o tema da dignidade da pessoa humana encontra no pensamento e na doutrina cristã um marco fundamental, como verdadeiro e decisivo ‘divisor de águas’. A contribuição do cristianismo para o desenvolvimento de um efetivo humanismo, ainda que possa ser encontrada desde os primórdios de sua difusão, no caso da Idade Antiga, veio a se expressar de forma contundente no contexto contemporâneo com a edição de inúmeros documentos pontifícios a partir da Encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, no ano de 1891”. 219 Embora os estóicos tenham feito os primeiros ensaios em direção do pensamento acolhido nos dias atuais à cerca de dignidade humana, a inspiração cristã a respeito do conceito de dignidade permaneceu sustentada e defendida por inúmeros pensadores, dentre os quais se destaca Tomás de Aquino, que trouxe à baila o termo dignitas humana, que se baseava não só na noção de que a dignidade fundamenta-se na circunstância de o ser humano ter sido feito à imagem e semelhança de Deus, mas também se consolida na capacidade de autodeterminação inerente à natureza humana que, devido ao seu livre arbítrio, fixa sua existência no caminho redigido por sua dignidade. Já no contexto antropocêntrico renascentista, pode-se apontar como expoente sobre o tema do teórico Giovanni Pico Della Miranda que defendia os interesses do catolicismo, utilizando-se da seguinte preleção “o homem por ser criatura de Deus, diferentemente dos demais seres, foi-lhe outorgada uma natureza indefinida, para que fosse seu próprio arbítrio, soberano e artífice, dotado da capacidade de ser e obter aquilo que ele quer e deseja”. 320 Acompanhando o transcurso natural do tempo, verifica-se que, nos séculos XVII e XVIII, a concepção de dignidade humana, assim como, a idéia do direito natural, enfrentaram significativas mudanças. Nesse período, pode-se referenciar o nome de Immanuel Kant, cuja concepção de dignidade baseia-se na autonomia ética do ser humano, como fundamento da dignidade do homem, e na sustentação de que o ser humano não pode ser tratado nem por ele próprio como objeto.321 Dentre os vários benefícios acrescentados pelos ensinamentos kantianos, ressalta-se que, de certo modo, sua concepção foi o ponto de partida para a perpetuação do processo de secularização da dignidade e o abandono, de uma vez por todas, dos dogmas sacrais. 320 MIRANDOLA Giovanni Picco della. Discurso sobre a dignidade do homem. São Paulo: Renovar, 2000, p. 52-3. 321 KANT, Imanuel. Crítica da Razão Pura. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998, p. 15. 220 Para Kant, a fonte norteadora que compõe a complexidade da dignidade do ser humano é a racionalidade. Com fundamento nessa natureza peculiar ao ser humano, ele ressalta “que o homem, é de uma maneira geral, todo o ser racional, existindo como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo, como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim.”322 Em síntese, Kant classificava a racionalidade como uma qualidade peculiar insubstituível dos humanos, sendo assim, fonte norteadora para a composição da dignidade, que, por sua essência, está acima de qualquer preço, não podendo, dessa forma, ser posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa, muito menos, ser tutelada por disposições éticas ou sociais, já que isso feriria a mácula da dignidade. Não há que se discutir a grande importância dos estudos deixados por Kant, no entanto, não se pode deixar passar em branco os apontamentos de Hegel em sua Filosofia do direito, na qual o filósofo, a partir de uma perspectiva escolástica, também compartilhada por Tomás de Aquino, propõe que a dignidade constitui também uma qualidade a ser conquistada. Na condição de um dos expoentes do idealismo filosófico alemão do século XIX, Hegel – aqui na interpretação outorgada por Carlos Ruiz Miguel – acabou por sustentar uma noção de dignidade centrada na idéia de eticidade (instância que sintetiza o concreto e o universal, assim como o individual e o comunitário), de tal sorte que o ser humano não nasce digno – já que Hegel refuta uma concepção estritamente ontológica da dignidade –, mas torna-se digno a partir do momento em que assume sua condição de cidadão. 323 324 325 Tal ensinamento, concretizado na obra de Hegel, faz da dignidade o resultado de um reconhecimento, noção essa consubstanciada na máxima de que cada um deve ser pessoa a respeitar os outros como pessoas (sei eine Person und respektiere die anderen als Personen). Mas, esse importante estudo, vale ressaltar, de certo modo fere o trilhar 322 KANT, Imanuel. Crítica da Razão Pura. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998, p. 45. MIGUEL, Carlos Ruiz. Human dignity: history of http://web.usc.es/~ruizmi/pdf/dignity.pdf. 324 KANT, Imanuel. Crítica da Razão Pura. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998, p. 45. 323 an idea. In: 221 jurídico, para quem a capacidade jurídica (competência de ser sujeito de direitos) é idêntica para todas as pessoas, independente de suas relações culturais ou sociais. De forma clara, pode-se verificar uma distância significativamente expressiva entre os posicionamentos de Kant e Hegel, e, com isso, da maioria dos autores. Dentre outros aspectos, pode-se referir o fato de Hegel não fundar a sua concepção de pessoa e dignidade em qualidades inerentes a todos os seres humanos, além de não condicionar a condição de pessoa, à dignidade e à racionalidade. Mesmo possuindo um entendimento contrário à maioria dos grandes estudiosos, as concepções de Hegel tiveram grande influência na produção jurídica. No entanto, inegavelmente o grande expoente na construção de uma concepção secularizada da dignidade foi Kant, que promoveu uma guinada decisiva no pensamento filosófico, depois robustecido por inúmeros outros estudiosos que também sustentavam a dignidade como resultado da própria vida. No século XVIII, renasce uma ordem constitucional consagrada à idéia da dignidade do homem, que possui como pressuposto tão somente a condição humana, independente de qualquer outra circunstância, uma vez que se reconhece o homem como titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados por todos, inclusive pelo estado. Mais do que isso admite-se a dignidade humana, em sua manifestação jurídica, significa uma última garantia da pessoa em relação a total disponibilidade por parte do poder estatal e social. Entretanto, mesmo diante de inúmeros defensores que, desde a antiguidade, buscaram ressaltar a necessidade de se respeitar todo o ser humano como pessoa dotada de intrínseca dignidade, ela foi menosprezada em vários momentos cruciais da história humana. E, ao desconsiderá-la, escreveu-se uma horrenda história de maldade entre os homens: uma história de guerras, escravidão e crueldades, movidas pelo ódio, orgulho preconceito, ganância e sede de poder; uma história traduzida em atos de racismo, genocídios, torturas e todo tipo de horror contra milhões de seres humanos. Para testemunhar tais assertivas bastam trazer à memória algumas cenas das duas guerras 325 MIGUEL, Carlos Ruiz. Human http://web.usc.es/~ruizmi/pdf/dignity.pdf. dignity: history of an idea. In: 222 mundiais do século XX. Foram tamanhas as atrocidades cometidas que, ao findar a segunda guerra mundial, a consciência dos povos participantes daquela hecatombe ou dos que assistiram aterrorizados seu desenrolar – assustada pelo saldo do horror – viuse tocada pela inarredável necessidade de proclamar ao mundo, ainda coberto de cinzas e lacrimoso pelas tantas vítimas, a declaração universal dos direitos humanos.326 A declaração universal de direitos do homem de 1948 reflete esses direitos universais e indivisíveis, sendo que a dignidade da pessoa humana deve ser interpretada como toten paradigmático onde a própria ordem abriga seu sentido. A dignidade da pessoa humana consagra-se como um marco máximo a orientar o direito internacional e o direito interno, princípio distintivo e excludente que harmoniza a unidade material da constituição, constituindo-se no norte e o lastro ético dos demais instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos. 327 328 O princípio da dignidade da pessoa humana impõe-se, assim, como imperativo categórico, pela pressuposição de possuir todo ser humano um absoluto valor em si mesmo, intrínseco ao fato de existir: a dignidade. Esta seara de reconhecimento de direitos subjetivos é, aliás, consagrada na declaração da independência dos Estados Unidos sendo os mesmos tratados como direitos subjetivos universais inerentes ao indivíduo, tão primordiais como o direito à vida, a liberdade, e à busca de felicidade.329 326 Nesse sentido ALVES A J. A. Lindgen. A declaração dos direitos na pós-modernidade. In. Revista da Associação dos Magistrados Brasileiros, n. 5. Rio de Janeiro: AMB, 1998, p.6. 327 PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos: o princípio da dignidade da pessoa humana e a constituição brasileira de 1988. (NEO). Constitucionalismo. Ontem os códigos. Hoje as constituições. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, vol.1, n.2. Porto Alegre: Instituto de Hemenêutica Jurídica, 2004, p. 82 “Neste sentido, o valor da dignidade da pessoa humana impõe-se como núcleo básico e informador de todo o ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional. Considerando-se que toda a Constituição há de ser compreendida como uma unidade e como um sistema que privilegia determinados valores sociais, podese afirmar que a Carta de 1988 elege o valor da dignidade da pessoa humana como valor essencial que lhe doa unidade de sentido. Isto é, o valor da dignidade da pessoa humana informa a ordem constitucional de 1988, imprimindo-lhe uma feição particular.” 328 PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos: o princípio da dignidade da pessoa humana e a constituição brasileira de 1988. (NEO). Constitucionalismo. Ontem os códigos. Hoje as constituições. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, vol.1, n.2. Porto Alegre: Instituto de Hemenêutica Jurídica, 2004, p. 79-117. 329 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p.69 “Com efeito, se em outras ordens constitucionais, onde igualmente a dignidade da pessoa humana foi objeto de expressa previsão, nem sempre houve clareza sobre seu correto enquadramento, tal não ocorre ao menos que aparentemente entre nós. Inspirando-se neste particular- especialmente entre nós. Inspirando-se neste particular especialmente no constitucionalismo lusitano e hispânico, o Constituinte de 1988 preferiu não incluir a dignidade da pessoa humana no rol dos direitos e garantias fundamentais, guindando-a, pela primeira 223 Esta universalidade abstrata dos direitos naturais codificada pela declaração dos direitos dos homens, é materializada, concretizada, especificada na formalização do consenso a respeito desses direitos no direito interno de cada país. Com a formalização de dogmas universais passa-se do reconhecimento de direitos naturais à sua materialização através da possibilidade que é dotado todo cidadão, pelo direito positivo fundamental, de promover ações judiciais, inclusive, contra os próprios órgãos do estado, impedindo, assim, que os estados venham a infringir direitos e garantias fundamentais. O reconhecimento da dignidade da pessoa humana trata-se então de princípio construído e alicerçado pela tradição, pela construção histórica e evolutiva das sociedades a respeito do que seja devido (direitos, garantias e deveres) a todo aquele que compõe o pacto social. Dessa forma, os próprios direitos e garantias individuais sustentam-se, no principio da dignidade do ser humano, princípio esse que veio ganhando forma em meio ao desenvolvimento cultural da humanidade. Contudo, ao se analisar o caminho histórico da construção dos direitos humanos, verifica-se que não bastam textos legais para que se tenham garantidos os direitos fundamentais e seja reconhecido a dignidade da pessoa humana como marco fundante da unidade a constituição, uma vez que o formalismo jurídico, apesar de toda a sua parafernália normativa, quando despido de fundamentos ético-humanistas, pode se colocar a serviço de qualquer finalidade, inclusive do terror totalitário, como fizeram os fiéis servidores de Hitler. Nesse sentido, escreve Jürgen Habermas.330 “Os soldados jamais questionaram a legitimidade das ordens e intenções de Führer. Agiam como seres despidos da mínima consciência moral, apenas acreditavam no valor da pura legalidade, desvinculada de quaisquer preocupações éticas”. vez consoante já reiteradamente frisado à condição de princípio (e valor) fundamental (artigo 1º inciso III) . Aliás a positivação na condição de princípio jurídico constitucional fundamental é, por sua vez, a que melhor afina com a tradição dominante no pensamento jurídico constitucional luso-brasileiro e espanhol, apenas para mencionar os modelos mais recentes e que tem exercido ao lado do paradigma germânico_significa influ6encia sobre a nossa própria ordem jurídica”. 330 HABERMAS M Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 114. 224 Nesse ponto da história, vislumbra-se um paradoxo entre a Alemanha com riquíssimo acervo cultural, pátria de Kant, Goethe Jhering, Bach e de tantas outras celebridades, e o espaço por ela perdido para o totalitarismo que ceifou milhares de vidas, destinadas ao matadouro como inocentes ovelhas. Posterior a esta longa jornada de sofrimento e dor, a humanidade acordou, finalmente, para uma nova etapa da história do direito internacional público, que passou então a contar com uma segunda face, a do direito internacional dos direitos humanos. Todos os seus instrumentos normativos adotaram como objetivo a salvaguarda da dignidade inerente ao ser humano, fazendo com que o indivíduo, visto como pessoa, passasse também a ser reconhecido como sujeito de direito internacional dos direitos humanos, dotado de personalidade e capacidade jurídicas internacionais. A cristalização da personalidade e capacidade jurídicas internacionais do ser humano constitui-se no legado mais precioso da ciência jurídica do século XX. Trata-se de uma notável conquista da civilização, lograda graças ao considerável desenvolvimento do direito internacional ao longo das cinco últimas décadas. Tal conquista requer uma atenção bem maior e mais cuidadosa do que a que vem sendo dispensada ao tema até o presente por grande parte da doutrina jurídica, aparentemente ainda apegada a posições dogmáticas-ideológicas do passado. 331 Isso porque, a partir desse avanço, também os estados-nações adaptaram-se às mudanças ocorridas, passando a adotar uma política de estado democrático de direito, a começar pela própria Alemanha, em esforço facilmente identificável nas constituições do pós-1945, que passaram a positivar o princípio da dignidade da pessoa humana, colocando-o como princípio fundamental do ordenamento jurídico, ao qual todas as demais normas jurídicas devem se conectar. Assim, a dignidade dos homens passou a qualificar-se como pressuposto fundamental da ordem jurídica, e, como tal, deve ser tutelado e respeitado acima de qualquer contexto constitucional. 332 333 331 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado internacional dos direitos humanos. Vol. III. Porto Alegre: Fabris, 2003. p. 447-448. 332 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 63-65. 333 PIOVERSAN, Flávia, Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 5ºed. São Paulo: Max Limond, 2002. p. 56-57. 225 4.2 Atualizações contextuais do conceito de dignidade Conceituar de forma clara e precisa o que seja dignidade humana, nem de longe é tarefa fácil; muito antes pelo contrário, conforme já foi elucidado até o momento, trata-se de um tema complexo cercado por contornos vagos e imprecisos, uma vez, que, o importante não é conceituar a dignidade do ser humano como um tema isolado e estanque, mas, sim, conformá-la nos moldes da sociedade contemporânea, definindo o seu âmbito de proteção como norma jurídica fundamental.334 Dentre vários percalços encontrados na delimitação desse conceito, destaca-se que “a maior dificuldade reside no fato de que no caso a dignidade da pessoa, diversamente do que ocorre com as demais normas jusfundamentais, não se cuida de aspectos mais ou menos específicos da existência humana, como a integridade física, intimidade, vida, propriedade, etc., mas sim, de uma qualidade tida como inerente a todo e qualquer ser humano, de tal sorte que a dignidade , como já restou evidenciada, passou a ser habitualmente definida como constituindo o valor próprio que identifica o ser humano como tal definição, esta que, todavia, acaba por não contribuir muito para uma compreensão satisfatória do que efetivamente é o âmbito de proteção da dignidade. Mesmo diante de toda problemática levantada à cerca de um conceito puro de dignidade, o que não se pode negar é que a dignidade é fato, já que não se verifica maior dificuldade em identificá-la claramente nas muitas situações concretas em que ela é maculada e agredida. Mas talvez seja mais fácil defini-la pela negação expondo o que a dignidade não é, do que apontar para moldes em que à dignidade se encaixe definitivamente. Para, além disso, o que dificulta a precisão dessa definição é a diversidade de valores que se manifestam nas sociedades atuais, razão pela qual se está frente a um 334 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da república Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 60 “A dignidade humana se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício os direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. O direito à vida privada, à intimidade, à honra, à imagem, dentre outros, aparecem como conseqüência imediata da consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil.” 226 conceito em permanente processo de edificação e reestruturação. Devido a essa característica intrínseca da dignidade, seu conceito resulta em vacuidade e abertura, ocasionando uma constante necessidade de concretização e delimitação do conceito jurídico normativo pelas praxes constitucionais, para que esse não fuja dos moldes indicados à manutenção da ordem social. Certamente, as dificuldades enfrentadas ao se tentar conceituar dignidade humana, não datam de hoje, visto que como já disse, a idéia nuclear da dignidade do homem já se fazia presente no pensamento clássico, como qualidade irrenunciável e inalienável, intrínseca ao ser humano, servindo de fonte qualificadora da própria condição humana, que, como tal, deveria ser reconhecida, respeitada e protegida, já que não podia ser criada, pois fazia parte da essência do indivíduo. Dessa forma, vale lembrar que a dignidade evidentemente não existe apenas porque é reconhecida pelo direito, uma vez que ela nasce com a própria pessoa. Contudo, importa não olvidar que o direito pode exercer papel crucial em sua proteção e promoção. E não há necessidade, para isso, sequer de uma definição precisa de dignidade, na medida em que se trata de valor próprio da natureza da vida humana. Neste contexto, há demonstrações dispares, e até mesmo conflitantes entre si, na aplicação concreta da noção de dignidade, devido à tese de que dignidade não constitui um conceito juridicamente apropriável, como sustenta, por exemplo, Habermas335. Mas, no que concerne à opinião largamente majoritária, a dignidade independe das circunstâncias concretas; todos são considerados titulares de dignidade, já que é característica inerente a toda e qualquer pessoa humana, visto que, em princípio, todos os homens são iguais em dignidade, no sentido de serem reconhecidos como pessoas, ainda que não se portem de forma igualmente digna nas relações com seus semelhantes. Diante do exposto, apela-se novamente a matriz kantiana, centrada na autonomia e no direito de autodeterminação da pessoa como fonte embasadora da dignidade humana. Importa aqui se ter bem claro que essa autonomia é considerada em abstrato, 335 HABERMAS, M Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p.70 227 como sendo a capacidade potencial que cada ser humano tem de autodeterminar sua conduta, não dependendo de sua efetiva realização em concreto, de tal sorte que também o absolutamente incapaz possui exatamente a mesma dignidade que qualquer outro ser humano física e mentalmente capaz. Ressalte-se, por oportuno, que com isso não se está a sustentar a equiparação, mas a intrínseca ligação entre as noções de liberdade e dignidade. Por outro lado, ainda há aqueles à maneira de Hegel que sustentam que a dignidade da pessoa não deve ser considerada exclusivamente como algo inerente à natureza humana, como uma qualidade exclusiva, uma vez que a dignidade também se forma com base na evolução cultural alcançada com o mudar dos tempos, razão pela a qual as dimensões naturais e culturais da dignidade da pessoa se completam e integram-se mutuamente. Um outro aspecto fundamental a ser ventilado à cerca da dignidade da pessoa humana é o fato de ela, simultaneamente, servir de limite e tarefa para os poderes estatais. Como sua garantia é tarefa imposta ao estado, as pessoas reclamam do estado para que ele guie suas ações tanto no sentido de preservar a dignidade existente, como no de criar possibilidades para que o seu exercício atue livremente. Diante dessa dupla dimensão de dignidade, que trilha caminhos entre a autonomia do ser humano e a sua necessidade de assistência e proteção, quando em estado de fragilidade ou quando ausente a capacidade de autodeterminação, depara-se aqui com a prevalência da dignidade assistencial em face da autonômica, de tal sorte, que, a quem faltar condições para uma decisão própria responsável, deve ser-lhe nomeado um eventual curador, a quem cabe resgatar ao mesmo o direito de ser tratado com dignidade . Tal concepção encontra-se embasada na doutrina de Dworkin, que parte do pressuposto de que a dignidade possui: “Tanto uma voz passiva quanto uma voz ativa e que ambas encontram-se conectadas. Onde desta forma, até mesmo o indivíduo que já perdeu completamente sua capacidade de autodeterminação, é titular da dignidade, e como tal deve sem dúvidas, receber um tratamento digno. De tal 228 sorte, que é no valor intrínseco da vida humana de qualquer indivíduo, que encontramos a explicação para o fato de que mesmo aquele que já perdeu a 336 consciência da própria dignidade merece tê-la”. Ainda no que diz respeito à tentativa de clarificação do conceito de dignidade da pessoa humana, importa considerar que apenas à dignidade de determinada pessoa é passível de ser respeitada, inexistindo atentado à dignidade da pessoa em abstrato, uma vez que a dignidade constitui atributo da pessoa humana considerada individualmente, e não, abstratamente, razão pela qual se deve ter o cuidado de não confundir as noções de dignidade da pessoa e de dignidade humana, quando, então, a referência for a humanidade como um todo. Por outro lado, esses não são temas estanques, pelo fato de a dignidade da pessoa encontrar-se ligada à condição humana de cada indivíduo. Dessa forma, não há como descartar uma necessária dimensão comunitária da dignidade de uma única pessoa em relação as outras pessoas em geral. Deve-se ter em mente que a dignidade da pessoa humana implica uma obrigação geral de respeito pela pessoa; em outras palavras, essa obrigação exprime-se num feixe de direitos e deveres correlativos a um conjunto de bens indispensáveis ao progresso humano. Tomando ainda por base a disposição de que a dignidade da pessoa, numa acepção rigorosamente moral e jurídica, encontra-se vinculada à simetria das relações humanas, torna-se pertinente o questionamento de, até que ponto, a dignidade não está acima das especificidades culturais, que, muitas vezes, justificam atos que, para a maior parte da humanidade, são considerados atentatórios à dignidade da pessoa humana, mas que, em certos quadrantes, são tidos por legítimos na prática jurídica de determinadas sociedades. Como fonte solucionadora desse ponto conflitante, utilizam-se, mais uma vez, os ensinamentos de Dworkin, “que sustenta o direito das pessoas de não serem tratadas de forma indigna, utilizando-se para isso os padrões desenvolvidos particularmente por 336 DWORKIN R. El dominio de la vida. Barcelona: Ariel, 1994. p. 306-7. 229 cada sociedade civilizada, que utilizam-se de critérios que variam conforme o local e a época vivenciada.”. 337 338 339 A título de exemplificação dessa mistura de fatores que determinam a conduta digna, utiliza-se a prática da pena de morte, acatada por diversos estados norteamericanos e considerada constitucional pela Suprema Corte que, por sua vez, tem entendido serem inconstitucionais determinadas técnicas de executar a pena capital, com base na proibição da aplicação de penas cruéis e desumanas (cruel and unusual punishment), prevista na oitava emenda de 1791. Nesse sentido, em relativamente recente decisão, envolvendo recurso impetrado por um condenado à morte no estado de Washiton, a Suprema Corte reconheceu que a morte por enforcamento constitui prática atentatória à dignidade da pessoa humana, notadamente, pelo fato de infringir – ao menos em relação aos outros meios utilizados (injeção letal e eletrocutamento) – sofrimento desnecessário ao sentenciado, já que foi constatada a possibilidade maior de uma postergação do estado de inconsciência e morte, com risco de asfixia lenta e até mesmo decapitação parcial ou total, verificada em diversos casos. Aponta-se então para a possibilidade de a pena de morte não ferir a dignidade, desde que aplicada dignamente. Diante dessa miscelânea de sentimentos culturais e sociais que compõem o entendimento acerca da dignidade, não parece possível reduzir a uma fórmula abstrata e genérica o conteúdo da dignidade da pessoa humana; em outras palavras, a definição do seu âmbito de proteção ou de incidência. Isso, no entanto, não significa que não se deva buscar uma definição, até porque se faz necessário um norteamento acerca da definição de dignidade, justamente em face da exigência de um certo grau de segurança, imprescindível à manutenção da ordem pública. Como ponto de partida nessa empreitada, utiliza-se a fórmula desenvolvida por During, na Alemanha, para quem a dignidade da pessoa humana seria considerada 337 DWORKIN R. El dominio de la vida. Barcelona: Ariel, 1994, p. 305. DWORKIN R. El dominio de la vida. Barcelona: Ariel, 1994. p. 306-7. 339 Caso Kampbell v. Wood, U.S. Supreme Court. 1994. 338 230 maculada sempre que a pessoa concreta, o indivíduo, fosse rebaixado a objeto, a mero instrumento, tratado como uma coisa; em outras palavras, sempre que a pessoa venha a ser descaracterizada e desconsiderada como sujeito de direitos. Essa concepção, embora largamente acolhida por grande parte das decisões proferidas pelo Tribunal Federal Constitucional da Alemanha, por evidente, não pode ser tomada como modelo universal, visto que, conforme já se referiu, não existe a possibilidade de se chegar a uma unanimidade devido à ingerência de conteúdos sociais e culturais, constitutivos das diferentes sociedades. Nesse sentido, diante da impotência de se alcançar, de forma concreta, um conceito aplicável a todo o contexto social mundial, as doutrinas e jurisprudências tem apontado o caminho a ser trilhado para que se consiga identificar uma série de disposições que integram a noção de dignidade humana. Sarlet definiu com precisão a dignidade: “a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do estado e da Comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.”. 340 Em última análise, o que se pode verificar, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana. 340 Sarlet, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa e direitos fundamentais na constituição de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2004, p. 59. 231 4.3 Princípio da dignidade da pessoa humana como sustentáculo aos direitos fundamentais A dignidade é o valor mais alto que pode ser conferido à pessoa humana. Em razão disso, tem sido considerada um princípio fundante de toda a construção éticojurídico, tendo como característica principal a seguridade (pelo menos teórica) de um minimum de respeito ao homem. Vem configurando-se, nessa perspectiva, como valor supremo da democracia, raiz antropológica constitucionalmente estruturante do estado de direito. 341 Assim, dentre o rol de funções pertinentes ao princípio fundamental da dignidade humana, destaca-se pela sua magnitude, o fato de ser, simultaneamente, “elemento que confere unidade de sentido e legitimidade a uma determinada ordem constitucional”. 342 Compartilhando desse espírito, Jorge Miranda, que confere uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais, ao considerar que ele repousa sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, isto é, sobre a concepção que faz da pessoa fundamento e fim da sociedade e do estado democrático de direito. 343 Entretanto, como já se ressaltou anteriormente, somente depois de longos anos de barbárie, prática das contra o ser humano pelo totalitarismo, sobretudo no regime nazista, é que o princípio da dignidade da pessoa humana tornou-se fundamento do estado democrático de direito. O estado totalitário voltou-se contra milhões de seres humanos; seus agentes praticaram tamanha violência nos campos de concentração que, ao final da II Guerra Mundial (1939-1945), mesmo sem lei penal anterior aos fatos, muitos deles foram julgados e condenados, em Nuremberg, por crimes de lesahumanidade. 341 SANTOS Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana Jus Navigandi, Teresina, v. 3, n. 27, dez. 1998. (Disponível em: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=160. Acesso em: 13 set. 2004). 342 SARLEt, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa e direitos fundamentais na constituição de 1988. Cidade: Editora, 2004. p. 59. 343 MIRANDA, Jorge. Terrorismo e Direito. Os impactos do terrorismo na comunidade internacional e no Brasil: perspectivas político econômicas. Os Direitos Fundamentais perante o terrorismo, Rio de janeiro: Forense, 2003, p.159 232 Seguindo um referencial alemão, a constituição brasileira erigiu a dignidade da pessoa humana à condição de fundamento de seu estado democrático de direito. Face à tal princípio, questiona-se qual o papel dos direitos fundamentais. Tentando solucionar esse impasse, faz-se necessário, antes, elucidar o significado da expressão direitos fundamentais, uma vez que inexiste unanimidade doutrinária quanto à sua utilização. Nesse sentido, José Afonso da Silva, ao trabalhar com a questão do “conceito de direitos fundamentais”, observa: 344 “A ampliação e transformação dos direitos fundamentais do homem no envolver histórico dificulta definir-lhes um conceito sintético e preciso. Aumenta essa dificuldade à circunstância de se empregarem várias expressões para designá-los, tais como: direitos naturais, direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais, direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais, liberdades públicas e direitos fundamentais do homem”.. Após analisar as várias denominações o constitucionalista adota a expressão direitos fundamentais do homem “porque, além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas”. Já o mestre Canotilho, em busca de precisão terminológica, assim estabelece a distinção entre direitos do homem e direitos fundamentais: “Direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalita); direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-intitucionalmente garantidos e limitados espacio-temporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável, 344 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 179-182. E esclarece mais: “No qualificativo fundamental acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados”. 233 intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta”. Reportando-se à questão já enunciada, pode-se, de forma sucinta, respondê-la da seguinte forma: os direitos fundamentais, em razão do conteúdo que os caracteriza como tais, tem como função e finalidade salvaguardar a existência da pessoa humana de forma e intensidade diversificada -, já que todos aferem à noção de proteção e desenvolvimento de todas as pessoas. Nesse contexto, apontam-se alguns exemplos que perfazem essa estreita vinculação entre os direitos do homem e os direitos fundamentais. Para tanto, observamse os estudos da professora Maria Garcia, que ressalta: “O art. 5.º, caput, da Constituição especifica cinco direitos direitos fundamentias básicos: vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade, que constituem o fundamento de todos os demais direitos consagrados, quer pelo inciso do art. 5º, quer pelos dispositivos seqüenciais, do mesmo Título II, bem como de toda a Constituição – dado que órgãos, bens, direitos, deveres instituições refluem, todos, para um destino único, em especial, o ser humano.” 345 Assim, não há como negar que os direitos à vida, à de liberdade e à igualdade correspondem diretamente às exigências mais elementares da dignidade da pessoa humana, já que a vida é o bem maior que possibilita a existência do próprio ser humano. Esse, por natureza, é chamado à vivência da liberdade, mas essa é exercitada na convivência com os demais seres humanos, os quais, também necessitam exercitar suas liberdades. Para conciliá-las, prima-se pela igualdade de oportunidades. Da mesma forma, o sentimento de insegurança perturba profundamente a existência humana, roubando-lhe a possibilidade de construí-la com tranqüilidade, o que demonstra a necessidade que o ser humano tem de se sentir seguro para viver de forma plena. De outra parte, todos sabem o que o ser humano, em sua existência aspira por encontrar a felicidade; não se ignora também, que sem bens materiais básicos (alimentos, vestuário, moradia), não lhe será possível viver dignamente, com autonomia, passando à simples sobrevivência dependente da caridade e até mesmo da humilhante mendicância. Dessa forma, percebe-se, desde logo, que boa parte dos direitos sociais radicam-se no 234 princípio da dignidade da pessoa humana, bem como nos demais princípios que compõem o estado social de direito. 346 Diante de tamanha importância do princípio da dignidade da pessoa humana, deve-se ressaltar sua função instrumental integradora, na medida em que serve de parâmetro para aplicação, interpretação e integração não apenas dos direitos fundamentais e das demais normas constitucionais, mas de todo o ordenamento jurídico.347 Como fonte ilustradora da função integradora do princípio da dignidade humana, cada vez mais se encontram decisões dos tribunais valendo-se da dignidade da pessoa como critério hermenêutico, isto é, como fundamento para a solução das controvérsias, notadamente interpretando a normativa infraconstitucional à luz da dignidade da pessoa humana.348 Frente às diversas formas exemplificativas sobre a importância do princípio da dignidade da pessoa humana em todas as esferas do ordenamento jurídico pátrio, parece não ser exagero atribuir-lhe o status de princípio maior da hierarquia de todas as ordens jurídicas que o reconhecem; em outras palavras, ele atua como o “alfa e o ômega” dos sistemas constitucionais.349 345 GARCIA, Maria. Quais são os direitos fundamentais? In: Revista de direito constitucional e internacional. n. 39. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 115-123. 346 Cf. acórdão do tribunal de Justiça do RS, proferido em 25.08.99, relatado pelo Dês. Osvaldo Stefanello. 347 Apelação Cível nº 007.512-4/2-00, 2º Câmara Cível, julgada em 18/08/1998, publicada na RT nº 758 (1998), p. 106 e ss, relatada pelo Dês. Cezar Peluso, no seu voto. 348 Cf. Hábeas Corpus nº 14.333, Distrito Federal, julgado em 07/11/2000 349 DELPÉRÉE Francis. O direito à dignidade humana. In: “Direito Constitucional – Estudos em homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho”. São Paulo: Ed. Dialética, 1999, p. 161. 235 4.3.1 Eficácia da dignidade da pessoa humana No curso natural desse pretenso esboço, torna-se então oportuno, examinar com vagar o status jurídico-normativo do conteúdo da dignidade da pessoa humana no âmbito do ordenamento constitucional brasileiro. No ordenamento constitucional brasileiro, a dignidade da pessoa humana recebeu condição de norma fundamental, uma vez que, o dispositivo constitucional no qual se encontra enunciada, contém não apenas mais uma norma, mas que esta, para além de seu enquadramento na condição de princípio fundamental, é também fundamento de posições jurídico-subjetivas, isto é, constitui-se em norma definidora de direitos e garantias, como também de deveres fundamentais.350 Ao se adentrar na história trilhada pelo constitucionalismo pátrio, verifica-se que a Carta Magna, promulgada em 1988, vigente até os dias atuais, foi a primeira a prever um título próprio destinado aos princípios fundamentais, sem sombra de dúvidas, com intuito de render-lhes o tributo que lhe é devido pelo seu especial significado, e pelo reconhecimento de seu estatuto de normas embasadoras e informativas de toda a ordem constitucional, outorgando-lhes inclusive a qualidade de normas definidoras de direitos e garantias fundamentais. Em outras palavras, podem-se referenciar os princípios fundamentais como o núcleo essencial da constituição brasileira atual, tanto formal como materialmente. Corroborando com o exposto, constata-se que a dignidade da pessoa humana é fundamento do estado democrático de direito brasileiro. Registre-se, por oportuno, que a previsão constitucional acerca da dignidade da pessoa humana, não se restringe exclusivamente ao artigo 1º, inciso III, da Carta Magna, uma vez que possui uma larga presença em outros capítulos da Lei Fundamental, seja quando se estabelece que a ordem econômica tem por finalidade assegurar a todos uma existência digna (artigo 170, caput), seja quando, na esfera da ordem social, funda-se o planejamento familiar nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade 350 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa e direitos fundamentais na constituição de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 69. 236 responsável (artigo 226, § 6º), além de assegurar à criança e ao adolescente o direito à dignidade (artigo 227, caput). Diante de tudo o que foi aqui exposto, subscreve-se a opinião de Carlos Roberto Siqueira Castro, no sentido de que: “O Estado Constitucional Democrático da atualidade é um Estado de abertura constitucional radicado no princípio da dignidade do ser humano”. 351 Observando a constituição brasileira de 1988, vê-se claramente a pretensão do constituinte, seguindo inspiração do constitucionalismo lusitano e hispânico, em não incluir a dignidade da pessoa humana no rol dos direitos e garantias fundamentais, outorgando-lhe a condição de princípio fundamental. Assim, a dignidade da pessoa humana foi consagração como princípio constitucional fundamental tornando-se explicitamente um dos fundamentos do estado democrático e social de direitos brasileiro. Com essa importante decisão, deixou-se às claras a finalidade e a justificação do exercício do poder estatal e do próprio estado, concluindo o raciocínio com a reiteração de que o estado que existe em função da pessoa humana, e, não, o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não o meio da atividade estatal. Todavia, ao se ponderar a respeito do reconhecimento normativo da dignidade da pessoa humana, não se está afirmando, nem de longe, que a dignidade exista apenas onde e na medida em que seja reconhecida pelo direito. Muito antes pelo contrário, seu reconhecimento e proteção, em cada ordenamento jurídico, bem como no âmbito internacional depende da dimensão jurídica da dignidade dentro de cada contexto constitucional.352 Mas, muito embora, os direitos fundamentais, encontrem seu fundamento, ao menos em regra, no princípio da dignidade da pessoa humana, trata-se de dois conceitos 351 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2003, pg. 19. 352 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2003, pg. 257. 237 intimamente ligados, pois não há como reconhecer que exista um direito fundamental à dignidade, ainda que se encontrem algumas parcas referências neste sentido. Dworkin entende que nos princípios (principles), está contida a exigência de exercício da justiça na direção da dimensão moral da dignidade da pessoa humana, estabelecendo uma razão (fundamento) que impele o intérprete numa direção, mas que não reclama uma decisão específica, única. A exigência da realização da dimensão moral de um dado princípio até permite sua mitigação em prol de uma razão maior que contemple a necessidade da satisfação do bem comum e da segurança jurídica através do intervencionismo do estado, porém, há de estar atrelado ao limite imposto pela dignidade da pessoa humana. É e dentro da concepção de dignidade da pessoa humana como standard máximo indeclinável que o conflito de regras constitucionais pode ser harmonizado, ou seja, quando da interpretação das normas, para solucionar o conflito, deve existir um critério racional (cujo o paradigma é a dignidade da pessoa humana) que irá privilegiar algum valor em detrimento de outro na dimensão de sua validez no caso concreto. Este juízo hermenêutico somente pode ser solucionado, introduzindo-se uma regra de exceção que minimize o rigor formal de um dos direitos fundamentais, debilitando o seu caráter definitivo. Apreende-se da lição Dworkin que a colisão de princípios se resolve na dimensão de peso: um dos dois tem que ceder frente ao outro, porquanto um limita a possibilidade jurídica do outro. Entretanto, salienta Santos, o fato de um dos princípios ceder frente ao outro não implica que o princípio desprezado seja inválido, pois a colisão de princípios se dá apenas entre princípios válidos. 353 Assim, o fato de o estado existir em função do homem, não conduz a uma concepção individualista da dignidade da pessoa humana, pois o que se busca é a compatibilização, a interrelação entre os valores individuais e coletivos, não existindo aprioristicamente, um predomínio do indivíduo ou o predomínio do todo: a solução há 353 SANTOS Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana Jus Navigandi, Teresina, v. 3, n. 27, dez. 1998. (Disponível em: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=160. Acessado em: 13 set. 2004) 238 de ser buscada, em cada caso, de acordo com as circunstâncias, solução que pode ser tanto a compatibilização, como também a preeminência de um ou outro valor. Dentro desse contexto, a dignidade da pessoa humana é conditio sine qua non para a existência e manutenção de um estado democrático de direito, erigindo-se como paradigma estruturante que se encontra no eixo central do sistema constitucional, núcleo essencial dos direitos fundamentais; trata-se de fonte ética, que confere unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema dos direitos fundamentais. Leciona Faria que, entre o estado moderno e as relações sociais, condensam-se as contradições entre um determinado modo de produção e as lutas sociais que elas suscitam. Esse, aliás, é um dos problemas da globalização econômica. Ela está muito distante dos sonhos do profeta Isaias de paz e harmonia entre os homens. Seu fim é o lucro que nunca esteve tão concentrado nas mãos de tão poucos. 354 355 Ora, o direito positivo não é uma instância autônoma e subsistente por si mesma, porém dependente de outras instâncias que o determinam e o condicionam, ao mesmo tempo em que acabam sendo por ele determinadas e condicionadas. A positivação do direito apresenta-se ela própria como produto do conflito hegemônico entre os grupos e classes que procuram manipular e adaptar os mecanismos de regulação e repressão a seus fins, impondo, mantendo e assegurando um padrão específico de relações sociais. Ocorre que a falta de respeito ao princípio da dignidade humana e, principalmente, ao valor pétreo que ela embasa, cria uma descrença em relação à legitimidade do estado, e, conseqüentemente, no exercício de seus poderes, inclusive, pelo juiz e pela justiça. Sabe-se que o problema de legitimação do poder está associado às múltiplas formas de organização política da sociedade e aos diferentes modos de solução dos conflitos e seus respectivos procedimentos decisórios. Evidentemente, uma sociedade equilibrada socialmente, que 354 FARIA, JOSÉ E. A crise constitucional e a restauração da legitimidade. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1985. p15. 355 Necessária a distinção entre um atentado terrorista e um ato de violência desgarrado desta finalidade, nem sempre um ato de violência é terrorista, mesmo quando a vítima é uma personalidade política. A tentativa de assassinato do presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, em 1981, é um exemplo de violência sem conotação política, refere o noticiário que nos disparos, John Hinckley Jr., agiu isoladamente, motivado por questões pessoais. Já o assassinato do premiê israelense Yitzhak Rabin por um extremista judeu, em 1995, configura-se em sua plenitude um ato terrorista. 239 oportuniza eqüidade de direitos e deveres, consolidando a democracia, confere legitimidade enquanto estado-nação. Logicamente existe, por parte do estado, uma situação de dependência em torno do consenso social a respeito de sua satisfatoriedade no desempenho das funções que lhes são concernentes, da coerência lógica de seu processo legislativo e das instituições de direito na resolução das lides. Sem essa coerência, julga-se não haver maneira de se superar o temor do arbítrio estatal e de sua ingerência sob o particular. Acontece, no entanto, que, com a globalização econômica, houve um esvaziamento do poder dos estados-nação que passou às mãos das grandes corporações multinacionais. Por isso, embora os direitos fundamentais cumpram uma função primordial na arquitetura jurídica política, constituindo-se num paradigma de legitimação de regimes políticos, – vale dizer que quanto mais um estado os consagra e procura torná-los eficazes, mais legitimidade adquire perante a comunidade internacional –, há hoje uma grande interferência que advém de segmentos que detêm o poder econômico, e, conseqüentemente, o poder decisório em nível planetário, estabelecendo-se como uma instância de decisão acima dos estados-nação. Mas, a despeito das diferenças políticas e ideológicas existentes no mundo, os direitos fundamentais reúnem em torno de si um certo consenso sobre sua necessidade como valores essenciais contemporâneos. Então, pode-se caracterizar o princípio da dignidade da pessoa humana como um mandato prima facie no sentido de que, para seu cumprimento, devem-se levar em conta as condições fáticas jurídicas existentes. A qualificação de princípio fundamental não acarreta à dignidade da pessoa humana apenas valores de cunho ético e moral; o status de norma jurídico-positiva, de caráter constitucional formal e material e, implica também sua eficácia, razão pela qual se justifica plenamente seu alçamento à condição de princípio constitucional de maior hierarquia axiológica-valorativa, dentro do ordenamento constitucional. Mesmo porque, pelo fato de ter sido reconhecida como princípio fundamental, não afasta a dignidade da pessoa humana de seu papel como valor fundamental para a estruturação de toda a ordem jurídica; muito antes pelo contrário, outorga a esse valor uma maior pretensão de eficácia e efetividade, demonstrando, assim, que as críticas 240 proferidas em relação ao enquadramento da dignidade da pessoa humana como princípio, na realidade, não restringe a amplitude da dignidade humana. 241 4.3.2 A (im)possibilidade de relativização do caráter absoluto da dignidade Conforme, já foi aqui amplamente exposto e sustentado, toda a pessoa é titular do princípio da dignidade, que não se adquire, ou compra, mas é intrínseco ao ser humano. Diante dessa afirmativa, surgem inúmeros questionamentos, dentre eles aquele que se pergunta sobre até que ponto, para se assegurarem a dignidade e os direitos fundamentais de uma determinada pessoa, não se acaba, por vezes, afetando dignidade de outro ser humano? Por outro lado, como operar o direito frente a um conflito direto entre as dignidades de pessoas diversas? Partindo-se da premissa de que a dignidade, por ser qualidade inerente ao ser humano, é absoluta, certamente haverá infinitas dificuldades de confrontações com as problemáticas apontadas. É, nesse sentido, que se relembram os estudos de Alexy “Até o princípio da dignidade da pessoa humana acaba por sujeitar-se, em sendo contraposto à igual dignidade de terceiros, a uma necessária relativização”. A aceitabilidade de relativização do princípio da dignidade da pessoa humana, parece necessária frente à realidade da vida, que oferece situações limites, diante das quais dificilmente não haverá questionamentos sobre determinados entendimentos diante dos casos concretos. Neste balizamento constante onde se contrapõem interesses sociais, não se pode esquecer que os direitos humanos são produto da civilização humana, direitos históricos mutáveis, suscetíveis de transformação e de ampliação, devendo ser tomados na sua relatividade e historicidade, pois, por mais fundamentais que sejam, são oriundos de um determinado momento histórico, nascidos em certas circunstâncias caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades, pautados pelos valores daquela determinada época. Nesse sentido, deve-se utilizar argumentação dialética que englobe razão, vontade e sensibilidade, unidas na elaboração da interpretação e aplicação do direito, em determinados casos concretos, cuja complexidade lida concomitantemente com a 242 colisão de dignidades de duas ou mais pessoas, uma vez que a dignidade individual do ser humano completa-se e efetiva-se dentro de um contexto social, mediante o respeito à dignidade dos outros seres humanos que compõem uma coletividade. Frente a esse embate, não resta alternativa senão a relativação do princípio da dignidade, para que se proceda, da forma mais justa possível, dentro do contexto social. Assim, mesmo que se possa reconhecer a possibilidade de alguma relativização da dignidade humana diante da análise de um caso real, não há como transigir no que diz respeito à preservação de um elemento nuclear intangível da dignidade , oriunda da fórmula kantiana, que justamente consiste na vedação de qualquer conduta que importe em coisificação e instrumentalização do ser humano, que é o fim e não o meio do sistema jurídico. Desde sempre houve ideais em nome dos quais exércitos foram colocados em marcha, seres humanos mortos, países devastados, cidades destruídas. A última grande potência mundial e seus vassalos não constituem exceção alguma: junto com os portaaviões, os tanques e os helicópteros de batalha do exército de invasão ao Iraque, a idéia de direitos humanos foi novamente mobilizada para se poder apresentar ao mundo um argumento legitimador. Mas o notável é que os críticos desse processo apelam aos mesmos ideais. Os milhões que protestam no mundo todo contra os planos de guerra não falam uma língua ideológica diferente daquela do governo norte-americano. Assim, em nome dos direitos humanos que cai a chuva de bombas; e é em seu nome que as vítimas são assistidas e consoladas. Usualmente, os críticos dizem que a realidade não concorda com os ideais. Se há um direito à vida e à integridade física, como se pode aceitar então, com anuência que as intervenções militares ocidentais matem mais pessoas inocentes que as atrocidades dos ditadores e dos terroristas? Os EUA, é o que se diz, utilizam os direitos humanos como pretextos totalmente profanos do poder e da economia; não lhes interessa a situação jurídica da população, mas apenas o petróleo. Esses argumentos não são de modo algum falsos, no que concerne aos fatos. O problema reside na interpretação desses fatos. Trata-se simplesmente de uma incoerência do poder imperial ocidental, que repousa em seus próprios princípios? 243 Observa-se, porém que a história é marcada por oscilações nesse sentido. A segunda guerra mundial, por exemplo, assinalou uma total ruptura com a construção dogmática a respeito dos direitos humanos. Uma vez finda, houve todo um movimento de reconstrução intelectual de valores como a dignidade da pessoa humana e os valores que lhe são inerentes. A emergência do chamado direito internacional dos direitos humanos tornou-se a pauta, conjuntamente com a nova feição do direito constitucional ocidental. Os direitos humanos passaram a ser delineados como um sistema internacional de proteção ao homem.356 A dignidade da pessoa humana tornou-se, assim, o paradigma balizador que devia perpassar todas as constituições globais na construção de estados democráticos de direitos. Esse novo paradigma centrou-se na elevação da dignidade da pessoa humana a pressuposto ineliminável de todos os consitucionalismos. As constituições contemporâneas tornaram-se, hoje cada vez mais vinculadas a princípios e regras de direito internacional, que se convertem em parâmetros de validade das próprias constituições nacionais. 357 Ao adotarem um núcleo mínimo a ser preservado, no que diz respeito os direitos humanos, as constituições democráticas inspiradas no paradigma valorativo da 356 PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos: o princípio da dignidade da pessoa humana e a constituição brasileira de 1988. (NEO). Constitucionalismo. Ontem os códigos. Hoje as constituições. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, vol.1, n.2. Porto Alegre: Instituto de Hemenêutica Jurídica, 2004, p.79. “é como se se projetasse a vertente de um constitucionalismo global, vocacionado a proteger a proteger direitos fundam,enmtais e a limitar o poder do Estado, mediante a criação de um aparato internacional de proteção de direitos (...) Por sua vez, no âmbito do direito Constitucional Ocidental, percebe-se a elaboração de textos constitucionais abertos a princípios, dotados de elevado carga axiológica, com destaque ao valor da dignidade humana. Este será a marca das constituições européias do pós-guerra. Observe-se, desde logo, que na experiência brasileira e mesma latino americana, a abertura das constituições a princípios e a incorporação do valor da dignidade da pessoa humana demarcarão a feição das Constituições promulgadas ao longo do processo de democratização política_até por tal feição seria incompatível com a vigência de regimes militares ditatoriais. A respeito basta acenar a Constituição Brasileira de 1988, em particular a previsão inédita de princípios” fundamentais, dentre eles o princípio da dignidade da pessoa humana”. 357 PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos: o princípio da dignidade da pessoa humana e a constituição brasileira de 1988. (NEO). Constitucionalismo. Ontem os códigos. Hoje as constituições. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, vol.1, n.2. Porto Alegre: Instituto de Hemenêutica Jurídica, 2004, p.81.“Fortalece-se a idéia de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio reservado do Estado, isto é, não deve se restringir a compet6encia nacional exclusiva ou à jurisdição doméstica exclusiva, porque revela tema de legítimo interesse internacional. Por sua vez, esta concepção inovadora aponta a duas importantes conseqüências: 1) a revisão da noção tradicional da soberania absoluta de estado, que passa a sofrer um processo de relativização, na medida em que são admitidas intervenções no plano nacional em prol da proteção dos direitos humanos; isto é, transita-se de uma concepção hobbesiana de soberania centrada no Estado para uma concepção ‘kantiana’ de soberania centrada na cidadania universal”. 244 Declaração Universal elegeram a pessoa humana como ponto de convergência. que tem como standt a dignidade da pessoa humana. “Estes sistemas se complementam, interagindo como um sistema nacional de proteção, a fim de proporcionar maior efetividade possível na tutela e na proteção de direitos fundamentais; esta é, inclusive a lógica principológica próprias do Direito Internacional dos Direitos Humanos (...) uma lógica material inspirada no valor da dignidade d a pessoa humana, sendo afastadas critérios de temporiedade (lei posterior revoga a lei anterior com ela incompatível) e da especialidade (lei posterior revoga a lei especial revoga a geral no que ela tem de especial”. 358 Porém, vale ressaltar que todas essas construções doutrinárias em torno do respeito aos direitos civis vem sofrendo um abalo durante o governo Bush, com sua política de guerra preventiva. Se os direitos não são absolutos, devendo ser revisados e reavaliados a cada momento histórico, sem dúvida, os atos de barbárie promovidos no 11 de setembro transformaram todos em prisioneiros de seus próprios medos. O terrorista, ao romperem efetivamente com o contrato social, jogaram a humanidade de volta ao estado de natureza hobbesiano. Afirma Barber, “durante os últimos quatrocentos anos, fizemos um caminho que levou a dissolução do feudalismo e a criação do estado-nação, da anarquia insegurança e medo ao domínio da lei e da ordem legal, segurança política e gozo da liberdade civil. No entanto as guerras do sec. XIX e XX, os genocídios que as acomponhou, as jihads tribais e os terroristas das últimas décadas, bem como a conduta predatória dos livres agentes que operam em mercados internacionais anárquicos reverteram, com o tempo, as flechas da liberdade. Funcionando fora da lei, tornando a insegurança onipresente e fazendo da liberdade um sinônimo de risco, o terror constitui a apoteose da anarquia internacional, a qual. Por sua vez, intensifica a repressão brutal”. 359 A liberdade manifesta-se como direito fundamental de primeira geração, sendo externalizada através de instrumento normativo constitucional que garante aos cidadãos os direitos civis e políticos dos quais são titulares. Esses direitos, manifestos no rol de garantias individuais dos quais são titulares o indivíduo, são o direitos de resistência ou 358 PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos: o princípio da dignidade da pessoa humana e a constituição brasileira de 1988. (NEO). Constitucionalismo. Ontem os códigos. Hoje as constituições. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, vol.1, n.2. Porto Alegre: Instituto de Hemenêutica Jurídica, 2004, p.82. 359 BARBER. Benjamin R. O império do medo. Rio de janeiro: Record, 2005. p.95. 245 de oposição perante o estado, necessários para a perfectibilização da dignidade da pessoa humana.360 O art. 10.1 da Constituição espanhola repisou o dogma da dignidade no sentido de que a mesma deve ser tomada como paradigma inalterável qualquer que seja a situação em que a pessoa se encontre, constituindo, em conseqüência, um mininum invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar.361 360 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na onstituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2004. “Para além disto, coloca-se o problema de saber quais direitos fundamentais efetivamente possuem um conteúdo em dignidade da pessoa humana, em outras palavras, se podem ser tidos como manifestação (exigência) direta ou, pelo menos, indireta desta dignidade. Ainda que se parta da premissa (não de todo inquestionável no sistema jurídicoconstitucional brasileiro) de que todos os direitos fundamentais possuem, como elementos comum, pelo menos um conteúdo mínimo em dignidade, remanesce a dúvida de qual é exatamente este conteúdo em dignidade que, para além disso, violação e, portanto, encontra-se vedada pelo ordenamento jurídico. Nesta linha de entendimento, nem mesmo o interesse comunitário poderá justificar ofensa à dignidade individual, esta considerada como valor absoluto e insubstituível de cada ser humano.: ”. 361 Ronald Dworkin, aponta para a necessidade do direito oferecer um certo grau de efetividade no que se refere aos direitos fundamentais, assessorando-se para tanto de standards que não funcionam como regras, mas trabalham com princípios, política e outros gêneros de standards, que aliados a norma jurídica dêem sustentação as interpretações jurídicas tento como paradigma a dignidade da pessoa humana. 246 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A civilização é uma ordem imposta a uma humanidade naturalmente desordenada. As sociedades humanas impõem compromissos, contratos – redução e submissão dos anseios e sonhos individuais ao princípio da realidade. E essa realidade são as normas, as regras que tornam possível a vida em sociedade, fruto de trocas constantemente negociadas, de sacrifícios impostos a todos os seus membros. Os valores que penetraram a consciência coletiva e modelaram o pensamento que norteou a aventura moderna foram a beleza, a limpeza e a ordem. Vale lembrar que o preço pago pelo quinhão de segurança advindo desses valores foi à abdicação da liberdade, a renúncia ao instinto, impondo grandes restrições à sexualidade e à agressividade humanas. Em verdade, nada predispõe o ser humano naturalmente aos valores de contenção de sua natureza instintiva, o que implica na necessidade de controle sobre os indivíduos, agindo sobre os seus impulsos. Dessa forma, os prazeres da vida civilizada moderna vinham num pacote fechado onde coexistiam prazeres e sofrimentos, satisfação e mal-estar, submissão e rebelião, pois ao excesso de ordem corresponde sempre escassez de liberdade. A insurreição contra esse primado da ordem, os fluxos libertadores do século XX transformaram essa realidade, de forma, dizem muitos, bastante radical. A globalização econômica, o desenvolvimento técnico-científico e a onipresença dos mídias formam o tripé de sustentação dessa nova ordem (ou desordem?) que caracteriza os tempos atuais. Nesse contexto, pode-se afirmar, segundo inúmeros teóricos, que a sociedade contemporânea celebra a liberdade como bem maior_ valor pelo qual todos os outros valores se pautam e se avaliam Aparentemente, os tempos contemporâneos são de euforia, mobilidade e profusão. Vive-se a era da desregulamentação, da ausência de regras. Presidida pelo princípio do prazer, a renúncia forçada que caracterizou a modernidade, converteu-se no reino de uma liberdade que chega à beira da selvageria. A liberdade tornou-se a referência pela qual todas as normas e resoluções passaram a ser medidas. 247 Realizados esses sonhos seculares, essas facilidades libertadoras e gratificantes, o homo mundialis modernicus experimenta a plasticidade, a maleabilidade, a ductilidade assustadoras de um novo tempo. Isso, todavia não significou a abdicação dos ideais de beleza, pureza e ordem, mas a crença na sua realização pelo desejo e esforço individuais, pois a sociedade contemporânea exibe um individualismo triunfante. Nesse sentido, é curioso que as celebrações a críticas da disseminação individual e a visão das sociedades como coexistência errática dos impulsos e desejos alcancem tanto prestígio. Como decorrência do processo de libertação, instaurou-se um individualismo que nada tem em comum com aquele próprio da responsabilidade, da recusa ao conformismo grupal, da vontade de emancipação pessoal. O indivíduo, como sujeito ativo da sociedade política e civil, cede lugar ao indivíduo-objeto, passivamente integrado à máquina social e respeitosamente preso a ela. A identidade pessoal então se quebra e o indivíduo deixa-se seguir à deriva num narcisismo que se afirma como semelhança: os mesmos impulsos de subjetividade, os mesmos desejos e prioridades, os mesmos hábitos constroem narcisos clonados. Não obstante a sociedade contemporânea, com todas essas características de libertação, desregulamentação, também produz estranhos.Nesse contexto, o estranho é aquele que, seguindo as tendências de descompromisso, indiferença e livre competição, leva-as ao extremo, ameaçando exibir o potencial suicida da estratégia. Os seres humanos que transgridem os limites transformam-se em estranhos, poluindo a alegria com angústia. Como forma de absorção dos estranhos, a sociedade contemporânea substitui as atividades de purificação dos estranhos por estratégias de desregulamentação e privatização. Estas ações políticas, pelas quais os consumidores ascendem à condição de cidadãos, implicam uma concepção do mercado não como simples lugar de troca de mercadorias, mas como parte de interações sócio-culturais mais complexas. Tais estratégias, no entanto, não significam o fim do martírio do estranho. O severo teste a que os estranhos são submetidos é mostrar-se capaz de ser seduzido pela infinita possibilidade e constante renovação promovida pelo mercado consumidor, interessado em 248 transformar o consumidor num permanente insatisfeito em busca de sensações cada vez mais intensas e de experiências novas. A sujeira que precisa ser removida são os consumidores falhos, incapazes de responder ao apelo do mercado, ironicamente porque aceitaram o desafio de levar a proposta pós-moderna às últimas conseqüências. O contexto de medo e insegurança se deve à nova desordem político-estrutural do mundo; à inquestionável prioridade conferida à irracional e cega competição do mercado; à desintegração ou enfraquecimento de outras redes de segurança como a família, a vizinhança, a comunidade local; e à incerteza a propósito do mundo material e social. Em razão desses medos, a sociedade contemporânea é extremamente vigilante. Trata-se de uma sociedade que é muito menos dos espetáculos do que da vigilância. Mas sua sabedoria está em transformar o próprio espetáculo em observatório de vigilância. A sociedade contemporânea apresenta características cada vez maiores de incivilidade: o indivíduo não é mais uma entidade estável provida de identidade intangível e capaz de fazer sua própria história, antes de se associar com outros indivíduos, autônomos, para fazer a história do mundo. Movido por uma pulsão gregária, é, também, o protagonista de uma ambiência afetual que o faz aderir, participar magicamente de agrupamentos escorregadios. A incivilidade é construída pela própria estrutura da sociedade moderna através (1) de lideranças políticas carismáticas que destroem qualquer distanciamento entre os sentimentos e impulsos do líder e os da platéia, desviando-a da possibilidade de medir seus atos. As mídias desempenham um papel crucial nessa deflexão superexpondo vida pessoal e obscurecendo competência e trabalho; (2) da perversão da fraternidade na experiência comunal moderna. O ato de compartilhar centraliza-se na decisão de quem deve pertencer a uma comunidade: quanto maior intimidade, menor passa a ser a sociabilidade. A fraternidade passa a se constituir pela exclusão dos intrusos. A sociedade contemporânea continua presa a parâmetros de beleza, pureza e ordem, porém nenhuma sociedade e nenhum grupo suportam por muito tempo a irrupção errática dos desejos, nem a conseqüente incerteza dos significados. As sociedades parecem acreditar que sua preservação está ameaçada ou prejudicada com a presença de certas pessoas que não se ajustam ao sistema, que estão fora de seu lugar, 249 que são negativas ou estragam o quadro, ofendendo o censo esteticamente agradável, harmonioso e moralmente tranqüilizador. O grande problema é que há nas sociedades pessoas ou seres para os quais não foi previsto ou reservado lugar em qualquer fragmento da ordem social. Essa pessoas ficam, pois fora do lugar em todos os lugares para os quais o modelo de pureza foi projetado, visto que o mundo dos que procuram pureza é pequeno de mais para acomodá-las. Hóspedes não convidados, esses seres, por não terem lugar, controlam sua própria localização e, ao fazê-lo: (1) revelam a fraqueza e a instabilidade de todas as acomodações; (2) desafiam não só o modelo de pureza, mas o próprio esforço de protegê-lo. Se os tempos contemporâneos são de euforia, mobilidade e profusão que aturdem os mais favorecidos, eles flagelam como um insulto os mais desprovidos de bens, avivando suas frustrações. É por meio dos rituais que os grupos selecionam e fixam, graças a acordos coletivos, os significados que regulam sua vida. Tanto isso é verdade, que a sociedade contemporânea, à revelia de suas aspirações de liberdade, adota um perfil punitivista como resposta à criminalidade organizada e ao terrorismo, males por ela própria gerada. Daí a importância de ser repisada, em termos doutrinários, a necessidade de se rechaçar de maneira categórica esse tipo de pseudo solução encontrada pelas sociedades pós-modernas, que entabulam a obrigatoriedade de respostas veementes para a contenção do flagelo da criminalidade, tais como o recrudescimento das penas e da legislação punitivista. O punitivismo age diversamente de todo garantismo construído no transcorrer da história da humanidade que entende que a violência penal só pode ser exercida restritivamente e com o respeito aos direitos e garantias individuais, não permitindo que seja submetido à pena, qualquer sujeito (ente vivo), sem que antes lhe seja legado o cumprimento de um ordenamento pautado pela observância dos direitos fundamentais e dos princípios da dignidade da pessoa humana. As realidades atuais têm mostrado uma atuação diversa desses determinismos humanitários categóricos. São evidentes hoje, na prática, tanto legislativa quanto judicial, altas doses de punitivismo realizado com a anuência e concordância da comunidade jurídica que, não fixa posições ante a esse 250 retrocesso jurídico que, em muitos casos, além de suprimir direitos e garantias individuais, opera pela inquisição sumária de seus suspeitos. Agir à deriva da uma construção histórica alicerçada na continuidade e no desenvolvimento da sociedade e de sua construção humanitária, condizente com o respeito à dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais, implica eliminar o direito e a equidade, negando a todos (igualitariamente) erga ominis os ditames da lei. Essa função de filtragem do que é válido ou inválido está reservada aos juízes e, sobretudo, às Cortes Superiores. Relegando o inimigo à qualidade de uma não-pessoa, abstrai-se a vitalidade a ele inerente, uma vez que deixa de ser visto como um sujeito de direitos. Como se intensifica a ação punitiva contra todo aquele que não detém a possibilidade de responder a obrigações e ter direito aos direitos, pois é dispensado pela exclusão de todos os pactos sociais: é inqualificável a quantidade de violência a ele dispensada em todas as partes do mundo, particularmente nos países periféricos (incluindo-se a América Latina), por onde transpassa a combinação da ausência de tradição democrática com uma mídia e um legislador comprometidos com a ideologia do punitivismo a qualquer preço, aliado a todo tipo de privação a que se possa imaginar, da saúde à fome. Certamente, não se pode ser ingênuo ao avaliar a situação atual, conferindo ênfase ao punitivismo como instrumento prioritário para fazer frente às mais variadas questões. Deve-se, antes, reforçar a necessidade de manutenção de uma posição garantista e do respeito inarredável aos direitos e garantias individuais, bem como a defesa do desenvolvimento de uma sociedade marcada por uma ênfase diametralmente oposta a da violência institucionalizada e dogmatizada. Nada justifica a negação do próprio direito através de práticas exterminatórias, que acabam por colocar em risco a própria estrutura do estado. 251 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADEODATO, João Maurício. O problema da legitimidade: no rastro do pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. AFTALIÓN, Enrique. Tratado de derecho penal especial. Buenos Aires: Ediar, 1963. AGAMBEM, Giorgio. Homo sacer O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002. AGAMBEN, G. Homo Sacer. Belo Horizonte: UFMG, 2002. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito, poder e opressão. São Paulo: Alfa-Ômega, 1990. AITH, Márcio. 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