universidade luterana do brasil ulbra

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UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
MESTRADO
ULBRA
A FLEXIBILIZAÇÃO DAS GARANTIAS CRIMINAIS FRENTE AO
TERRORISMO E À CRIMINALIDADE ORGANIZADA
Liza Bastos Duarte
Canoas
2006
UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
MESTRADO
A flexibilização das garantias criminais
frente ao terrorismo e à criminalidade organizada
Liza Bastos Duarte
Dissertação
apresentada
ao
Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade Luterana do
Brasil para obtenção do título de
Mestre em Direito
Orientador: Dr. José Nereu Giacomolli
Canoas, 2006
A flexibilização das garantias criminais
frente ao terrorismo e à criminalidade organizada
Autora: Liza Bastos Duarte
Dissertação submetida ao Corpo Docente do Programa de PósGraduação em Direito da Universidade Luterana do Brasil, como parte dos
requisitos necessários para obtenção do título de
Mestre em Direito
Área de Concentração: Direitos Fundamentais
Orientador: Prof. Dr. José Nereu Giacomolli
Comissão de Avaliação:
Drª. Wanda Capeller
Dr. Jaime Weingartner Neto
Dr. Ângelo Roberto Ilha da Silva
Prof. Dr. Wilson Steinmetz
Coordenador do PPGDir
D812f
Duarte, Liza Bastos
A flexibilização das garantias criminais frente ao terrorismo
e a criminalidade organizada. - Porto Alegre, 2006.
293 f.
Dissertação (Mestrado em Direitos Fundamentais,
Faculdade de Direito) – Universidade Luterana do Brasil,
2006.
“Orientação: Prof. Dr. José Nereu Giacomolli”.
1. Flexibilização das garantias. 2. Terrorismo e criminalidade.
3. Dignidade da pessoa humana. 4. Expansão do direito penal.
5. Direito penal do inimigo. I. Giacomolli, José Nereu. II. Título.
Catalogação na publicação: Patrícia C. Cezar – CRB:10/1222
Dedico a ti Bebeth,
Pela leitura e debate
Pela obstinação
Por nunca teres desistido de nós
Por me amares incondicionalmente
Pela tua coragem e generosidade
Pelas falas e pelos silêncios
Por tão bem me entender
Por tentares inutilmente frear minhas paixões
Pela tua busca da beleza nos pequenos detalhes
Pela tua ambição e teu brilho (deseja mãe, eu agüento!)
Por povoares o mundo (de muitos) com tuas idéias e ideais
Pela musicalidade que te habita
Pelo dom da palavra e da poesia
Pelo alimento e o não lamento
Pelo paradigma (vou tentar responder!)
Por seres incansável e visionária
Obrigado, mãe, eu me orgulho de ti.
....E a Júlia
pois nada do que eu possa fazer ou pensar
está destituído da tua presença.
AGRADECIMENTOS
-
Agradeço ao meu orientador, Nereu José Giacomolli, pela dedicação e orientação
segura;
-
Agradeço à Universidade Luterana do Brasil, porque acreditou em mim, havendo
me agraciado com uma bolsa parcial para a realização deste mestrado;
-
Agradeço a Daniele de Souza, por ter sabido tão bem cuidar da Júlia durante
minhas ausências.
RESUMO
A presente dissertação propõe-se a realizar uma reflexão aprofundada sobre a tendência
contemporânea de expansão do discurso jurídico penal, frente ao contexto de terrorismo
e criminalidade organizada que caracteriza este início de terceiro milênio. Trata-se de
uma abordagem que propõe adentrar no campo jurídico – lugar de onde se fala –, de forma
a articular questões políticas e jurídicas em torno das novas doutrinas e discursos que
professam a necessidade da supressão de alguns dos direitos e garantias individuais, para
determinadas classes de cidadãos, oriundos do contexto do terrorismo e da criminalidade
organizada, indivíduos esses, que, segundo a doutrina do direito penal do inimigo, estão à
margem do contrato social. Esse tema central é então discutido a partir da contraposição
entre garantias constitucionais e necessidade de segurança, atualizadas pelos atentados
terroristas aos Estados Unidos. Nessa perspectiva, o trabalho se propõe à análise das
alterações ocorridas na postura do direito penal e a expansão do direito penal
contemporâneo após o advento do atentado; à verificação e discussão da expansão da
doutrina do direito penal do inimigo, como forma de combater a esse tipo de
criminalidade; ao exame do discurso jurídico penal e, em especial o discurso do direito
penal (para) do inimigo e de suas matizes, confrontando-o com o princípio da dignidade da
pessoa humana.
Palavras-chaves: Garantias. Dignidade. Pessoa. Terrorismo. Criminalidade
organizada.
ABSTRACT
The following dissertation has as objective a careful thought over the contemporary
tendency of expanding the penal judicial discourse, in face of the terrorism and
organized crime context that characterizes the beginning of this 3rd millennium. It is an
approach that intends to enter the judicial field -- the place from where this comes from --,
so that it is possible to debate political and judicial questions around the new doctrines and
discourses that profess the need of suppression of some individual rights for some classes
of citizens, such as those who come from the context of terrorism and organized crime.
Those individuals, according to the doctrine of enemy penal law, are at the margin of the
social contract. This central theme is then discussed after the contraposition of
constitutional rights and the need of security, updated by the terrorist attacks to the
United States of America. Under this perspective, this paper analyses the alterations
done to the position of penal law and the expansion of contemporary penal law after the
attacks; to verify and discuss the expansion of the doctrine of enemy penal law as a way
to fight this kind of crime; to examine the penal law discourse, and in special the enemy
penal law discourse and of its different shades, confronting it to the principle of human
being dignity.
Key-words: Rights. Dignity. People. Terrorism. Organized crime.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................
10
1 CRIMINALIDADE: TERRORISMO E CRIME ORGANIZADO................
1.1 Ações terroristas e os direitos fundamentais..............................................
1.2 O ápice do terrorismo no séc. XXI...............................................................
1.3 Entre o terrorismo e a criminalidade organizada.......................................
1.4 Cultura do medo ...........................................................................................
18
21
35
48
55
2 O DISCURSO JURÍDICO PENAL................................................................... 67
2.1 A interpretação da lei frente ao discurso jurídico penal............................ 92
3 EXPANSÃO DO DISCURSO PENAL E DIREITOS FUNDAMENTAIS....
3.1 O discurso da emergência e a relativização das garantias.........................
3.2 Contextualização da expansão......................................................................
3.3 Discurso penal do inimigo.............................................................................
3.4 Estado de exceção...........................................................................................
106
106
129
155
192
4 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.........................................................
4.1 Histórico da dignidade da pessoa.................................................................
4.2 Atualizações contextuais do conceito de dignidade.....................................
4.3 A dignidade da pessoa humana como sustentáculo aos direitos
fundamentais..........................................................................................
4.3.1 Eficácia da dignidade da pessoa humana.............................................
4.3.2 A (im)possibilidade de relativização do caráter absoluto da
dignidade..........................................................................................................
213
216
225
254
235
240
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 245
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................. 251
INTRODUÇÃO
A presente dissertação propõe-se a realizar uma reflexão aprofundada sobre a
tendência contemporânea de expansão do discurso jurídico penal, frente ao contexto de
terrorismo e criminalidade organizada que caracterizam este início de terceiro milênio.
Possui a dissertação desenvolvida como tema central as questões referentes às garantias
constitucionais contrapostas às necessidades de segurança, atualizadas pelos atentados
terroristas aos Estados Unidos, visando: 1) à análise das alterações ocorridas na postura do
direito penal e a expansão do direito penal contemporâneo após o advento do atentado; (2)
à verificação e discussão da expansão da doutrina do direito penal do inimigo, como forma
de combater a esse tipo de criminalidade; (3) a análise do discurso jurídico penal e em
especial o discurso do direito penal do inimigo e de suas matizes e seu confronto com a
dignidade da dignidade da pessoa humana.
Trata-se de uma abordagem que propõe adentrar no campo jurídico – lugar de onde
se fala –, de forma a articular questões políticas e jurídicas em torno das novas doutrinas e
discursos que professam a necessidade da supressão de alguns dos direitos e garantias
individuais, de determinadas classes de cidadãos, oriundos do contexto do terrorismo e da
criminalidade organizada, categorias de indivíduos, que segundo a doutrina do direito
penal do inimigo estão à margem do contrato social.
Frente ao tema desenvolvido levantam-se diversas questões, as quais se buscaram
respostas, não só na doutrina, mas no confronto com ações concretas e de certa forma
legitimadas pelas diferentes posições assumidas frente ao terrorismo e à criminalidade
organizadas. A formulação do problema de pesquisa se deu a partir dos seguintes
questionamentos: 1) O Estado pode permitir a minimização dos direitos e garantias
individuais, operando de forma sumária com procedimentos que violem estas garantias
11
fundamentais? ; 2) Em que se constitui e fundamenta a teoria do direito penal do inimigo e
quais seriam as justificativas legais para esse retrocesso doutrinário nas teses do
minimalismo do direito penal? ; 3) as posições doutrinárias relativas ao direito penal do
inimigo, num segundo momento, não ameaçariam toda a construção histórica da
humanidade em torno dos direitos fundamentais, dando guarida a ações arbitrárias e
tribunais de exceção? ; 4) Em algum outro momento histórico da humanidade doutrinas
como as do direito penal do inimigo já foram usadas para camuflar intenções política
escusas e práticas de aniquilamento de alguns segmentos da sociedade?
O tema merece e carece de uma discussão aprofundada, pois toda a ficção
cinematográfica ficou aquém do ataque terrorista às torres do World Trade Center,
reabrindo, de forma vigorosa, o questionamento sobre a violência indiscriminada que
assola o mundo contemporâneo e comprovando a ineficácia do Estado em conferir
mínimas condições de proteção aos cidadãos. Quando o coração de Nova York foi ferido,
soube-se que o inconcebível poderia acontecer. E acontecer diante dos olhos esbugalhados
da população planetária: o atentado foi planejado com todos os requintes de um espetáculo
midiático. Essa visão apocalíptica estarreceu a todos ceifando em parte da esperança, a fé e
a dignidade da raça humana.
A princípio tudo cheirava à irrealidade; afinal, o episódio parecia a repetição, com
novidades, de mais uma catástrofe cinematográfica, realmente empolgante pelo grau de
veracidade conseguido pelo engenheiro de efeitos especiais, trata-se de espetáculo limpo
de estertores, de jorros de sangue, de carnes esmagadas, de ossos triturados. Segundo o
prêmio Nobel, José Saramago, o horror agachado como animal imundo, esperou que
saíssemos da estupefação para nos saltar a garganta. O horror disse pela primeira vez
aqui estou quando aquelas pessoas saltaram para o vazio como se tivessem acabado de
escolher uma morte que fosse sua, agora o horror aparecerá a cada instante ao removerse uma pedra, um pedaço de parede, uma chapa de alumínio retorcida, e será uma cabeça
irreconhecível, um braço , uma perna, um abdômem desfeito, um tórax esparramado.
Mas estas cenas que num primeiro momento tanto nos chocaram imediatamente
assumiram o gosto do deja vú: de certo modo, este espetáculo aparentemente ficcional
dado o surrealismo da violência já era familiar pelas imagens daquela Ruanda de um
milhão de mortos, daquele Vietnã cozido a napalme, daquelas execuções em estádios
12
cheios de gente, daqueles linchamentos e espancamentos, daqueles soldados iraquianos
sepultados vivos debaixo de uma tonelada de areia, daquelas bombas atômicas que
arrastaram e chacinaram Hiroshima e Nagasaki, daqueles crematórios nazistas a vomitar
cinzas, daqueles caminhões a despejar cadáveres como se de lixo se tratasse.
Só depois, aos poucos, foi-se estabelecendo a medida da distância entre o caráter
fantástico da imagem e a tragédia real por ela revelada e ao mesmo tempo ocultada.
Tragédia direta e imediata para as famílias das milhares de vítimas do atentado; hecatombe
iminente para todo o planeta, prenúncio de uma guerra de todos contra todos, feroz e sem
fim, e o pior, sem inimigo certo.
Ao contrário da maquilagem que normalmente acontece, quando estados
poderosos-imperialistas subtraem os efeitos de seus massacres cotidianos, selecionando as
imagens dos povos colonizados e excluindo, muitas vezes, as cenas de fome e miséria a
que é exposta a população_ as fantásticas cenas do fatídico 11 de setembro, que passaram
por um processo de triagem, tentavam evitar, no limite do possível, a visualização do
estado americano diante de sua imensa impotência.
Mas o que enxergamos não define com precisão o inimigo, apenas embaralha os
dados. Embora as cenas dramáticas assistidas nos coloquem frente ao dever de apoiar uma
das partes, dado o grau de absurda violência impetrada contra inocentes, cabe-nos, ainda
assim, sopesar as duas faces do conflito.
Na medida em que a nova guerra não se resume a um conflito entre estados e
nações, cujas populações estariam sendo postas em perigo, mas se exerce contra um outro
indeterminado e sem face, o perigo é resvalar a ação para o plano em que o inimigo a
colocou. Com intuito de combater, não pode o estado se valer dos mesmos métodos
desrespeitosos que o converteriam, então, em uma nação terrorista. Emprestar ao inimigo o
rosto de Bin Laden consiste num estratagema que, ao catalisar todo o ódio de vingança a
qualquer preço, implica simultaneamente a perda das garantias constitucionais, tais como
liberdade, a identidade, a vida privada –tão caras à nação americana e planetária. E é nesse
sentido que todos já perdermos, na medida em que fomos levados a conviver, pelo menos,
com duas formas de terror. A primeira diz respeito ao surto de um indivíduo ou de um
grupo que leva ao extremo sua rebeldia e violência. Não há como erradicá-la,
13
principalmente porque a complexidade crescente do mundo cotidiano e dos modos de
estruturação social multiplicam as fissuras por onde podem ser introduzidas lâminas que
impedem o funcionamento desse enorme organismo que é o Estado.
A segunda diz respeito ao controle: quanto mais esse mundo se torna
complicado, quanto mais crescentes são os estímulos padronizados para a violência,
tanto mais nascem possibilidades práticas de controle. O desafio que então se coloca é
como encontrar instituições reguladoras capazes de evitando restringir as liberdades
democráticas, impedir atos terroristas como os que viveu os Estados Unidos, não só
com as explosões das torres e do Pentágono, tampouco com a disseminação do vírus
como o Antraz, mas também com a violência que seus soldados infringem à população
civil iraquiana.
O governo americano, após o 11 de setembro, implementou medidas para
combater o terrorismo, entre elas a detenção de mais de seiscentos imigrantes com
situação irregular por período indeterminado, em prisões. Em 26 de outubro de 2001, o
presidente Bush assinou o USA Patriot Act que concedeu ao governo maiores poderes
para prender e deter estrangeiros suspeitos. Em outubro de 2001 o presidente Bush
baixou uma ordem executiva permitindo as autoridades policiais monitorar
comunicações entre presos federais e seus advogados, sem a obtenção de uma
autorização judicial, assinou também uma ordem autorizando o uso de tribunais
militares para interrogar e levar a juízo pessoas que sejam eventualmente terroristas,
com o objetivo de evitar o risco de ataques terroristas.
O governo americano, com as ações acima descritas, inaugurou o que ficou
conhecido como a "Guerra contra o terror". Porém deter o inimigo não é tarefa fácil, as
associações terroristas são ambulantes por dever de ofício. Os terroristas obedecem às
descrições de pessoas normais, vivendo vidas cotidianas, ao mesmo tempo em que se
preparam cuidadosamente para atacar e morrer. Não é isso que sempre se chamou
coragem? Mas, a partir do momento em que admitimos essa coragem, também é preciso
indagar o motivo dela. Por que não se tornaram soldados regulares? A história ensina
que o militante se converte em guerrilheiro quando está irremediavelmente acuado,
quando os exércitos em que poderia se integrar foram desbaratados, nada mais lhe
restando, para continuar a luta, do que se dispersar em pequenos grupos, tentando
14
aferroar o inimigo pelas costas, pelos lados, nunca de frente. O terrorista sem rosto
constitui uma ameaça que, ao ser mordida pela astúcia ou pela mera força bruta, é
salamandra que renasce de suas cinzas.
É emblemática a postura dos terroristas que, ao arrepio da lei e do direito,
dispõem-se a provocar atos por intermédio de ações violentas que objetivam
desestabilizar nações. Sem dúvida, é preocupante o desiderato daqueles que praticam
ações terroristas e a razão por que escolhem o caminho do aniquilamento, do suicídio,
da morte. Porém à revelia das entidades de proteção aos direitos aqueles que foram
desrespeitados, vários estados violentam com a mesma desmedida: recorrem, com igual
desprezo aos direitos humanos e idêntico (ou maior, muito maior!) emprego da
violência física e psicológica contra àqueles que são tidos como inimigos.
Abordando a expansão gradativa do direito penal contemporâneo que o atentado
terrorista de 11 de setembro aguçou, far-se-á um apanhado geral dos contínuos avanços e
retrocessos realizados pelo direito penal, demonstrando que o séc. XXI inaugurou uma fase
de retrocessos, na qual, em nome da criminalidade organizada e do terrorismo o mundo
assiste e muitas vezes anui ao total desrespeito à dignidade da pessoa humana e a
vulnerabilização dos direitos e garantias dos cidadãos. O direito penal do inimigo inaugura
um discurso que serve a métodos inquisitórios, aumentando as fronteiras puníveis,
mudando assim o papel que se atribuído ao direito penal para dar conta de interesses
eleitorais e políticas criminais eliminatórias e descriminalizatórias.
A expansão do direito criminal como um discurso simbólico revestido de uma
ideologia otimizante se efetiva à custa de mudanças importantes na estrutura e nas
garantias do direito penal. Este propósito instrumental de tutela dos bens jurídicos como
meio simbólico de reduzir o caos e a insegurança da sociedade sinaliza para um déficit de
operacionalidade marcante oriundo do aumento esquizofrênico do número de leis punitivas
e demonstrando a incapacidade do sistema penal de estruturar e dar solução a todas as
demandas a ele exigidas, atuando sempre como resposta tardia às solicitações
problemáticas que o contexto social lhe impõe.
A monografia em tela pretende, então, dissertar a respeito desta expansão operada a
nível mundial após o 11 de setembro que incidiu em termos globais tornando o direito
15
penal mais abrangente e severo e o direito processual penal mais flexível e menos
garantista, abordando os efeitos desta maximização legislativa simbólica no direito
brasileiro. O direito penal brasileiro, melhor dizendo latino americano, é o reflexo de uma
ideologia messiânica e de uma economia imperialista, imprimida pelos Estados Unidos e
pela da classe dominante brasileira, que se vale do direito penal simbólico para, pelo
discurso jurídico penal, dissipar as desigualdades sociais, usando do apelo à feitura de
justiça para maquilar a imensa massa de excluídos que por falta total de alternativas
possíveis aderem a criminalidade como tentativa de inclusão (por via transversa) social.
Pretende-se, nesse sentido, examinar, à luz de diferentes posições sócio-jurídicas
a legitimidade do discurso jurídico penal, o contexto econômico que dá origem a
construções jurídicas como a doutrina do direito penal do inimigo, bem como verificar
quem são esses sujeitos apenados, configurados pela doutrina como inimigos.
A dissertação organiza-se em quatro capítulos, além dessa introdução e da
conclusão. O primeiro capítulo objetiva traçar um panorama do contexto da
criminalidade contemporânea, tratando do tema criminalidade organizada latu sensu,
compreendendo a criminalidade oriunda do terrorismo e aquela proveniente do crime
organizado, observando a criminalidade tanto no seu aspecto associativo quanto
organizacional,
salientando que a primeira independentemente de motivações
econômica, política, ou religiosas; e a segunda, ao contrário, diz estar fundada em
motivações econômica, política e religiosas, porém é sustentada por um discurso de
caráter ideológico justiceiro alicerçando com seus argumentos uma investida violenta
contra alvos civis e dando suporte a uma cultura do medo dela decorrente, responsáveis
pela dualidade entre o minimalismo e a expansão do direito penal.
O segundo capítulo centra-se em aspectos afeitos ao discurso penal e a
interpretação dos crimes à luz desse discurso, demonstrando seu caráter manipulatório e a
possibilidade de inserção nesse discurso jurídico penal intenções diversas do que a priori o
mesmo foi instrumentado a comunicar, inflacionado-o de intenções que vão da tutela de
bens jurídicos até a veiculação de propósitos simbólicos e políticos, que visam ao fim e ao
cabo maquilar a ineficácia do Estado em dar eficácia aos direitos fundamentais previstos
constitucionalmente.
16
O terceiro capítulo disserta a respeito da expansão do discurso penal, o contexto
que o mesmo ocorre, o punitivismo exacerbado ínsito a ele e o apogeu desta maximização
do direito penal, entabulada através do discurso do direito penal do inimigo e de sua
proposta de formalização teórica da total disponibilização/mitigação dos direitos e
garantias individuais, justificando que a expansão acentua ao invés de minimizar o caos
social e diversamente de estarmos sob a égide de um estado democrático de direito
estamos invertendo a ordem de um estado de direito fazendo da exceção a regra e
vivendo sob o império do estado de exceção.
O quarto capítulo aborda os limites constitucionais das possibilidades intervenção
do Estado nos direitos individuais dos cidadãos e restrição/mitigação da dignidade da
pessoa humana, traçando um estudo aprofundado da dignidade como núcleo essencial das
constituições democráticas do mundo, paradigma interpretativo a dar unidade às
Constituições, contrapondo-o com a necessidade da seguridade jurídica, efetivação do bem
estar social e dos direitos fundamentais e minimização dos riscos oriundos da
contemporaniedade.
Aborda-se os direitos e garantias individuais impressos nas
legislações globais, desenvolvendo um breve histórico da dignidade da pessoa humana,
comentando as atualizações contextuais do conceito de dignidade e o princípio da
dignidade da pessoa humana como sustentáculo das constituições democráticas e como
paradigma que dá sustentação e unidade a Constituição, dissertar-se-á também sobre a
eficácia da dignidade da pessoa humana, sua interpretação dentro do contexto da ordem
constitucional e as (im)possibilidades de relativização de seu caráter absoluto. Esta
análise tem como pano de fundo o atentado ao Worl Trade Center.
O capítulo cinco são as conclusões finais: uma abordagem parcial de todos os
argumentos desenvolvidos no transcorrer da dissertação e a demonstração do perigo da
semeadura do direito penal do inimigo como discurso acadêmico, político e jurídico e a
ameaça que o mesmo representa no estado democrático de direito alicerçado na
dignidade da pessoa humana como eixo paradigmático que dá unidade a qualquer a
constituição.
Para a realização do trabalho em tela, fez-se primeiramente uma análise
histórica do terrorismo e de com o mesmo influenciou a expansão do direito penal: a
pesquisa foi realizada através de um aprofundado levantamento bibliográfico em livros
17
e revistas jurídicas, filosóficas e históricas, sua leitura, seu compilamento, a digitação
dos dados mais importantes e as citações de outros autores pertinentes aos temas
pesquisados. Por fim, após o cotejamento dos materiais pesquisados a da procura de
autores que viessem a endossar as conclusões tomadas pela autora realizou-se a
digitação final na qual a participação da pesquisadora nas teses suscitadas pode ser
notada.
Na abordagem do trabalho fez-se uso do raciocínio dedutivo buscando explicar o
conteúdo das premissas levantadas e obter uma nova decorrente da análise das
anteriores. Essa nova premissa foi determinada por intermédio de uma cadeia de
raciocínios em ordem descendente, de análise do geral para o particular chegando-se
assim a uma conclusão.
A pesquisa possibilitou, através de uma combinação de
observação cuidadosa e intuição científica, alcançar um conjunto de postulados que
governam os fenômenos sociais e jurídicos, a partir disso, por meio de experimentos
intelectuais, deduziu-se as conseqüências e refutou-se alguns postulados, substituindoos por outros que se enquadravam melhor nas teses pesquisadas. O pesquisa foi
direcionada com o propósito de levantar um conjunto de postulados que governam os
fenômenos sociais que ensejaram a expansão do direito penal e a possibilidade jurídica
de flexibilização dos direitos e garantias fundamentais e suas conseqüências.
A dissertação está vinculada a linha de pesquisa II, do Mestrado em Direito
Fundamentais, da Universidade da Universidade Luterana do Brasil, que busca através
de um repensar da sociedade acadêmica a respeito do tema, a conscientização e a
concretização dos direitos fundamentais no Estado Social e Democrático de Direito, sua
eficácia e seu contínuo processo de desenvolvimento e proteção por meio da jurisdição
constitucional que crie instrumentos processuais adequados para a garantia dos direitos
fundamentais, oferecendo ao operador do direito uma possibilidade de interpretação do
direito mais voltada para às questões sociais de nosso tempo. O desenvolvimento e a
proteção dos direitos fundamentais no sentido de sua garantia no plano normativo
material (legislação) e no plano processual (legislação e jurisdição), afirmando a
impossibilidade de total flexibilização das garantias constitucionais e o perigo que
representa abdicar das mesmas.
18
1 CRIMINALIDADE: TERRORISMO E CRIME ORGANIZADO
O presente capítulo trata do tema criminalidade organizada latu sensu,
compreendendo a criminalidade oriunda do terrorismo e aquela proveniente do crime
organizado. A criminalidade no mundo contemporâneo assumiu contornos bem
particulares: em primeiro lugar pelo seu aspecto associativo – trata-se de uma rede, na
maioria das vezes transnacional que abarca múltiplos crimes, não se cingindo a um
único ilícito penal; em segundo, porque, independentemente de suas motivações
econômica, política, ou religiosa, é sustentada por um discurso de caráter “justiceiro”,
promovido pela cultura do medo, que ao invés que minimizar os efeitos da violência os
potencializa, dando suporte a abusos de poder por parte do Estado e de suas agências
executivas.
A criminalidade oriunda do terrorismo, geralmente, é direcionada e
propulsionada (agora na contemporâniedade) por fatores políticos, ou seja, visa pela
violência demonstrar o grau de insatisfação de um grupo pelo contexto governamental,
econômico, político, ideológico ou religioso a que este grupo é submetido, pretende que
sejam lidos os atos de violência, como uma manifestação política de sua insurreição. A
criminalidade decorrente do terrorismo assume assim um cunho de disputa política,
ideológica ou religiosa (por disputas ou privilégios decorrentes de posturas religiosas),
não é eminentemente e necessariamente uma violência direcionada a tomar para si os
bens e os signos do capitalismo, mas, muitas vezes uma manifestação contra as
conseqüências de seu sistema de exclusão e de exploração de significativa parcela da
população que vive à mercê do imperialismo econômico ditado pelas nações
desenvolvidas.
A criminalidade proveniente do crime organizado trata-se de outra espécie de
criminalidade, destituída deste cunho político e/ou de manifestação ideológica, opera
simplesmente para a obtenção dos lucros decorrentes destas atividades ilícitas. Este tipo
de criminalidade não assume nenhuma postura ideológica que paute sua ação, pois ela é
decorrente, tão somente, de interesses econômicos, diferentemente das do terrorismo,
visa eminente e necessariamente apossar-se dos bens e os signos do capitalismo através
de atividades ilícitas.
19
É
importante
ressaltar
que
a
criminalidade
organizada
vem
sendo
indistintamente utilizada como gênero do qual são espécies os mais diversos crimes, tais
como os monetários – especialmente falsificações de moedas e títulos públicos –
lavagem de dinheiro, fraude nos sistemas financeiros, crimes de extorsão, corrupção,
concussão, prevaricação, contrabando de mercadorias, de materiais radioativos, de
tecidos humanos, comercio de armas (eventualmente até nucleares), drogas, tecnologias
sofisticadas mediante espionagem industrial ou compra de segredo, prostituição, trafico
de mulheres e crianças, crimes ecológicos, roubo de cargas, terrorismo, pirataria,
falsificação de remédios, dentre vários outros. A mídia Basta que se assista a um
noticiário, se tenha acesso a jornal, revista, internet, ao discurso de um político, de um
policial, e até mesmo advogados, promotores de justiça e magistrados. Nesse sentido
salienta “A criminalidade organizada vem sendo indistintamente utilizada como gênero
do qual são espécies os mais diversos crimes, tais como os monetários – especialmente
falsificações de moedas e títulos públicos – lavagem de dinheiro, fraude nos sistemas
financeiros, crimes de extorsão, corrupção, concussão, prevaricação, contrabando de
mercadorias, de materiais radioativos, de tecidos humanos, comercio de armas (
eventualmente até nucleares), drogas, tecnologias sofisticadas mediante espionagem
industrial ou compra de segredo, prostituição, trafico de mulheres e crianças, crimes
ecológicos, roubo de cargas, terrorismo, pirataria, falsificação de remédios, dentre
vários outros.Não raro, os exemplos são sobremaneira ampliados sem qualquer
preocupação técnica(cite-se apenas como exemplo, a adjetivação do Movimento
Nacional sem-terra, como modalidade de crime organizado). Basta que se assista a um
noticiário, se tenha acesso a jornal, revista, internet, ao discurso de um político, de um
policial, e até mesmo advogados, promotores de justiça e magistrados. Salienta-se que
a lei n° 9.034/95 não elucidou o conceito de criminalidade organizada, manifestando-se
de forma omissa quanto à sua conceituação e fazendo uma homogenização de conceitos
distintos como o de organização criminosa, criminalidade organizada e quadrilha ou
bando, já tipificados no ordenamento jurídico brasileiro. A lei n° 9.034/95 foi revogada
pelo artigo 1° da lei n° 10.217/01, porém esse mandamento legal declarou apenas a
existência da distinção entre os crimes de quadrilha ou bando e de associação
criminosa do crime organizado, sem, contudo, solucionar o problema apontado”.1
1
BECK, Francis Rafael. Perspectivas de controle: ao crime organizado e a crítica à flexibilização das
garantias. São Paulo: IBCCRIM, 2004, p.68
20
O aspecto associativo, relacional é responsável por uma prática criminal
cuidadosamente estruturada, que se utiliza indiscriminadamente da população civil
como massa de manobra e escudo para conferir êxito às suas ações.
O aspecto referente ao discurso justicialista recupera os traços caóticos da
sociedade contemporânea, principalmente no que concerne à perversidade do modelo
econômico globalizador adotado e às injustiças sociais dele decorrentes, assumindo
configurações “Robin hoodianas”. Não obstante, as formas que adotam e as razões que
convocam, essas organizações criminosas hoje se estabelecem como um governo
paralelo aos estados-nação, muitas vezes ultrapassando as fronteiras de um país. Tais
organizações se estabelecem sob o formato de terrorismo ou crime organizado.
Embora o terrorismo também seja expressão da manifestação de uma
criminalidade organizada possuindo os mesmos contornos dessa, sua distinção reside
nos objetivos a serem alcançados com a atividade ilícita que são diversos dos do crime
organizado. 2 3
O Brasil carece da descrição do tipo penal do terrorismo, como também, do que
seja a criminalidade organizada, omitindo-se a legislação quanto ao estabelecimento de
contornos mais precisos a respeito do conceito de criminalidade organizada, o que
dificulta seu enquadramento. Assim, entre nós, o conceito de criminalidade organizada,
apesar da tentativa de algumas leis especiais em defini-la, continua difuso, diante da
complexidade de condutas que o conceito de criminalidade organizada abarca.4 5
2
Registre-se que grupos de narcotraficantes estão associando-se a movimentos terroristas que, por sua
vez, têm no comércio ilegal de drogas uma importante fonte de recursos para financiar suas operações.
Constata-se, portanto, uma combinação literalmente explosiva, o que torna essa questão mais complexa e
preocupante. Neste sentido MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime organizado aspectos gerais e
mecanismos legais. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, p.6. “Crime Organizado é qualquer ato
cometido por pessoas ocupadas em estabelecer divisão de trabalho: uma preposição por delegação para
prática de crimes como a divisão de tarefa também inclui, em última análise, uma posição para
corruptor, uma para o corrompido e uma para um mandante”.
3
Vale observar que o terrorismo pode ser dividido em dois grandes grupos: a) organizações que agem por
motivações políticas e ideológicas contra uma população específica ou um determinado governo; b) o
terrorismo de estado, patrocinado por governos interessados em desestabilizar e aniquilar nações rivais ou
grupos populacionais específicos.
4
Não há figura típica no direito brasileiro que defina o crime de "terrorismo". Encontramos menção na
CF/88 e na Lei dos crimes hediondos, mas sem a identificação de quais seriam os atos de terrorismo.
21
Pela ausência de definição precisa, o conceito é, então, volátil, aberto,
absolutamente poroso, visto que o legislador omitiu-se, na sua enunciação típica, não
oferecendo sequer a descrição mínima das atividades que pressupõem serem tidas como
atividades específicas da criminalidade organizada. É inócua, por via de conseqüência,
leis como a 9.034/1995, que passam a servir apenas como letra morta. Trata-se de uma
enunciação abstrata que nada comunica, tampouco veda, tornando-se imprestável para a
interpretação restritiva a que invoca o direito penal e que garante a um conteúdo
normativo que atenda o princípio da legalidade.6
As seções que seguem deste capítulo procuram traçar um panorama deste tipo de
criminalidade, tentando, além disso, distinguir terrorismo de crime organizado e
examinar a suas conseqüências, materializadas através da cultura do medo.
Desta forma, mesmo que o sujeito pratique atos de terrorismo e com isso obtenha bens e dinheiro, as
condutas de omitir ou dissimular a natureza deles não poderá configurar crime de lavagem, pois o
legislador não o terrorismo como crime antecedente.
22
1.1 Ações terroristas e os direitos fundamentais
O terrorismo pode ser entendido como a externalização de uma postura ideológica,
com objetivos políticos ou religiosos, manifesta pelo uso sistemático de violência contra
civis ou militares. A ação terrorista é sempre realizada por grupos de criminalidade
organizada, ainda que possa se manifestar através de uma só pessoa (p.e. homem
bomba), sendo múltiplos os seus propósitos: a coação frente a total vulnerabilidade da
população a esse tipo de violência; a desestabilização do poder formal dos estados e de
suas instituições; a submissão do povo ao terror, etc... Na pauta dos métodos terroristas,
está sempre à destruição da vida humana em nome desses princípios ideológicos,
políticos ou religiosos.
O nome terror, que significa “medo, uma ansiedade extrema correspondendo
com mais freqüência, a uma ameaça vagamente percebida, pouco familiar e largamente
intimidante”, tem seu registro em língua francesa, datado de 1335. Mas a conotação
político-jurídico agregada ao termo terror aparece pela primeira vez na França
Revolucionária, durante o governo de Robespierre, constituindo-se, então, em meio de
legítima defesa da ordem social. Segundo Pellet a palavra reaparece no final do século
XIX com um novo sentido, advindo dos atos anarquistas, que visavam a aterrorizar o
estado, incitando a sociedade contra os órgãos estatais, por meio da propaganda. 7
A singularidade do conceito de terrorismo é adota em determinante difusa, sendo
que o termo comporta, atrelada à acepção política de seu sentido, diferentes fenômenos
que, às vezes, se manifestam separadamente e outras vezes se confundem: (1) a revolta
ou rebelião contra um governo legítimo; (2) o exercício da violência política, violando
direitos humanos (inclusive, na opinião de alguns, os direitos de propriedade); e (3) a
prática da guerra em violação das regras de combate, inclusive com ataques a civis. 8
7
PELLET, Sarah. Terrorismo e direito: os impactos do terrorismo na comunidade internacional e no
Brasil – perspectivas políticas-jurídicas – o desafio da comunidade internacional frente ao terrorismo. Rio
de Janeiro: Forense, 2003, p. 9.
8
NEGRI, Antonio & HARDT, Michael. Multidão: guerra e democracia na era do império. Tradução de
Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 26-27 “O problema de todas as definições é que variam
de acordo com aquele que esteja definindo seus elementos principais: quem pode determinar, por
exemplo, o que é um governo legítimo, o que são os direitos humanos e quais as regras da guerra?
Dependendo de quem defina esses elementos, naturalmente, até mesmo os Estados Unidos poderiam ser
considerados um estado terrorista. Dada a instabilidade de sua definição, o conceito terrorismo não
fornece uma base sólida para entender o atual estado de guerra global”.
23
Já o Departamento de Estado americano define o terrorismo como "a violência
premeditada contra alvos civis, praticada por grupos minoritários ou agentes
clandestinos, normalmente com a intenção de influenciar a opinião pública”, sendo que
tais objetivos podem ser usados por grupos religiosos, nacionalistas, radicais de direita
ou esquerda.
Nessa ótica, uma associação terrorista pode ser entendida como um agrupamento
de duas ou mais pessoas que, visando prejudicar a integridade ou a independência de
um determinado estado, impede, altera ou subverte o funcionamento de suas
instituições, boicotando, através da violência, seu devido funcionamento.
A gravidade do terrorismo decorre de seu modo de funcionamento, na medida
em que atua pela disseminação do terror de forma a alcançar um efeito de total
intimidação da comunidade, objetivando finalidades políticas muito distintas: a
subversão do sistema político (como sucedeu com as Brigadas Vermelhas na Itália ou
com o Baader Meinhof na Alemanha), a destruição de movimentos cívicos ou
democráticos (como sucedeu com a Aliança anticomunista da Argentina e, em certa
medida, com os Esquadrões da morte brasileiros), o separatismo (como sucede com a
ETA) ou a afirmação de convicções religiosas (como sucede com alguns movimentos
fundamentalistas).
As práticas terroristas têm como sustentação e álibi a crença em determinada
verdade ou ideologia que fundamenta, dá sentido e legitima, sob sua ótica, os crimes
perpetrados contra a população. A fundamentação subjetiva de uma ação terrorista
nunca é individual, sempre está ligada à manifestação coletiva de um determinado
grupo que se insurge por motivos religiosos, patrióticos, econômicos contra a ordem
formalmente estabelecida, tentando desestabilizá-la, dissolvê-la. A justificativa
psicológica do terrorista é, portanto, sempre alheia/externa a si mesmo, que, em
conseqüência, não se considera um criminoso.
O terrorismo sistemático recebeu um grande impulso ao término do séc. XVIII e
desenrolar do séc. XIX, com a propagação de ideologias e nacionalismos seculares,
depois da Revolução Francesa. Os seguidores e detratores dos valores revolucionários
usaram o terrorismo a seguir das guerras napoleônicas.
24
Em 1793, já se falava dos atentados terroristas, realizados pelos jacobinos de
Robespierre, pouco depois da Revolução Francesa. Quase um século depois, em 1881, o
czar Alexandre Segundo, da Rússia, foi assassinado pela organização terrorista
"Vontade do Povo". O terrorismo era então utilizado por agrupamentos políticos com um
meio de ação cujo objetivo era derrubar o poder vigente em um determinado país.
Também no sul dos Estados Unidos de América, o Ku Klux Klan, depois da
derrota da Confederação Sulista na guerra o civil americana (1861-1865), intensificou o
terrorismo contra os negros. Da mesma forma, na Europa do final do século de XIX,
levaram-se a cabo, em favor do anarquismo, ataques terroristas contra altos líderes e até
mesmo cidadãos comuns.
Os estudos jurídicos penais dedicados à incidência de atividades terroristas
contra sociedades civis não datam de hoje.
Em 1898, Francisco José, imperador da Áustria, teve sua esposa Isabel
assassinada por um anarquista italiano. Em 28 de junho de 1914, em Serajevo, seu
sobrinho Francisco Fernando foi assassinado juntamente com a sua esposa Sophia por
um jovem de origem bósnia, pertencente a uma sociedade secreta.
O advento do liberalismo na Europa Ocidental implicou uma mudança de atitude
por parte do estado de direito em relação aos delinqüentes políticos, sendo a França um
exemplo claro dessa nova mentalidade. Com efeito, o criminoso comum passou a ser
distinguido do criminoso político. Além disso, o novo estado liberal francês9 começou a
impor, em tratados de extradição, o direito de asilo para o delinqüente político. Toda
9
NEGRI, Antonio & HARDT, Michael. Multidão: guerra e democracia na era do império. Tradução de
Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 44-52. “O momento histórico era de embate entre os
interesses de predomínio do estado: o rei ou o povo. O cidadão vivia reprimido por um sistema que o
sufocava em nome da ordem proclamada em nome de Deus. A Revolução Francesa impôs a vitória ao
cidadão. Todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido. A administração pública visa ao
bem comum. Fora desse limite perde legitimidade. A grande vitória foi a liberdade consubstanciada nos
direitos e garantias individuais. Eles é que representam na vida a real liberdade. Garantia é algo que
caracteriza tutela diante de uma relação de poder. Em tal relação o direito penal passou a intervir com a
finalidade de limitar o poder estatal. Ante essa textura renovada de estado, era possível limitar a
autoridade estatal, o que oportunizou a especialização da disciplina do Direito Público, onde num dos
pólos da relação de direito está o poder público. o direito penal é Direito Público por excelência:
disciplina o direito que o estado tem de punir”.
25
essa distinção criminológica de caráter jurídico-político atingiu o seu ponto mais alto
com a abolição da pena de morte para os crimes políticos em 1848. Ora, essa
progressiva despenalização do delito político teve reflexos na figura do direito
concernente ao asilo, em tratados de extradição.10
A partir da segunda metade do sec. XIX, com o aparecimento das primeiras
ações violentas realizadas por militares anarquistas, o estado viu-se obrigado a repensar
a penalização de delitos que, embora se intitulassem políticos, não podiam gozar da
benevolência penal reservada aos tradicionais delinqüentes políticos. Para essa nova
filosofia penal, foi decisivo o atentado realizado em 1855 por dois anarquistas franceses
contra Napoleão III. Após o atentado, os seus co-autores refugiaram-se na Bélgica. O
governo francês solicitou então a extradição desses criminosos ao governo belga. Mas
ela foi negada pelos tribunais belgas ao abrigo da legislação em vigor, que não permitia
a extradição por crimes políticos. Na seqüência dessa decisão judicial, foi elaborado um
novo tratado de extradição franco-belga (22 de março de 1856), que introduziu uma
cláusula de extradição que, pela sua importância na despolitização do terrorismo,
passou, no futuro, a integrar outros tratados sobre essa matéria, exatamente sob a
designação de cláusula belga. Nessa cláusula, estipulava-se que não seria considerado
delito político, nem fato conexo com semelhante delito, atentado contra a pessoa de um
chefe de estado estrangeiro ou membro de sua família.
Assim, a tendência a uma progressiva despenalização do delito político foi
sustada com a elaboração desse tratado, que estabelecia uma diferença entre crime
político e ato de terrorismo, entendendo que, em relação aos primeiros crimes, a reação
deveria ser mais branda; para os autores de atos de terror, entretanto, a resposta deveria
ser dada à altura da violência praticada.
A doutrina jurídica passou a desenhar, a partir de então, uma nítida e salutar
diferença entre crime político e terrorismo, dando ao primeiro tratamento mais brando
que aos crimes comuns; disso decorreu uma progressiva despenalização do delito
político.
10
SARDINHA, José Miguel. O terrorismo e a restrição dos direitos fundamentais no processo penal.
Coimbra, Coimbra Editora, 1989, p. 16.
26
No início do século XX, a válvula propulsora da primeira guerra mundial foi o
atentado contra o arquiduque austro-húngaro Francisco Ferdinando, em 1914, morto em
atentado assumido pelo grupo terrorista sérvio Mão negra. 11
Até então o terrorismo revolucionário era utilizado pelos grupos anarquistas e
nilistas que atentavam exclusivamente para a ordem externa do estado no qual atuavam –
na realidade o terrorismo internacional só reaparece recentemente, no período entre as duas
grandes guerras.12
Os debates acerca do terrorismo internacional surgem realmente nas
conferências internacionais para a unificação do direito penal a partir de 1927, mas, na
realidade, as negociações não progridem. Somente na 6ª conferência, em Copenhague
em agosto/setembro de 1935, é proposta a adoção de oito artigos, precedidos de um
preâmbulo. Esse texto dispunha sobre a abertura, no código penal ou em lei especial, de
uma secção ou capítulo intitulado “Dos atentados que criam um perigo comum ou um
estado de terror”, seguindo-se de uma legislação que tipificaria esses crimes.13
E foi exatamente no período entre a primeira e a segunda guerra que o
terrorismo ganhou dimensões internacionais, passando a ser visto como um fenômeno
criminoso de interesse global. Mas o passo representativo aconteceu com a Convenção
de Genebra sobre o assunto em 1937.
11
ROSA, Fábio Bittencourt da. Da vingança de sangue ao direito penal do inimigo. In: Derecho penal
online (Revista electrónica de doctrina y jurisprudencia en línea, 2005, el 6/3/2005). Disponible en
Internet: http://www.derechopenalonline.com). “Estava, portanto, criado o direito penal das garantias,
que até hoje persiste como significativa conquista do povo contra um poder arbitrário. Não há liberdade
individual sem limitação do poder do governante. Uma nova etapa era inaugurada: o direito penal não
seria apenas instrumento para manter a paz social, mas também para regulamentar as garantias do
indivíduo contra o poder de impor. Limite da atuação do delinqüente contra a sociedade e limite da
atuação do estado para invadir e afetar a individualidade do acusado. Esse é o perfil do direito penal
moderno, que só pôde tornar-se ciência no momento em que a norma ganhou referido conteúdo de
limitação, disciplina da garantia. A grande virada da cultura ocidental em que valorizou-se a pessoa,
colocando-a no mesmo nível axiológico do sistema constitui um bem da civilização que não pode ser
destruído ou minimizado sem uma pesquisa séria e consciente sob o prisma político.”
12
PELLET, Sarah, Terrorismo e Direito: os impactos do terrorismo na comunidade internacional e no
Brasil – perspectivas políticas-jurídicas – o desafio da comunidade internacional frente ao terrorismo. Rio
de Janeiro: Forense, 2003, p.11.
13
PELLET, Sarah. Terrorismo e direito: os impactos do terrorismo na comunidade internacional e no
Brasil – perspectivas políticas-jurídicas – o desafio da comunidade internacional frente ao terrorismo. Rio
de Janeiro: Forense, 2003. p. 11.
27
O movimento revolucionário russo, existente antes da segunda guerra, teve um
componente terrorista forte. Não obstante, no decorrer do século de XX, grupos como a
Organização Revolucionária Interna de Macedônia, o Ustashi Croata, e o Exército
Republicano Irlandês levaram a cabo freqüentemente atividades terroristas, recebendo
até mesmo apoio de governos como o caso de Bulgária ou da Itália e Alemanha sob os
líderes fascista Benito Mussolini e nazista Adolfo Hitler.
Aliás, foram nos regimes totalitários de Josef Stalin e Adolf Hitler que o
terrorismo começou a desenhar os contornos do que hoje pode ser visto como o
terrorismo transnacional.
Embora até hoje não cessem os questionamentos sobre as bombas atômicas
jogadas em agosto de 1945 pelos Estados Unidos sobre o Japão, em que mais de 170
mil civis perderam a vida num ataque que não tinha como objetivo vencer a guerra, mas
fazer uma demonstração de força à União Soviética, o debate jurídico político em torno
da criminalidade terrorista só voltaria a intensificar-se no final da década de 60, devido
à realização de ações violentas por parte de grupos extremistas que, pela primeira vez,
não visavam diretamente ao poder público, mas, sim, à população em geral, através de
desvio de aviões e deflagrações de engenhos explosivos em aeroportos e estações
ferroviárias.
Vale destacar, entretanto, que o conceito de terrorismo, tal como está posto nos
dias de hoje, é derivado de debate jurídico-político intensificado no final da década de
60 do século passado, com o aparecimento de ações violentas por parte de grupos
extremistas. Já naquela época, com o surgimento desses grupos extremistas, começou
ser defendida, no âmbito jurídico, a idéia da relativização dos direitos fundamentais, sob
o argumento de que, enquanto valores constitucionais, os direitos fundamentais não são
absolutos e nem ilimitados, pois a proteção de outros bens ou direitos pode depender,
em situações extremas, da restrição de garantias que a própria constituição considerada
fundamental. 14
14
PELLET, Sarah. Terrorismo e direito: os impactos do terrorismo na comunidade internacional e no
Brasil – perspectivas políticas-jurídicas – o desafio da comunidade internacional frente ao terrorismo. Rio
de Janeiro: Forense, 2003. p. 11. “O quadro da criminalidade foi modificado a partir da segunda metade
do século XX. Aquela espécie de delinqüência que existia, quando se discutia o direito penal clássico, e
mesmo a teoria finalista de Welzel, não mais consistia o foco de preocupação do sistema repressivo
28
Na segunda metade do séc. XX, com a implantação de uma política global de
dominação e com grande marginalização e exclusão provocadas pelo estado liberal, a
violência foi-se tornando uma epidemia incontrolável. As guerras e a instabilidade
econômica e política, sobretudo no chamado terceiro mundo, criaram uma geração de
insatisfeitos. Radicais e extremistas arregimentaram, ao longo desse último século, uma
infinidade de seguidores, responsáveis pela multiplicação de associações de cunho
paramilitar que passaram a disseminar pelo mundo um tipo diferente e não ortodoxo de
combate: trata-se de um sistema de guerrilha, primeiramente com finalidades políticas,
mas que depois, como se comprovou, passou a se configurar no chamado crime
organizado. Nessa direção, inúmeros estados investiram em armamentos e treinamentos
específicos, transformando seus soldados em máquinas de matar, sem questionamentos
ou arrependimentos. Países que se consideravam desenvolvidos, civilizados, apostaram
no uso da guerra não convencional, adotando táticas de guerrilhas, formando pelotões
de operações especiais e comandos, com utilização mesmo de armas químicas e
bombardeio de civis como se fossem alvos militares.15
Assim, o século XX presenciou, de diversas maneiras, o crescimento do
terrorismo do próprio estado, com a adoção de políticas de eliminação física de
minorias étnicas, de adversários de um regime ou de seres que, por não produzirem para
uma sociedade capitalista eram eliminados. Um exemplo é o regime racista da África do
Sul, responsável por ações terroristas contra a maioria negra do país até o fim do
apartheid, no início dos anos 90. Na América Latina, as ditaduras militares dos anos 60
e 70 promoveram o terrorismo de estado contra seus opositores, torturando e matando
milhares de pessoas. No Oriente Médio, os palestinos de cidadania israelense e os
habitantes dos territórios de Gaza e Cisjordânia foram segregados e sofreram ataques
das forças armadas de Israel, entre 1967 e 1993. O terrorismo de extremistas
formal. Com a vulgarização do uso do tóxico especializou-se a organização criminosa e recrudesceu a
violência urbana. Por outro lado, a grandeza do movimento financeiro e das atividades comerciais e
industriais fez com que se transferisse significativa parcela de poder às empresas. Na economia
desenvolveu-se um novo ambiente do delito e com a dificuldade de combate aos crimes sofisticados o
espaço vazio de poder cada vez mais foi ocupado pelos criminosos do colarinho branco, manipulando a
realidade em especial pela instrumentalização das pessoas jurídicas para ludibriar o sistema. Isso o direito
penal clássico desconhecia: organizações de delinqüentes com eficácia no crime transnacional (as
organizações criminosas então existentes não tinham tal dimensão)”.
15
PELLET, Sarah. Terrorismo e direito: os impactos do terrorismo na comunidade internacional e no
Brasil – perspectivas políticas-jurídicas – o desafio da comunidade internacional frente ao terrorismo. Rio
de Janeiro: Forense, 2003. p.287.
29
muçulmanos contra judeus de Israel, por sua vez, também vem assustando e matando
pessoas inocentes, principalmente a partir da década de 80.
Não obstante, somente após os anos 60, a comunidade internacional, frente à
multiplicação do número de seqüestros de aviões, reatou a luta contra o terrorismo
internacional. Esta recrudescência do terrorismo internacional, que, a partir de então,
não fez mais que se confirmar, foi se diversificando e se intensificando.16
17
Um dos
acontecimentos que fomentou essa relativização dos direitos fundamentais, já nos anos
70, foi ação de terroristas japoneses no aeroporto israelita de Lod, em 30 de março de
1972, matando 24 pessoas e ferindo 72. Esse fato alertou a sociedade para a formação
desse tipo de criminalidade organizada, e para a ameaça que ações como essas
representavam em um contexto social em que se ambiciona uma sociedade democrática,
com total e irrestrita obediência ao estado de direito e aos direitos fundamentais do ser
humano. Para Pellet, os atentados de Munique, no verão de 1972, serviram de agentes
catalisadores para uma intervenção da Assembléia das Noções Unidas que, por sua vez
editou a Resolução 3.034 (XXXVII), adotada em dezembro de 1972, encarregando um
comitê especial de estudar a questão do terrorismo internacional, sem, todavia, chegar a
grandes resultados. 18
Na Irlanda do Norte, uma lei de 1973 amplia os poderes de polícia do estado,
restringindo sobremaneira os direitos fundamentais de suspeitos de terrorismo.
A
Inglaterra, em resposta a uma seqüência de ações terroristas, ocorridas em pubs de
16
PELLET, Sarah. Terrorismo e direito: os impactos do terrorismo na comunidade internacional e no
Brasil – perspectivas políticas-jurídicas – o desafio da comunidade internacional frente ao terrorismo. Rio
de Janeiro: Forense, 2003. p.12.
17
ROSA, Fábio Bittencourt da. Da vingança de sangue ao direito penal do inimigo. In: Derecho penal
online (Revista electrónica de doctrina y jurisprudencia en línea, 2005, el 6/3/2005). Disponible en
Internet: http://www.derechopenalonline.com). “De outra banda, uma atividade empresarial
extremamente complexa, que dava oportunidade à sonegação de dados com dano ao fisco, ao
consumidor (direitos coletivos), ao concorrente, ao sistema financeiro, ao meio ambiente (interesses
difusos), etc. O direito penal era desafiado. Então, certos dogmas foram minimizados. Por exemplo, no
que se refere à autoria e culpabilidade, nos crimes empresariais cria-se uma presunção relativa com
referência ao administrador da sociedade (mandato de determinação). Normatiza-se a responsabilidade
criminal da pessoa jurídica. Surgem novas penas. Adapta-se o processo penal para ganhar eficácia na
reação à nova criminalidade. Afeta-se o direito à intimidade com quebra de certos sigilos com base no
postulado da proporcionalidade. Cogita-se de uma aplicabilidade da lei nacional extraterritorialmente
para determinados crimes, porque se o delito não tem fronteiras, o direito penal deve agir pela mesma
forma”.
18
PELLET, Sarah. Terrorismo e direito: os impactos do terrorismo na comunidade internacional e no
Brasil – perspectivas políticas-jurídicas – o desafio da comunidade internacional frente ao terrorismo. Rio
de Janeiro: Forense, 2003. p.12.
30
Birmingham, em 21 de novembro de 1974, causando a morte de 20 pessoas e feriu
outras 180, aprovou em 29 de novembro de 1974 – a "The prevention of terrorism
(Temporary provisions) act of 1974”. A referida legislação possibilitava várias
restrições de direitos fundamentais em na fase de averiguação dos suspeitos, inclusive
de detenção prévia dos mesmos, sem a formação da culpa e o devido processo legal.
Em repúdio a essas ações terroristas, em 27 de janeiro 1977, os estados membros
do Conselho da Europa firmaram, na Assembléia Geral da Organização das Nações
Unidas, a Convenção européia para a repressão do terrorismo.
Mas as medidas adotadas para conter as ações terroristas não as fizeram cessar,
tampouco foram suficientes para contê-las, passando os estados a cogitarem outras
formas de coação mais eficazes para deter o terror. Dentro dessa idéia de contenção das
ações terroristas, a Europa Ocidental, apesar de sua construção jurídica até então em
sentido contrário, passou a admitir a restrição dos direitos fundamentais aos indivíduos
envolvidos em ações terroristas. A Constituição Espanhola de 1978 já havia
externalizado, em sua carta restrições a direitos e garantias individuais, a intenção de
combater o terrorismo, inclusive com supressão de direitos e garantias individuais,
tendo em vista a séria ameaça que representava o terrorismo à segurança do regime
democrático.
É nesse contexto que os contornos da doutrina do direito penal do inimigo
começam a ser desenhados: a Constituição Espanhola de 1978, com a expressa
relativização dos direitos fundamentais, inclusive com a mitigação do princípio da
presunção de inocência, a possibilidade de escutas telefônicas, o controle de
correspondências e a invasão de domicílios, abriu espaço para a consecução dessas
medidas excepcionais em seu texto constitucional. A judicialização de tais atos ocorria
a posteriori, para a verificação da legalidade da atuação das forças de segurança,
realizada a título emergencial.19
19
ROSA, Fábio Bittencourt da. Da vingança de sangue ao direito penal do inimigo. In: Derecho penal
online (Revista electrónica de doctrina y jurisprudencia en línea, 2005, el 6/3/2005) Disponible en
Internet: http://www.derechopenalonline.com). “Por outro lado, a autoria e a culpa ganham conceitos
peculiares, o que faz Silva Sánchez imaginar uma setorialização do direito penal, que Hassemer preferiu
denominar de Direito de Intervenção. Para o autor espanhol esse direito especial ficaria reservado às
hipóteses de pena privativa de liberdade. Outros sustentam a necessidade de administrativização do
direito penal. Todo o drama reside no fato de conciliar um direito penal garantista com um direito penal
31
Além disso, já no final dos anos 70, o terrorismo ganhava um novo ingrediente,
o religioso, com a ascensão dos muçulmanos xiitas no Irã, em janeiro de 79. Sob o
comando do aiatolá Khomeini, os xiitas derrubaram a ditadura do xá Reza Pahlevi e
implantaram um sistema que fugia à lógica dos dois blocos econômicos, liderados pelos
Estados Unidos e União Soviética. A partir da revolução iraniana, foi implantado um
sistema de governo guiado por convicções religiosas radicais e inflexíveis. Khomeini
inaugurou a chamada "jihad" em nossos dias, isto é, a guerra santa contra o Grande
Satã, representado pelo mundo não xiita. Daí, para a prática do terrorismo, foi um passo.
O inédito nessa história era o caráter oficial do terror, assumido claramente pelo regime
dos aiatolás. A primeira demonstração radical de Khomeini foi em novembro de 79.
Com apoio do governo, estudantes iranianos invadiram a embaixada norte-americana
em Teerã, fazendo 66 reféns. Eles queriam a extradição do xá Reza Pahlevi, em
tratamento de saúde nos Estados Unidos. Foi o início de uma longa crise entre os dois
países. Mesmo com a morte de Pahlevi, vítima de câncer, em julho de 1980, os
estudantes não desocuparam a embaixada. O impasse prejudicou a campanha de
reeleição do presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, que acabou derrotado pelo
candidato republicano Ronald Reagan. Foram 444 dias de expectativa. Em 20 de janeiro
de 1981, dia da posse do novo presidente dos Estados Unidos, os iranianos finalmente
libertaram os reféns norte-americanos. Até hoje são obscuras as condições sob as quais
o presidente Reagan negociou o fim da crise. Com a revolução no Irã e a resistência dos
rebeldes afegãos, a “jihad” ficou conhecida no Ocidente e ganhou força junto à
população muçulmana de todo o mundo.
Na mesma linha de atuação, a República Federal da Alemanha, em sua lei
fundamental de Bona, consagrou várias disposições fortemente restritivas aos direitos
da Prevenção contra os riscos. As posições mais extremadas apregoam a teoria do risco, ou seja, no
exercício de atividades perigosas os agentes ficariam submetidos à imputação em vista da tipificação de
certas condutas. Seria a responsabilidade objetiva em decorrência da realização da conduta típica. O
simples atuar em determinadas áreas acarretaria a assunção dos riscos da resposta penal. Essa maneira
de solucionar o problema do risco tem explicação num estado ineficiente, sem condições de administrar
a realidade de certas atividades, preocupado em criminalizar para agradar os eleitores, visando à
eternização no poder e, em especial, carente de pessoal habilitado em razão de uma orientação neoliberal de configuração do estado Mínimo. Criminaliza-se porque não há como vigiar o cumprimento do
dever de concretizar-se o cuidado mínimo. Como se vê, a ansiedade por proteção e assistência passa a
prestigiar o caráter instrumental do direito penal em detrimento de seu perfil garantista. O que interessa
é a segurança contra a criminalidade mais sofisticada, ainda que perca o cidadão seus parâmetros
existenciais, com relativização da liberdade.”
32
fundamentais, sob o argumento da necessidade de realização de tais medidas como
princípio mantenedor do estado democrático de direito. Adotou-se o conceito de
democracia militante, que defende a idéia de que se deve assumir uma posição de
defesa e não de indiferença política em relação a atos de terror, inferindo contra esse
tratamento especial, no qual o respeito aos direitos fundamentais são relativizados frente
ao dever do estado de assegurar ao cidadão um mínimo de seguridade jurídica.
Ora, na medida em que os direitos fundamentais são relativizados para a
realização de uma ponderação que tem sempre como norte o interesse público, justificase, segundo alguns autores, a intervenção do estado, mitigando esses direitos,
diminuindo seu rigor formal, para alcançar o objetivo de assegurar a soberania e a
segurança jurídica ameaçadas. É, aliás, nessa linha de raciocínio, que a constituição da
antiga Alemanha Ocidental justifica o acolhimento da teoria funcionalista dos direitos
fundamentais, teorizando no sentido de que as garantias oriundas dos direitos
fundamentais só se justificam na medida em que levam à comunidade bem-estar social e
a segurança jurídica. Dessa forma, devem as mesmas honrar o caráter público desses
direitos, de forma a possibilitar, a intervenção estatal, em caráter excepcional, nas
ocasiões em que esses direitos fundamentais são usados de abusivamente para camuflar
atividades criminosas.
No começo dos anos 80, o Líbano tornou-se palco de inúmeros atentados. Várias
facções disputavam o poder, apoiadas por países vizinhos, especialmente Síria e Israel.
A existência de áreas de refugiados palestinos na capital Beirute aumentava a tensão e o
clima de guerra civil. Uma das organizações acusadas com mais freqüência de
terrorismo era a OLP. Na tentativa de capturar ou eliminar o líder Yasser Arafat e
destruir bases militares palestinas, forças israelenses invadiram o Líbano, em junho de
82. Durante vários dias, a capital libanesa transformou-se num inferno. Milhares de
civis foram mortos, entre eles mulheres, velhos e crianças. Os israelenses não
encontraram Arafat, mas expulsaram a OLP e deixaram o Líbano em ruínas. Em
setembro de 82, falanges cristãs libanesas, apoiadas por Israel, atacaram os campos de
refugiados de Sabra e Chatila, nos arredores de Beirute. Mais de 2.500 civis palestinos e
libaneses desarmados foram mortos. O massacre chocou a opinião pública internacional.
33
Foi nesse clima extremamente tenso que se multiplicaram os grupos terroristas no
Líbano nos anos 80. A ação terrorista mais famosa dessa época aconteceu em 83,
quando dois atentados simultâneos mataram mais de 250 fuzileiros navais americanos e
mais de 50 soldados franceses, em Beirute. Mas os xiitas de Khomeini e os militantes de
grupos fanáticos, como o Hamas e o Hezbollah, não limitaram seus ataques ao Oriente
Médio: em nome da guerra santa, eles organizaram vários atentados na Europa e nos
Estados Unidos.
Na Itália, uma lei de 6 de fevereiro de 1980 estabeleceu medidas urgentes para a
tutela da ordem democrática e da segurança pública, que contemplavam alterações em
disposições do código penal e de processo penal, limitando os direitos de defesa dos
acusados de envolvimento em atividades criminosas e possibilitando a investigação
sumária, destituída de contraditório.
A legislação portuguesa, por exemplo, embora não contemple explicitamente
restrições ao direito de defesa àquele que estava sujeito à averiguação por acusação de
ações terroristas, adotou algumas das medidas para coibir ao avanço da criminalidade
organizada, que, em princípio, poderiam ser vistas como medidas restritivas de direitos
fundamentais. Nessa direção, a lei portuguesa dispõe sobre a comunicação entre o preso
e o seu advogado, que, em casos especiais, deve ocorrer à vista de um funcionário da
vigilância; sobre a possibilidade de o juiz de instrução intervir nos contatos entre o réu e
o seu defensor, quando tiver fundadas razões para crer que tal intervenção se afigura
necessária para o esclarecimento da verdade; sobre a possibilidade de o juiz, em
situações necessárias, autorizar ou ordenar a apreensão da correspondência entre o réu e
o advogado.
Observe-se que, dentro da estruturação formal de um estado de direito, as
intervenções do estado estão sempre atreladas ao exercício dos imperativos legais e à
obediência aos princípios fundamentais; então, hão de perpassar, por essas intromissões
na esfera privada dos cidadãos, o dever de obediência à reserva legal. Por outro lado, em
um estado que pretende o mínimo de intervencionismo aos direitos e garantias
fundamentais, a burocracia instrumental de apuração da responsabilidade penal, muitas
vezes, não consegue dar respostas rápidas o suficiente para a criminalidade organizada,
que se vale do estado de direito para fomentar o exercício da violência. Assim, a
34
contenção da discricionalidade e abuso de poder do estado, através do exercício dos
direitos e garantias individuais, oscila entre proteger indiscriminadamente a todos e,
nesse caso, corre o risco de assistir com demora os cidadãos; ou limitar os direitos em
nome da segurança da maioria do povo.20
Não obstante tudo o que já foi relatado, a verdade é que o mundo ocidental vemse posicionando de forma bastante ambígua frente ao terrorismo. Em 1993, Mandela
recebeu o Prêmio Nobel da Paz. Mas outros terroristas também receberam honrarias da
Fundação Nobel como Menachem Begin e Yasser Arafat.
Begin e Arafat dedicaram a juventude à luta pela criação de um estado para o
seu povo. Ambos usaram métodos terroristas. Explodiram bombas, mataram civis e
espalharam pânico. Ambos conseguiram chamar a atenção da comunidade internacional
graças à violência, mas acabaram sendo líderes de seus povos e abandonaram os
métodos terroristas, sendo então agraciados com o Nobel da Paz por conseguirem uma
trégua no conflito que ajudaram a começar. Begin liderava um grupo terrorista judaico
com a finalidade de expulsar os ingleses da Palestina e criar o Estado de Israel. Acabou
tomando-se primeiro-ministro do país e ganhou o Nobel de 1978, pelo acordo de paz
com o Egito.
Dessa forma, se, no direito internacional contemporâneo, existem diversas
convenções internacionais multilaterais que objetivam a repressão e combate ao
terrorismo – a maioria delas sobre a égide das Organizações das Nações Unidas; outras,
como proposição da Agência Internacional de Energia Atômica – é certo que elas não se
tem
mostrado
suficientemente
eficazes.
Todos
esses
instrumentos
jurídicos
internacionais que se encontram em vigor – Convenção para a Repressão do
20
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério / Ronald Dworkin; tradução e notas Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002 “Para o ilustre doutrinador Ronald Dworkin, os princípios são normas
imediatamente finalísticas, que estabelecem um fim a ser atingido, ou seja, a idéia que exprime uma
orientação prática do conteúdo pretendido, trata-se de mandamentos constitucionais passível de
otimização. Ainda, segundo Dworkin a diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de
natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação
jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem.
As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a
regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em
nada contribui para a decisão, pois se duas regras estão em conflito, uma suplanta a outra em virtude de
sua importância maior, onde uma delas não pode ser válida”.
35
Apoderamento Ilícito de Aeronaves, assinada em Haia, em 1970; Convenção para a
Repressão de Atos Ilícitos contra a Segurança da Aviação Civil, assinada em Montreal,
em 1971; Convenção sobre a Prevenção e Punição de Crimes contra Pessoas que gozam
de proteção internacional, inclusive agentes diplomáticos, adotada pela AssembléiaGeral das Nações Unidas, em 1973; Convenção Internacional contra as Tomadas de
Reféns, adotada também pela Assembléia-Geral das Nações Unidas, em 1979;
Convenção sobre o Proteção Física dos Matérias Nucleares, assinada em Viena, em
1980; Protocolo para Repressão de Atos Ilícitos de Violência nos Aeroportos que
prestem Serviços a Aviação Civil Internacional, complementa à convenção para a
repressão de atos ilícitos contra a segurança da aviação civil, assinado em Montreal,
em1988; Convenção para a Supressão de Atos Ilegais contra a Segurança da Navegação
Marítima, celebrada em Roma, em 1988; Protocolo para a Supressão de Atos Ilícitos
contra a Segurança das Plataformas Fixas situadas na Plataforma Continental, celebrado
em Roma, em 1988; Convenção Internacional para a Supressão de Atentados Terroristas
a Bomba, adotada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas, em 1997; Convenção
Internacional para Supressão do Financiamento do Terrorismo, aceita pela AssembléiaGeral das Nações Unidas, em 1999 – não têm respondido às necessidades de segurança
e proteção do cidadão comum.
Em assim sendo nada justifica a “guerra preventiva” (nos termos em que a
mesma está dotada) organizada pelos Estados Unidos que empreendendo e motivando
toda a sua angústia e sua sede de expansão imperialista contra alvos civis
indeterminados acaba por se transformar também na maior nação terrorista que rompe
totalmente com o princípio da legalidade e da dignidade da pessoa humana. Por todo
dito analisaremos em separado as conseqüências em termos globais da primeira guerra
do séc. XXI: o ápice da violência generalizada e do terrorismo entre nações. 21
21
GIACOMOLLI, Nereu José. Função Garantista do Princípio da Legalidade, Revista Ibero Americana
de Ciências Criminais, ano 1, n 0, maio/agosto de 2000, p.16 “ o significado material do princípio da
legalidade está na própria evolução histórica do princípio, vinculando-se a limitação do exercício do
poder, à divisão das funções públicas entre os poderes do Estado, ao pacto social que sustenta
politicamente a convivência humana e à soberania popular, legitimadora das normas penais”
36
1.2 O ápice do terrorismo no séc. XXI
Para além das resoluções do Conselho de Segurança e da Assembléia Geral das
Nações Unidas, condenando pontualmente atentados terroristas específicos, foram
necessários os atentados de 11 de setembro de 2001 contra o World Trade Center e
Pentágono, em Washinton D.C., para afirmar a vontade da comunidade internacional
como um todo de agir contra esse flagelo de maneira geral e não mais de forma
compartimentada e especializada.
Dessa forma, a história do terrorismo mudou completamente no início do
terceiro milênio, com a ação terrorista de 11 de setembro de 2001, quando o terror
assumiu o rosto de Osama bin Laden.
Osama bin Muhammad bin Awad bin Laden, nascido em Riad em 1957, é o 17º
dos 52 filhos de um rico construtor civil da Arábia Saudita, Muhammad bin Laden. O
terrorista pertence a uma família abastada; seu pai tratava-se do empresário da
construção civil mais bem relacionado dos países árabes, conseguindo, inclusive,
contratos de empreitada milionários com os Estados Unidos. A sua empresa construiu
palácios para a família real e ganhou contratos tão importantes como a auto-estrada
Medina-Jeddah e a manutenção das mesquitas de Meca e Medina. O construtor também
não descuidava os contatos com os Estados Unidos da América e um dos irmãos de
Osama chegou mesmo a ser sócio de uma empresa de exploração petrolífera fundada
por George W. Bush, que viria a fracassar. A sua empresa de construção ainda é a maior
da Arábia Saudita, havendo faturado mais de 10.000 milhões de dólares em 2002.
Osama herdou uma fortuna, avaliada por um porta-voz da família, entre os 300
milhões e 600 milhões de dólares. Osama descrito por professores ocidentais era tido
como um jovem discreto, vestido à ocidental e sem barba. Aos 22 anos, quando a
URSS invadiu o Afeganistão, Osama bin Laden, aconselhado pelo chefe dos serviços
secretos sauditas e ajudado pela fortuna da família, começou a treinar combatentes para
lutar contra os soviéticos no Afeganistão. Quando Osama bin Laden decidiu lançar-se
na luta para expulsar os soviéticos do Afeganistão, em 1979, transferiu para este país os
seus negócios e levou com ele os empregados e a maquinaria pesada das suas empresas
de construção.
37
A partir de então, Osama bin Laden organizou um programa de recrutamento em
todos os países muçulmanos, levado a cabo por uma organização que criou com a ajuda
de Abdallah Azzam, líder da Irmandade muçulmana palestiniana: a Maktab alKhidamat (MAK - Services Office).A MAK abriu escritórios de recrutamento por todo
o mundo, incluindo os Estados Unidos e a Europa. Com a expulsão da URSS do
Afeganistão, uma grande parte dos mudjahidin regressaram aos seus países, exportando
a ideologia islâmica fundamentalista e levando consigo a retórica da violência. Mas os
campos de treino continuaram a operar e a fornecer guerrilheiros para os conflitos que
os solicitavam: Somália, Bósnia, Kosovo, Tchetchénia. Após a vitória sobre os
soviéticos, em 1989, Bin Laden regressou à Arábia Saudita. Os seus apelos à jihad
contra os Estados Unidos e as suas críticas ao poder saudita levaram o governo desse
país a expulsá-lo em 1991 por "comportamento irresponsável" e a retirar-lhe a
nacionalidade em abril de 1994. Em 7 de agosto de 1998, no oitavo aniversário da
chegada das tropas americanas à Arábia Saudita, após a invasão do Kuwait, ocorreram
os atentados contra as embaixadas dos Estados Unidos em Nairobi (capital do Quénia) e
Dar-es-Salam (capital da Tanzânia), que mataram 224 pessoas. Depois disso, os Estados
Unidos começaram a avaliar devidamente o risco representado por Bin Laden. O plano
de guerra global de Bin Laden remonta a 1987, quando o milionário saudita "teve uma
visão", segundo se afirma num artigo publicado pelo New York Times. "O momento
tinha chegado, disse aos amigos, de iniciar uma "jihad" [guerra santa] global contra os
governos seculares corruptos do Oriente Médio e as potências ocidentais que os
apóiam”.
Os atentados terroristas de 11 de setembro invadiram o imaginário americano,
despertando em toda a nação americana um sentimento de insegurança incomum.
Estabeleceu-se a partir de então a seguinte ideologia: todos aqueles que estivessem
contrários aos interesses americanos deveriam ser tratados como inimigos de guerra.
Essas sementes de uma ansiedade que se evidencia nos códigos de alerta adotados pelo
governo americano, serviu para legitimar a proposta americana, através de seus
governantes, de levar a cabo uma guerra imperialista messiânica. Afirma Barber que, ao
confrontar o terrorismo, seja desencadeando guerras no exterior ou organizando a
segurança interna.
38
“os Estados Unidos acabaram por fazer surgir, como por mágica, o
próprio medo que constitui a arma principal do terrorismo; os líderes
americanos estão implementando uma militância irresponsável que visa
estabelecer um império americano do medo mais terrível do que qualquer
coisa que os terroristas poderiam ter concebido, (...) querendo chocar e
espantar tanto inimigos quanto amigos para levá-los a uma submissão total,
a nação que já foi celebrada como o arauto da democracia tornou-se hoje a
22 23
potência beligerante que todos temem”.
Os atos do estado americano que submeteram a população global, vão desde
guerras e torturas de inimigos até desrespeito às convenções internacionais e ao
pactuado com a ONU. Eles colocaram o governo americano oscilando entre duas
estratégias: num primeiro momento apelou para a legalidade e o respeito às leis; porém,
tentando maquilar sua vulnerabilidade e impotência frente aos atentados de 11 de
setembro, passou a buscar suspeitos, atropelando os procedimentos judiciais com
atitudes arbitrárias. Com isso, destruiu, de um só solavanco, toda a construção em torno
da democracia americana, invocando para si o direito de tomar iniciativas unilaterais,
desencadeando guerras preventivas, forçando mudanças de regime em outros países e
minando, assim, o quadro internacional de cooperação e o império da lei dos quais foi o
principal arquiteto, e que, aliás, representa o único meio de superar a anarquia terrorista.
24
22
BARBER. Benjamin R. O império do medo. Rio de janeiro: Record, 2005. p.75.
BARBER. Benjamin R. O império do medo. Rio de janeiro: Record, 2005. p.78.
24
BARBER. Benjamin R. O império do medo. Rio de janeiro: Record, 2005. p.31 “Desde a epidemia de
Aids ao aquecimento global, desde os monopólios da mídia global aos sindicatos internacionais do
crime, todas as características do mundo interdependente atual demonstram que os Estados Unidos
precisam dirigir o olhar para além das suas fronteiras; em vez disso, olham para dentro. Quando
contemplam o mundo exterior, é para escolher, com mirada ameaçadora, alvos ‘inimigos’ definidos nos
termos de uma enganosa guerra contra o terrorismo ou para selecionar quixotescamente ‘estados parias’
que servem para tomar o lugar de terroristas individuais difíceis de localizar e destruir. Embora seja um
‘modelo’ de sociedade democrática, os Estados Unidos agem freqüentemente com um desdém
plutocrático diante das exigências de igualdade global e denunciam um obscuro ‘eixo do mal’ enquanto,
ao mesmo tempo ignoram um óbvio eixo da desigualdade. Decidiram seguir uma estratégia de segurança
nacional alicerçada no conceito de guerra preventiva, quando as circunstâncias estão claramente
pedindo que seja seguida, o que chamo de segurança nacional alicerçada no conceito de guerra
preventiva, quando as circunstâncias estão claramente pedindo que seja seguida o que chamo de
estratégia de ‘democracia preventiva’. Apesar de se serem o protótipo de uma sociedade multicultural,
os Estados Unidos demonstram impaciência diante da diversidade cultural ou da heterogeneidade
religiosa no mundo, sobre tudo quando elas parecem ameaçar os ideais americanos ou se situam fora do
âmbito de sua imaginação. Os Estados Unidos acreditam que, sob a mira das armas, podem impor a
democracia a inimigos subjugados, ao mesmo tempo em que apóiam ditaduras em países considerados
amigos; julgam que mercados privatizados e consumismo livre de freios democráticos constituem os
instrumentos para a criação da democracia; enfim, supõem que outros países possam construir um
edifício democrático da noite para o dia importando instituições que os americanos levaram séculos para
desenvolver. A atual política de Washington para a guerra e para a paz e que visa derrubar tiranias e
estabelecer democracias num conhecimento insuficiente das conseqüências da interdependência e das
características de uma democracia. Essa política não é capaz de perceber que fomentar um clima de
medo acaba resultando precisamente na instauração de um império do medo inimigo tanto da segurança
23
39
Todo o poderio bélico dos Estados Unidos e essa ideologia expansionista e
imperialista faz do messias salvador também alvo; mais forte, mas igualmente
vulnerável, odiado por aqueles que salva (a Coréia do Sul tem demonstrado
recentemente menos afeição aos Estados Unidos do que à própria Coréia do Norte, sua
inimiga). O poderio sem precedentes dos americanos não exclui assim uma certa
vulnerabilidade, pois os Estados Unidos empreendem esforço desmedido para manter
suas conquistas, considerando inimigos todos aqueles que se opõem à administração do
estado americano.25
Para as famílias americanas instaladas no tripé de segurança (tradição, família e
propriedade) do capitalismo, cujos filhos olhavam o mundo na soberba ótica da
ausência de privações materiais e com a consciência de seus inúmeros privilégios frente
aos países do terceiro mundo, o medo desencadeado pelo terrorismo foi um golpe fatal.
Não se pode esquecer que o medo é uma arma muito mais potente contra os que vivem
num clima de esperança e prosperidade do que contra os que vivem num mundo de
desespero e não têm nada a perder. O atentado de 11 de setembro demonstrou ao
mundo que os Estados Unidos possuem capacidade bélica para deslocar tropas para
qualquer parte do planeta e travar várias guerras simultaneamente, mas não conseguem
proteger a sede do Pentágono em Washington ou a catedral do capitalismo em
Manhattan, porque a interdependência permite que os fracos utilizem em seu favor a
própria força do adversário.
É necessário considerar, por outro lado, que inimigos representados por grupos
terroristas, por não terem lugares precisos de atuação, por estarem sempre em constante
deslocamento, são sempre menos atacáveis. O poderio americano está instrumentado
para combater um alvo preciso com território circunscrito. Seus exércitos não se
quanto da liberdade”.
25
BARBER. Benjamin R. O império do medo. Rio de janeiro: Record, 2005. p.35 “Gastando mais em
defesa nacional (350 bilhões de dólares, sem contar os gastos com a guerra no Iraque, e esses números
tendem a subir) do que o conjunto dos 15 maiores gastadores mundiais nesse setor (os orçamentos de
defesa nacional da totalidade dos aliados americanos somam 220 milhões de dólares) e dispondo de
armamentos de alta tecnologia que nenhum outro país consegue ter, os Estados Unidos podem com
facilidade arrasar qualquer nação que julguem ser inimiga. São formidável adversário, pronto para
eliminar um terrorista qualquer em um remoto deserto, por meio de um míssil disparado de uma
aeronave Predador não-tripulada, ou pronto para derrubar um regime hostil mediante ameaças de
índole militar, ou ainda para desfechar em qualquer canto uma guerra preventiva antes mesmo que
qualquer ato de agressão tenha sido cometido contra os interesses americanos”.
40
encontram, entretanto, preparados para lidar com um terrorista cujas batalhas em prol do
Islã são vencidas não pelas armas e sim o medo provocado no coração do inimigo. O
fato de os terroristas não possuírem algo a perder, pois são destituídos de alvos de valor
uma vez que estão engajados exclusivamente ao seu fanatismo, torna-os capazes de
tudo. 26 27
O estado americano posicionou-se dentro da lógica da autodefesa por
antecipação, atirando primeiro para perguntar depois, abrindo o caminho para o fomento
de mais revoltas daqueles de não têm nada a perder e instituindo um precedente para
que outras nações busquem justificativas para suas próprias lógicas excepcionalistas.
Abandonando a prudente lógica do contrato social e do respeito à lei, desfez os
alicerces da democracia mundial e norte-americana. A tática reativa para defender o
território americano dos atentados terroristas só poderia ocorrer mantendo-se a liberdade
que é o alicerce político e estatal americano, isto é, adotando-se um modelo de
procedimento que servisse para qualquer nação soberana e democrática na busca de
garantia para a sua própria segurança.
Em nome de ações tidas por arbitrárias ou destituídas de legalidade democrática,
os Estados Unidos intervieram na política e na soberania de vários países
26
É notório que um ser humano que tem frustrado todas as suas necessidades básicas estará menos
voltado para o mundo externo e mais voltado para si mesmo para satisfaze-lo. Privado da satisfações
básicas não conseguindo suprir o seu lar das necessidades básicas, certamente viverá em constante
frustração tendo maior resistência a mudanças, menos companherismo, mais agressividade e
consequentemente maior vulnerabilidade para o delito. Em países subdesenvolvidos onde residem as
maiores células terroristas isto é facilmente detectável, pois em classes menos abastados deste contexto
social, falta-lhe o suprimento das necessidades básicas do indivíduo e as famílias estão desestruturadas
pelas mortes dos seus membros e pelo clima de guerra civil advindo da pobreza e da privação. Ressalte-se
que este indivíduo desorientado pela falta de paradigmas e esperanças e priva das necessidades básicas
para a sua subexistência em crise de identificação agrupa-se com outros igualmente sem norte criando
micro culturas de oposição ao mundo a instituído inclusive a lei e a ordem, fechando-se de forma
hermética dentro de seu próprio grupo. Cometendo comunitariamente atos ilícitos, o agrupado em
subgrupos culturais ficam espiados da culpa que poderiam incidir sobre os mesmos pelo descumprimento
da lei.
27
O indivíduo pode neutralizar os valores normativos: a) através de tradições subterrâneas que, presentes
na cultura convencional nutrem as subculturas desviadas; b)mediante técnicas de utilizações escusas
legais, tais como a ocultação de responsabilidade , do dano , da vítima , da generalização das injustiças do
sistema, da idealização das lealdades superiores. Da mesma maneira como há diferentes acessos aos
meios legítimos para alcançar as metas comuns, existem também vários ilegítimos e frustrações distintas.
Se os membros dos grupos delinqüentes buscam ganhos materiais, a resultante será uma subcultura
delinqüente, que busca seus fins através da apropriação indébita de bens materiais por meios ilegítimos,
enquanto a subcultura do conflito, a tônica será a violência. A obtenção do prestígio mediante o emprego
da força sem paira o sentimento haver fracassado por meios legítimos, a violência e a internalização da
frustração , o refúgio no consumo de drogas torna-se )se ainda não o é) a tônica da delinqüência.
41
antidemocráticos, direta ou indiretamente, imbuídos de seu papel messiânico de
propagar a democracia a qualquer preço. Porém, a democracia como afirma Barber, não
pode ser imposta sob a mira de um fuzil, não cresce das cinzas da guerra, mas, sim, de
uma história de lutas, atividades cívicas e desenvolvimento econômico.28 29
A história de uma Alemanha democratizada e de um Japão liberalizado, surgida
das cinzas de tiranias vencidas na segunda guerra mundial, é tocante e exemplar. É fácil
entender que os defensores da tese de reconstrução de nações como o Afeganistão e o
Iraque se inspirem nela. Mas vale lembrar que se trata da história de fracassadas nações
agressoras, desiludidas após cinqüenta anos de guerras e tendo que enfrentar, sozinhas,
o mundo do pós-guerra (o mar em que suas ideologias tóxicas outrora flutuavam secou e
desapareceu). É uma história de cooperação, apoio econômico maciço, extensa
educação cívica, envolvimento a longo prazo (soldados americanos ainda estão
posicionados em ambas as regiões, anos após o fim da guerra), compromissos com a
organização de instituições internacionais e a criação de um sistema de leis
internacionais como uma estrutura para a recuperação econômica, desenvolvimento
cívico e democratização. Essa foi, de fato, a estrutura que possibilitou os sucessos da
Europa e da Ásia no pós-guerra. 30
A história da Europa é, na verdade, exclusivamente a história da democracia
preventiva, o que pode explicar a atual antipatia que os europeus sentem em relação à fé
28
BARBER. Benjamin R. O império do medo. Rio de janeiro: Record, 2005. p. 37 “A guerra preventiva
direcionada contra estados é um genitor improvável da democracia. A democracia também não se deixa
construir com material exportado por um exército americano ‘liberador’, ou à sombra de firmas do setor
privado americano e organizações não-governamentais (ONGs). As empresas inicialmente convidadas a
concorrer para a reconstrução do Iraque incluíram a Bechtel (e uma filial que pertence em parte à ala
‘respeitável’ da família bin Laden); Parson Corporation, Washington Group Internacional, assim como
Kellogg, Brown & Root, subsidiária da Halliburton (que já foi administrada pelo atual vice-presidente
da República, Dick Cheney), construtora de celas para os prisioneiros na baía de Guantánamo Bay. A
democracia se desenvolve lentamente, e requer esforços das populações locais, aprimoramento de
instituições cívicas nacionais e um espírito de cidadania cuidadosamente cultivado que depende
enormemente do setor educacional. As empresas privadas são boas para auferir lucros, mas confiar
nelas para alcançar finalidades públicas é uma contradição que foi bem caracterizada por Lawrence
Summers, em 1995, quando disse ao Congresso: ‘Por cada dólar de contribuição do governo americano
ao Banco Mundial, as firmas americanas receberam 1 dólar e 35 centavos em contratos de serviços’28.
Um cínico poderia acrescentar que por cada dólar doado às campanhas eleitorais do Partido
Republicano, as empresas amigas podem esperar ganhar 1 milhão com os contratos de reconstrução do
Iraque.”
29
BARBER. Benjamin R. O império do medo. Rio de janeiro: Record, 2005, p.39.
30
FREI, Norbert. Adenauer’s germany and the nazi past: the politics of amnesty and integration. Nova
York: Columbia University, 2003, p. 47. “Infelizmente, é também a história do clima de medo da Guerra
42
dos americanos na guerra preventiva. As homenagens da boca para fora da
administração Bush ao Plano Marshall só ganharão credibilidade quando se traduzirem
em medidas concretas, como a designação de pessoal para as tarefas indicadas, a
dotação de verbas para o seu financiamento, a disposição para consumir o tempo que for
necessário para atingir os objetivos. Mas nada disso acontece.
A democracia preventiva empregada como doutrina estratégica precisa ter dois
componentes de vital importância: primeiro, um componente militar e de inteligência
ligado a uma guerra preventiva dirigida contra não-estados. Essa forma limitada de
guerra preventiva visa e destrói exclusivamente alvos terroristas, isto é, agentes, células,
redes, organizações, bem como bases de treinamento e de guarda de armamentos. Pode
haver dúvidas sobre que grupos ou indivíduos devem ser considerados terroristas, mas
seja como for, a missão de persegui-los não leva a violar a soberania de nenhum estado
independente. O segundo componente, de alcance global, diz respeito à construção
propriamente dita da democracia – nele se incluem projetos como Civworld, que
promulgam a democracia preventiva. O Civworld (e muitos outros programas
semelhantes) concentra-se na criação de condições dentro dos estados, ou entre eles, que
promovam o crescimento de instituições democráticas no plano interno, bem como
instituições democráticas globais, operando no contexto do relacionamento entre os
estados.
A guerra preventiva, que evita tomar estados como alvo, obedece à lógica da
prevenção tal como ela foi inicialmente concebida – contra mártires desvinculados de
estados, e todos os indivíduos e organizações terroristas que, por seu comportamento, se
colocaram em estado de guerra com os Estados Unidos e/ou seus aliados.
Rigorosamente falando, a guerra preventiva, nesse contexto, é mais defensiva do que
preemptiva. Ela é sempre dirigida contra um inimigo declarado – os terroristas – e
nunca contra protagonistas considerados culpados por associação crescentemente
remota; nunca, por exemplo, contra países que podem ter contribuído de alguma forma
para patrocinar ou apoiar terroristas, e/ou financiá-los ou abrigá-los, a não ser que tais
atividades constituam verdadeiros atos de guerra (por exemplo, o fornecimento de arma
nuclear a um grupo que planeja usá-la contra os Estados Unidos). Quando terroristas são
Fria e do perdão rapidamente concedido a dezenas e milhares de ex-dirigentes nazistas de médio
escalão, oficiais, juízes e administradores integrados a nova Alemanha ‘democrática.”.
43
atacados no território de um país inamistoso (ou mesmo um país amigo, como por
exemplo, quando um comboio terrorista em trânsito no Iêmen foi atingido por um
foguete americano), deve ser feito o máximo esforço para respeitar a soberania do país
em questão e tratar o episódio como um caso isolado. Idealmente, o melhor seria obter
prévia autorização das autoridades locais, mas isso nem sempre é viável. Essa tática
efetivamente exime o país cuja integridade territorial foi violada de responsabilidade
pelo terrorista que estava sendo buscado, o que é exatamente o contrário do que faz a
guerra preventiva dirigida contra estados. A presunção é que o terrorista internacional
que age no território de um estado está agindo fora dos limites da soberania desse estado
e, portanto, torna-se um alvo propício a ser legitimamente atingido.
Essa tática se fundamenta na ilusão, na qual as duas partes acreditam, de que um
ataque de precisão cirúrgica não constitui uma afronta à soberania do país. É mediante
ilusões desse tipo que a legitimidade e a legalidade são sustentadas. Mas, essa tática,
embora suscite dúvidas sobre sua legitimidade, é preferível à guerra preventiva contra
estados soberanos. Ela pode ser chamada de opção Osirak, em alusão ao ataque isolado
e controverso de Israel contra o reator nuclear de Osirak no Iraque, em 1981. Aquela foi
uma operação de legitimidade discutível, mas, por ter sido limitada e visado uma
instalação apta a produzir, de fato, armas nucleares de destruição em massa, além de ter
tido claramente a finalidade de eliminar uma ameaça e não agredir um país, permitiu
aos israelenses se saírem relativamente bem do episódio.
Um exemplo relevante foi quando os Estados Unidos descobriram, no início de
2002, a existência de uma célula terrorista do grupo Ansar al-Islam, operando no Norte
do Iraque, cujos executivos (incluindo o perigoso Abu Mab-Zarqawi) tinham sido vistos
em Bagdá e também na Síria, Irã e outros países vizinhos. Os Estados Unidos tinham
duas opções. Em conformidade com a estratégia de guerra preventiva contra estados, o
secretário Powell, em seu pronunciamento no Conselho de Segurança em fevereiro de
2003, valeu-se da descoberta como argumento para fortalecer o caso de uma guerra
preventiva contra o Iraque. Uma resposta mais apropriada e conforme com uma
estratégia de guerra preventiva contra não-estados teria sido atacar o acampamento de
Khurmal no Norte do Iraque (região, aliás, que não estava sob controle de Saddam
Hussein). Mais de um ano antes, o presidente Bush tinha falado da futilidade de mandar
foguetes de alto custo contra tendas vazias no deserto. Não obstante, o único meio de
44
garantir efeitos seguros para uma guerra contra o terrorismo é selecionar as tendas
certas, antes de seus ocupantes escaparem. De qualquer forma, Ansar al-Islam era o
inimigo real, e seu campo de treinamento o alvo apropriado, e não os vários governos
em cujos territórios os executivos do grupo transitavam, à procura de tratamento
médico, contatos ou financiamento, e que poderiam incluir até governos amigos ou
aliados dos Estados Unidos. Quando, afinal, o acampamento em Khurmal foi
conquistado, durante a guerra com o Iraque, seus supostos ocupantes terroristas já
tinham fugido.
A guerra preventiva que visa a entidades não-estatais, é a única modalidade
capaz de justificar a incursão até os confins da legitimidade – e deve-se consistir
normalmente em atividades de coleta de informações e operações policiais (que foram
os elementos mais positivos da campanha antiterror do presidente Bush depois do 11 de
setembro). Representa o componente militar a curto prazo de uma estratégia da
democracia preventiva que trate o terrorismo como um parasito autônomo e móvel,
vivendo no organismo de um hospedeiro – voluntário ou involuntário –, mas não
dependente dele. Matar o hospedeiro não afeta o parasita, a não ser na medida em que o
obriga a procurar outro hospedeiro. O que se deve fazer é ou isolar o parasita e destruílo (guerra preventiva antiterror), ou tornar o hospedeiro inóspito.
A democracia preventiva tem por meta restaurar a saúde do corpo infectado do
hospedeiro e torná-lo contra-indicado ao parasito. Suas táticas mais importantes a longo
prazo são de ordem cívica, econômica, cultural e diplomática. Essa abordagem visa a,
com o tempo, compor democracias interagindo num mundo democrático. Um mundo de
democracias civicamente sadias seria um mundo sem terror, cujas relações
internacionais, econômicas, sociais e políticas fossem reguladas democraticamente,
estando relativamente livre de profundas desigualdades e da angustiante miséria, o que
o tornaria menos vulnerável à violência sistemática.
O foco de uma estratégia de segurança nacional baseada na doutrina da
democracia preventiva – e o padrão pelo qual ela é medida – deve ter como objetivos,
primeiramente a segurança nacional, seja dos Estados Unidos, ou de qualquer outro
país. Em segundo lugar, vem a questão da segurança dos outros; em terceiro, os valores
e normas que definem a democracia na melhor das circunstâncias (seja a democracia
45
americana, ou não), bem como as normas de um sistema legal internacional que seja
também justo (espera-se que os dois aspectos sejam, de algum modo, comensuráveis).
Esses três tipos de objetivos devem ser harmônicos, mas, mesmo que não o sejam, o
ponto referencial central de qualquer política de defesa nacional tem de ser a segurança
e, não, alguma metáfora para valores como justiça e liberdade, que, em si mesmos, não
caracterizam a segurança. Não se pode esperar que nenhuma nação, por mais idealista
que seja, se coloque em risco, e menos ainda que cometa suicídio em nome de seus
valores, por mais venerados que sejam. A democracia preventiva obedece a esses
critérios estritos. Seus méritos são evidentes, quando avaliados em conformidade com
regras retiradas das lições da história e com os argumentos da lógica da guerra
preventiva, utilizados para justificar a democracia preventiva, pois a doutrina da guerra
preventiva dirigida contra estados vem revelando falhas cujas conseqüências são
catastróficas.
A conotação contemporânea do conceito de terrorismo, formulada no século
XX, presenciou o aumento de diversas formas de violência dentre elas o terrorismo
impetrado contra os estados, nos quais foram adotadas políticas de insurreição contra a
ideologia vigente com implicações na eliminação física de determinadas minorias
étnicas, de adversários de um regime, de grupos e líderes do poder contrários aos
interesses destes grupos criminosos. À guisa de exemplo, pode-se citar o regime racista
da África do Sul, e as ações terroristas impetradas contra a maioria negra do país com
objetivo de sujeita-la, adestra-la, estas ações foram constantes até o fim do apartheid,
no início dos anos 90.
Assim, qualquer legislação ou tratado que envolva o terrorismo deve ter presente
que: (1) os estados não são o inimigo, porque terroristas não são estados; (2) as armas
convencionais não são capazes de derrotar o terrorismo; (3) a arma do terrorismo é o
medo. Dessa forma, uma estratégia eficaz de segurança nacional deve reduzi-lo ao invés
de aumentá-lo, pois o medo não consegue derrotar o medo; (4) os terroristas são
criminosos internacionais – quando são capturados, devem ser tratados de acordo com
as normas do direito internacional; (5) uma mudança de regime não justifica uma guerra
preventiva contra o terrorismo – derrubar um governo com ações externas viola sua
soberania sem atingir os terroristas.
46
A democracia preventiva ajusta-se melhor às regras acima citadas do que a
guerra preventiva contra estados. No entanto, sua concretização é mais árdua do que os
slogans freqüentemente associados a ela parecem indicar. Implementá-la efetivamente é
um pouco mais difícil do que implementar a guerra preventiva. Conta somente com
duas vantagens: mantém-se longe do âmbito do império do medo, buscando a segurança
em relação ao terror por meios diferentes, em vez de querer contrapor o medo ao medo.
E dá certo.
A ironia do terrorismo é que, por ser um problema multilateral e contar com
agentes relativamente imunes às armas convencionais, está em condição de tirar
vantagem da hegemonia militar dos Estados Unidos, conforme observou o general
Wesley Clark. Nem uma política de contenção, nem uma guerra preventiva dirigida
contra estados, é capaz de detê-lo. A democracia preventiva tem mais chances de
consegui-lo, porque desfaz as condições que permitem ao terrorismo florescer – seca,
por assim dizer, o pântano no qual os mosquitos proliferam. Ela, ao contrário da guerra
preventiva contra estados, lida diretamente com o problema do terrorismo, e não pode
ser distorcida para atender à conveniência dele. Mas, quando a guerra preventiva contra
a jihad é direcionada contra supostos substitutos, como o Iraque, mesmo uma guerra
bem sucedida acaba parecendo uma cruzada que imita a própria violência da jihad e
alimenta as chamas que o inflamam. As mortes de civis, que os Estados Unidos
eufemisticamente descreveram como danos colaterais, foram encaradas de modo bem
diferente no resto do mundo.
Na guerra contra o Iraque, houve um texto, ditado pelo governo americano e
adotado pela maioria dos americanos, e um subtexto, no qual muita gente, mundo afora,
percebeu um outro significado. O texto americano, marcado pelo excepcionalismo,
resumia-se no 11 de setembro e nos malefícios fora de série causados por horrendos atos
de terror. Isso significa a guerra como uma retribuição justa, bem como uma prevenção
ativa contra Saddam Hussein, visto como Hitler do século XXI, cuja ameaça de
aniquilar o mundo com armas de destruição em massa foi contida por um corajoso
exército americano na liderança de uma coalizão de amigos e aliados, a despeito de uma
ONU covarde e recalcitrante; o subtexto referia-se a um país que exagerava os seus
próprios sofrimentos e diminuía os dos demais e a uma guerra de agressão norteamericana, na qual um animal gigantesco e arrogante abate um esquilo do deserto,
47
bravo, mas dotado de uma força inferior. Nesse subtexto, deixadas de lado as
racionalizações e justificativas dos dois adversários, e mesmo a apuração dos reais
interesses dos Estados Unidos nessa guerra, vê-se, de qualquer forma, o choque entre os
dois exércitos: o rico bombardeando o pobre.
Refletida na tela, a guerra oferecia a todos, menos ao americano ensimesmado, o
espetáculo de arrogantes e bem armados soldados esmagando adversários que ainda
utilizam armas antiquadas. Esses tecno-soldados – com seu componente humano
comprimido em armaduras de Kevlar, com seus sentidos incrementados por laser e por
instrumentos de visão noturna, e com máscaras contra gás e vestimentas de proteção
contra agentes químicos – enfrentavam míseros milicianos insuficientemente armados e
que empregavam táticas do século passado. Ainda assim, aqueles combatentes menos
favorecidos conseguiam, de vez em quando, com operações de surpresa, abalar a
colossal máquina militar que fora jogada contra eles para chocá-los e espantá-los até
serem completamente esmagados. Era imensa uma desproporção de forças.
Desde sempre houve ideais em nome dos quais exércitos foram colocados em
marcha, seres humanos mortos, países devastados, cidades destruídas. A última potência
mundial e seus vassalos não constituem exceção alguma: junto com os porta-aviões, os
tanques e os helicópteros de batalha do exército de invasão ao Iraque, a idéia de direitos
humanos foi novamente mobilizada para poder apresentar ao mundo um documento
legitimador. Mas o notável é que os críticos desse processo apelam para os mesmos
ideais. Os milhões que protestam no mundo todo contra os planos de guerra não falam
uma língua ideológica diferente daquela do governo norte-americano.
É em nome dos direitos humanos que cai a chuva de bombas; e é em seu nome
que as vítimas são assistidas e consoladas. Usualmente os críticos dizem que a realidade
não concorda com os ideais. Se há um direito à vida e à integridade física, como se pode
aceitar, então, que as intervenções militares ocidentais matem mais pessoas inocentes
que as atrocidades dos ditadores e dos terroristas? Todos esses argumentos empregados
não são de modo algum falsos, no que concerne aos fatos: o problema reside na
interpretação desses fatos.
48
Em 25 de outubro de 1939, pouco antes de invadir a Polônia, Adolf Hitler,
falando ao Alto Comando da Wehrmacht, disse: “Darei uma razão propagandística
para começar a guerra, não importa se é plausível ou não. Ao vencedor não se
pergunta depois se ele disse ou não a verdade” . Ele sabia que uma propaganda para
ser efetiva necessita de feitos. E para provar que a Polônia não aceitava suas propostas
de paz, ordenou a alemães das SS e Gestapo, fardados como soldados poloneses,
atacaram uma estação de rádio em Gleiwitz, fronteira de Alemanha.
O atentado terrorista contra o World Trade Center e o Pentágono (11/09/2001),
que a CIA e o FBI, apesar de terem informações, nada fizeram para impedir, permitiu
que o governo Bush se legitimasse; seis dias depois (17/09/2001), o presidente
americano assinou um documento de duas páginas e meia, classificado como Top
Secret, no qual delineou a campanha no Afeganistão, como parte da guerra global
contra o terrorismo, e ordenou ao Pentágono que iniciasse o planejamento de opções
militares para a invasão do Iraque.
Em abril de 2002, George W. Bush proclamou então seu propósito de derrubar
Saddam Hussein e mudar o regime político no Iraque, em aberrante desrespeito ao
princípio de não-intervenção nos assuntos internos de outros países, acordado no
Tratado de Westphalia, de 1648.
Não foi sem razão que, quando o presidente
americano intensificou os preparativos para atacar o Iraque, em setembro de 2002, Herta
Däuber-Gmelin, ministra da Justiça no governo de Gerhard Schröder, comparou seus
métodos com os que Hitler usou, nos anos 30, antes de deflagrar a II Guerra Mundial.
Evidentemente, o contexto é outro, a retórica, diferente, mas a essência é a mesma. O
atentado terrorista contra as torres gêmeas do World Trade Center e o Pentágno
ofereceu a Bush a razão propagandística para declarar a guerra permanente contra o
terror.
Em assim sendo, para melhor entender quais fatos e atos que ensejaram e
impulsionaram a primeira guerra do séc. XXI faremos no capítulo baixo transcrito a
distinção entre terrorismo e a criminalidade organizada.
49
1.3 Entre o terrorismo e a criminalidade organizada
O perfil da criminalidade, no transcorrer da história das sociedades, tem sido
alterado. Mas, sem dúvida, a partir da segunda metade do séc. XX, ela adotou contornos
de macrocriminalidade transnacional. Os crimes individuais, acolhidos pelo direito
penal clássico, pela teoria finalista e pela análise do tipo subjetivo da conduta típica
estão voltados para uma criminalidade e uma responsabilidade penal individual, que não
é atualmente o maior foco de preocupação do sistema repressivo formal. A vulgarização
do uso do tóxico e abertura de mercados clandestinos, com a anuência velada de alguns
Estados, recrudesceu a violência urbana. Ademais, o volume do movimento financeiro e
das atividades comerciais geradas pela criminalidade organizada faz operar uma
transferência significativa parcela de poder econômico dos estados para este tipo de
atividade subterrânea, sendo que em alguns países da América Latina este movimento
financeiro é tão alto que, se saneada a criminalidade, o estado quebra.
Este novo espaço da criminalidade organizada, parlamentada com todas as
espécie de assessoramento técnico e tecnológico, desenvolveu um novo ambiente, sobre
o qual as instituições formais do estado não detêm o poder repressivo, pois quem o
detém é esse estado paralelo que as usa para fomentar e sustentar com bases bélicas seu
poder repressor contra os cidadãos comuns.
O crime organizado nos países da América Latina está, de certa forma, imune
aos meios clássico de investigação (observações, interrogatórios, estudos dos vestígios
deixados). Ademais, o ordenamento jurídico, na sua grande maioria está voltado a
responsabilização penal individual, não estando instrumentado para a apuração da
criminalidade organizada. A evolução da criminalidade há muito supera a capacidade
operativa das tradicionais organizações de delinqüentes, possuindo pessoal capacitado e
treinado para a realização dessa atividade e material tecnológico e bélico à disposição,
muito além das possibilidades estatais, que, na América Latina, são sucateadas e falidas.
Por outro lado, é impossível fazer menção ao crime organizado, fingindo
ignorar que a sociedade da qual todos fazemos parte, é pródiga em gerar múltiplos
fatores criminógenos. A estrutura, a instrumentalização opressiva, fragmentalizada,
setorizada e desigual da sociedade propicia desequilíbrios, deles nascendo, então, a
50
violência e a corrupção, a degradação dos costumes e o crime. Deve-se considerar, sem
receio de exagerar, que se assiste, neste início de terceiro milênio, a um aumento dessa
criminalidade. Daí por que é inevitável a indagação: a origem do fenômeno dessa
criminalidade patológica não está radicada exatamente nessa mesma sociedade que dela
reclama posturas?
Com o acesso a capitais significativos, abrigados nos paraísos fiscais, essa
espécie de delinqüência quase foge ao controle formal. Utiliza armamento pesado,
corrompe, domina mercados, impõe regras. È quase uma guerra perdida para o Estado
de direito que, ameaçado e em total descrédito diante de sua inoperância em equacionar
esse problema, não ataca as causas, mas tenta de maneira inócua sustar as
conseqüências não vem às custas do recrudescimento dos direitos e garantias
individuais. Isso se torna ainda mais agudo no caso das garantias processuais, como o
direito de defesa, contraditório, manutenção de sigilo, vista do inquérito, etc. O direito
penal transforma-se, então, em um direito de guerra, em que a intervenção legalizada é
anuída pela sociedade.
O combate ao crime organizado, como ao terrorismo, encontra muitos óbices,
pois esse gênero de criminalidade, diferentemente da individual, é difusa em sua
atuação criminosa, não atingindo alvos/vítimas individuais, conhecidas, determinadas,
porém maculando todo o tecido social, restando ao poder público o rastreamento da
extensão das lesões causadas, tarefa essa de difícil concretização, frente à morosidade
da estruturação do estado em relação à celeridade das possibilidades tecnológicas e
econômicas deste tipo de atuação.
Entende Capeller que a compreensão da criminalidade transnacional supõe a
apreensão de uma nova economia delitiva. Precisamos abandonar as categorias estreitas
da criminologia convencional que são incapazes de responder às interrogações que
surgem neste novo campo de estudos. Trata-se de fato da transformação de um
paradigma: o fenômeno criminal não é mais enfocado individualmente e localmente,
mas em termos de rede e globalmente. O novo quadro teórico ultrapassa assim as
categorias criminológicas biológicas, individuais e psicosociais que se tornaram
completamente inadequadas para explicar este fenômeno emergente. Por outro lado, a
criminalidade transnacional só pode ser pensada de maneira transdisciplinar, para além
51
dos territórios disciplinares tradicionais. Neste sentido, o interesse demonstrado pela
ciência política a respeito desta problemática é bastante eloqüente.
“Se tomarmos o exemplo do tráfico de drogas, constatamos que estamos diante de
um problema de "múltiplas faces". Este crime "à facettes" questiona não apenas a
criminologia clássica, mas também a economia convencional. Assim, no mercado
internacional da droga existem "zonas escuras" entre o "comércio legítimo" e o
"comércio ilegítimo". Isso mostra que o mercado da droga, apesar de suas
especificidades, não é diferente dos outros mercados.
Nos espaços da droga, a interação entre o mercado "legítimo" e o mercado
"ilegítimo" atinge tais proporções que o mercado legal, quando lança mão de
procedimentos ilegais, pode ser considerado como um setor subsidiário do crime
organizado. O tráfico de drogas transita por esferas semi-legais, e recebe apoio
logístico e subsídios financeiros de uma parte da industria "legal" que opera
conjuntamente com ele. Os mercados ilegais penetram assim nos sistemas
econômicos legais. O tráfico de drogas traduz-se de fato pela existência de um
sistema complexo, organizado, e que funciona como uma empresa comercial em
escala internacional.”.31
As organizações criminosas possuem, em relação ao terrorismo, outro ponto em
comum: ambas organizam-se de forma itinerante com características mutantes, pois
utilizam-se de empresas de fachada, terceiros (laranjas) e contas bancárias específicas,
como meios impeditivos de visibilidade de sua atuação pelo poder público. O estado
formal atua estruturado na solidificação, inclusive física, das suas instituições, que
permanecem décadas instaladas nos mesmos lugares. Ao contrário, tanto a
criminalidade organizada quanto o terrorismo são mutáveis quanto ao espaço físico de
atuação, alternando inclusive sua estrutura administrativa, mudando as empresas,
removendo as pessoas para lugares diversos e criando outras contas bancárias.
Aspecto relevante nesse contexto de criminalidade organizada é também o fato
de que, no âmbito nacional e internacional, esses grupos, por não deterem um espaço
físico detectável sob o qual respondam civil e criminalmente, não encontram grandes
obstáculos para se integrarem em suas atividades criminosas, apropriando-se ainda de
ferramentas tecnológicas e do desenvolvimento do processo de globalização da
economia, para transacionarem e tornarem lícitos os lucros obtidos pela atividade
criminosa.32
31
CAPELLER Wanda de Lemos. Crime e controle na era global: o outro lado da moeda européia, Revista
Eletrônica da Universidade do Rio de Janeiro endereço (www2.uerj.br/~direito/publicacoes/
mais_artigos/crime_e_controle.html, acesso em 1/3/2006)
32
Como exemplos, os cartéis colombianos expandiram seu negócio de comércio de cocaína para o cultivo
do ópio e a comercialização da heroína. A Máfia japonesa, além de comercializar entorpecentes, passou a
atuar no mercado de ações e na exploração de atividades ligadas à pornografia. A Máfia russa explora o
52
O volume de dinheiro transacionado por essas organizações criminosas é de tão
grande monta, que não fica difícil em populações de baixo poder aquisitivo, cuja única
expectativa de vida é a sobrevivência, recrutar pessoas que queiram se agregar a
criminalidade. Ademais, as condições e o lucro obtido pelo trabalho ilícito são
imensamente maiores que o que Estado formal pode oferecer. Então, esse o
recrutamento incide, na maioria das vezes, sob populações que não tem nada a perder,
dada a premência do suprimento de suas necessidades básicas e o abandono a que o
estado as relegou. O recrutamento dessa parcela segregada da população dá-se de
maneira pacífica, angariando as organizações a simpatia das comunidades, por
melhorias sociais que lhe são atribuídas. Aproveitando-se da omissão do aparelho do
estado, criam à prática de um verdadeiro estado paralelo. 33 34
O crime organizado possui peculiaridades: (a) os integrantes das organizações
criminosas acumulam poder econômico, pois manipulam, com seus ganhos, boa parte
tráfico de componentes nucleares, além de armas, entorpecentes e mulheres. Os grupos brasileiros
também diversificaram suas atividades, as quais constituem em roubo a bancos, extorsão mediante
seqüestro, resgate de presos, tráfico de armas e entorpecentes, com conotações internacionais.
33
O conceito de crime organizado abrange: (a) a quadrilha ou bando (288), que claramente (com a Lei
10.217/01) recebeu o rótulo de crime organizado, embora seja fenômeno completamente distinto do
verdadeiro crime organizado; (b) as associações criminosas já tipificadas no nosso ordenamento jurídico
(art. 14 da Lei de Tóxicos, art. 2º da Lei 2.889/56 ) assim como todas as que porventura vierem a sê-lo e
(c) todos os ilícitos delas decorrentes ("delas" significa: da quadrilha ou bando assim como das
associações criminosas definidas em lei).
34
CAPELLER Wanda de Lemos. Crime e controle na era global: o outro lado da moeda européia, Revista
Eletrônica da Universidade do Rio de Janeiro endereço (www2.uerj.br/~direito/publicacoes/
mais_artigos/crime_e_controle.html, acesso em 1/3/2006).“ A história mostra-nos que o tráfico de drogas
multinacional é dificilmente controlável, e que os interesses econômicos dos países implicados neste
tráfico - sejam eles exportadores ou receptores de drogas - encontram-se na base desta dificuldade. Desde
o início do século, houve inúmeras tentativas de concentração entre os países para controlar o tráfico de
drogas, principalmente as rotas do sudeste da Ásia e da América latina em direção aos países
industrializados. Sob a pressão dos Estados Unidos, vários encontros internacionais foram realizados, mas
eles estavam condenados ao fracasso na medida em que os conflitos de interesse entre as nações não
permitiram chegar a nenhum acordo neste terreno. É preciso ter em mente a importância do tráfico de
drogas na "economia legítima" dos países industrializados para compreender a divergência entre as
nações no que concerne o controle de drogas. No século XX, com efeito, os países centrais utilizaram este
tráfico como meio de financiar suas colônias, por exemplo, que a França permitiu o tráfico de drogas na
Indochina, pois este garantia 50% das despesas coloniais nesta região, a Inglaterra, igualmente, financiou
com o tráfico de drogas as despesas da colonização na Índia. (...) A responsabilidade das nações em
relação ao tráfico de drogas é evidente. Nos anos 1960, depois da retirada das tropas francesas da
Indochina e da entrada dos Estados Unidos no sul da Ásia: o tráfico de drogas desenvolveu-se muitíssimo
nesta região. Instala-se, neste momento, o sistema conhecido como o Triângulo de Ouro que permitiu as
alianças políticas mais espúrias entre os americanos e os autóctones anti-comunistas. Esta política
devastadora dos Estados Unidos na região asiática teve como conseqüência o desenvolvimento de uma
estrutura mafiosa que, depois de guerra do Vietnam, inflitrou-se em outras regiões para aí depositar os
excedentes da droga. A Austrália, país relativamente protegido deste tráfico até os anos 1976, será
invadida pelas drogas”.
53
da estrutura social e econômica, aferindo seus benefícios por atuarem à mercê de
qualquer regra de mercado, quaisquer tributos e no vácuo de alguma proibição estatal;
(b) os ativos financeiros movimentados pelas organizações criminosas são de tão grande
monta que alicerçam muitas vezes a economia de certos estados, tendo em vista a
dependência dos mesmos dessa atividade subterrânea; (c) a acumulação de ativos
financeiros por parte dessas organizações criminosas obriga tornar lícito, pela lavagem
do dinheiro, o lucro obtido, no que são auxiliadas pelos paraísos fiscais (Panamá, Ilhas
Cayman, Uruguai, Ilhas Virgens Britânicas, Andorra, dentre outros); (d) o nível de
tensão social e desigualdade econômicas abre arrestas para a corrupção, fator relevante
para o fomento da criminalidade organizada, maculando assim o poder executivo, poder
legislativo e as instâncias formais de controle do direito (polícia judiciária, ministério
público e poder judiciário).
Ora, a dificuldade de combate aos crimes sofisticados cria um espaço vazio de
poder cada vez maior que está sendo ocupado pelos criminosos do colarinho branco,
manipulando a realidade em especial pela instrumentalização das pessoas jurídicas para
ludibriar qualquer sistema de controle estatal.
Esses segmentos da criminalidade organizada funcionam como uma "holding",
já que grupos que traficam drogas freqüentemente vinculam-se a outros responsáveis
pelo tráfico de armas, na medida em que o negócio não envolve somente dinheiro, mas
também mercadorias. Assim, conseguem-se armas em troca de substâncias
entorpecentes e vice-versa. Daí mais um ponto de consonância entre a criminalidade
organizada e o terrorismo: ambos trabalham com uma economia subterrânea de
mercadorias clandestinas e fazem uso dessas como objeto de troca. 35
As operações em dinheiro, movimentadas pelas corporações criminosas, bem
como a lavagem de dinheiro para conferir legitimidade a essa economia informal
objetivam fazer desaparecer o rastro dessas transações. A crescente utilização de
35
CALLEGARI, André Luís. Direito penal – econômico e lavagem de dinheiro – aspectos
criminológicos. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. "a característica da
internacionalização da lavagem de dinheiro relaciona-se com a própria natureza dos bens ou serviços
que constituem objeto do delito, cujo lugar de origem pode encontrar-se a uma distância enorme de seus
destinatários finais"². Também possuem essa característica as "redes dedicadas ao tráfico de armas,
pedras preciosas, animais exóticos etc”.
54
complexas estruturas corporativas e intrincadas transações negociais envolvendo
bancos, trust companies, empresas imobiliárias e outras instituições financeiras, por
traficantes e seus associados, trouxe dificuldade adicional à apreensão de ativos
originados pelo tráfico de drogas, que trabalha livremente fazendo uso desses ativos
financeiros. Nas arrestas legais, oriundas das variações nacionais existentes na
legislação bancária, fiscal e financeira, traficantes abrem brechas legais, para uma
rápida adaptação da criminalidade aos meios de lavagem e técnicas para esconder seus
ganhos ilícitos. 36
Aliadas a esse quadro de criminalidade tem-se as políticas públicas tão
ineficazes no combate à violência. A população que necessita da segurança da ordem
instituída fica à mercê de grupos criminosos como Primeiro Comando da Capital (PCC)
e Comando Vermelho (CV). Tudo isso torna o urgente desbaratamento dessas
quadrilhas que estão a ameaçar o poder instituído, único titular da força repressiva
autorizado em um estado democrático. E o estado tem o dever de administrar a
insegurança existente, de modo a propiciar ao cidadão o mínimo de dignidade humana
quando for à rua ou ao trabalho.37
As organizações terroristas, a seu turno, também oferecem a uma população
carentes de ideais, algo por que lutar, objetivos. Além disso, nos locais onde são feitos
os treinamentos de combate, aqueles que lá se agregam recebem além de alimento a
respeitabilidade de um herói. Prevalece também no caso do terrorismo, a lei do silêncio
36
CALLEGARI, André Luís. Direito penal – econômico e lavagem de dinheiro – aspectos
criminológicos. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. “Essa característica oferece aos
lavadores de dinheiro três vantagens. A primeira delas é a possibilidade de elidir a aplicação de normas
estritas e, com isso, a jurisdição de paises que mantêm políticas severas de controle da lavagem de
dinheiro. A segunda é a captação de vantagens pelos ‘problemas de cooperação judicial internacional e
de intercâmbio de informações entre paises que possuem leis diferentes’, bem como peculiaridades
distintas tanto na área penal quanto nos procedimentos administrativos de cada país. Por fim, André
Luís Callegari afirma que ‘permite aos lavadores que se beneficiem das deficiências da regulação
internacional de sua aplicação, desviando os bens objetos da lavagem àqueles paises com sistemas
débeis de controle e persecução do dinheiro”.
37
O processo de crescimento e nivelamento social dá-se a longo prazo dentro de um contexto de uma
sociedade democrática e de um estado formal que atente para os direitos e garantias individuais. As
agências repressoras em um estado democrático têm feições muito diferentes que no estado Ditatorial,
sendo necessário para o controle eficaz da criminalidade pela prevenção geral e especial da criminalidade
que não dispense em seus planos executivos uma política de nivelamento social e a total e irrestrita
observância dos direitos e garantias individuais. Este processo de construção democrática não é nada fácil
e depreende esforços comunitários e políticos tendo em vista que no Rio de Janeiro e em São Paulo, os
índices de criminalidade podem ser equiparados a uma guerra civil.
55
e a anuência e o apoio da população que ceifada de alternativas vê, nesse tipo de crime,
sua única salvação.
Poder-se-iam apresentar números sobre o crime organizado, dados sobre o seu
poder de fogo, exemplos terríveis de suas ações cada vez mais escancaradas. Mas este
não é aqui o propósito. O importante deve ser a consciência de que o crime organizado
nasceu no interior de uma sociedade em decomposição, precisamos, entretanto, de uma
sociedade organizada, que saiba perceber e enfrentar os sintomas da criminalidade
moderna. Essa luta, atualmente, é absolutamente desigual, porque entre ficar no Olimpo
de privilégios falazes (atitudes contraídas pelo executivo, ainda que seus membros
advenham de classes populares) e enfrentar a dura realidade das ruas, existe uma
considerável diferença. Insolúvel o problema não é.
Fazendo a comparação entre a atividade criminosa gerada pela criminalidade
organizada e a oriunda do terrorismo, verificando seus pontos de convergência e de
divergência, apontamos para o fato de que, em ambos os casos, esse tipo de violência
gera a cultura do medo, servindo, assim, como sustentáculo para legislações
expansionistas e um discurso jurídico penal discriminatório e segregador. Analisaremos,
então, o que dá suporte a produção de legislações expansionistas e um discurso jurídico
penal discriminatório e segregado: a cultura do medo.
56
1.4 Cultura do medo
Tanto a criminalidade organizada como aquela oriunda do terrorismo produzem
um pânico social que muitas vezes é usado para impor ideologias. No caso do
terrorismo, o campo de batalha é o lugar designado ao cidadão comum, que tem
invadido seu espaço público por atentados terroristas, nos quais, na maior parte das
vezes, a vítima desconhece a origem e motivos que deram azo a este tipo de violência.
Não menos prejudicial, porém, mostra-se o tráfico de substâncias tóxicas ou
entorpecentes, que polui a economia com o dinheiro sujo, infiltrando-se nos negócios
com manipulação criminosa das instituições públicas e de todo o espaço público,
gerando uma espécie de violência urbana cruel, constituída pelo submundo da
criminalidade que estende seus tentáculos a toda ordem de atividade ilícita e violência.
Ora esse tipo de criminalidade representada tanto pelo terrorismo como pelo
crime organizado fazem com que o cidadão vivencie a cultura do medo, sustentando o
discurso de que os meios justificam os fins para diminuir a vulnerabilidade da
população em relação a esse tipo de criminalidade. Esse discurso e as ações restritivas
dele decorrentes são assim respaldados pela própria população, pois o alto poder de
intimidação a que estão colocados os cidadãos faz com que qualquer ato que diga
oferecer a segurança não obtida pelo estado, seja acolhido pela sociedade. Em
contrapartida, detectar os membros dessas organizações não é tarefa fácil, já que existe
um código comportamental velado, a chamada lei do silêncio, imposta aos membros do
crime organizado, impondo sanções à comunidade que os violar, pelo emprego de meios
cruéis de violência, mantendo assim a clandestinidade dos mentores intelectuais dessas
quadrilhas. 38 39 40 41
38
SILVA SANCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas
sociedades pós-industriais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 31. “A sociedade pós-industrial é
além da sociedade do risco tecnológico, uma sociedade com outras características individualizadoras
que contribuem a sua caracterização como sociedade de “objetiva” insegurança. Desde logo, deve ficar
claro que o emprego de meios tecnológicos, a comercialização de produtos ou a utilização de
substâncias cujos possíveis efeitos nocivos são ainda desconhecidos e, em última análise, manifetar-se-ão
anos depois da realização da conduta, introduzem um importante fator de incerteza na vida social. O
cidadão anônimo diz estão nos matando, mas não conseguimos ainda saber com certeza saber, nem
quem, nem como, nem a que ritmo. Em realidade faz tempo que os especialistas descartam a
excessivamente remota possibilidade de neutralizar os novos riscos, significando que é preferível
aprofundar-se nos critérios de distribuição eficiente e justa dos mesmos – existentes e em princípios não
neutralizáveis. O problema, portanto, não radica mais nas decisões humanas que geram os riscos, senão
também nas decisões humanas que os distribuem. E se é certo que são muitos que propugnam a máxima
participação pública nas correspondentes tomadas de decisão,não é menos certo que, de momento, as
57
O direito penal emergencial e as guerras preventivas que têm sido empreendidas
contra o crime organizado e o terrorismo fundam-se nessa cultura do medo: trata-se de
uma violência simbólica que escolhe, ao ser praticada, atores sociais e discrimina
parcelas da sociedade. Esses discursos reduzem-se, porém, a falas eufemísticas, sem o
verdadeiro propósito de encontrar soluções para o direito penal: são formas de
aplainamento e conformação de todos que não têm acesso ao sistema capitalista,
mantendo-os estáticos pelo medo. Assim, a cultura do medo constrói um poder
simbólico capaz de fazer ver e crer, de confirmar ou de transformar visões de mundo. 42
mesmas têm lugar em um contexto de quase total obscuridade. Tudo isto evidencia que, inegavelmente,
estamos destinados a viver em uma sociedade de enorme complexidade, na qual a interação individual –
pelas necessidades de cooperação e de divisão funcional – alcançou níveis até agora desconhecidos. Sem
embargo a profunda correlação das esferas de organização individual incrementa a possibilidade de que
alguns destes contatos sociais redundem na produção de conseqüências lesivas, Dado que, no mais, tais
resultados se produzem em muitos casos a longo prazo e, de todo modo, em um contexto geral de
incertezas sobre a relação causa-efeito, os delitos resultado/lesão se mostram constantemente
insatisfatórias como técnica de abordagem do problema”.
39
PASTANA, Débora Regina. Cultura do medo: reflexões sobre a violência criminal, controle social e
cidadania no Brasil. São Paulo: Método, 2003. p. 9. “Não estamos tratando do medo individual, ou seja,
do medo que aflige as pessoas isoladamente. No sentido literal da palavra, medo individual significa
choque, freqüentemente precedido de surpresa, provocado pela tomada de consciência de um perigo
presente. Trata-se de uma emoção desencadeada por diversas reações físicas que, por sua vez, são
responsáveis por comportamentos somáticos. Tal quadro clínico não se aplica no nível coletivo, embora
em certa medida o pânico de uma multidão possa conter uma soma de emoções–choques pessoais”.
40
O sentimento de vingança parece ser um universal humano. O nacionalismo norte-americano é
exacerbado com o impulso vingativo, surgindo uma tremenda coesão interna face a ameaça do inimigo –
partidos que se digladiavam aprovaram rápida e consensualmente decisões orçamentárias, políticas e
militares a este respeito. Segundo a visão maniqueísta do governo dos EUA, a retaliação americana aos
ataques terroristas é uma luta da “liberdade” contra o mal. Em essência, tanto o patriotismo norteamericano e o sentimento de vingança que toma conta da nação como o terrorismo suicida são fenômenos
aparentados, que estão fundados no mesmo mecanismo da mente humana que garantiu aos nossos
antepassados a continuidade evolutiva. Fomos programados para defender nosso território e a cultuar os
valores de nosso grupo social, reagindo com indignação e contra-atacando ao que é percebido como
ameaça. Quanto mais se multiplicam os meios de comunicação tanto mais opera-se a ideologia incidindo
sobre a psique multiplicando-se o contágio mental daqueles que são expostos a idéias e ideologias de uma
maneira sub-reptícia. O contágio mental é tão poderoso que suscita os pânicos que podem conduzir as
suas vítimas aos mais diversos comportamentos psicopatológicos, escravizando, portanto, inteligências.
Os grandes movimentos funestos da história foram sempre o resultado do contágio mental. O contágio
mental é exercido por diversos meios de propagação e com o advento da televisão sua incidência se dará
através de um número inimaginável de pessoa que tem acesso a este meio de comunicação. A sua ação
jamais se exerceu tanto quanto na nossa época, primeiramente porque, com o progresso das idéias
democráticas, o poder cai, cada vez mais, entre as mãos das multidões, e depois, porque a difusão rápida
dos meios de comunicações permite que os movimentos populares se espalhem quase instantaneamente..
As extravagantes fantasias das multidões tornam-se, para eles, dogmas tão respeitáveis quanto o eram
outrora, para os cortesãos das monarquias absolutas, as vontades dos soberanos.
41
ARENDT, H. Sobre a violência. Trad. André Duarte. 1.ed. Rio: Relume-Dumará, 1994. “A escalada
da violência pode significar a deterioração do poder do estado, uma vez que ‘poder e violência são
opostos; onde um domina absolutamente, o outro está ausente’; outros opinam que a violência tem
causas difusas, como racismo, intolerância, desigualdades sociais, processos de exclusão, ineficácia da
lei/impunidade, omissão do estado entre outras. Ainda há os que acreditam que a mídia, em especial a
televisão, gera ou potencializa comportamento agressivo e contribui para o incremento da violência na
sociedade”.
42
PASTANA, Débora Regina. Reflexões sobre a violência criminal, controle social e cidadania no Brasil.
São Paulo: Método, 2003. p. 91. “Entendemos medo neste estudo, como forma de exteriorização cultural,
58
Dessa forma, esse medo tão difundido pela mídia serve de suporte à grande parte
do discurso do direito penal emergencial, ao fomento de guerras preventivas e ao
recrudescimento da legislação penal. Atualmente, não se pode pensar o direito
ignorando a influência da mídia como formadora de consenso de valor fomentador do
discurso legislativo: não se pode ignorar que os mídias são fatores centrais na
sociabilidade contemporânea, bem como detém um enorme poder como formadores de
opinião. 43
A difusão do discurso do medo tem por objetivo a implementação dos interesses
de determinados setores ou facções, respaldando os grupos a quem a mídia pretende
promover, o que gera uma parcialidade na informação veiculada, uma neutralização e
disciplinamento das camadas empobrecidas da sociedade: camuflar e manipular
informações permite que a incidência e a estruturação do direito penal aconteçam
apenas para poucos, geralmente a clientela do direito penal sob a qual incide, com mais
veemência, a influência da cultura de medo imprimida na mídia.
Nessa perspectiva, a violência não é apenas um instrumento para se chegar a um
fim, mas uma estratégia, porque ela possui racionalidade política específica e está
direcionada a um objetivo. A violência veiculada na mídia cria e participa das redes de
poder, inserindo-se no cotidiano das relações interpessoais. Por isso, se é impossível
principalmente se levarmos em conta as transformações que ele desencadeia (...) há uma mudança no
comportamento do indivíduo na casa e na rua, um cuidado maior com os bens (consumo de apólices de
seguros, por exemplo) a produção e o consumo dos mais variados produtos de segurança privada
)alarmes, vidros brindados e aulas de defesa pessoal por exemplo) uma desconfiança generalizada entre
os indivíduos . Ao trabalharmos com o medo, como exteriorização cultural, utilizaremos o conceito
antropológico de cultura, que, segundo Marilena Chauí, se traduz como um conjunto de práticas,
comportamentos, ações e instituições pelas quais os hum,anos se relacionam entre si e coma natureza e
dela se distinguem. Este conjunto funda a organização social e sua transformação. Para Pastana cultura
é [...] a expressão das necessidades historicamente condicionadas de um grupo social e de seus
indivíduos, e com referência à totalidade de características de uma sociedade. Vale ressaltar que a
cultura não pode ser concebida como estática e imutável, ao contrário, mostra-se como uma expressão
dinâmica das ações e interpretações do grupo social. Nesse sentido, a cultura é traduzida como reflexo
das mudanças nas relações sociais, desde a esfera da produção econômica até a esfera do imaginário
individual e coletivo e das representações de ordem”.
43
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de
comunicações de massa. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1995. p. 285: “O surgimento da comunicação
de massa, e especialmente o surgimento da circulação em massa de jornais no século XIX e a emergência
da difusão por ondas no século XX, teve um impacto profundo no tipo de experiência e nos padrões de
interação característicos das sociedades modernas. Para a maioria das pessoas hoje, o conhecimento
que nós temos dos fatos que acontecem além do nosso meio imediato é, em grande parte, derivado de
nossa recepção das formas simbólicas mediadas pela mídia”.
59
pensar o direito penal ignorando esse contexto simbólico da cultura do medo, é
interessante discutir questões referentes a essa mídia como formadora, produtora e
difusora de valores, fomentadores do discurso legislativo.
O mundo contemporâneo, tecnológico e globalizado, sofre grande influência das
mídias, cuja atuação ultrapassa de muito a área econômica, interferindo nos
comportamentos sociais, nos valores culturais, na criação de novas modalidades
discursivas e conceituais. Para muitos, a ação midiática é responsável mesmo pela
implementação de novas formas de racionalidade e pensamento, com influência na
própria produção de sentido e percepção moral, promovendo, assim, alterações
profundas de caráter ético, estético e ideológico: novas linguagens, códigos, posturas e
hábitos são difundidos através do discurso midiático contemporâneo.
Mas o que a mídia exibe, é preciso que se diga, não é o real – sofisticados
aparatos tecnológicos colaboram na construção de uma representação da realidade de
caráter discursivo, que se apresenta tecnicamente consumada como real. Essa simulação
da realidade escolhe os eventos produtores de imagens fortes – violências, guerras
catástrofes – para construir seus espetáculos.
A heterogeneidade de imagens – composições e colagens multimidiais – a
multiplicidade de significados, a diversidade de sons, a intertextualidade feita de
citações, alusões, as metalinguagens e apropriações, o acúmulo de informações são
organizados pelas mídias num grande cenário onde a informação intercambia seus
signos com os da ficção, numa totalidade definida a partir de determinados padrões que
tudo igualam e banalizam.
A mensagem veiculada na mídia materializa-se em textos, lugares de construção
da significação e da manifestação de estratégias discursivas de caráter manipulatório. Os
sentidos informativos assumem um papel secundário em relação a outros que passam a
primeiro plano, atualizando temas que constituem o imaginário da humanidade desde
que o homem é homem. Tais temas, diz Barthes, aludem a experiências de imagens
muito antigas, a obscuras sensações corporais, a contatos íntimos entre a natureza e o
homem, a formas de aniquilamento e religação, enfim aos grandes mitos da humanidade
60
E a arma da mídia contemporânea é utilizá-los para veicular as informações
interessantes ao receptor fazendo com que as demais sejam ignoradas. 44 45
A televisão, por exemplo, hoje tem condições de apresentar, ao vivo e
instantaneamente, imagens de qualquer ponto do planeta, com sua exibição provocando
as mais variadas reações, intensificando ou amenizando a importância dos fatos,
confirmando ou negando sua gravidade. 46
Assim, a influência exercida pelos avanço dos mídias junto à sociedade,
determinante na formação da chamada opinião pública, provoca marcantes alterações
no quadro comportamental dos cidadãos, que passaram a enxergar a lei penal como
tábua de salvação da sociedade contra os criminosos.
Pode-se dizer mesmo que há uma espécie de pânico mundial em relação ao
chamado auge delitivo. Os programas políticos eleitorais consagraram boa parte de suas
promessas a tranqüilizar os organismos colegiados da indústria e do comércio,
oferecendo medidas drásticas – sempre repressivas e nunca preventivas – para conter
uma maré que se anuncia como monstro crescente.47
Absorvendo os efeitos dessa influência, os sistemas legislativo e judicial
dispõem-se a atender o clamor público, que exige o endurecimento do aparato
repressivo no combate à criminalidade. Esse quadro coloca em choque o respeito pelas
44
BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Difel, 1987.
Mas, ao convocarem certos temas como forma de manipulação, substituindo o aspecto interesseiro pelo
espetáculo de um mundo onde comprar é reencontrar a origem – do prazer, do bem-estar, da harmonia –
as publicidades não o podem fazer sem sobre eles se posicionarem. Assim, é por isso que toda a
manipulação se assenta sobre um sistema de valores: nenhuma publicidade deixa de ser veiculadora de
ideologia.
46
LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade garantista.
Rio de Janeiro: Lúmen-Juris, 2004. p. 183-184. “Outro aspecto fundamental é a influência da ‘ideologia
do ao vivo’, que encontra abrigo na lógica dominante do tempo curto e na cultura do instantâneo. Como
conseqüência, está reduzido o tempo da análise e da reflexão, fazendo com que sejam ‘ as sensações que
primam...o jornalista reage com paixão, instintivamente’. Mas ‘não são os olhos ou os sentidos que
permitem compreender; é a razão, só ela. Enquanto os sentidos enganam, o cérebro, o raciocínio, a
inteligência são mais confiáveis. Portanto, o sistema atual só pode conduzir à irracionalidade ou ao
erro”.
47
Em virtude dessa equivocada tentativa de “combate” à criminalidade, a inflação legislativa faz com que
nos encontremos em um estado de exceção, pois em nome da “lei e da ordem” começaram a ser
desconsiderados direitos fundamentais expressos na Constituição Federal, e o que até então era tido como
medida excepcional acabou tornando-se prática normal da relação Estado e cidadão. Ou seja, no nosso
país o estado de exceção já perdura há 15 anos (Lei 8.072/90), e o que os cidadãos pensam que é uma
prevenção da desordem acaba se tornando uma banalização das prisões temporárias e preventivas.
45
61
garantias individuais e clama pelo dever de resposta do estado quanto a essa demanda
por segurança social. Em virtude disso, o delírio legislativo chegou ao ponto de
criminalizar condutas que não têm o menor potencial lesivo, o que, segundo Zaffaroni,
pode provocar uma catástrofe social, pois “se o sistema penal tivesse realmente o poder
criminalizante programado produzir-se-ia o indesejável efeito de se criminalizarem
várias vezes toda a população. Diante da absurda suposição de criminalizar
reiteradamente toda a população, torna-se óbvio que o sistema penal está
estruturalmente montado para que a legalidade processual não opere e, sim, para que
exerça seu poder com altíssimo grau de arbitrariedade seletiva dirigida, naturalmente,
aos setores vulneráveis. 48 49
É importante ressaltar que a absorção desses papéis e sua a integração ao
cotidiano das pessoas se dá através do processo chamado domesticidade. Nesse
processo, os produtos midiáticos e sua ideologia são consumidos e apropriados pela
esfera familiar e absorvidos nas rotinas do dia-a-dia: daí a incidência da cultura do medo
e de qualquer ideologia que se pretenda fazer chegar ao expectador. Esse processo de
domesticação do eu interior de cada cidadão, aterrorizado pela cultura do medo é
impresso de tal forma que as conquistas históricas de direitos fundamentais da
humanidade são esquecidas, privilegiando-se um estado primitivo de coação individual
e coletiva, muitas vezes propagada e incentivada pela mídia que elege bodes
expiatórios, desgarrando-se assim do questionamento das imensas privações a que são
submetidos às camadas mais baixas da sociedade. Ao mesmo tempo, essa mudança de
foco operada pela mídia que fomenta a cultura do medo, torna difusa a discussão a
respeito das razões efetivas dessa criminalização.
Segundo Guedes & Paula, nesse processo de domesticidade, existem ansiedades
a serem trabalhadas: a revolução tecnológica e, por conseguinte a “sociedade de
informação”, com todas as suas contradições, deve ser vista também com todo seu
conteúdo ideológico e sua influência na dimensão do ser. Pimenta sugere que, para
48
Um exemplo que tem sido motivo de chacotas no meio jurídico e que demonstra o despreparo de
nossos legisladores, foi a aprovação da lei que pune de 2 a 5 anos de prisão qualquer sujeito que ouse
“molestar” um cetáceo. Afinal, o que seria dos cetáceos se não fossem nossos eminentes legisladores?
Assim, é mais coerente não correr o risco de perturbar o sono de um golfinho, ou até mesmo tomar
cuidado para não abusar sexualmente de uma baleia sob pena de ser preso.
62
enfrentar os desafios impostos pelo novo ambiente tecnológico, é preciso pensar os
processos sígnicos de uma forma radicalmente nova: conceber esse fenômeno
sustentado em regularidades externas ao homem, criadas em um espaço virtual,
projetado numa perspectiva muito mais ampla e analógica que a dos eventos percebidos
sem a intermediação técnica. 50 51
O poder simbólico é quase mágico; através dele é possível obter o equivalente
àquilo que é obtido pela força física, graças ao seu efeito de se fazer legitimado e
ignorado como arbitrário.
Ora, a cultura do medo age, cumprindo a sua função política de instrumento de
imposição ou legitimação da dominação, pois o processo manipulatório realizado pela
mídia opera o chamamento da sociedade para a assunção de determinadas ideologias,
convoca sujeitos que irão reproduzir esse discurso do medo e que depois estarão à sua
mercê, anuindo assim para a supressão de direitos e garantias individuais, para a
efetivação dos propósitos administrativos que convocaram essa comoção social.
Para Pastana, em uma sociedade como a contemporânea, que se estrutura pela
dominação de alguns grupos sobre os outros, é evidente que diversos graus de violência
são exercidos sobre os grupos dominados. Uma das formas de toda esta dominação é
criar toda uma ideologia justificadora, que faz com que essa situação de autoritarismo
seja vista como algo circunstancial e necessário. É diluir a opressão em contextos
instáveis, convencendo oprimido de que ele está numa situação não porque existem
outros que o oprimem, mas porque vive em um ambiente hostil em que o preço da
segurança é a arbitrariedade e o autoritarismo. 52
Evidentemente, quanto mais convincente e estratificada é a opressão, mais
sofisticado e mais profundo é o emprego e o papel da ideologia justificadora, que é
49
Cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. A perda de legitimidade do sistema
penal. Tradução: Vânia Romano Pedrosa, Almir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 2627.
50
PIMENTA, Francisco José Paoliello. Novo conservadorismo e o ambiente hipermídia. Revista
Fronteiras -Estudos Midiáticos, Unisinos, Vol. 1 nº 1 -m dezembro de 1999.
51
GUEDES, Olga & PAULA, Silas de. Sociedade de informação: o futuro (im) perfeito. Revista
Fronteiras -Estudos Midiáticos. Unisinos, Vol. 1 nº 1 -m dezembro de 1999, p.139.
52
PASTANA, Débora Regina. Reflexões sobre a violência criminal, controle social e cidadania no Brasil.
São Paulo: Editora Método, 2003, p. 94.
63
perfeitamente introjetado pelo oprimido, contribuindo de maneira fortíssima para a
manutenção do status quo e servindo também de suporte para os casos em que é preciso
recorrer a uma violência mais direta e mais explícita como forma de controle. Neste
sentido, pode-se dizer que a ideologia do grupo dominante é hegemônica.
O direito surge em dado momento histórico, numa dada formação social, por
uma dada classe que manipula os instrumentos normativos e políticos necessários à
manutenção de um padrão específico de dominação. As diretrizes dadas pela classe
dominante que, em um dado momento, dita valores, provoca a alienação dos demais
cidadãos, que são levados a crer na utopia de uma ordem legal equilibrada e
harmoniosa, na qual os conflitos sócio-econômicos são mascarados e resolvidos pela
força retórica das normas e diluídos por diversos estratagemas que visam não tornar tão
visível esta falta de equidade, esta injusta social. Se assim não o fosse, se o jogo
capitalista ficasse exposto e suas brechas ideológicas fossem desmascaradas, a
sociedade perderia o controle de seus engendramentos, não operando com a mesma
eficácia esta ideologia justificadora que ilude todo aquele que não está no ápice da
pirâmide social, fazendo-o aceitar como verdade, pela cultura do medo, que o preço a
ser pago por segurança seria retirar-lhe mais uma parcela de seus direitos.
É, assim, a cultura do medo quem estrutura muitos discursos políticos que se
valem da mídia como veículo de difusão para gerar, no campo jurídico, a idéia de que a
solução para uma criminalidade cada vez mais intensa é o apenamento severo para
determinados crimes. Acoberta-se, com a cultura do medo, os reais problemas
causadores da criminalidade, dando a aparência de que a solução está na instituição de
um direito penal altamente repressivo.
A disseminação do medo transforma-se em um mecanismo de dominação por
meio da cultura – cuja base está assentada na incidência da violência simbólica, sendo
que seu sucesso está atrelado não somente na forma como é externado, mas também em
seu grau de eficácia em exprimir ansiedades culturais profundas. O medo nunca é ente
autônomo, ele sempre vem atrelado a um conjunto valorativo e um conhecimento
apriorístico a seu respeito que lhe dá guarida. O sistema penal apresenta-se como uma
reprodução do sistema de estratificação social, amparado justamente em uma eficácia
simbólica, porque, ao mesmo tempo que declara determinadas condições de igualdade
64
social, não luta efetivamente para cumpri-las e passa a contribuir para a reprodução de
relações sociais desiguais.
A preocupação com a segurança é legítima, mas ela não pode afrontar os direitos
constitucionais e humanos, os quais são violados hoje em dia das mais diversas formas.
A assertiva de que direitos humanos só servem para proteger bandidos, de tão repetida,
acaba por ser aceita como verdadeira, quando na realidade, é fruto de profunda
ignorância, acarretando a fragilização de conquistas democráticas que a humanidade
levou séculos para firmar.53
Nesse sentindo, a omissão da realidade dos sistemas e agências penais leva a
uma redução da possibilidade de soluções dos desafios, funcionando apenas como um
analgésico e um estupefaciente. Medidas como as de exceção que vem se tornando
regras, têm demonstrado efeitos típicos dos regimes totalitários, nos quais são
estigmatizados e marginalizados determinados tipos de classes sociais, acarretando a
disseminação de regras e técnicas vagas, abertas e ilegítimas de controle social punitivo,
nas quais o oprimido torna-se presa fácil ao aniqüilante sistema de exclusão social. 54
Há uma necessidade urgente de se (re)valorizarem os princípios penais e
constitucionais, diante do clima de terror imposto pelos meios de comunicação de
massa, incentivados pelas doutrinas repressivistas, ao entronizarem a criminalidade
como tema destaque em todas as suas manifestações. As conseqüências negativas são
evidentes, eis que provocam uma tensão social que justifica o apelo da sociedade por
segurança.
Mas, hoje a pena pública e infamante do direito penal pré-moderno foi
ressuscitada e adaptada à modernidade, mediante a exibição pública do mero suspeito
nas primeiras páginas dos jornais ou nos telejornais. Essa execração ocorre não como
conseqüência da condenação, mas da simples acusação, inclusive quando esta ainda não
foi sequer formalizada pela denúncia, quando, todavia, o indivíduo ainda deveria estar
53
SCAPINI, Marco Antonio Bandeira. Execução penal: controle da legalidade. In: CARVALHO, Salo.
Crítica à execução penal: doutrina jurisprudência e projetos legislativos. Rio de Janeiro: Lúmen-Juris,
2002. p. 387.
54
Nesse sentido ATHAYDE, Celso. BILL, MV. SOARES, Luiz Eduardo. Cabeça de porco. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2005. p. 131.
65
sob o manto protetor da presunção de inocência. Existem, porém outros interesses que
pautam essas inquisições sumárias, a par de outras tantas motivações que buscam
silenciosamente aniquilar os meros suspeitos por representam uma classe que certas
sociedades visam “esconder”. 55
A cultura do medo é vista como mecanismo de alerta para a sociedade em geral,
porém sua veiculação torna vulneráveis os direitos e garantias individuais e faz com que
a sociedade anua à prática de ações erigidas ao arbítrio de um estado formal e
democrático de direito, ganhando legitimidade perante uma sociedade amedrontada e
insegura. Segundo Pastana, a cultura do medo reflete, dessa forma, a crença de que se
vive em um momento particularmente perigoso devido ao aumento da criminalidade
violenta o que legitima posturas autoritárias que, de acordo, com interesses políticos,
são difundidas como capazes de solucionar estes problemas. 56
A cultura de medo torna-se, assim, instrumento de dominação política que se
concretiza na medida em que o medo social ligado ao crime é colocado como problema
social emergente e preponderante: os argumentos políticos que se manifestam a este
respeito apontam a administração do momento como ineficaz no combate a
criminalidade e de forma messiânica sugerem a próxima administração como meio para
resolver este tipo de problema.
Segundo Andrade, a expansão punitiva, a maximização do espaço da pena, é
apresentada em espetacular orquestração jurídica, política e midiática, com o mesmo
absolutismo com que a globalização neoliberal se apresenta, como o único caminho,
seja como pretensa solução ao combate à maximização da criminalidade e obtenção de
segurança; seja como solução para uma infinidade de problemas complexos e
heterogêneos entre si. 57
O crime é construído como espetáculo e nesse espetáculo se alicerçam os atos
dos poderes públicos no combate à criminalidade, mascarando todos os problemas
55
Nesse sentido LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da
instrumentalidade garantista. Rio de Janeiro: Lúmen-Juris, 2004. p. 181.
56
PASTANA, Débora Regina. Cultura do medo, reflexões sobre violência criminal, controle social e cidadania no
Brasil. São Paulo: Método, 2003. p. 95
66
sociais e o agravamento das injustiças sociais, tornando difusos as omissões e violências
perpetradas contra o cidadão na falta de concretização de seus direitos. A maximização
do medo e da insegurança congela qualquer manifestação criativa e abafa as
manifestações de insatisfação com a estruturação social como está posta, abrindo espaço
para medidas emergenciais cada vez mais expansionistas em termos penais, verificáveis
pela edição de leis penais cada vez mais severas e legitimadas por demandas sociais de
proteção, principalmente, da elite. A exceção de instaura como regra, respaldando a
supressão gradativa dos direitos e garantias fundamentais.
A sensação de impotência do estado no combate a criminalidade organizada e o
terrorismo propicia um avanço sem precedentes na internalização da necessidade de
medidas emergenciais e autoritárias. O poder simbólico oriundo do pânico camufla a
efetiva causa da criminalidade, operando um desvio da atenção da população para a
fonte da problemática do crime. A população imbuída na busca de soluções para medos
ilusórios ou estrategicamente projetos, não reivindica então a inoperância do estado em
promover os direitos fundamentais que são parcela de sua função como instituição.
Pastana entende que a cultura do medo apresenta-se como uma soma de valores
e comportamento associados à violência criminal que cria uma idéia de hegemonia da
insegurança que perpetua a dominação autoritária, apresentando como conseqüência a
degradação da sociedade e o enfraquecimento da cidadania na medida em que essa
cultura do medo tem suas raízes fundadas num individualismo que vem promovendo o
distanciamento entre os sujeitos. O medo e a insegurança, no atual período democrático,
permitem ao estado tomar medidas simbólicas cada vez mais autoritárias, que podem
ser percebidas, especialmente, pela edição de leis penais cada vez mais severas e
legitimadas por demandas sociais de proteção, principalmente, da elite. O resultado
disso é uma justificação da dominação autoritária com o isolamento gradativo e
voluntário das vítimas prováveis. 58
57
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência
na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 23
58
PASTANA, Débora Regina. Cultura do medo, reflexões sobre violência criminal, controle social e
cidadania no Brasil. São Paulo: Método, 2003. p. 95.
67
Os mídias ao operarem essa manipulação da problemática da violência,
descartam e maquilam que dentre suas causas está a terrível faixa de exclusão a que está
condenada grande parte da população mundiais, ignoram a não disponibilização do
estado ao acesso à educação e à saúde; a fome, a miséria, a concentração de riqueza nas
mãos de uma minoria. O medo serve então de instrumento de manutenção de uma
ordem social injusta que se mantém sustentada pelo autoritarismo institucionalizado. A
não disponibilização de políticas públicas para dar eficácia aos direitos fundamentais
previstos constitucionalmente, a carência de projetos sociais de saúde pública, de
educação e de cultura, ficam mascarados, pois o pânico veiculado na mídia entra em
cena como parte dos mecanismos estratégicos para manter a população alienada dos
reais problemas sociais.
Por todos os engendramentos que estão por detrás da violência institucional do
Estado e pela violência oriunda da criminalidade organizada é mister fazer uma análise
do discurso jurídico penal, sua deslegitimição pela não operacionalidade do sistema
penal e carcerário e os mecanismos e falas que objetivam camuflar e maquilar esse
processo de ausência de efetividade prática.
68
2 O DISCURSO JURÍDICO PENAL
Os seres humanos não produzem mensagens no vazio: comunicam-se em meio à,
de determinados lugares e para outros sujeitos que também estão inseridos no processo
e a ele respondem, assumindo a comunicação, nesse percurso, sentidos, a cada vez
privativos de um dado processo comunicativo.
A instância de enunciação é o espaço de geração do discurso, desencadeador de
operações seletivas que elegem, dentre as combinatórias de unidades discursivas
virtuais, as que estão em condições de produzir efeitos de sentidos desejados. A esse
conjunto de deliberações tomadas pelo enunciador dá-se o nome de discursivação.
Assim, os processos de produção de significação não se desencadeiam por si só: não são
as coisas que dizem o que significam; fora da relação com o espírito, com o sujeito, elas
permanecem inteiramente mudas.
O processo de construção do discurso implica uma série de escolhas operadas
pelo enunciador, concernentes ao modo como pretende organizar o que diz em qualquer
linguagem, levando em conta valores culturais, intenção comunicativa, meios
empregados para a veiculação da mensagem e linguagens privilegiadas para sua
manifestação. E o lugar onde o discurso se manifesta, é o texto, a única realidade
palpável.
Considera-se, dessa forma, o texto como produto material do processo de
produção de significação - o discurso. O texto é, pois, o produto da semiose, isto é, da
função contraída entre expressão e conteúdo, podendo utilizar-se das mais diversas
substâncias para sua expressão. 59
59
DUARTE, Liza Bastos. Hermenêutica Jurídica: uma análise de temas emergentes. Canoas: Ulbra,
2003, p. 54 “Saussure pensa que a linguagem tenha um lado individual e um lado social; por isso
distingue na linguagem a língua da fala (uso individual). A língua nesse nível seria o objeto científico da
lingüística, não se constituindo em síntese das diferentes linguagens naturais do mundo, mas em seu
significado como sistema; a fala, no ato de seu conhecimento, existe no interior da língua, ou seja, a
realidade sígnica é reconstruída na língua, que nasce por oposição à fala. Dentro da linguagem, define a
língua como seu objeto de estudo. Pensa que no cérebro humano, os fatos da consciência chamados
conceitos se acham associados a representações dos signos lingüísticos. Salienta, além disso, a existência
de uma faculdade de associação e coordenação dos signos, que desempenha papel fundamental na
organização da língua enquanto sistema. Acredita o citado autor que todos os indivíduos unidos pela
linguagem, reproduzem, não exatamente, mas aproximadamente, os mesmos signos aos mesmos
69
Mas, de que falam os textos? Os textos referem-se a uma realidade, não
necessariamente coincidem com ela. O mundo se nos apresenta por todos os sentidos;
nos textos, somente algumas dessas propriedades são transpostas para a superfície
artificial do papel. Essa alteração constitui-se numa redução muito grande dos atributos
do mundo representado, pois, a rigor, somente alguns traços são explicitados, e tais
traços, assim selecionados e transpostos, pouco dizem em relação à riqueza do mundo
material: são figuras, não objetos do mundo.
Todo discurso nada mais é do que uma representação do imaginário, e as
configurações discursivas, por possuírem uma coerência interna, fabricam seus próprios
índices de verdade e realidade. Essa ilusão referencial substitui erradamente o real por
sua representação. 60
O direito penal é constantemente relacionado à idéia de simbolismo que ele
próprio encerraria. É preciso compreender que esse simbolismo a que as teorias do
direito fazem menção diz respeito a um fenômeno bastante conhecido das ciências das
linguagens, em especial da semiótica, nas quais apenas ganha outras denominações. Ele
refere-se do fato de que os signos e os textos têm muitos sentidos.
O ilustre lingüista e semioticista Louis Hjelmslev, que introduz nas ciências das
linguagens, o conceito de conotação, diz que o conteúdo dos textos nunca têm apenas
um sentido único, referencial. Essa é a grande impossibilidade de qualquer linguagem e
também sua maior riqueza diz que o conteúdo dos textos têm, no mínimo, três níveis de
sentidos – os referenciais, os intersubjetivos e os de apreciação coletiva, ligados à
cultura e aos sistemas de valores que lhe são subjacentes. Mais ainda, considera que
esse último nível – o da apreciação coletiva – subsume os demais.61
conceitos. Assim, isolando a parte física e psíquica, o lado executivo individual, a fala, atinge o liame
social constituído pela língua. Trata-se, segundo Saussure, de um tesouro depositado pela prática da fala
em todos os indivíduos pertencentes à mesma comunidade, sistema gramatical que existe virtualmente em
cada cérebro, ou no conjunto de cérebros de um conjunto de indivíduos. É isso que faz com que o
dicionário ou uma gramática possam representar a língua fielmente.”.
60
Nesse sentido BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. São Paulo: Cultrix, 1997, 15ª. Edição.
61
Nesse sentido HJELMSLEV, L. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. São Paulo: Perspectiva,
1975, p. 80.
70
É por isso que se diz, aliás, que nenhum discurso é inocente. Traz, junto com as
informações que contêm intenções de ordem subjetiva, e intencionalidades da ordem da
cultura e da ideologia.
Daí por que, é preciso ter presente que, se todo ato comunicativo se manifesta
em um texto, então esse texto é palco de um confronto de quereres e poderes que se
submete ao princípio da eficácia: eis por que a atualização das escolhas feitas pelo
enunciador frente ao repertório de possibilidades virtuais são estratégicas. Todo ato
comunicativo visa ao convencimento: os participantes não só querem vencer um ao
outro, como obrigar ao outro a partilhar de sua vitória.
Dessa forma, a noção de estratégia contraria o ponto de vista objetivista e
determinista do sistema, pois ela é da ordem prática do uso, não implicando a
obediência
mecânica
às
regras
explicitamente
codificadas.
A
estratégia
é
simultaneamente (1) o conhecimento das regras para a elaboração de um programa de
ação – seleções, combinações, rupturas – que conduza ao êxito; (2) a competência
interpretativa da performance do interlocutor, permitindo ao sujeito ir dos atos às
intenções do outro de forma a construir uma representação global de seu ser, seu querer
e seu possível fazer; (3) a competência manipulatória com vistas a fazer o interlocutor
agir no quadro e em proveito do programa de ação por ele estabelecido.
Ora, com o discurso penal não se passa diferentemente. Ele nasce da tentativa de
o estado combater os crimes que ameaçam a sociedade, de um lado, penalizando os
culpados; de outro, contém uma intenção explícita: advertir o cidadão das
conseqüências concretas de seus atos criminosos. Nessa perspectiva, subjacente a ele, há
sem dúvida, todo um processo persuasivo.62 63
62
ARNAUD, André-Jean. O direito traído pela filosofia. Tradução Wanda de Lemos Capeller, Luciano
Oliveira. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1991. Arnaud critica a virtualidade do seu discurso e demonstra o
seu conteúdo manipulatório, senão vejamos: "Se a existência de uma crise contemporânea de nossas
sociedades é bem real, e se o impacto que ela pode ter sobre o direito é inegável, fica também claro que o
mal-estar sentido por um certo número de juristas assenta-se, na verdade, sobre uma simulação de
crise.(...)A fronteira entre o real e o jurídico só pode, por outro lado, ser transpassada por intermédio de
um discurso. De tal forma que a crise da sociedade não é mais, em matéria jurídica, do que o discurso da
crise. No final de contas, podemos perguntar se, no momento de ser examinada pelo jurista, a crise real
não se viu substituída por um certo arranjo de signos que transpunham a crise em um modelo
jurídico".(...)Uma das armas prediletas do poder consiste na utilização de uma doutrina pronta a
persuadir que o discurso que ela mantém é real e apelar para a noção de crise para manter sua
sobrevivência. Bastaria, portanto, que a crítica denunciasse a simulação e a aparência hiper-realista
71
É, assim, impossível desconsiderar o fato de que o direito penal se manifesta em
textos, recorre a signos; é impensável ignorar que a própria cultura constitui-se em um
emaranhado de sistemas simbólicos que se servem das linguagens como elementos de
mediação e expressão suas representações.
A harmonização social e a efetivação dos direitos fundamentais não estão
diretamente relacionadas ao direito penal; não é recrudescimento das penas ou o
tratamento dispensado ao cárcere que irá melhorar as desigualdades sociais de países
como os de terceiro mundo. Ocorre que o direito penal atua, quase que exclusivamente,
na condição de falácia simbólica, sendo usado, muitas vezes, para aplacar insurreições
populares pela não efetividade do estado. Daí por que o ordenamento penal é
constantemente relacionado com o simbolismo que ele próprio encerra.
Os fenômenos como a neocriminalização ou recrudescimento exacerbado das
coações penais se fomentam a partir de discursos que apregoam a necessidade de
mitigação dos direitos e das garantias individuais, sustentados pela criação de falácias
como a efetividade do direito penal enquanto símbolo de mediação e coação entre as
vivências instintuais do homem e aquelas introjetadas pela cultura, pela adesão que
implica o pertencimento a uma sociedade que se pauta pelas relações do direito.
Assim, quando se fala de simbolismo em relação ao direito penal faz-se
referência ao alargamento de sua destinação e de seus sentidos. O direito penal, tal qual
aqui se compreende, não se reduz à mera explicitação das normas penais e/ou à coação
desta última para que, através da sugestão a uma volta ao real e sua aceitação, pusesse termo a
constante regeneração da ordem estabelecida pelo que a maioria considera como a crise e que não é
mais, nesta fase, do que um modelo de crise. Assim, ao mesmo tempo, desapareceria toda a causa do
mal-estar".
63
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. São Paulo:
Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2001, p.40. "É aqui que se faz necessário o exercício de
uma crítica da ideologia, que revele vinculações políticas e éticas, subjacentes a posições assumidas por
doutrinadores, juízes e legisladores, no campo do direito. Com isso, evita-se uma politização exacerbada
da teoria jurídica, que a torna desprovida de um mínimo de objetividade, outro requisito necessário para
que se possa considerá-la científica. [...] Na verdade, a ciência jurídica - como toda ciência, aliás - não
tem como escapar completamente das influências ideológicas. É certo, também, que para ela é
particularmente difícil uma "neutralização axiológica", e podemos mesmo duvidar de que isso seja
desejável, pois se perseguimos esse já tão desgastado ideal com demasiada obstinação, terminamos por
não cumprir um dos principais compromissos que se deveria assumir, ao fazer a ciência jurídica: o
compromisso com a democracia e emancipação social".
72
penal ao seu infringir, pois ordenamento penal não encerra, em seu corpo, somente as
normas punitivas, permissivas, explicativas, contempladas pelos códigos; também está
implícito neles todo um conjunto de simbolismos (outros sentidos) que atuam
concomitante e paralelamente às normas, cuja finalidade é operar estrategicamente,
tendo em vista os objetivos pretendidos pelo texto legal.
Dentre os simbolismos subjacentes ao direito penal, estão aqueles que lhe
conferem funções a maior do que é sua proposta explícita, e que permitem que ele seja
usado como medida de reforço ao combate à violência, ou de prevenção geral, em
detrimento da específica da tutela penal.
Na verdade, o direito penal constitui-se muito mais na forma, através da qual
finalidades político-criminais são transferidas para uma sede teórica dogmática, do que
um foro de efetividade de uma política social de prevenção geral e especial. A
dogmática abstrata-conceitual, herdada dos tempos positivistas, opera um divórcio entre
construção dogmática e acertos político-criminais de efetivação dos direitos e a
garantias individuais.
Por isso, quando se diz que eficácia dissuasória do direito penal não pode ficar
sustada no efeito meramente simbólico do direito penal, faz-se referência a um dos
sentidos contidos em seu discurso, aquele de caráter intimidatório, que funcionaria
como forma de prevenção. Mas, o que se lhe cobra, portanto, é que comporte reais
condições de ressocialização e reintegração dos apenados. Daí por que, para Sanchez, a
história do direito penal moderno é muito mais aquela da confrontação entre direito
penal vigente e a reforma do direito penal, em que são tomadas as considerações
utilitaristas relativas ao menor dano social e à observância de outros princípios, tais
como os de proporcionalidade, humanidade e igualdade. O balanço que essa oposição
dialética deveria comportar é a redução da violência, do dano social causados pelas
instituições penais, sem diminuir substancialmente o nível de prevenção do direito
penal.
Andrade, manifestando-se a respeito do engodo no que se constitui o direito
penal simbólico, alerta para o fato de que se trata precisamente de uma posição entre o
manifesto e o latente; entre o verdadeiramente desejado e o diversamente acontecido,
73
conseqüências reais do direito penal, do qual se pode esperar que realize, através da
norma e de sua aplicação, outras funções instrumentais, diversas das declaradas,
associando-se nesse sentido com o engano. 64
A norma jurídico-penal, além de pretender a tutela os bens jurídicos para a
manutenção das relações interpessoais e a efetivacão da contenção de reações instituais
que coloquem em risco a em vida em sociedade, realiza uma seleção de
comportamentos relevantes, tipificando aqueles que lesionam ou expõem a perigo a
sociedade, julgando-os adequados ou inadequados à convivência social. Possui então o
direito penal uma função seletiva e garantidora da ordem jurídica. Segundo Rogério
Greco e Fernando Galvão,
“Além da função garantidora, podemos dizer também que ao tipo
cabe uma outra, qual seja, a função de selecionar as condutas que deverão
ser proibidas ou impostas pela lei penal, sob ameaça de sanção. Nesta
seleção de condutas feitas através do tipo penal, o legislador, em atenção
aos princípios da intervenção mínima e da adequação social, traz para o
âmbito da proteção do direito penal somente aqueles bens considerados de
maior importância, deixando de lado, ainda, as condutas consideradas
socialmente adequadas. Desta forma a seleção das condutas a serem
65
proibidas ou impostas caberá ao tipo pena”.
Vê-se daí que o direito penal não se encerra na letra fria da lei e de suas sanções;
existe um simbolismo, isto é, a co-presença de outros sentidos, que emanam do direito
penal e da própria pena que se constituem primeiramente no fim intimidatório da
prevenção geral; e, em segundo lugar, na tentativa de reeducação e socialização do
delinqüente, com vistas à para a tentativa de obtenção de um ideal de justiça, levando-se
em conta uma intricada soma de fatores, para qual se conta com o caráter simbólico do
direito penal para a minimização da delinqüência. Porém, o simbolismo do direito penal
encobre questionamentos maiores que deveriam levar à sociedade a considerar o delito
não somente enquanto fenômeno individual ou coletivo, encerrando-o na prevenção
geral e especial, mas preocupar-se, isto sim, com a prevenção social ou primária que
64
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à
violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 293.
65
GALVÃO, Fernando, GRECO, Rogério. Estrutura Jurídica do Crime. Belo Horizonte: Mandamentos
Livraria & Editora, 1999, p. 142.
74
ocorre devido à não disponibilização por parte do estado, da eficácia dos direitos
fundamentais, como o direito à educação, à saúde. 66
A questão central não se resume, portanto, no caráter preventivo do direito penal
ou em qualquer outro de seus simbolismos. O problema reside antes no fato de o
discurso penal ficar, muitas vezes, restrito ao simbolismo, isto é, não ultrapassar o nível
de construção de linguagem, não assumir sua performatividade. A esse respeito,
Zaffaroni e Pierangeli dizem ser lógico que a pena, ainda que tenha em relação aos fatos
uma função preventiva especial, sempre desempenha também uma função simbólica; no
entanto, quando ela só cumpre essa última função, é irracional e antijurídica, por que se
vale do homem como imagem e instrumento para a sua simbolização, o Estados Unidos
como um meio e não como um fim em si; enfim, coisifica o homem. Em outras
palavras, desconhece-lhe abertamente o caráter de pessoa, com o que viola o princípio
fundamental em que se assentam os direitos humanos. 67
A prevenção e punição funcionam como partes autônomas e distintas e
subsidiárias do direito penal, pois a finalidade maior do direito penal é assegurar a paz
social, sendo a prevenção e punição derivações ou materializações, utilizadas pelo
estado, para fazer cumprir seu desiderato.
Para Carnelutti si la finalidad Del derecho en general consiste em
asegurar la paz a la sociedad, la finalidad; del derecho penal está en excluir
la resolución de los conflictos de intereses mediante la guerra (y, a su vez, la
finalidad del derecho civil en garantirzar un modo de resolución de los
conflictos diverso de la guerra); reflexionando que, en cuanto está prohibida
por el derecho, la guerra se convierte en delito, la finalidad del derecho
penal está, pues, en excluir o en combatir el delito”. 68
Muñoz Conde classifica as teorias da pena em absolutas, relativas e da união.
A teoria absoluta, que teve, entre seus maiores defensores, Kant, entende a pena como
66
Nesse sentido diz WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. 2a versão. Porto Alegre: SAFE,
1995, p. 19. Conforme cita Warat: “Quando o legislador introduz estereótipos nas normas gerais está
autorizando os juízes a produzirem, em suas sentenças, definições persuasivas. Então, há que ser levado
em conta um critério de decidibilidade e a idéia da finalidade ética da sanção. Desta forma, por meio do
processo de estereotipação são criadas as condições discursivas do senso comum teórico dos juristas”.
67
ZAFARONI, Eugênio Raul, PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, São
Paulo Revistas dos Tribanais, 2005, p. 45.
68
CARNELUTTI, Francesco. Lecciones sobre el proceso penal. Buenos Aires: ediciones jurídicas
Europa América Bosch y cia editores, 1950. vol. I
75
uma reação, uma imposição imperativa, conseqüência justa, necessária e lógica contra
aqueles que atentaram contra a lei – seria a retribuição pura e simples, ou seja, poena
absoluta ab effectu; A teoria relativa (Feurbach), que subdividia os fins da pena em
duas espécies distintas, voltadas a prevenção especial e a teoria da prevenção geral,
acredita que, para cumprir seu papel de proteção e manutença da paz social, o direito
necessita ter em seu poder instrumentos hábeis que proporcionem o fiel cumprimento de
suas disposições e não somente conferir à sociedade que lhe outorgou esta incumbência,
o que seria uma resposta simbólica no que se refere ao combate à criminalidade. 69
Para as teorias da prevenção geral, o fim da pena consistiria na intimidação dos
cidadãos, para que se afastem da prática de crimes (Feurbach): trata-se de uma coação
psicológica sobre os cidadãos. Os pensadores das teorias da prevenção especial
consideram que a finalidade da pena é o afastamento do delinqüente da prática de
futuros crimes, mediante sua correção e educação, através de seu distanciamento da
sociedade e de sua colocação sob a custódia do estado que ficaria então responsável pela
sua socialização (Von Liszt). 70
A teoria da união apresenta-se como um divisor de águas. Trata-se de uma
posição intermediária entre as duas teorias precedentes: centra-se na finalidade da pena
tanto no sentido de prevenção geral como de prevenção especial, unindo assim os
estágios ou fases da pena, com vistas a que a mesma cumpra funções distintas: no
momento da ameaça da pena (legislador), é decisiva a prevenção geral, no momento da
execução da pena, prevalece a prevenção especial, porque então se pretende a
reeducação e socialização do delinqüente. 71
Confirmando as assertivas antes mencionadas, Canotilho argumenta que a teoria
da constituição defronta-se com problemas de simbolização. Tais problemas são
agitados por três correntes teoréticas: (1) a sociologia crítica; (2) a teoria sistêmica; (3) a
arqueologia mítico-retórica. A sociologia crítica insiste na simbolização da constituição,
69
MUÑOZ CONDE, Francisco. Teoria Geral do Delito. Trad. de Juarez Tavares e Luiz Regis Prado.
Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1998, p. 70.
70
Nesse sentido LUISI, Luiz. O Tipo Penal, A Teoria Finalista e A Nova Legislação Penal. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris Editor. 1987, p. 80.
71
ALBERGARIA, Jason. Das penas e da execução penal. Belo Horizonte: Del Rey, 1992, p.45. “Parte
da idéia da retribuição como base, acrescentando os fins preventivos e gerais. Aparece como uma solução
76
realçando a incapacidade das normas para obter eficácia real; sua eficácia é enunciativa.
Em muitos casos, existe uma clara dissociação entre a prática de dizer e a prática de
fazer o direito. No que respeita à constituição, existiria mesmo uma relação
inversamente proporcional entre o caráter ideológico das normas e sua eficácia, entre a
prática criadora e a prática aplicadora do direito constitucional.72
Numa posição próxima, mas alicerçada em pressupostos teorético-sistémicos, a
constitucionalização simbólica compreende que, ao texto constitucional, numa
proporção
muito
elevada,
não
correspondem
expectativas
congruentemente
generalizadas e, por conseguinte, consenso suposto na respectiva sociedade. Nessa
perspectiva, a constituição não se desenvolveria como instância reflexiva do sistema
jurídico. Por fim, a arqueologia mítico-utópica articula constituição, constitucionalismo
e codificação, a fim de denunciar o artificialismo do sistema constituinte como assente
num pacto fundador, mesmo quando esse sistema se esconde atrás de teorias de
consenso, teorias contratualistas, teorias comunicativas ou teorias processuais. Aqui, o
alvo da crítica não é tanto o divórcio do discurso constitucional em relação aos
discursos reais no seio da sociedade, mas o projeto da modernidade ao qual o
constitucionalismo está indissoluvelmente ligadoe que esquece os mitos fundadores das
comunidades políticas. 73
O direito penal meramente simbólico, isto é, que não ultrapassa a mera
construção de linguagem carece de legitimidade por tornar a norma penal instrumento
manipulatório a serviço do medo e da insegurança da sociedade, sustentando seu poder.
Num rigor desnecessário, desproporcional e ineficaz, que sabendo-se inútil ou
impossível na sua efetividade, opera a médio prazo descrédito no próprio ordenamento,
mina o poder intimidatório de suas sanções. Por outro lado é preciso ter claro que
qualquer que seja o simbolismo contido no discurso penal, ele é da ordem do
ideológico.
de compromisso na luta das escolas. Retribuição e prevenção são dois pólos opostos de uma mesma
realidade, que se coordenam mutuamente, e não podem subordinar-se um ao outro”.
72
CANOTILHO J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Livraria Amedina,
2001, p. 1260.
73
Nesse sentido CUNHA Paulo Ferreira, Constituição, Direito e Utopia. Do Jurídico-Constitucional nas
Utopias Políticas, Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 251 e ss e 349 e ss.
77
Daí reafirmar-se que o direito é uma ciência humana parcial que traduz a
vontade política encerrada em determinada dimensão valorativa. Se a classe dominante
dita as regras do jogo, o ordenamento legal por ela projetado está impregnado de
ideologia e de privilégios. A técnica do direito é fazer crer a aquele que sofre sanções ou
que tenha seus direitos ofendidos deve buscar individualmente o reconhecimento de um
direito e ou de interesses coletivos.
Mas, se a lei e o direito estão a serviço da classe dominante, na defesa dos
interesses da sociedade capitalista, servindo como instrumento de garantia da segurança
de suas expectativas, nada mais coerente que as normas sejam uma projeção de seus
valores. Logo, a lei nem sempre revela o direito, pelo contrário, muitas vezes consagra
privilégios.
Assim, embora o direito e, em particular, o sistema legislativo, seja a expressão
dos valores da classe dominante, faz parte de sua função atenuar pressões e conflitos
existentes na sociedade, pois só assim a classe dominante se sustentará no poder. Por
isso lhe cabe dirimir as lides existentes e garantir ao cidadão um mínimo de
credibilidade, segurança e certeza, necessárias à sustentação do poder instituído.
Mas, como afirma Nery Júnior, o discurso jurídico é, acima de tudo, uma
consciência valorativa social, verdadeira ordem hierárquica que, na dinâmica econômica
e social da formulação da ordem jurídica, não se presta objetivamente a neutralidades
axiológicas.74
Assim, neutralidade proposta pelo positivismo jurídico ignora que as normas
jurídicas estão inseridas em um contexto, cuja ação e comportamento elas devem regrar,
privilegiando de tal forma o ordenamento, que acaba por relegar o social a um segundo
plano, reafirmando, pelo seu tecnicismo acrítico o caráter restritivo e limitativo do
positivismo jurídico-filosófico, o que implica a desconsideração do processo histórico
global e sua evolução. Kelsen, em sua Teoria pura do direito, tampouco foi neutro; ao
contrário, desenvolveu um discurso indicador de visível manobra ideológica, com
intuito de justificar o afastamento dos juristas da problemática social. Essa supressão
74
SILVEIRA, José Néri da. A Função do Juiz. Palestra proferida na AJURIS.
78
voluntária do sentido social da lei pode ser testemunhada pela convicção professada por
ilustres teóricos do direito, que, posicionando-se na trilha da escola kelseniana,
sustentam a neutralidade e objetividade da ciência jurídica.
75 76
Não obstante, esse rigor formal não é por acaso; ele serve aos propósitos dos
detentores do poder, na medida em que confirma e legitima a ideologia da norma
original, adaptando-a, interpretando-a no mais das vezes em função dos interesses dos
detentores do poder.77
Segundo Severo, na verdade, a descontinuidade entre a teoria e práxis é
aparente. É exatamente a dialética entre estes dois pólos que proporciona ao direito à
obtenção de seus efeitos na materialidade social. O direito, enquanto teoria, só tem
razão de ser se voltado a uma prática e vice-versa. Com efeito, tanto a teoria quanto a
práxis jurídicas não são autônomas, nem determinadas mecanicamente pelo estado ou
pela sociedade. O direito é parte constitutiva da complexidade das relações sociais,
sendo influenciado por suas relações de força, em um dado momento histórico, e tendo,
por sua vez, papel decisivo na determinação hegemônica dessa configuração de poder.
Assim possui, contraditoriamente, componentes legitimadores da dominação social.78
75
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 78
Quando os juristas identificam, acompanhando o pensamento kelseano, o Estado e o direito, suprimem
a vida privada delegando aos órgãos encarregados de produzir as significações jurídicas o poder absoluto
para ler a história das normas jurídicas. Assim, o estado adquire o monopólio da memória jurídica e
provoca a purificação da memória coletiva sobre o passado e presente das normas. Certamente
controlando-se o passado e o presente das normas, controla-se também o passado e o futuro da sociedade.
Desse modo resulta difícil aceitar que a democracia se realize reconhecendo aos encarregados da
produção dos significados jurídicos, como única instância habilitada para reescrever a história da lei. Uma
história ‘pura’ que é sempre uma história elaborada pelo desejo do esquecimento: as normas são válidas
se pertencerem a um sistema sem memória, que em sua totalidade é ineficaz. A instituição da sociedade
precisou, até a hora, de um conjunto de significações imaginárias, organizadas e constituintes. Elas são
sempre uma resposta aos caos, são sempre sua negação simbólica. Visam dar uma significância ao ser, ao
mundo e a sociedade pela própria sociedade. Devem mascarar o caos, e, em particular, ao caos
constituído pela própria sociedade. Elas o mascaram reconhecendo-o como falso por sua omissãoocultação, fornecendo-se uma imagem, uma figura, um simulacro que preserva o homem da dolorosa
experiência de enfrentar o abismo de sua existência, sem compensações imaginárias.
77
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do estado. Rio de Janeiro: Graau, 1983,. p. 33. “Mas,
dentro dos parâmetros estabelecidos, o microlegislador pode desenvolver uma tarefa normativa que
chega a desfigurar o teor normativo original, ultrapassando os parâmetros estabelecidos. Essa
ultrapassagem pode-se dar ou no sentido da radicalização do teor normativo ou no sentido de libertação
do conteúdo legal; é, pois, um duplo movimento de exacerbação ou libertação do que a lei geral dispõe e
é sempre um ato político, pois está interimplicado com o exercício do próprio poder ou do próprio saber
enquanto poder.”
78
ROCHA, Leonel Severo, Epistemologia Jurídica e Democracia. São Leopoldo: Unisinos, 1998, 48.
76
79
Argumenta o autor que nem seria aceitável erigir a ordem jurídica positiva em si
mesma, como exclusiva medida do justo, sob pena, desde logo, de renúncia à realização
do valor da justiça, naqueles convívios sociais, em que não se garantem a liberdade ou o
livre desenvolvimento da personalidade, nem se dá eficaz proteção à pessoa humana,
contra a exploração econômica, que humilha, por vezes, frações majoritárias de
integrantes dessa mesma comunhão social.
Quer se queira ou não, o discurso do direito configurara-se como um dos
aparelhos mais eficazes de preservação dos valores de uma dada sociedade e cultura.
Por isso é preciso que se diga, seu caráter é ideológico, e mais ainda, os operadores do
direito não ficam imunes a influencia dessa ideologia. Assim, o direito não é neutro.
Basta analisar o momento histórico de seu surgimento, o contexto dos interesses que
direcionam a feitura da norma jurídica e a realização e efetivação da justiça. As normas
surgem em dado momento histórico, numa dada formação social, oriundas de uma
determinada necessidade, de uma dada classe que manipula os instrumentos normativos
e políticos necessários à manutenção de um padrão específico de dominação. As
diretrizes emanadas dessa classe dominante, que, em um dado momento, dita valores,
provocam a alienação dos demais cidadãos, que são levados a crer na utopia de uma
ordem legal equilibrada e harmoniosa, na qual os conflitos sócio-econômicos são
mascarados e resolvidos pela força retórica das normas. 79
79
Nesse sentido PASUKANISE. B; Teoria geral do direito do trabalho e o marxismo.. Rio de Janeiro:
Renovar, 1989. op. cit. nota 32. p. 58. “O direito enquanto fenômeno social objetivo não pode esgotarse na norma, seja ela escrita ou não. A norma como tal, isto é, o seu conteúdo lógico, ou é deduzida
diretamente de relações preexistentes, ou então representa, quando promulgada como lei estatal, um
sintoma que nos permite prever, com certa verossimilhança, o futuro nascimento de relações
correspondentes. Para afirmar a existência objetiva do direito não é suficiente conhecer o seu conteúdo
normativo, mas é necessário saber se esse conteúdo normativo é realizado na vida pelas relações sociais.
A fonte habitual de erros neste caso [e o modo de pensar dogmático que confere, ao conceito de norma
vigente, uma significação específica que não coincide com aquilo que aquilo que o sociólogo ou
historiador compreendem por existência objetiva do direito. Quando o jurista dogmático deve decidir se
uma forma jurídica determinada está em vigor ou não ele não busca estabelecer genericamente a
existência ou não de um fenômeno social objetivo determinado, mas, unicamente, a presença ou não de
um vínculo lógico entre a proposição normativa dada e as premissas normativas mais gerais. Não existe,
para o jurista dogmático, no interior dos estreitos limites de sua atividade puramente técnica,
verdadeiramente, nada além das normas; ele pode identificar, com muita serenidade, direito e norma. No
que concerne ao direito costumeiro, ele deve, queira ou não, voltar-se para a realidade. Mas se a lei
estatal é para o jurista o supremo princípio normativo, ou para empregar a expressão técnica, a fonte do
direito, as considerações do jurista dogmático acerca da existência do direito vigente nada significam
para o historiador que queira estudar o direito efetivamente existente. O estudo científico, vale dizer,
teórico só pode levar em consideração realidades de fato. Se certas relações constituíram-se em
concreto, isto significa que um direito correspondente nasceu; mas se uma lei ou decreto forem editados
sem que nenhuma relação correspondente tenha aparecido, na prática, isto significa que foi feito um
ensaio de criação de direito, sem nenhum sucesso.. Este ponto de vista não equivale à negação da
80
Assim, o discurso da cultura se faz presente acima de tudo, impondo aos
interlocutores à submissão forçada a uma dada estrutura. Só ao e por aceitá-la, o
indivíduo pode sobreviver. A esse corpo sistemático de representações e normas que
ensinam a conhecer e a agir, chama-se de ideologia. Ela responde a um pânico
metafísico de desagregação e dá conta de uma estruturação social e política que
possibilite a vida em comunidade. Todos precisam, a cada momento, pensar sua relação
com a natureza e com os outros. Daí a função prático-social da ideologia.
A estrutura da ideologia garante simultaneamente a interpelação dos indivíduos
como sujeitos, a submissão ao poder, o reconhecimento mútuo dos papéis, bem como a
manutenção da ordem, uma vez que faz com que tudo pareça coerente da maneira como
está formulado.
A ideologia recruta sujeitos entre os indivíduos através de uma operação precisa:
a interpelação. E o interpelado sempre se reconhece. A ideologia, então, submete-o, ao
fazê-lo reconhecer o seu lugar na estrutura. Essa sujeição não é conseguida somente
através das idéias; ela existe materialmente através de um conjunto de práticas e rituais
situados no seio de instituições concretas – os aparelhos repressivos e ideológicos do
estado. Embora distintos, esses aparelhos funcionam de maneira compatível, agindo de
forma a conseguir a unidade do efeito de sujeição sobre os agentes sociais ao seu
alcance. Nessa direção, é preciso reconhecer não só que o próprio sistema legislativo
também se submete à ideologia, como passa a atuar como aparelho repressivo: os textos
legislativos sistematizam as regras que devem nortear a convivência dos homens numa
dada cultura.
Ora, se Marx tem razão, a ideologia dominante é sempre a da classe dominante
que por deter o poder do estado, harmoniza e compatibiliza os aparelhos do estado. Há
uma continuidade em seus textos que os esclarece e os completa.
vontade de classe como fator da evolução ou a renúncia da intervenção consciente no curso do
desenvolvimento. A ação política pode superar muitas dificuldades; pode realizar amanhã aquilo que
não existe hoje, mas, não pode fazer existir subitamente, aquilo que não existiu no passado”.
81
Segundo Althusser, é uma forma de produção determinada e as relações por elas
geradas o fator determinante, numa sociedade, de todas as outras as relações e
produções geradas. Dessa forma, essa estrutura de produção dominante subordina e
compatibiliza as outras. Mais do que isto, é nas outras, pelos seus efeitos, que pode ser
percebida. Ela é imanente aos seus efeitos, consiste neles. Daí por que as idéias
dominantes de uma época são as da classe dominante: pois essa, ao dispor dos meios de
produção materiais, dispõe também dos meios de produção intelectual. 80
A partir dessas constatações, muitas das articulações das normas jurídicas com a
cultura e a ideologia se esclarecem. Evidencia-se que a norma jurídica: (1) não é o
discurso instaurador da ordem; há, não obstante, uma ordem, uma lei, para aquém do
discurso legislativo, da qual ele fala e a qual ele regulamenta – a lei da cultura; (2)
emana não da vontade geral, mas de um aparelho repressor do estado, uma instituição,
sendo, portanto, compatível com outras estruturas e buscando sujeição ao poder; (3) tem
por função preservar a ideologia, que é a ideologia dos dominantes; (4) não é neutro,
medeia conflitos de interesses, privilegiando os interesses dos dominantes; (5) controla,
mais do que a obediência à lei, quem deve obedecer; (6) estabelece prescrições e
obrigações, definindo “como” se pode transgredir. A lei existe para ser transgredida; (7)
só proíbe o que a própria sociedade suscita em termos de desejo; (8) deixa lacunas
propositais, pois não pode desvelar suas intenções e incoerências.
Segundo Zaffaroni conforme as opiniões mais generalizadas atualmente, a pena,
entendida como prevenção geral, deve ser retribuição; entendida como prevenção
especial, deve ser reeducação e ressocialização.
“A retribuição deve devolver ao delinqüente o mal que este causou
socialmente, enquanto a reeducação e a ressocialização devem prepara-lo
para que não volte a reincidir no delito. Ambas as posições costumam ser
combinadas pelos autores, tratando de evitar suas conseqüências extremas,
sendo comum em nossos dias à afirmação de que o fim da pena é a
retribuição e o fim da execução da pena é a ressocialização (doutrina alemã
contemporânea mais corrente)”.81
.
80
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do estado. Rio de Janeiro: Graau, 1983.
82
O equilíbrio do terror vincula-se à capacidade destrutiva dos armamentos
humanos que, pelo medo, não seriam utilizados sob pena de destruição total. Prendia-se,
quando da guerra fria, à situação de animosidade existente entre o bloco soviético e o
bloco americano. Mesmo não havendo mais a polaridade de forças militares do passado
continua atuante a possibilidade de destruição total apresentada no argumento de
Bobbio: o medo continua, pois, sendo uma razão da paz. A mediação do conflito evita
atividades extremadas e desarrazoadas da vítima estatal. Portanto, para se alcançar a paz
perpétua, condição precípua para a existência de direitos fundamentais, deve a
comunidade internacional comprometer-se tanto para evitar a ação terrorista, como para
controlar os meios adequados para sua punição.
A magnitude do poderio destrutivo da ação e da reação do terrorismo exige a
busca de mecanismos preventivos e o cultivo da paz para a própria preservação da
existência da humanidade. A civilização construída na idade moderna vincula-se,
notadamente, à teoria contratualísta da formação do estado, que pressupõe a construção
de um estado em que haja a redução da violência, no banimento da visão pré-estatal do
"homo homini lupus".
Toda violência constitui-se em ato de ataque universal aos direitos fundamentais,
pois a sua negação é antecedente necessário à proteção estatal dos direitos
fundamentais. O julgar ético deve, pois, preceder ao agir político internacional. A
legitimidade das ações internacionais passa, conseqüentemente, a ser tópico
imprescindível para a escolha do que pode e do que não pode ser feito na “guerra contra
o terror”. O mundo, por meio da persuasão diplomática, deve ser convertido em pacífico
pelos diversos atores internacionais, obrigando a efetiva proteção dos direitos humanos.
Há, pois, necessidade de se combaterem as causas dos atos terroristas e a reação a esses
atos, visto que a paz – elemento polar da violência – coloca-se como antecedente dos
direitos fundamentais.
No que concerne ao simbolismo do direito penal, há de ser observado que um
dos efeitos decorrentes do atentado terrorista do 11 de setembro foi a potencialização da
81
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. A perda de legitimidade do sistema penal.
Tradução: Vânia Romano Pedrosa, Almir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 26-27.
83
capacidade simbólica ínsita ao direito penal, operando uma expansão do direito penal
sem precedentes na história das legislações democráticas do planeta.82
O Patriot Act é a expressão do expansionismo de legislação, ocorrida após o
atentado às torres, a reação mais visível e imediata adotada pelo povo e o governo
americano para combater os atos de terrorismo perpetrados no fatídico dia 11 de
setembro de 2001. Assinada pelo presidente George Bush em 26 de outubro de 2001,
após rápida e quase unânime aprovação do senado, a citada lei expande o nível de
atuação de agências nacionais de segurança (FBI), bem como das internacionais de
inteligência (CIA)), conferindo-lhes poderes até então inéditos. O texto, além da
autorização de agentes federais a rastrear e interceptar comunicações de eventuais
terroristas, torna mais rigorosas leis federais contra lavagem de dinheiro; faz com que
leis de imigração sejam mais exigentes; cria novos crimes federais; aumenta a pena de
outros crimes anteriormente tipificados; institui algumas mudanças de procedimento,
principalmente para autores de crimes de terrorismo. 83
82
84 85
Logo, há inúmeras causas ensejadoras do ataque terrorista de 11 de setembro, ligadas à política externa
e à hegemonia americana. Transpõem, nesse aspecto, as fronteiras das mortes ocorridas no próprio evento
e passa a ser acontecimento de maior amplitude e temor, visto simbolicamente como expressão de
intolerância radical ao modelo capitalista neoliberal e à política externa americana que a todo o momento
submete os países de terceiro mundo a um imperialismo sem precedentes que mata exércitos de fome,
Estados Unidos seres humanos como cobaias, enfim incide seu poderio indiscriminadamente sob todo
aquele que não compactua de suas diretrizes.
83
Também conhecido como USA/SPA (United States Patriot Act, acrônimo para Uniting and
Strengthening America by providing Appropriate Tools Required to intercept and Obstruct Terrorism e
Lei
Pública
nº
107-56.
Para
acessar
cópia
eletrônica
do
mesmo:
http://news.findlaw.com/cnn/docs/terrorism/hr3162.pdf. Deve-se, aqui, destacar o teor da sigla, que
significa "unindo e fortalecendo a América ao conceder instrumentos adequados exigidos para interceptar
e obstruir o terrorismo", tendo um caráter ideológico e emblemático da própria nomenclatura do ato. É
inegável que há, mesmo que intrinsecamente, uma noção de união e luta da América para criar
instrumentos para obstrução do terrorismo, retratadas nesta lei.
84
Império do medo, p.33 “Gastando mais em defesa nacional (350 bilhões de dólares, sem contar os
gastos com a guerra no Iraque, e esses números tendem a subir) do que o conjunto dos 15 maiores
gastadores mundiais nesse setor (os orçamentos de defesa nacional da totalidade dos aliados americanos
somam 220 milhões de dólares) e dispondo de armamentos de alta tecnologia que nenhum outro país
consegue ter, os Estados Unidos podem com facilidade arrasar qualquer nação que julguem ser inimiga.
São formidável adversário, pronto para eliminar um terrorista qualquer em um remoto deserto, por meio
de um míssil disparado de uma aeronave Predator não-tripulada, ou pronto para derrubar um regime hostil
mediante ameaças de índole militar, ou ainda para desfechar em qualquer canto uma guerra preventiva
antes mesmo que qualquer ato de agressão tenha sido cometido contra os interesses americanos”.
85
Nesta medida o ataque ao World Trade Center implicou na vulnerabilização do que parecia
invulnerável: a hegemonia econômico, estratégica, bélica, imperialista da sociedade americana. O ícone
da livre iniciativa, do capitalismo neoliberal (como tudo que isso implica) era ao World Trade Center,
maior complexo comercial do mundo, sede de inúmeras empresas multinacionais. Com 415 metros de
altura, as Torres Gêmeas eram as estruturas mais imponentes construções da época em termos
imobiliários, uma das maiores do mundo, tendo sido construídas ao custo de US$ 750 milhões. Por outro
lado, o Pentágono, alma da defesa estratégica americana, exibia o poder americano de domínio do mundo
com sua sofisticada concepção e tecnologia. O Pentágono é o prédio em que funciona o Departamento de
84
O poder mundial não pode ser visto sob o prisma da individualidade de uma
nação, por mais hegemônica que ela seja, mas sempre dependente de apoio dos
demais. Em conseqüência, assim como o poder interno de determinado governo deve
ser obtido por meio do apoio da maioria, no âmbito internacional, o poder deve ser
obtido com o apoio das outras nações às ações governamentais internacionais daquele
país, sob pena de uso de violência. A verificação da existência da hegemonia americana
no mundo contemporâneo e dos conseqüentes conflitos mundiais, de forma direta ou
indireta, decorrentes da política externa intervencionista americana, permite uma melhor
abordagem para a questão, ao dar-se maior ênfase às causas do que às conseqüências da
intolerância (atos terroristas). Aceitando o pressuposto de que os ataques de 11 de
setembro foram planejados e implementados por rede de terroristas muçulmanos
descontentes com a postura americana no oriente médio, há necessidade de a
comunidade internacional atuar de forma preventiva para diminuir o descompasso
político, social, econômico e cultural de oportunidades de diferentes países e grupos
étnicos, notadamente com ênfase na questão Palestina.
Diante do exposto, não surpreende, por exemplo, que os reflexos do atentado
terrorista de 11 de setembro tenham acentuado uma tendência progressiva de expansão
do direito penal, diante da evidente inoperância do estado em promover políticas
preventivas de combate à criminalidade organizada. Essa expansão assumiu contornos
inusitados, tendo em vista a tradição democrática de direitos fundamentais, estruturada
durante todo o transcorrer da história da humanidade – direitos e garantias, hoje
ameaçados, pela possibilidade de uso indevido de doutrinas jurídicas e de um discurso
jurídico penal emergencial que, através da cultura do medo, promovida pelo mass
mídia, operam e direcionam a violência de maneira discriminatória, pautando-se pela
lógica do poder econômico.
O atentado precipitou a configuração de novos bens jurídicos e de uma onda de
flexibilização das estruturas dos princípios do direito penal, criando um discurso
Defesa Americano na capital americana de Washington D.C. A construção, concluída em 1943, tinha sido
realizada com o objetivo de integrar em cinco pentágonos concêntricos todos os setores governamentais
militares. Todos esses ícones e suas representações foram abalados com o ataque de 11 de setembro, que
propositadamente buscou tê-los como alvos simbólicos de seu poderio e de sua hegemonia econômica
sobre as demais nações.
85
jurídico penal sustentado pela construção de efeitos de linguagem que endossam seu
caráter preventivo, ineficaz e contraproducente, na tentativa de proporcionar ao cidadão
a segurança jurídica que espera do estado. A ansiedade por proteção e assistência é tão
urgente que passa a prestigiar o caráter instrumental do direito penal, em detrimento de
seu perfil garantista. 86 87
Como já se viu, o que interessa ao senso comum é a segurança contra a
criminalidade, ainda que, com ela, o cidadão se veja obrigado a abdicar de parâmetros
existenciais, tais como a relativização da liberdade. A história da humanidade ensina
que o pânico social é terreno fértil para assunção de determinadas ideologias, que
fomentam e dão sustentação ao discurso jurídico penal. Aliás, a linguagem é matéria
propícia para tornar propícia a carência de efetividade do direito penal, cuja progressiva
deslegitimação abre arrestas sociais para a difusão de ideologias reacionárias que
pretendem aniquilar ou anular todo aquele que não corresponde ao modelo apregoado
pelo modelo econômico vigente ou não adere conformada e subservinientemente à
imposição do consumo. Com isso, aumenta progressivamente os que estão fora. Mas o
que fazer com esses contingentes, cada vez maiores de excluídos?
Perpassam, então, a discussão a respeito do discurso do direito penal as questões
referentes à legitimação do direito penal e de seus objetivos; à necessária teorização
sobre a finalidade das penas e o seu papel no contexto de uma sociedade democrática
86
É impossível desconsiderar o fato de o pensamento humano recorre aos signos, de que a cultura
constitui-se em um emaranhado de sistemas simbólicos e de as linguagens que servem de elementos de
mediação e expressão dessas representações; e de que desde sempre decretou-se a impossibilidade de
acesso direto ao real. Afinal, os textos não são o real. O mundo se nos apresenta por todos os sentidos;
nos textos, somente algumas dessas propriedades são transpostas para a superfície artificial do papel. Essa
alteração constitui-se numa redução muito grande dos atributos do mundo representado, pois, a rigor,
somente alguns traços são imitados, e tais traços, assim selecionados e transpostos, pouco dizem em
relação à riqueza do mundo material: são figuras, não objetos do mundo. Além disso, as parcelas de real
não correspondem a seleções arbitrárias: não obstante, são essas seleções que determinam o que e como o
real vai ser mostrado. Nessa perspectiva, está-se a frente a uma construção de linguagens: não mais ao
real, mas a uma realidade discursiva.
87
Com efeito, a ausência do direito penal suporia o abandono do controle da desviação ao livre jogo das
forças da sociedade: uma dinâmica de agressão-vingança, vingança agressão. Entre as maneiras de limitar
a intervenção do Estado temos quanto à definição típica a exigência de uma definição mais taxativa
possível dos comportamentos ao qual deve intervir o direito penal, assim como as sanções que o direito
penal deve aplicar (garantia penal e criminal do princípio da legalidade ou reserva legal) e a exigência de
um processo com os devido requisitos para que um juiz natural determine a sanção a aplicar (garantias
jurisdicionais) e ao fim a execução da sanção da forma previamente estipulada e pretendida pelo juiz e
pela lei correspondente ao caso (garantia da execução). Ademais progressivamente dentro do mesmo
conceito amplo de formalização vão se assumindo pelo próprio estado, funções de autolimitação material,
por exemplo, a atribuição da pena com efeitos ressocializadores, auto exigência da proporcionalidade.
86
que recepciona como norma fundamental os direitos e garantias individuais e a
dignidade da pessoa humana, bem como àquela referente à legislação expansionista
produzida após o 11 de setembro e às mudanças que dela decorreram no ordenamento
jurídico mundial. 88
A ampliação do sistema penal, reforçada pelo discurso do medo, passou a exigir
não somente uma função minimalista de tutela a bens jurídicos, mas uma função
promocional de valores orientadores da ação humana na vida comunitária, implicando a
inflação do sistema de intervenções penal com uma demanda que revela um déficit de
eficiência dos seus métodos de segurança, o que agrava o medo.
Para Warat, indagar sobre o modo de significar é realizar uma análise das
alterações significativas que as expressões lingüísticas vêm sofrendo nos processos
históricos de comunicação. Os significados socialmente padronizados possuem sentidos
incompletos, são expressões em aberto que apenas se tornam relativamente plenas em
um contexto determinado. Assim, é impossível analisar o significado de uma expressão
sem considerar o contexto na qual se insere, ou seja, o seu significado contextual. Ora,
toda expressão possui um número considerável de implicações não manifestas. A
mensagem nunca se esgota na significação de base das palavras empregadas. O sentido
gira em torno do dito e do não dito. Dessa forma, o êxito de uma comunicação depende
das condições que o receptor tem de interpretar os sentidos latentes. As formas
gramaticais e a linguagem, por vezes, em lugar de ajudar na busca do sentido latente,
servem, isto sim, para encobri-lo.89
O discurso jurídico penal, como qualquer fala humana, materializa-se em textos.
Mas, todo o texto tem um sujeito produtor particular que, ao produzi-lo, possui uma
intenção, um projeto de dizer; assim, cada vez que a atividade lingüística se realiza,
88
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de Derecho Penal, parte general, I. Argentina: Ediar,1987, p. 50
“el derecho penal tiene la función de proveer a la seguridad jurídica mediante la tutela de bienes
jurídicos, previniendo la repetición o realización de conductas que los afectan en forma intolerable, lo
que ineludiblemente, implica una aspiración ético- social. Cabe consignar que en este sentido xxx ‘ético’
para denotar lo que hace al comportamiento social, expresión que nada tiene que ver con la moral, que
la entendemos como cuestión que incumbe a la conciencia individual y que, por ende, es autónoma. En
este sentido, la ‘aspiración ética’ del derecho, es la aspiración que éste tiene de que no se cometan
acciones prohibidas por afectar bienes jurídicos ajenos. La coerción penal busca materializar esta
aspiración ética, pero la misma no es un fin sí misma, sino que su razón, su ‘ por qué’ ( y también su ‘
para qué’) es la prevención especial de futuras afectaciones intolerables de bienes jurídicos.”
89
WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. 2a versão. Porto Alegre: SAFE, 1995, p. 65.
87
tem-se, antes de tudo, um complexo ato social para o qual concorrem paralelamente
duas ordens de elementos: um conjunto de mecanismos formais e uma gramática das
condições de produção e um contexto no qual esse texto ganha sentidos.
Ora, esse projeto de dizer, no que concerne ao direito penal, abarca não somente
um complexo de leis a serem seguidas e as sanções a elas relativas, como uma proposta
de silenciamento sobre todas as questões referentes às soluções não encontradas para as
desigualdades sociais, decorrentes de um capitalismo predador e imperialista.
Também Zaffaronni entende que a racionalidade que preside o discurso jurídico
penal não pode esgotar-se em sua coerência interna. Ainda que pareça difícil imaginar,
em razão da interpendência recíproca dos extremos configuradores dessa racionalidade,
pode-se pensar em um discurso jurídico penal que, embora esteja antropologicamente
fundamentado e respeite a regra da não contradição, não seja racional por ser sua
realização social impossível ou totalmente diferente em sua programação. A projeção
social efetiva da planificação explicitada no discurso jurídico penal deve ser
minimamente verdadeira, ou seja, deve poder realizar-se em alguma medida. O discurso
jurídico penal é elaborado sobre um texto legal, explicitando, mediante os enunciados
da dogmática, a justificativa e o alcance de uma planificação na forma do dever-ser, ou
seja, como um ser que não é, mas que deve ser, ou, o que é o mesmo, como um ser que
ainda não é.
Para que este discurso seja socialmente verdadeiro, são requeridos
dois níveis de verdades sociais: a) um abstrato, valorizado em função da
experiência social, de acordo com o qual a planificação criminalizante pode
ser considerada como meio adequado para obtenção dos fins propostos (não
seria socialmente verdadeiro um discurso jurídico penal que pretendesse
justificar a tipificação da fabricação de caramelos entre os delitos contra
vida; b) outro concreto, que deve exigir que os grupos humanos que
integram o sistema penal operem sobre a realidade de acordo com pautas
planificadoras assinaladas pelo discurso jurídico penal (não é socialmente
verdadeiro um discurso jurídico penal quando os órgãos policiais, judiciais,
do ministério público, os meios massivos de comunicação social, etc...,
90
contemplam passivamente homicídio de milhares de pessoas).
O nível abstrato do requisito de verdade social poderia chamar-se de adequação
do meio ao fim, ao passo que o nível concreto poderia ser denominado de adequação
88
operativa mínima, conforme planificação. Dessa forma, o discurso jurídico penal que
não satisfaz a esses dois níveis é socialmente falso, porque se desvirtua da planificação
do dever ser de um ser que ainda não é, para converter-se em um ser que nunca será, ou
seja, que engana , ilude ou alucina. O discurso jurídico-penal não pode desatender-se
do ser e refugiar-se ou isolar-se no dever ser, porque para que este dever ser seja um ser
que ainda não é, deve considerar o vir-a-ser. Do contrário, converte-se em um ser que
jamais será, isto é, em um embuste. Mais ainda, esse discurso jurídico penal socialmente
falso é perverso: torce-se e retorce-se, tornando alucinado um exercício de poder que
oculta ou que perturba a percepção do verdadeiro exercício de poder. A racionalidade
que hoje preside o discurso jurídico penal, de forma bastante evidente, não cumpre os
requisitos da legitimidade: atualmente, a racionalidade do discurso jurídico penal
tradicional e a conseqüente legitimidade do sistema penal tornaram-se utópicas
atemporais; não se realizam em lugar algum em tempo algum.
Em uma sociedade livre e igualitária, deve-se substituir a gestão autoritária por
uma gestão social que controle o desvio. Infelizmente, hoje, o próprio conceito de
desvio perdeu, progressivamente, a sua conotação estigmatizante; não obstantem
recuperou funções e significações diferenciadas que, é preciso que se diga, não são
exclusivamente negativas. Aplicando-se um conceito positivo, poder-se-ia dizer que
uma sociedade igualitária é aquela que deixa o máximo espaço ao desvio positivo, pois,
nesse sentido positivo, desvio quer dizer diversidade. Já a sociedade desigual é aquela
que teme e reprime o diverso, porque a repressão do diverso, em todos os sistemas
normativos particulares em que ocorre, do direito à religião, à escola, à família, é uma
técnica essencial para a conservação da desigualdade e do poder alienado. Eis por que,
quanto mais uma sociedade é desigual, maior é a inflação de definições negativas de
desvio.
O sistema penal é excessivamente repressivo; e sua violência não se cinge frente
à violência de leis inconstitucionais que se omitem em relação aos direitos humanos ou
que os mitigam. Essa violência acontece também como resultado de pautas de conduta
de setores sociais formados por distintos seguimentos do sistema penal que agem
alicerçados em práticas de violência institucionalizada.
90
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. A perda de legitimidade do sistema penal.
Tradução: Vânia Romano Pedrosa, Almir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 19.
89
Para Coppeti, as tensões, os homicídios, as sevícias, os tormentos, as torturas os
castigos físicos, as violências sexuais praticadas, quando os perseguidos se encontram
nas mãos do estado, revelam a existência de uma violência institucionalizada, cujo
ocultamento se torna, cada vez mais, uma atividade de extrema dificuldade para os
componentes do establisment estatal penal; dentre essas formas de violência, a mais
notória é a morte. Assim, a deslegitimação do discurso e do sistema penal ultrapassa os
limites teóricos, não só por sua fácil percepção, mas principalmente porque ela atinge
diretamente a consciência ética humanista: existe ainda um processo de aniquilamento
sem o devido processo legal de todo aquele que não adere ao modo de vida capitalista,
que configura um sistema paralelo de aplicação de penas de morte sem qualquer
processo. Esse é um expediente nada novo e freqüentemente empregado na América
Latina.91 92
Para Roxin, o direito penal é muito mais a forma, através da qual as finalidades
político-criminais podem ser transferidas para o modo da vigência jurídica. Se a teoria
do delito for construída nesse sentido, teleologicamente, cairão por terra todas as críticas
que se dirigem contra a dogmática abstrata-conceitual, herdada dos tempos positivistas.
O divórcio entre construção dogmática e acertos político-criminais é um projeto
impossível; da mesma forma o tão querido procedimento de jogar o trabalho dogmáticopenal e o criminológico um contra o outro perde o seu sentido. Deve-se ter presente que
transformar conhecimentos criminológicos em exigências político-criminais, e essas,
91
COPETTI, André. Direito penal e estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2000, p. 68.
92
TELES, Edson Luis de Almeida. A anistia e os crimes contra a humanidade. Revista Brasileira de
Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, v.55, 2005, p. 322 “Os crimes contra a
humanidade, as prisões, as torturas, o desaparecimento de opositores, foram técnicas empregadas na
tentativa de calar o passado. Por sua vez as transições e os sistemas democráticos de organização
políticas que sucederam os regimes autoritários, na maioria dos casos, de forma gradual, contribuíram
para o velamento da memória política, porém, não com a eliminação, mas condenando a memória ao
exílio da esfera pública, restrita à lembrança das testemunhas e familiares em suas relações privadas.
Por meio de uma sociedade sem intimidade com os eventos do passado, a herança de tais regimes impõe
aos seus cidadãos celebrarem o esquecimento e se contentarem com a consumação do instantâneo, do
que vive a cada momento, sem acesso as idéias formadoras da cultura. Nas democracia pósautoritarismo, a memória é ameaçada pela eliminação das eliminação das informações, mas também por
sua perda de valor. Dessa forma com uma ação menos brutal, porém com maior eficiência, cada cidadão
torna-se o agente consentido da política do esquecimento, implicando uma deteriorização profunda no
diálogo público. Com o esfriamento das relações democráticas, o deslocamento de problemas públicos
para a esfera de assuntos privados pressupõe a imposição do esquecimento de conflitos e cisões
geradores dos ressentimentos de um passado autoritário. Juntamente com o esquecimento, que objetiva
a estabilização da sociedade”.
90
por sua vez, em regras jurídicas, da lex lata ou ferenda, é um processo cujas etapas são
necessárias e importantes para a obtenção do socialmente correto. 93
Daí por que, para Coppetti, diante do desrespeito às garantias dos cidadãos, não
só pelos próprios cidadãos, mas também e principalmente, pelos poderes públicos, o
direito do ponto de vista positivista-crítico-garantista, é concebido como um sistema
artificial de garantias, possível pela específica complexidade de sua estrutura formal,
que é marcada, nos ordenamentos de constituição rígida, por uma dupla artificialidade:
(1) o caráter positivo das normas produzidas, característica fundamental do positivismo
jurídico; (2) sua sujeição ao próprio direito, não só formal, mas também
substancialmente, característica específica do estado constitucional de direito.
Leciona Coppeti que o exercício do poder penal revela um conflito entre
distintos grupos sociais, surgindo da imposição de certas pautas de conduta pelos grupos
que detêm o poder, mas que, paralelamente a isso, não são atingidos por tais exigências
legais; a máquina de controle penal opera seletivamente, de forma a não atingir os
setores privilegiados que a montam, a controlam, ou são úteis aos seus objetivos. Há,
assim, no plano social, a criação de um estereótipo criminal que aponta para os sujeitos
a criminalizar, incluindo os membros de extratos inferiores e excluindo os dos setores
hegenômicos. O padrão de delinqüente está associado à imagem de classes mais pobres
e da criminalidade convencional, passando estrategicamente ao léu dos crimes de
colarinho branco, dos crimes fiscais, dos crimes contra a administração pública. Ao
mostrar repetidamente notícias sobre homicídios, lesões, crimes contra os costumes,
todos eles cercados de violência, a mídia de massa oculta a criminalidade contra o
patrimônio, sede de manifestação das diferenças de classe, veiculando somente
determinadas espécies de crimes, especialmente de delitos que atingem indistintamente
a todas as classes, buscando, com isso, dar uma imagem de igualdade na proteção dos
bens jurídicos pelo sistema penal. 94
Atuando o direito como um sistema artificial de garantias que endossa o estado,
através do discurso jurídico penal simbólico, pode-se compreender facilmente o que o
93
ROXIN, Claus, Tratado de Derecho Penal – Parte General, Tomo I, Civitas, 1997, p.252.
COPETTI, André, Direito Penal e Estado Democrático de Direito, Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2000, p. 61.
94
91
leva à relativização das garantias em prol de argumentos alarmistas que fomentam a
cultura do medo: está-se preparando e ensinando a sociedade a aceitar o respeito aos
direitos e garantias individuais apenas como uma falácia idealista, engodo garantista,
crível apenas na letra fria da lei.
Em verdade, ensina Wunderlich que a política criminal repressiva implantada na
década de noventa, veio antecedida por limitações que ferem de forma inexorável às
garantias fundamentais asseguradas pela Constituição Federal e que implementam um
direito penal meramente simbólico, pontuado mais por seu simbolismo e menos
efetividade instrumental. Perpassa a discussão a respeito do simbolismo que encerra o
direito penal a necessária teorização sobre a finalidade das penas e o seu papel dentro do
contexto de uma sociedade democrática que recepciona como norma fundamental os
direitos e garantias individuais e a dignidade da pessoa humana.95 96
A partir dessas constatações, muitas das articulações das normas jurídicas com a
cultura e a ideologia se esclarecem, evidencia-se que a norma jurídica: (1) não é o
discurso instaurador da ordem; há, não obstante, uma ordem, uma lei, para aquém do
discurso legislativo, da qual ele fala e da qual ele regulamenta - a lei da cultura;(2)
emana não da vontade geral, mas de um aparelho repressor do Estado, uma instituição,
sendo portanto compatível com outras estruturas e buscando sujeição ao poder; (3) tem
por função preservar a ideologia, que é a ideologia dos dominantes; (4) não é neutro,
medeia conflitos de interesses, privilegiando os interesses dos dominantes; (5) controla,
mais do que a obediência à Lei, quem deve obedecer; (6) estabelece prescrições e
obrigações, definindo "como" se pode transgredir; (7) só proíbe o que a própria
sociedade suscita em termos de desejo; (8) deixa lacunas propositais, pois não pode
desvelar suas intenções e incoerências.
95
WUNDERLICH, Alexandre. Escritos de direito e processo penal em homenagem ao Professor Paulo
Cláudio Tovo, RJ: Lumen Juris, 2002, p. 511.
96
A discussão a respeito do direito penal e de sua legitimidade quando priva o indivíduo de liberdade ou
suprime direitos e garantias individuais não podem dispensar a referência a duas correntes teóricas: a de
cunho abolicionista que rechaça em totum a validez da pena e afirma a ausência de propósitos a justificar
sua aplicação; e as justificacionalistas que empreendem razão a aplicação da pena, não dispensando a
visão do direito penal como instrumento/meio de controle social. A análise do aspecto temporal da
aplicação da pena (o quando castigar) evidencia um problema de legitimação do próprio direito penal, de
fato, a possibilidade do estado repreender determinadas condutas é, em outras palavras, a própria
justificação do jus puniendi; qualquer análise, pois, que se faça as respeito do tema finalidade da pena,
sempre dever-se-á ter em mente a finalidade do próprio Estado.
92
A paz perpétua pressupõe certa homogeneidade dos estados-contratantes do
pacto federativo – com respeito ao seu regime interno (forma de governo), que não deve
ser despótico, pois deve haver simetria dos estados – podendo se manifestar na
necessidade de igualdade de voz no tratamento das questões mundiais globais, tal qual o
terrorismo, não obstante a dificuldade de ser alcançada nas atuais circunstâncias, com a
existência de estados não-democráticos.
93
2.1 A interpretação da lei frente ao discurso jurídico penal
Interpretar é dotar de sentido qualquer fenômeno cultural que, enquanto objeto
de interpretação, passa a ser concebido como um texto. É, portanto, indagar-se sobre a
natureza de seu conteúdo e sobre o papel do receptor nesse processo de produção de
sentidos. Mais ainda, é definir as possibilidades e os limites dessa interpretação.97
E o fato de um mesmo texto poder ser lido e interpretado de modos diversos nos
diferentes contextos sócio-culturais de sua recepção acentua o jogo semiótico de
interpretações.
Mas, segundo Eco, existe uma apropriação perversa do conceito de semiose
ilimitada que licencia o receptor a produzir um fluxo ilimitado e incontrolável de
leituras. Mas a verdade é que todos os sentidos seriam nenhum sentido,
impossibilitando qualquer tentativa de comunicação; daí por que é indicado explorar
formas de limitar o alcance das interpretações admissíveis e de identificar certas leituras
consideradas unânimes.
Para quem pretenda investigar sentidos e significação e acredite que é no plano
da projeção da linguagem que as condutas humanas aparecem como significando algo,
que até mesmo os mecanismos involuntários possuem um sentido e que, nos objetos,
nos ritos, nos discursos, o homem deixa atrás de si toda uma esteira de rastros que
constitui um conjunto coerente e um sistema de signos, o texto é objeto de análise, por
excelência. Os textos não estão aí simplesmente para que se acredite neles. Eles
apontam, trazem marcas, rastros de seu processo de “imprensão”. E, se há marcas, deve
haver aquilo de que são marcas. Trata-se, pois, de reconstituir os outros discursos que
eles subjugam, de descobrir as palavras mudas, murmurantes, inesgotáveis. Trata-se de
restabelecer os textos paralelos, de recuperar os pressupostos, de resgatar as
recorrências que perpassam e percorrem o texto na sua totalidade.
97
HJELMSLEV, L. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 50
“...Considerado isoladamente, texto algum tem significação. Toda significação nasce de um contexto,
quer entendamos por isso um contexto de situação ou um contexto explícito, o que vem a dar no mesmo;
com efeito, num texto ilimitado ou produtivo (uma língua viva, por exemplo), um contexto situacional
pode sempre ser tornado explícito”..
94
Na verdade, a tarefa de quem interpreta é buscar, sob o que está manifestado, a
conversa semi-silenciosa de outros discursos que, além de restituir ao enunciado sua
singularidade de acontecimento, resgatam a instância do acontecimento enunciativo: o
contar ideológico, o contar individual. O texto aparece então em sua pureza, livre para
mostrar suas relações internas, suas relações dentro do sistema de significação, suas
relações inter-semióticas.
Dessa forma, para interpretar um texto é necessário considerar que: (1) todo
texto contrai relações internas, entre os elementos que o constituem, isto é, entre os seus
dois planos, conteúdo e expressão; (2) todo texto contrai relações externas com outros
textos do inventário ao qual ele pertence, com os quais tem semelhanças e
dessemelhanças; (3) todo texto contrai relações externas de caráter dialógico com outros
textos que o precedem e sucedem na cadeia sintagmática; (4) todo texto, enquanto
processo de significação, só pode ser compreendido em seu contexto.
Conhecer os mecanismos de produção de sentido implica ultrapassar os limites
do texto e mergulhar no discurso, lugar em que emergem as possíveis significações.
Dessa forma, mais do que saber o que o autor quis dizer, interessa saber o que o texto
diz, como ele diz, em que condições ele diz, e como ele faz para dizer o que diz.
Não há mais espaço, na hermenêutica jurídica moderna, para sentidos apenas
objetificantes, que dêem as costas a uma visão interpretativa da realidade, voltada à
evolução histórica e social, pois o intérprete não está isolado da pré-cognição dessa
realidade - da qual inexoravelmente faz parte. A compreensão do conteúdo da norma e a
possibilidade de ajustá-la ao caso concreto pressupõem a postura crítica de um sujeito
engajado ao ambiente sócio cultural que deu origem à mesma, ou, pelo menos, que dela
tenha conhecimento. A filosofia hermenêutica não acontece sem o debruçar-se em uma
crítica à ideologia subjacente norma, não podendo o intérprete se colocar à mercê da
história efectual, distanciado do objeto, pela impossibilidade imposta por uma análise
apenas racional. 98 99 100
98
SILVA, Kelly Alflen da. Hermenêutica jurídica e concretização judicial. Porto Alegre: SAFE, 2000. p.
444-445 “Enquanto a compreensão, a interpretação e a exploração hermenêutica permanecerem
limitadas ao âmbito dos enunciados lingüísticos, por meio de um processo dedutivo de justificação que se
95
Segundo Rocha, pode-se dizer que o direito, enquanto teoria possui duas
finalidades principais: a primeira, voltada à constituição de uma episteme, um sistema
lógico-dedutivo de conhecimentos, apto a solucionar as lides privadas da sociedade; a
segunda, direcionada ao estabelecimento de uma político-legislativa, preocupada com a
justificação do ordenamento jurídico, que, por sua vez, centra-se, fundamentalmente, na
elaboração legal, na origem legítima da lei. Com esse raciocínio, escamoteia-se
qualquer possibilidade de discussão acerca de aspectos políticos-ideológicos da norma
jurídica após a sua vigência, quando essa for considerada legítima em sua gênese.
Assim, a lei tem um momento político, o de sua constituição; mas, a partir de sua
vigência, sofre um processo de neutralização que coloca, em torno da validez jurídica,
todo o tipo de questionamento.101
Sustenta Azevedo que o positivismo cumpre a função ideológica de congelar e
petrificar as instituições e os conceitos jurídicos, consagrando, à sombra da indiferença
ética, a desconformidade entre o direito e a realidade histórica. Nessa perspectiva, um
intérprete que se paute pelo positivismo, menosprezando a evolução histórica, acaba por
substituir a realidade pelo jogo conceitual, terminando por desconsiderar a realidade
social sob o argumento de obediência ao rito metodológico positivista, negando, por via
de conseqüência, o engajamento social e a realização da justiça. 102
completa na norma-decisão, estar-se-á possibilitando a legitimação da rejeição da responsabilidade
políticas e função de decisões cada vez mais anautênticas em relação em relação à coletividade e à
sociedade e das conseqüências efetivas destas decisões na realidade social”.
99
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.
p.234- 235. “O interprete do direito é um sujeito inserido/jogado, de forma inexorável, em um (meio)
ambiente cultural-histórico, é dizer, em uma tradição. Quem interpreta é sempre um sujeito histórico
concreto mergulhado em uma tradição. Para se ter acesso a um texto (e compreendê-lo), é impossível ao
interprete fazê-lo como se fosse uma mônoda psíquica, utilizando o herdado da filosofia da consciência.
O interprete é já, desde sempre, integrante de um mundo lingüístico”.
100
AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito, poder e opressão. São Paulo: Alfa-Ômega, 1990, p. 17. “Se
tomarmos a expressão bem comum, sem qualquer esforço poderemos entendê-la como bem de todos,
como bem de todos os membros de uma sociedade. Mas a observação dos fatos não possibilita chegar-se
a essa conclusão, pois, sendo a lei a emanação normativa de um poder, e sendo esse poder instrumento
de domínio de grupos sociais sobre outros, dificilmente esses grupos iriam legislar contra si mesmos, sob
pena de se constituírem, pela primeira vez na História, em detentores suicidas do poder. Por isso, os
grupos detentores do poder não vão permitir uma normatividade que venha ferir seus interesses, sua
ideologia, seu modus vivendi. Ora, uma normatividade que favoreça dados grupos ou classes,
necessariamente irá ferir os interesses, a ideologia e o modo de viver de outros grupos ou classes; logo,
o bem legal não pode ser comum, pois emana de grupos para incidir sobre outros grupos. O bem comum,
empiricamente observável, é o bem particular dos detentores das decisões.”
101
ROCHA, Leonel Severo, Epistemologia Jurídica e Democracia. São Leopoldo: Unisinos, 1998, p.48.
102
AZEVEDO, Plauto Faraco. Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica. Porto Alegre: Fabris, 1989.
p.62.
96
Para Streck, a autenticidade da interpretação só pode surgir da possibilidade de o
jurista/intérprete apropriar-se do compreendido. Essa apropriação dos sentidos
compreendidos passa a ser a condição para que possa fazer uma interpretação que
supere o conteúdo reprodutor/reprodutivo e objetificante, representado por esse habitus
dogmaticus, que é o sentido comum teórico dos juristas. Essa apropriação é a chave para
escancarar as portas do mundo inautêntico do direito e abri-las para as múltiplas
possibilidades de desvelamento do ser dos entes (jurídicos). 103
Silva acredita que o direito é produto, origem e fruto, e fragmento de um todo
comunicante-simbólico e semântico-pragmático: omne symbolum de symbolo. Como a
esfinge de Emerson, só a linguagem pode dizer ao homem: de teu olhar eu sou um
olhar. Ora se o direito for assim encarado, ficara evidente que quem legisla é o grupo
social que detém o poder, por deter igualmente o controle da vida econômica e,
conseqüentemente, política de uma sociedade. O grupo social ou grupos sociais
instauram-se no poder como legisladores, pois, para subsistirem, tem que desenvolver
um ideário, que um fundamente sua coesão, de continuidade e mesmo justifique sua
conduta, internamente, em relação a si mesmo, e, externamente, em relação a outros
grupos. Em termos mais simples, esses grupos tem de desenvolver um sistema de
valores, uma visão do mundo segundo a ética de sua situação. Essa ideologia, é então,
transfundida e destilada no teor das normas jurídicas emanadas desse grupo, o que
evidencia que qualquer legislador nada mais é senão porta-voz do grupo a que pertence.
“Mesmo se tomarmos os denominados órgãos colegiados, ainda assim, será o grupo
majoritário nos colégios que imporá sua visão de mundo, sua moralidade como padrão
fundamental da lei”.104 105
As normas jurídicas, como expressão do direito positivado, referem-se aos
papéis sociais, funcionando como expectativas comportamentais de pessoas concretas,
da determinação de papéis ou da relevância certos valores. Assim, os julgamentos sobre
a preferibilidade de certas ações, traduzidas normalmente em termos tão abstratos,
103
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.
p.234.
104
SILVA, Patrícia Bressan da. Semiologia e direito: manifesto indagações epistemológicas para
qualquer debate científico-jurídico. Jus Navigandi. Teresina: a. 8, n. 446, 26 set. 2004.
105
AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito, poder e opressão. São Paulo: Alfa-Ômega, 1990.
97
impossibilitam a hierarquização desses valores, que considerados em si mesmo, não
podem justificar qualquer ação. Para compreender essas deliberações, é necessário, que
elas sejam inseridas no seu contexto social, de origem, e, conseqüentemente, num
espaço ideológico.
Acontece, porém, que a desejável elasticidade legal, imposta por esse
relacionamento da norma com o seu sentido social e ideológico, não se coaduna com a
função estabilizadora que se exige do direito. Daí por que é necessária a investigação de
outros recursos, ínsitos à dimensão axiológica, que possibilitem o exercício dessa
função social. Para Streck, o intérprete do direito é um sujeito inserido inexoravelmente,
em um ambiente cultural-histórico. Quem interpreta é sempre um sujeito histórico
concreto mergulhado em uma tradição. Para ter acesso a um texto (e compreendê-lo), o
intérprete não pode fazê-lo como se fosse um autômato que se utiliza da herança de uma
filosofia da consciência. 106 107
Na verdade, reitera-se, a significação plena da norma jurídica é obtida no
contexto das relações de forças das decisões jurisdicionais. Cada decisão é
fundamentalmente política. Desconhecer os aspectos políticos-semiológicos da norma,
aceitando o mito da univocidade significativa da lei, é procurar impedir a participação
política da sociedade civil nas relações jurídicas.
Se o objetivo da lei fosse realmente à harmonia social, isto é, a mediação neutra
dos conflitos emergentes numa dada sociedade, seria contraditória a assertiva de que o
direito, na realidade, representa os valores de determinados grupos, que, por meio do
poder, detêm o manus de legislar. Mas o direito é ciência comprometida: não é
imparcial; ao contrário, ele é sempre parcial por traduzir a ideologia do poder.108
Mais ainda, enquanto práxis, o direito procura encobrir, através de seus
procedimentos, a contestação política das desigualdades sociais por ele mediatizadas e
solucionar as lides provocadas pelos desacordos valorativos da sociedade; proporciona a
106
SOUZA, Luiz Sérgio Fernandes de. O papel da ideologia no preenchimento das lacunas do direito.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p.204.
107
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p.
234.
108
AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito, poder e opressão. São Paulo: Alfa-Ômega, 1990, p. 7.
98
individualização dos conflitos e o conseqüente distanciamento das suas implicações
com as relações de classe da sociedade. A práxis jurídica materializa a legitimidade das
soluções dos conflitos sociais, por meios de procedimentos tidos como tecno-racionais,
escamoteadores das assimetrias sociais capitalistas. Assim, na elaboração judicial,
ocorre uma relação de forças, cuja resultante, apesar de redefinível contextualmente,
determina os limites das discussões jurídicas.
Por outro lado, convém ressaltar que existe uma produção jurídica não estatal,
essencial como elemento de participação social, devido à sua capacidade de extrapolar o
quadro legal de discussão, gerado pelo direito estatal. Entender os antagonismos
próprios da materialidade jurídica de cada formação social é crucial para a determinação
da especificidade do direito nas relações de poder que compõem as sociedades.
O ato de interpretar implica, pois, uma visão do direito como inserido no interior
do processo histórico global,
A consideração do contexto histórico-social, em que se insere e se
realiza o processo interpretativo, é indispensável para perceber-se (e
eventualmente para modificar-se) o substrato teórico e orientar o raciocínio
na aplicação das normas jurídicas, o papel ideológico da formação jurídica,
e os efeitos satisfatórios e insatisfatórios desse processo.109
Mas, se a consideração ao contexto é necessária, isso se deve ao fato de que
refletir a respeito da interpretação em direito é considerá-lo como uma construção de
linguagem, na qual está implícita uma ideologia, aqui entendida como conjunto de
crenças adotadas por um grupo social e que são convocadas para justificar seus atos e
opiniões, sendo elemento motivador de determinados comportamentos sociais. Aliás, a
função da ideologia é interpelatória e manipulatória. Ela embasa decisões e opiniões,
criando, para tanto, um conjunto de representações ideologicamente estereotipadas, com
vistas a persuadir o interlocutor, convencendo-o dos argumentos apresentados. Todo
processo persuasivo sustenta-se, assim, no reconhecimento ideológico. Ora, esse efeito
de reconhecimento se dá também no interior do raciocínio interpretativo que justifica
uma determinada interpretação do sentido da norma, que, por sua vez, convencer como
argumento, opera a persuasão.
99
Segundo Warat:
A persuasão realiza-se sempre a partir de um reconhecimento
ideológico; ora, esse efeito de reconhecimento produz-se no interior de um
raciocínio que justifica uma determinada interpretação do sentido da norma,
da prova dos fatos ou da aplicação técnica jurídica elaborada pela
dogmática do direito.110
Para Warat, o discurso jurídico é persuasivo, porque, a interpretação da lei
implica a produção de definições eticamente comprometidas, nas quais estão presentes
determinadas premissas fundadas em critérios de relevância, destinados a convencer o
receptor a compartilhar o juízo valorativo postulado pelo enunciador. O discurso
jurídico é, então, persuasivo e manipulatório, na medida em que carrega consigo toda a
proposta ideológica que sustenta seus juízos valorativos, com vistas a direcionar o
comportamento dos outros de acordo com os seus próprios interesses. 111 112
Dessa forma, interpretar é compreender: a ontologia hermenêutica da
compreensão baseia-se na tradição, na qual reside a pré-compreensão. Mas o ponto de
partida adotado pelo processo interpretativo contemporâneo é considerar que o julgador
está inserido no acontecer histórico e com ele interage, quando está julgando, através de
sua pré-cognição da realidade. Entende Streck que a compreensão, condição de
possibilidade de interpretação, pressupõe uma antecipação de sentido, consistindo em
processo de aproximação ou direcionamento ao indivíduo, à história e ao contexto de
suas tradições sociais. Nesse sentido, é impossível desconsiderar a participação da visão
individual do julgador e de seu arcabouço de valores no ato de julgar. 113
Dessa forma, só a aceitação da premissa da inexistência de uma compreensão
neutra, pois qualquer visão de verdade se mescla com a realidade personalíssima do
109
16.
110
PASUKANISE. B; Teoria geral do direito do trabalho e o marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p.
WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. 2a versão. Porto Alegre: SAFE, 1995, p. 31
WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. 2a versão. Porto Alegre: SAFE, 1995, p. 33.
112
WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. 2a versão. Porto Alegre: SAFE, 1995, p. 35.
“Assim, as definições persuasivas têm a finalidade de cobrir com um manto descritivo um desacordo
valorativo, que fica encoberto pela utilização de uma definição com pretensões persuasivas. A definição
persuasiva, é uma armadilha verbal dirigida ao receptor da mensagem”.
113
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p.
380.
111
100
sujeito que julga, permite avançar em direção à imparcialidade. A hermenêutica jurídica
deve ser instrumento para uma superação da opressão instituída. Interpretarconsiste em
primeiro lugar em considerar que o direito funciona como técnica de controle social,
que se mantém com o estabelecimento de certos hábitos de significação. Eis por que
interpretar o direito é conviver com espaços de dúvidas e ambigüidades e questionar o
caráter
político
e
econômico
das
estratégias
mitificadoras,
classificadoras,
esteriotipantes, criadas pelo capitalismo para serem projetadas em todas as
manifestações sociais. O discurso da lei joga estrategicamente com esses elementos
ocultos para justificar decisões que privilegiam certas camadas sociais e que propagam,
dissimuladamente, padrões culpabilizantes, com o objetivo de encobrir a enorme carga
ideológica que perpassa todo o processo de interpretação da lei. 114 115
Quando se questiona a relação entre direito e linguagem, muitos apontam
reiteradamente para o fato de a linguagem jurídica possuir esse caráter veladamente
ideológico já citado. Diz-se então, que, na base de determinadas interpretações do texto
normativo, encontra-se, muitas vezes, a pretensão de identificar a realidade com
determinados ideais valorativos e que, em se tratando de juízos valorativos, o intérprete,
ao recorrer às definições reais, propõe, em termos de essência, aquilo que reputa
importante do ponto de vista prático, operando com um mecanismo de projeção ativado
com a finalidade de transformar a subjetividade da posição sustentada em possibilidades
objetivas. Todo esse trabalho do intérprete é necessário, pois a dinâmica da realidade
que não consegue ser aprisionada pelas classificações jurídicas estanques; daí porque o
interesse se vê na contingência de ter que forjar um discurso de adaptação da norma à
realidade social.
Vale observar que, ao denunciar o substrato ideológico da norma, os aplicadores
e os intérpretes do direito instauram a possibilidade de reflexibilidade sobre os valores,
ao mesmo tempo em que abrem a discussão sobre as escolhas de sentido por ele adotada
114
WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. 2a versão. Porto Alegre: SAFE, 1995, p. 22. “É
pouco plausível o uso do direito como formador do sentido democrático de uma sociedade, se o mesmo
não admite o valor positivo do conflito, se escamoteia, em nome de uma igualdade formal e perfeita, as
desigualdades econômicas e culturais, se esquece que a lei é sempre expressão de interesses e práticas de
poder”.
115
WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. 2a versão. Porto Alegre: SAFE, 1995, p. 25.“Os
indivíduos se adequam psicologicamente às relações de dominação muito mais pelos efeitos
culpabilizadores da ideologia jurídica do que pelo temor das sanções legais”.
101
em sua concepção e em sua aplicação, dispersando-se do consenso social que a fundou.
Se o enunciador normativo, apesar do emprego de técnicas de neutralização, não
conseguir desqualificar esse tipo de discurso, haverá ruptura no sistema, cuja estrutura
demonstrará sua insuficiência para controlar seu elevado grau de contingência.
Mas deve-se ter presente que se as incoerências não são percebidas de imediato,
isso se deve à linguagem que é instrumento de mascaramento, que constrói “efeitos” de
realidade, de coerência, que deixa lacunas propositais, servindo de instrumento de
reitação ideologica e reafirmação do poder. A imprecisão dos conceitos, as normas
vagas são muitas vezes elaboradas ou procuradas deliberadamente, pois é essa
vacuidade a responsável pelas diferentes possibilidades interpretadas. A linguagem é o
instrumento de construção dos efeitos de respeito, autoridade, ameaça. As palavras
conferem credibilidade, produzem o mito do legal, criam a ilusão de uma relação
constante e necessária entre fenômenos e suas causas e efeitos.
Assim, trata-se de utopia pensar o direito positivo, a interpretação e seu estudo
científico, com neutralidade em relação aos valores sociais e paradigmas históricos,
filosóficos e psicológicos. Trabalha-se, isto sim, com verdades profundamente
matizadas por diferentes valores e ideologias de uma dada sociedade que obrigam o
discurso jurídico a uma constante busca de adequação.
Na verdade, o intérprete precisa entender os processos de sedução, isto é, de
linguagem empregados pela sociedade. Estão neles inscritos os interesses que opõem
homens a homens, que reúnem e distinguem sujeitos, que limitam e reacendem conflitos. E
não esquecer que, uma vez identificados, tais processos podem ser revelados.
Curiosamente, o homem é o ser que produz a interdição, mas o que o define é a
transgressão. E não há maior transgressão que revelar a palavra, subtendida, manipulada.
Buscar os sentidos é sempre uma revolução, pois a mesma palavra que sujeita, que mente,
que culpa, que constrói senhores, pode conferir flexibilidade aos conceitos da lei,
permitindo-lhes adquirir novos sentidos no contexto do concreto da vida social.
102
O segredo da inexistência de sentido, ou da existência de muitos, quando
desvelado, confere poder, poder de trapacear a língua de fazê-la instrumento do querer.
Ela é o espaço de liberdade que resta, mas é o suficiente para descompatibilizar
paulatinamente o sistema e operar as transformações que a realidade impõe. O papel
desmistificador da operação semiótica é inegávelmente, de imensa valia: “... dos
processos reflexivos resultarão duas atitudes diferenciadas de apreciar a realidade
jurídica: uma revolucionária, a partir da dialética baseada no ímpeto transformador que
se deseja impor ao direito; outra conservadora, a partir da hermenêutica que procurará
realçar os substratos históricos e solidificados da cultural jurídica. 116
117
Evidentemente há necessidade periódica de revisão de normas e teorias jurídicas.
Para Faria, o ponto de partida dessa revisão seria o questionamento da versão tradicional
da dogmática do direito: a crença num pluralismo social redutível à unidade formal,
capaz de equilibrar antagonismos e harmonizar interesses, mediante processos de
construção de categorias conceituais, princípios gerais e ficções retóricas que depurem
as instituições de direito do compromisso de preencher quaisquer antinomias ou
lacunas. 118
Os tópicos ordem, paz, segurança, progresso, desenvolvimento e justiça,
utilizados pelo estado moderno, não são representações objetivas, mas imaginárias, não
palpáveis – são desejos, esperanças, nostalgias, enfim, ideologias que sobrevivem
graças a um discurso lacunar, pois é a própria consistência discursiva da ideologia que
oculta a divisão, a estruturação da sociedade em classes. Assim, os silêncios do discurso
ideológico guardam sua consistência, através de um discurso latente, a ele implícito.
O positivismo jurídico parece ignorar as questões antes levantadas, dando as
costas à formulação ideológica que precede a feitura e a interpretação das normas
jurídicas. Polarizada e distribuída em categorias de interesses antagônicos, a sociedade
produz conflitos, não sendo igualmente neutra a decisão sobre tais conflitos; há sempre
privilegio de um dado valor, de uma dada categoria. É inegável que todo o elemento do
116
SILVA, Patrícia Bressan da. Semiologia e direito: manifesto indagações epistemológicas para
qualquer debate científico-jurídico. ( Jus Navigandi. Teresina: a. 8, n. 446, 26 set. 2004.)
117
MENDES, Antônio Celso. Direito: linguagem e estrutura simbólica. Curitiba: Champagnat, 1996. p. 48
118
FARIA, José E. Eficácia jurídica e violência simbólica: o direito como instrumento de transformação
social. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988, p.14.
103
ato (humano em geral e jurídico em especial) se reporta a valores, o que descarta a
pretensa ‘neutralidade’ jurídica. As normas gerais (impessoais) hierarquicamente
dispostas, em verdade, são instrumentos operacionais para ‘desempenhar suas funções
básicas no âmbito do estado capitalista e da ordem burguesa. Dessa forma como afirma
Faria, as certezas jurídicas são mais um instrumento retórico cuja finalidade é garantir
condições de reprodução do padrão de dominação vigente e, ao mesmo tempo, ocultar
esse papel mediante a pretensa autonomia e exterioridade do direito. 119 120 121 122 123
O sistema legal tradicional baseia-se em representações ideais, tais como
igualdade perante a lei, autonomia de vontade, certeza e segurança jurídica, usadas
como instrumentos retóricos de exercício de uma função persuasiva, que, agindo por via
do emocional, tem por finalidade a diversificação interna da estrutura ativa institucional.
O questionamento a respeito das patentes desigualdades existentes no texto
jurídico envolvem, entre outras coisas, indagações pertinentes à filosofia do direito que
dizem respeito às relações entre o direito e o poder. Somente quando existir um real
interesse de questionar os porquês de uma ordem legal injusta, haverá a possibilidade da
transformação da sociedade, orientada pelo critério de eqüidade fática, e não apenas
teórica.
A relativização do conceito de justiça vem acontecendo com a evolução
histórica, considerando-se, para tanto, as estruturas extrínsecas pelas quais se
119
PORTANOVA, Rui. As motivações ideológicas da sentença. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2003, p.44.
120
LYRA FILHO, Roberto. O Que é Direito. São Paulo, Editora Brasiliense, 1986, p.18. “A ideologia da classe
no poder vai influenciar desde o conceito de ciência (em geral) até o direito (em particular) sem esquecer
a lei e a atividade judicante. À ciência não é neutra. Em todas as ciências existem interferências
ideológicas: “a ciência não só carrega elementos ideológicos no seu interior, mas até serve à dominação
social dos donos do Poder, quando impõem aqueles falsos conteúdos à práxis social”.
121
FARIA, José E. Eficácia jurídica e violência simbólica: o direito como instrumento de transformação
social. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988, p.24.
122
PORTANOVA, Rui. As motivações ideológicas da sentença. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2003, p.44. “Por sua vez, a segurança é valor que por si só se opõe ao valor justiça. O desejado de
decisões mais previsíveis, mais uniformes, choca-se com os ideais de justiça. É que justiça tem que
compreender o ineditismo da vida, a mudança continua. O valor justiça é mais importante que o valor
segurança. Esta fundamentalmente garante a segurança das classes que fizeram a lei ou tiveram papel
preponderante na sua feitura”.
123
Sempre o núcleo social desenvolverá um processo de insurreição ou acomodação no que se refere às
disputas de poder entre os sexos, sendo que a pacificação global dessas tensões é inatingível. A sociedade,
por ser desigual, não é harmônica, é fracionada em classes sociais que vivem em disputa de poder,
tentando demarcar os espaços que a farão superiores ou inferiores na escala hierárquica.
104
desenvolvem a distribuição da justiça e os métodos lógicos aptos a julgar. Ambos
encerram valores contingentes, que não são possíveis de serem determinados, a não ser
pela valoração do momento histórico da feitura da norma jurídica e de sua interpretação
pelos operadores do direito.
Si les thèses de la sémiotique demeurent “sensibles”
idéologiquement, elles sont également encore fragiles épistémologiquement,
surtout pour leurs développements les plus récents. L´épreuve du temps
consolidera ou au contraire éliminera comme illusoires ces vues qui ont
mobilisé une part très active de la communauté des cherchers, au cours des
vingt dernières années. Or, même si L´Histoire devait disqualifier (...) la
définition reélle de la théorie sémiotique, c´est son histoire. Faut-il conclure,
en paraphrasant Jean Cavaillès, qu´il pourrait bien y avoir une objectivité
124
fondée sémiotiquement, du devenir sémiotique?.
As controvérsias que tangenciam o discurso jurídico penal e o próprio direito
penal servem como pano de fundo para inúmeras interpretações equivocadas a seu
respeito, pois quem quer usar o direito penal principalmente para reprimir, vai receber
de bom grado um direito penal mais rígido e mais abrangente, só mudando de opinião
quando percebe que mais direito penal promete menos efeito, puramente por motivos de
efetividade. A esses se agregam aqueles que criticam e transformam o direito penal em
repressor e aqueles que temem justa ou injustamente que o direito penal se volte contra
eles.125
No tocante ao discurso jurídico penal, afirma Zafaroni que:
(...) o discurso jurídico penal revela-se inegavelmente falso, mas
atribuir sua permanência à má fé ou à formação autoritária seria um
simplismo que apenas agregaria uma falsidade à outra. Estas explicações
personalizadas e conjunturais esquecem que se colocam em posições
progressistas e que se dão conta da gravidade do fenômeno também
reproduzem o discurso jurídico penal falso- uma vez que não dispõe de outra
alternativa que não seja esse discurso em sua versão de “direito penal de
garantia_ para tentar a defesa dos que caem nas engrenagens do sistema
penal com processados criminalizados ou vitimizados. O discurso jurídico
penal falso não é um postulado de má fé nem de simples conveniência, nem o
resultado da elaboração calculada de alguns gênios malignos, mas é
124
GREMAIS, Algirdas J. Sémiotique: dictionnaire raisonné de la théorie du langage. Paris: Hachette,
1979. v. 1; 1986“Le discours en sciences humaines, loin d´être linéaire, apparait comme se déroulant sur
plusieurs niveaux à la fois qui, tout en étant reconnaissables commes dotés d´une autonomie formelle,
s´interpénètrent, se succèdent, s´interprètent et s´appuient les uns sur les autres, garantissant de ce fait la
solidité et la progression – toutes relatives, évidement – de la démarche à vocation scientifique”.
125
PRITTWITZ, Cornelius. O direito penal entre o direito penal do risco e o direito penal do inimigo –
tendências atuais do direito penal e política criminal. São Paulo: Revista do IBCCRIM nº 47, 2004.
105
sustentado, em boa parte, pelo incapacidade de ser substituído por outro
discurso em razão da necessidade de se deferem os direitos de algumas
pessoas. Na verdade sempre se soube que o discurso jurídico penal latinoamericano é falso. A diferença qualitativa neste momento crítico reside no
fato de que não é mais possível sair deste impasse com o argumento da
transitoriedade desta situação e continuar apresentando-a como resultado de
meros defeitos conjunturais de nossos sistemas penais, defeitos produzidos
por nosso subdesenvolvimentos e recuperáveis mediante um desenvolvimento
progressivo, semelhante em quase tudo, ao caminho empreendido pelos
países centrais.
(...) A crítica social contemporânea, a criminologia da reação
social_ inclusive sua vertente mais prudente, ou seja, a chamada liberal_ a
experiência do capitalismo periférico dos lustros que acabou com a teoria do
desenvolvimento progressivo e centrífugo, aniquilam a ilusão da
transitoriedade do fenômeno. Hoje temos a consciência que a realidade de
operacionalidade de nossos sistemas penais jamais poderá adequar-se à
planificação do discurso jurídico penal e de que os sistemas penais
apresentam características estruturais próprias de seu exercício de poder
que cancelam o discurso jurídico-penal e que,, por constituírem marcas de
sua essência, não podem ser eliminadas sem a supressão dos próprios
sistemas penais. A seletividade, a reprodução da violência, a criação de
condições para maiores condutas lesivas, a corrupação institucionalizada, a
concentração de poder, a verticalização social e a destruição das relações
horizontais ou comunitárias não são características conjunturais, mas
126
estruturais do exercício de poder de todos os sistemas penais.
É necessário elucidar a que preço o direito pretende reduzir seu potencial
danoso, seu quantum de violência, sem implicar a perda da eficácia de sua dissuasória,
isto é, o efeito integrador para quem acolhe uma concepção positivista da prevenção
geral. Nessa direção, leciona Sanchez que a história do direito penal moderno é a da
confrontação entre direito penal vigente e a reforma do direito penal, em que são
tomadas as considerações utilitaristas, relativas ao menor dano social e à observância de
outros princípios, como o da proporcionalidade, humanidade e igualdade. O balanço que
essa oposição dialética deveria compreender é a redução da violência, do dano social
causado pelas instituições penais, sem que haja diminuído substancialmente o nível de
prevenção do direito penal. 127 128
126
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. A perda de legitimidade do sistema
penal. Tradução: Vânia Romano Pedrosa, Almir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 15.
127
Sempre que o Estado interferir na vida social, buscando o disciplinamento, deverá fazê-lo de molde a
preservar, com a lei, a conformidade desta com seu verdadeiro finalismo, isto é, não poderá ser nem
insuficiente nem excessivo em sua tarefa punitiva, concretamente, proporcional à infração cometida e nos
limites da culpabilidade, a fim de que seja justa e não encontre no castigo a possibilidade de
arbitrariedade de quem irá aplicá-la.
128
MENDES, Antônio Celso, Direito: linguagem e estrutura simbólica, Curitiba: Champagnat, 1996. p.
48. “ “O segredo da inexistência de sentido, ou da existência de muitos, quando desvelado confere poder.
É hora de trapacear a língua, faze-la instrumento do desejo do querer, É este espaço de liberdade que
resta, mas é o suficiente para descompatibilizar paulatinamente o sistema e operar as transformações que
a verdade impõe. O ato de conhecer e saber é ato de intelecção, sinestesia, sensualidade, percepção
106
A interpretação jurídica, contrariamente a uma interpretação puramente
contemplativa/intransitiva, segundo a qual o entender é fim em si mesmo, tem em vista
por meio do resultado intelectivo um êxito prático direcionado à assunção de uma
proposição relativa a determinadas situações hipotéticas por antecipação, ela direcionase a um entendimento pré-ordenado a fim de regular a ação por meio da subsunção do
critério de decisão ou da máxima da ação como princípio diretivo da ação ou da decisão
dentro dos limites do marco jurídico e, especialmente, da conservação da perene
eficácia na vida da sociedade das normas, dos preceitos, das valorações normativas por
intermédio da integração, da adaptação, da adequação destas, conforme a exigência da
atualidade e da natureza das relações disciplinadas. A interpretação jurídica não é mais
do que uma espécie, a mais importante, do gênero a interpretação, pois tem a mesma
natureza que seu objeto e o seu problema, o qual é estritamente correlacionado com a
aplicação da norma e a vinculação prática do texto normativo. A autoridade vinculativa
do texto normativo interpretado enquanto enuncia preceitos, dogmas, máximas,
ensinamentos reconhecíveis pelo destinatário, confere à interpretação jurídica uma
função normativa, pois, por interpretar, atribui-se ao jurista intérprete e ao juiz uma
veste que os legitima, identificando-os institucionalmente com o autor originário do
texto; a interpretação, ela mesma, assume uma então função normativa.
entrecruzada pelas mediações da faculdade do racionar, ato que requer a pluralidade sinestésica como
essência-primeira, ainda que não renegue as perspectivas parcializadas e particularizadas à
substância/coisa/objeto legadas pela linearidade... não é necessariamente excludente das demais
(contrariedade), mas antes sim abrangente das demais (complementaridade). O papel desmistificador da
operação semiótica é inegável, de imensa valia, "... dos processos reflexivos resultarão duas atitudes
diferenciadas de apreciar a realidade jurídica: uma revolucionária, a partir da dialética baseada no ímpeto
transformador que se deseja impor ao direito; ou conservadora, a partir da hermenêutica que procurará
realçar os substratos históricos e solidificados da cultural jurídica"
107
3 EXPANSÃO DO DISCURSO PENAL E DIREITOS FUNDAMENTAIS
3.1 O discurso da emergência e a relativização das garantias
A discussão aqui apresentada a respeito do discurso jurídico penal centra-se em
questões concernentes à legitimidade do direito penal, no binômio reducionismo vs
expansão, pontuando em específico, o debate referente ao contexto e às exigências do
que se costuma denominar modernização do direito penal. Essa modernização,
defendida de modo enfático por alguns autores e qualificada como discurso da
resistência, compreende, construções de hipóteses doutrinárias tais como as contidas na
doutrina do Direito penal do inimigo, pretendendo despojar da categoria de cidadãos
determinados sujeitos, que, segundo Jakobs, maior expoente na defesa dessa corrente,
devem ser tratados como meras fontes de perigo e neutralizados a qualquer preço. A
tese doutrinária professada Jakobs faz questionar a expressão modernização do direito
penal, diante da qual cabe perguntar-se se uma tal concepção representa realmente uma
evolução ou uma lamentável involução.129 130
O direito, como ciência social, espelha os processos históricos sociais por que
passam à humanidade. A sociedade pós-industrial da qual somos entes integrantes,
depara-se com a globalização, a transposição das barreiras nacionais, o predomínio do
poder econômico sobre o político, o descrédito nas instâncias de proteção, o reforço da
criminalidade organizada e o conseqüente surgimento de um direito penal hipertrofiado
e essencialmente preventivo, fenômeno que já foi explanado em capítulos anteriores.
Analisando os principais programas de política criminal praticada, nos últimos
anos, no mundo, constata-se uma inflação legislativa que implica a expansão do direito
penal, com o surgimento, em ritmo assustador, de múltiplas figuras delitivas, de setores
inteiros de regulação acompanhados da reforma de tipos penais já existentes, mas que
não produzem a eficácia esperada pelo Estado. Na contramão da tentativa das posturas
doutrinárias que militam pelo reducionismo penal, tem-se, na prática, um direito penal
cada vez mais punitivo, preventivo e hipertrofiado, acompanhado pela utilização
129
CRESPO, Eduardo Demetrio. Do direito penal liberal ao direito penal do inimigo. São Paulo: RT,
Revista Brasileira de Ciências Penais n 55, 2004, p.61.
130
O direito penal do inimigo se caracteriza, entre outras coisas, por amplo adiantamento da punibilidade,
pela adoção de uma perspectiva fundamentalmente prospectiva, por um incremento notável das penas e
por relaxamento ou supressão de determinadas garantias processuais.
108
abundante de tipos penais de perigo abstrato, em contraposição aos de lesão e perigo
concreto, paradigmas do direito penal clássico. 131 132
Para Meliá, o ponto de partida de qualquer análise do fenômeno representado
pela expansão do ordenamento penal, reside, efetivamente, em uma simples
constatação: a atividade legislativa em matéria penal, desenvolvida ao longo de duas
décadas nos países ao nosso entorno, tem colocado, ao redor do elenco nuclear de
normas penais, um conjunto de tipos penais que, vistos desde a perspectiva de bens
jurídicos clássicos, constituem hipóteses de criminalização prévias a lesões de bens
jurídicos, cujos marcos penais, ademais, estabelecem sanções desproporcionalmente
altas. Em síntese, pode-se dizer que, na evolução atual, tanto no direito penal material,
como no direito penal processual, há tendências que, em seu conjunto, fazem aparecer
no horizonte jurídico criminal, traços de um direito penal com características antiliberais
que coloca em risco seu próprio estatuto minimalista do direito penal e do entendimento
de ser o mesmo a ultima ratio. 133
De acordo com Belli:
131
Exemplos desse direito penal excepcional têm existido sempre desde as origens da codificação penal
no século XIX, quando desde o primeiro momento se teve que recorrer às leis penais excepcionais
contrárias ao espírito liberal e constitucional que inspiraram os primeiros códigos penais. Exemplos deste
tipo tem havido também durante todo o século XX em muitos países europeus, e, com certeza, em outras
partes do mundo, especialmente durante períodos de graves crises econômica, política e social, em
situações de guerra ou pós-guerra, e de um modo generalizado nos regimes totalitários de Hitler,
Mussolini, Stalin ou Franco, ou nas ditaduras do Cone Sul americano (Argentina, Chile, Uruguai,
Paraguai, Brasil) durante os anos 70 e parte dos oitenta do século passado.
132
SILVA SANCHEZ. Jesus Maria. A expansão do direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002, p. 29. “Desde a enorme difusão da obra de Ulrich Beck, é lugar comum caracterizar o modo social
pós-industrial em que vivemos como ‘sociedade do risco’ ou ‘sociedades de riscos’. Com efeito, a
sociedade atual aparece caracterizada, basicamente, por um âmbito econômico rapidamente variante e
pelo aparecimento de avanços tecnológicos sem paralelos em toda a história da humanidade. O
extraordinário desenvolvimento da técnica teve, e continua tendo, obviamente, repercussões diretas em
um incremento de bem estar individual. Como também, tem a dinâmica dos fenômenos econômicos. Sem
embargo, convém não ignorar suas conseqüências negativas. Dentre elas a que interessa aqui ressaltar
é a configuração do risco de procedência humana como fenômenos social estrutural. Isto pelo fato de
que boa parte das ameaças a que os cidadãos estão expostos provém precisamente de decisões que
outros cidadãos adotam no manejo dos avanços técnicos: riscos mais ou menos direitos para os cidadãos
(como consumidores, usuários, beneficiários de serviços públicos) que derivam das aplicações técnicas
dos avanços na indústria, na biologia, na genética, na energia nuclear, na informática, nas
comunicações etc. Mas também, porque a sociedade tecnológica, crescentemente competitiva, desloca
para a marginalidade não poucos indivíduos, que imediatamente são percebidos pelos demais como fonte
de riscos pessoais e patrimoniais”.
133
Nesse sentido MELIÁ, Manuel Cancio. Direito penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2005, p. 57.
109
A preocupação com a violência criminal faz parte hoje da agenda
de prioridades dos principais dirigentes nos mais diversos países. O medo
tem-se generalizado e, mesmo em sociedades com índices de criminalidade
relativamente baixos, o discurso da lei e da ordem encontra grande
ressonância. Talvez associada à própria configuração das sociedades
contemporâneas, definidas por alguns como “sociedade de risco”, a
sensação de insegurança se integrou na psique coletiva a ponto de a
violência ser encarada como um espectro que, em tempos de globalização,
parece assombrar o mundo inteiro. Além disso, a sensação de insegurança se
democratizou de forma inaudita, afligindo não apenas as classes
privilegiadas, mas também os que se encontram na base da pirâmide social.
Independentemente das curvas estatísticas e dos dados empíricos sobre
criminalidade, vive-se preso à expectativa de crescimento descontrolado da
violência e dos riscos que a acompanham. Nos Estados Unidos, por exemplo,
os índices de criminalidade têm baixado de forma consistente na última
década sem que as políticas de segurança pública tenham perdido o
“fascínio” que exercem junto ao público, à mídia e às autoridades
134
governamentais.
Em tempos de guerra, a lógica democrática é invertida, abrindo espaço para a
suspensão parcial ou total das trocas e da participação democráticas; o princípio
democrático cede terreno a um princípio estritamente autocrático: todos devem prestar
obediência incondicional ao gestor do estado de guerra. Porém, vale salientar que, na
era moderna, a suspensão da política democrática, em tempo de guerra, geralmente é
apresentada como temporária, já que a guerra é validada como uma condição
excepcional, não uma constante nas relações interpessoais.
O estado de guerra transformou-se, porém, de determinante excepcional em
condição global permanente. A suspensão da democracia (e dos direitos e garantias
fundamentais) sob essa ótica, tende também a tornar-se a regra e não a exceção. A
guerra deixou de representar o ápice das impossibilidades de composição harmônica dos
conflitos, força letal exercida como último recurso para o consenso e a submissão de
poder
de
gestão
do
Estado,
para
tornar-se
o
primeiro
e
fundamental
elemento/argumento, constituindo-se na base da própria política dos estados
imperialistas e no fundamento de sua legitimação como império global. A aplicação
constante e coordenada da violência torna-se condição necessária para o funcionamento
da disciplina e do controle da supremacia, passando a desempenhar não somente o papel
social e político fundamental de função constituinte ou reguladora: tende a tornar-se, ao
mesmo tempo, uma atividade processual e uma atividade reguladora de ordenação,
134
BELLI, Benoni. Polícia e direito. São Paulo: Revistas dos Tribunais. Revista Brasileira de Ciências
Penais n °39, 2002, p.231.
110
criando e mantendo hierarquias sociais, como forma de biopoder voltada à promoção da
regulação da vida social. 135
As guerras revolucionárias eram fundadoras de um novo de poder constituinte;
na medida em que derrubavam a velha ordem e impunham, do exterior novos códigos
jurídicos e novas formas de vida; porém, contrario sensu, esse estado de guerra
regulador que ora se estabelece na ordem internacional, através da atuação dos USA no
cenário internacional, reproduz e regula a ordem vigente; ele cria a lei e a jurisdição no
interior de seu próprio Estado, sendo que seus objetivos não estão voltados para a
reestruturação de uma nova ordem jurídica; seus códigos jurídicos estão estritamente
direcionados à constante reordenação dos territórios a serem submetidos ao seu poder
imperialista.
A “legitimidade” da guerra empreendida hoje pelos USA está então desgarrada
da necessidade de justificação moral para os atos de violência e destruição limitados
num espaço temporal previamente estipulado, como era tradicionalmente; está
direcionada agora à permanente manutenção de uma supremacia de poder sobre a ordem
global. Explica-se, assim, a função reguladora e ordenadora desta guerra imperial que
adota os contornos de mandamento definitivo, descartando sua excepcionalidade
temporal, idealizada pela doutrina e pelas ilusões democráticas.
A soberania do estado moderno está alicerçada, entre outras coisas, no seu
monopólio da violência legítima, tanto no espaço nacional como internacional. No
interior da nação, o Estado não só dispõe de esmagadora vantagem material sobre todas
as demais forças sociais em sua capacidade de violência, como é também o único ator
social que pode exercer a violência em caráter legal e legítimo. Todas as demais formas
135
NEGRI, Antonio & HARDT, Michael. Multidão: guerra e democracia na era do império. Tradução de
Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 44-52. “A guerra só se torna efetivamente absoluta
com o desenvolvimento tecnológico de armas que pela primeira vez tornaram possível a destruição em
massa e mesmo a destruição global. As armas de destruição global rompem a moderna dialética da
guerra. A guerra sempre envolveu destruição de vida, mas no século XX esse poder destrutivo chegou
aos limites da pura produção de morte, simbolicamente representada por Auschwitz e Hiroshima. A
capacidade de genocídio e destruição nuclear atinge diretamente a própria estrutura da vida,
corrompendo-a, pervertendo-a. O poder soberano que controla tais meios de destruição é uma forma
biopoder neste sentido mais negativo e terrível da palavra, um poder que decide de maneira direta sobre
a morte – não apenas a morte de um indivíduo ou grupo mas da própria humanidade e talvez mesmo de
tudo que existe. Quando o genocídio e as armas atômicas colocam a própria vida no centro do palco, a
guerra torna-se propriamente ontológica”.
111
de violência são a priori ilegítimas, ou pelo menos fortemente delimitadas e reprimidas.
No cenário internacional, os diferentes Estados-nação, certamente dispõem de variados
graus de capacidade militar, mas, em princípio, têm todos os mesmos direitos à
violência, ou seja, de promover a guerra. A violência legítima exercida pelo estadonação baseia-se essencialmente em estruturas legais nacionais e, posteriormente,
internacionais. A violência do policial, do carcereiro ou do carrasco dentro do território
nacional ou a do general e do soldado fora dele não é legítima por causa das
características específicas dos indivíduos, mas com base nas funções que desempenham.
Está, porém, sempre limitada aos contornos legais, estando sujeita à prestação de contas,
quando extrapola os limites legais.
O estado é o gestor das tensões sociais, único ator social que pode exercer a
violência em caráter legal e legítimo, porém, assim o fazendo, deve atuar, dentro dos
limites legais, valendo-se de suas agências repressoras como mecanismos intimidatórios
da criminalidade, atuando preventivamente a ocorrência do crime. A banalização cada
vez maior dos métodos para obter confissões e informação através de tormentos físicos
e psicológicos, técnicas para desorientar prisioneiros (como a privação do sono) ou
mesmo as simples formas de humilhação (como as revistas corporais), que se
constituem em armas comuns no arsenal contemporâneo da tortura, fazem do um
“estado de direito” um “estado de exceção”: observa-se aqui um outra face do estado de
exceção, aquele referente à tendência do poder político se furtar ao império da lei.
Constata-se, então, uma intenção meramente semântica nas convenções internacionais
contra a tortura, nas leis nacionais contra punições cruéis e inusitadas, dentre o rol de
direitos e garantias individuais que é ofertado nas constituições democráticas.
Para Negri & Hardt, a guerra global não só deve trazer a morte, como também
produzir e regular a vida pelo biopoder, senão veja-se:
Na segunda metade do século XX, no entanto, os mecanismos de
legitimação da violência de estado começaram a ser seriamente
desmobilizados. Os avanços do direito internacional e dos tratados
internacionais, por um lado, impuseram limites ao uso legítimo da força por
um estado-nação contra outro, assim como à acumulação de armas. (...) O
discurso dos direitos humanos, juntamente com as intervenções militares e as
ações legais neles baseadas, fazia parte de um movimento gradual para
deslegitimar a violência exercida pelos estados-nação até mesmo no interior
de seus territórios nacionais. Pelo fim do século XX, os estados- nação não
112
eram necessariamente capazes de legitimar a violência que exerciam, nem
fora nem no interior de seus territórios. Hoje, os estados já não têm
necessariamente o direito legítimo de policiar e punir suas populações ou de
empreender guerras externas com base em suas próprias leis. Num mundo
em que nenhuma forma de violência pode ser legitimada, toda violência pode
afinal ser considerada terrorismo. Como observamos anteriormente, as
definições contemporâneas de terrorismo variam muito, dependendo de
quem defina seus elementos centrais: governo legítimo, direitos humanos e
normas de guerra. A dificuldade de estabelecer uma definição estável e
coerente de terrorismo está intimamente ligada ao problema do
estabelecimento de um conceito adequado de violência legítima
Muitos políticos, militantes e acadêmicos invocam atualmente a
moralidade e os valores como base da violência legítima, fora da questão
igualdade, ou, antes, como base de uma nova estrutura legal: a violência é
legítima quando da sua fundamentação é moral e justa, mas ilegítima se sua
fundamentação é imoral e injusta. Bin Laden, por exemplo, reivindica
legitimação apresentando-se como o herói moral dos pobres e oprimidos do
Sul global. De maneira semelhante, o governo dos Estados Unidos pretende
a legitimação de sua violência militar com base em seus valores, como a
liberdade, a democracia e a prosperidade. De maneira mais geral,
numerosos discursos dos direitos humanos sustentam que a violência pode
ser legítima em bases morais (e só assim). O conjunto dos direitos humanos,
sejam considerados universais ou determinados por negociações políticas,
apresenta-se como uma estrutura moral acima da lei ou como um sucedâneo
136
da própria estrutura legal.
O direito foi utilizado durante o século XX, muitas vezes, apenas como
instrumento para legitimar a violência. Trata-se de uma justiça seletiva que pune os
menos poderosos, numa estratégia cada vez mais utópica de legitimação. O conselho de
segurança da ONU, os tribunais internacionais interpretam, reproduzem e julgam com a
parcialidade concernente com o comprometimento com determinados interesses
políticos. A recusa dos Estados Unidos de submeter seus cidadãos e militares à
jurisdição do tribunal penal internacional endossa essa desigualdade na aplicação das
normas e estruturas legais e marca sua supremacia/privilégio sobre as demais nações as
quais impõe subordinação a ordens que não aceitou acatar. O caso do encarceramento
de 600 pessoas na baía de Guantánamo é um exemplo do tratamento desigual que
pretende receber e de sua certeza de que está acima de qualquer jurisdição humana, não
permitindo que seus cidadãos sejam submetidos a outros organismos jurídicos nacionais
ou supranacionais. A violência pela falta de respaldo no seu exercício (ainda que haja
tratados internacional tentando regulá-la) está destituída da legitimação que a história da
humanidade construiu para regular o seu uso.
136
NEGRI, Antonio & HARDT, Michael. Multidão: guerra e democracia na era do império. Tradução de
Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 76-78.
113
Para Ferrajoli a guerra como tem sido encetada modernamente, com o total
aniquilamento do adversário, ao contrário do que acreditam a maioria dos pensadores,
não existiu sempre. Para o autor, essa modalidade é um fenômeno rigorosamente
moderno, produzido inclusive pelo desenvolvimento do aparato bélico. As guerras dos
séculos passados apresentavam-se com enfretamentos circunscritos, formados por
exércitos de profissionais, a mando de seus reis e generais. A população civil não
participava. Ao contrário da guerra contemporânea em que se bombardeiam cidades,
hospitais, museus, descumprindo as regras contidas nas convenções internacionais. Para
essa guerra da modernidade, o paradigma de sanção ou reparação de um ataque sofrido
é totalmente inútil e desnecessário. Ferrajoli salienta que não há dúvidas de que Saddam
Hussein cometeu um crime gravíssimo quando invadiu o Kuwait, mas nenhum crime
justifica outro mais grave como represália, que iria aniquilar com dezenas de civis
inocentes, cuja única culpa consistia em serem dirigidos por um feroz ditador totalmente
irresponsável. Não houve proporção entre a ofensa grave da ocupação do Kuwait, e os
bombardeios de Bagdá e Basora, ou mesmo o massacre dos soldados iraquianos que se
encontravam em fuga. 137
Segundo Negri & Hardt
Num período de pouco mais de uma década, assistimos a uma total
mudança nessas formas de legitimação. A primeira guerra do Golfo foi
legitimada com base no direito internacional, já que oficialmente se
destinava a restabelecer a soberania do Kuwait. Em contraste, a intervenção
da Otan em Kosovo buscava legitimação em motivações morais e
humanitárias. A segunda guerra do Golfo, uma guerra preventiva, invoca a
legitimação essencialmente com base em seus resultados. Qualquer poder
militar e/ou policial será investido de legitimidade somente na medida em
que se mostrar eficaz na correção de desordens globais – não
necessariamente restabelecer a paz, mas manter a ordem. Por esta lógica,
um poder como as forças armadas americanas pode exercer uma violência
que seja ou não legal ou moral, e enquanto esta violência resultar na
reprodução da ordem imperial, será legitimada. Assim que a violência deixar
de proporcionar ordem, no entanto, ou assim que se mostrar incapaz de
preservar a segurança da atual ordem global, a legitimidade será retirada.
Trata-se de uma forma de legitimação das mais precárias e instáveis.
A presença constante de um inimigo e a ameaça de desordem são
necessárias para legitimar a violência imperial. Talvez não deva surpreender
o fato de que, quando a guerra constitui a base política, o inimigo se torna
função constitutiva da legitimidade. Assim é que o inimigo deixa de ser
concreto e localizável, tornando-se algo fugidio e inapreensível, com uma
137
FERRAJOLI, Luigi. Razones jurídicas del pacifismo. Trad. Andrés Ibánez, Gabriel Ignácio Anitua,
Marta Manclús Masó e Gerardo Pi. Madri: Trotta, 2004, p. 87.
114
cobra no paraíso imperial. O inimigo é desconhecido e invisível, e no entanto
está sempre presente, como se fosse uma aura hostil. O rosto do inimigo
aparece na bruma do futuro e serve para amplificar a legitimação, lá onde
ela recuou. Esse inimigo, na realidade, não é apenas fugidio, mas
completamente abstrato. Os indivíduos invocados, como alvos principais –
Osama Bin Laden, Saddam Hussein, Slobodan Milosevic, Muamar Kadafi e
Manuel Noriega, entre outros – constituem por si mesmos ameaças muito
limitadas, mais são amplificados e transformados em figuras gigantescas que
servem de sucedâneo à ameaça mais geral e apresentam a aparência de
objetos de guerra concretos e tradicionais. Eles talvez sirvam como
ferramenta pedagógica (ou fachada mistificadora) ao permitir a
138
apresentação desse novo tipo de guerra sob a forma antiga.
Para Ferrajoli, diferentemente das guerras anteriores, a intervenção dos USA ao
Iraque apresentou mais uma característica, além da notória violação da Carta da ONU,
da proibição da ameaça ao uso da força e da obrigação de resolver os conflitos
internacionais por meios pacíficos: na verdade, o propósito dessa guerra, entre outros
motivos, era dilapidar o poder representativo internacional da ONU e estabelecer uma
nova ordem internacional, baseada somente no domínio norte-americano, legitimando a
guerra como instrumento de governo do mundo e de solução de problemas e
controvérsias internacionais. As intervenções públicas do presidente Bush, após o 11 de
setembro, declararam a guerra infinita “para liberar o mundo do mal” (discurso em 14
de setembro), e até uma declaração de guerra preventiva “de duração indefinida”
(documento de 17 de setembro de 2002), na tentativa de obter a legitimação da guerra
como instrumento de governo do mundo. Saliente-se que o fato de o Conselho de
Segurança não ter cedido ao desejo norte-americano de concordar com a invasão do
Iraque, não só colocou em evidência a ilegitimidade da guerra, mas conferiu maior
credibilidade à ONU, embora aponte a ausência de uma força cogente. 139 140
138
NEGRI, Antonio & HARDT, Michael. Multidão: guerra e democracia na era do império. Tradução de
Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 63.
139
FERRAJOLI, Luigi. Razones jurídicas del pacifismo. Trad. Andrés Ibánez, Gabriel Ignácio Anitua,
Marta Manclús Masó e Gerardo Pi. Madri: Trotta, 2004. “A ONU não se configuraria somente como uma
instituição jurídica internacional, mas sim como um ordenamento supra-estatal. Deveria ser introduzido
nesse ordenamento um sistema adequado de garantias capaz de assegurar a sua efetividade. Como diria
Spinoza, da forma que se apresenta, configura uma leges imperfecta e por falta de sanção e de
procedimentos para aplicá-lo. Visto sob esta perspectiva, o primeiro tipo de garantias que deveriam ser
reforçadas são as relativas à paz. Tendo a ONU como objetivo primordial a busca da paz, qualquer
guerra deveria configurar-se como ‘crime de direito internacional, e como tal deveria ser seriamente
repelida. Uma grande reforma na ONU seria necessária, se fosse admitida uma ‘democracia
internacional’, principalmente no que tange a uma jurisdição penal internacional. Atualmente ainda se
observa a ineficácia do direito internacional nesse particular. Uma reforma nessa área comportaria pelo
menos quatro grandes inovações: a) extensão da sua competência não somente às controvérsias entre
estados, mas também aos juízos de responsabilidade em matéria de guerra, ameaças à paz e violação de
direitos fundamentais; b) em segundo lugar, o caráter obrigatório da sua jurisdição deveria ser
afirmado, pois hoje está subordinada a aceitação preventiva por parte dos estados, de acordo com o
115
De acordo com Belli:
A busca frenética de soluções rápidas e mágicas é a marca de nosso
desespero, sobretudo à luz de crimes de alta repercussão que afetam a
própria auto estima nacional. Como o Brasil permite que crimes inomináveis
continuem a ocorrer? A indignição – totalmente justificada – repercute com
mais força quando personalidades públicas são vítimas de crimes graves. A
elite percebe, então, que também ela, e não apenas os mais pobres, pode
sofrer as conseqüências do descalabro na segurança das grandes cidades. O
mais assustador, contudo, não é a busca totalmente compreensível de
respostas e de medidas urgentes para superar a situação, mas a virtual
omissão, no cardápio de soluções oferecidas, do reconhecimento de que é
necessária uma transformação social profunda que leve à desconcentração
do poder em todas as esferas (política, econômica, cultural etc). Trata-se de
uma omissão nem sempre intencional, mas cujas conseqüências não são
nada desprezíveis.
Certamente a segurança pública carece de reformas institucionais
urgentes: unificação das polícias, melhor treinamento e condições de
trabalho para agentes e policiais (incluindo salários dignos e reformulações
dos códigos disciplinares das polícias militares), modernização do
equipamento, gerenciamento adequado de dados criminais e planejamento
estratégico, ênfase na investigação e na inteligência, policiamento
preventivo, aperfeiçoamento do controle interno e externo. Seria
fundamental, além disso, combater a impunidade em todos os níveis, não
apenas no nível do ladrão de galinhas, mas também no dos crimes de
colarinho branco. O fortalecimento do Ministério público, coma função de
conduzir a fase inicial da apuração de crimes, ao lado da modernização do
Poder Judiciário, ambos submetidos ao controle externo, seriam passos
igualmente importantes. Todas essas mudanças, e muitas outras em
141
discussão, são válidas e inadiáveis. São também insuficientes.
O panorama do direito penal, não obstante a humanidade ainda se encontre
imersa em uma conceituação moderna de homem e sociedade, já não mais obedece (se é
que de fato algum dia o fez na realidade) aos direitos e garantias individuais. Está-se
diante de uma hipertrofia legislativa, em que a produção de leis se encontra marcada
pela ausência de qualquer critério de cunho utilitário, gerando, sem dúvida, uma
sensação de absoluto desamparo social, combatido, pasmem, com a produção de mais
leis que, novamente de nada servirão. A globalização do modelo econômico está
provocando uma redução do estado social e um aumento do estado policial, penal e
esquema dos juízos arbitrais; c) deveria ser legitimada, a Corte, para se estender às pessoas e não
somente aos estados, uma vez que elas são as titulares dos direitos fundamentais, muitas vezes violados
pelo próprio estado; em último lugar deveria ser introduzida a responsabilidade pessoal dos governantes
por crimes de direito internacional, que deveriam ser codificados num código penal internacional”.
140
FERRAJOLI, Luigi. Razones jurídicas del pacifismo. Trad. Andrés Ibánez, Gabriel Ignácio Anitua,
Marta Manclús Masó e Gerardo Pi. Madri: Trotta, 2004.
116
penitenciário. A idéia de tolerância zero não é mais que a expressão de um pensamento
único sobre como proceder e prevenir a delinqüência, que se quer estender como
modelo a todo o mundo, independentemente das diferenças econômicas, culturais e
sociais de cada país. A aceitação desse tipo de proposta depende da evolução da
economia e da sensibilidade social dos agentes políticos e econômicos que hoje
dominam o mundo, bem como do nível de resistência intelectual que possam impor os
criminólogos e penalistas comprometidos com a prevenção da criminalidade dentro das
coordenadas do estado social e democrático de direito, e da capacidade de resposta
política que possam dar os setores mais prejudicados pela globalização e a tolerância
zero através de suas organizações, sindicatos, etc. 142 143
De acordo com Belli:
A concepção de mundo que se tornou hegemônica, inclusive em
parte da esquerda, tende a desqualificar os que alertam para as causas
sociais, para o efeito perverso da extrema desigualdade e da falta de
oportunidades em uma sociedade em que o apelo ao consumo e à fruição
hedonista e predatória dos bens materiais se tornou uma espécie de mantra.
Os novos técnicos da segurança pública dizem que esse discurso é
demasiado abstrato, não fornece respostas para o dia-a-dia dos crimes e, em
última instância, serve de desculpa para não reprimir os criminosos. É óbvio
que o crime deve ser reprimido, mas eficiência no combate à criminalidade e
respeito aos direitos humanos (para quem ainda se preocupa com esses
direitos) não serão combinados com uma simples canetada, ou por meio tão
somente de programas de segurança pública bem-intencionados. Aliás,
muitos tentaram reformas ambiciosas do sistema de justiça criminal, mas
foram poucos os que conseguiram produzir mudanças significativas.
Não resta dúvida de que as reformas institucionais podem facilitar a
superação da insegurança real e percebida, mas dificilmente serão
141
BELLI, Benoni. Polícia e direito. São Paulo: Revistas dos Tribunais. Revista Brasileira de Ciências
Penais n °39, 2002 p.233-234.
142
SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. Dos crimes de perigo abstrato em face da Constituição. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2003, p117 “O fator legitimador primeiro da intervenção penal está e, sua função
tuteladora de bens ou interesses essenciais de dada sociedade, que são valores que se consagram em um
certo período de sua história. A proteção destes valores é feita , no plano normativo, no âmbito dos vários
ramos do direito , em que o direito penal figura como recurso a que o legislador deve lançar mão. O
direito penal, portanto, não constitui-se sola ratio ou prima ratio, enquanto tutelador de bens jurídicos.
Devido ao seu caráter fragmentário, deve ser utilizado de forma subsidiária, ou seja, como ultima ratio. A
intervenção penal em um Estado Democrático de Direito somente poderá ser subsidiária, ou posto, doutra
maneira, de intervenção mínima na medida que utilize o direito penal nos estritos limites de necessidade,
quando outros meios de controle social não forem aptos a proteger os bens jurídicos valorados como
essenciais. o mínimo aqui significa subsidiário, ultima ratio, nomeado pela necessidade.(...) O direito
penal mínimo por nós identificado com um caráter subsidiário da tutela penal, respeita a dignidade da
pessoa humana, tendo como efeito o fato de esta não ser penalmente constrangida, quando a mais grave
forma de intervenção penal for desnecessária”.
143
Nesse sentido CONDE. Francisco Muñoz. Introducción al derecho penal. Barcelona: Bosch, 1975,
p.70
117
sustentáveis no longo prazo na ausência de um esforço sério e persistente em
múltiplas frentes, inclusive no que tange à eliminação da exclusão e da
desigualdade social extrema. Isso porque, além das frustrações geradas pela
desigualdade abissal brasileira em uma sociedade de consumo, as relações
sociais hierárquicas contribuem para classificar de antemão os alvos
preferenciais da vigilância, fazendo com que os agentes do estado sejam
vistos com desconfiança, desprezo ou temor por aqueles considerados
“perigosos/’ (que são via de regra os que trazem no corpo as marcas da
exclusão). As reformas indispensáveis devem ser mais do que uma decisão de
cima para baixo, precisam ser efetuadas coma participação da maioria, cuja
organização ativa será fundamental para democratizar o poder no cotidiano
144
de seus contatos com o estado e com os “incluídos”.
Os excluídos das práticas dos direitos são aqueles que não possuem capacidade
monetária para o consumo de bens e serviços, cabendo-lhes o isolamento em guetos. A
exclusão como preço pelo seu malogro (o de não possuir condições monetárias), faz
com que os escolhidos passem a constituir-se numa ameaça àqueles que estão
devidamente inseridos na sociedade de consumo e possuem bens passíveis de serem
usurpados. A democratização do acesso aos capitais políticos, sociais, econômicos e
culturais são condição para que as reformas propostas só funcionem para uma pequena
parcela da sociedade. Por não ser equânime, a democratização é discriminatória,
mantendo a co-existência de uma cidadania real e de uma, de segunda classe.
Desqualificar o discurso das mudanças estruturais, taxando-o de utópico e desprovido
de senso prático, tende a torná-lo inócuo, postergando ou anulando sua possibilidade de
gerar consciência transformadora: descarta-se, assim, a responsabilidade coletiva pela
exclusão de classe e pela produção da violência.
Do ponto de vista econômico, a humanidade assiste a uma nova revolução
tecnológica, com um fabuloso aumento de produtividade. Entretanto, após o avanço
dessa onda neoliberal, ocorreu a exclusão de gigantescas parcelas da humanidade das
condições elementares de subsistência e uma acumulação por parte de uma pequena
maioria, da maior fatia da riqueza mundial, pois, é preciso que se diga, a globalização
não beneficia a todos de maneira uniforme.
Dessa forma, a atual fase do processo de globalização tem provocado o aumento
da pobreza no mundo, acirrando o drama do desemprego, a marginalização urbana, a
144
BELLI, Benoni. Polícia e direito. São Paulo: Revistas dos Tribunais. Revista Brasileira de Ciências
Penais n °39, 2002, p. 235.
118
degradação ambiental e a decomposição do tecido social. Pode-se destacar que tais
fenômenos de exclusão são decorrências estruturais do sistema econômico capitalista
vigente desde o século XVI e não apenas uma disfunção localizada de atraso de algumas
de suas conformações em certas regiões do mundo, em relação a um pretenso processo
de desenvolvimento e modernização.
Ocorre uma sedimentalização das desigualdades, formalizadas juridicamente;
ora, essa impunidade ideologizada dá azo a seu imperturbável prosseguimento,
priorizando-se a segurança e abdicando-se da efetivação dos direitos fundamentais.
Dessa forma, esse contigente de excluídos é aprioristicamente discriminado e esbuliado
do “estado democrático de direito”. Essa prática de exclusão não é ocasional nem
contingencial; integra um projeto de sociedade, baseado no extermínio dos
desprivilegiados econômica e socialmente. A omissão, por parte das autoridades
estaduais diretamente responsáveis pelas instituições de controle de violência (a polícia,
tanto militar como civil, colocada sob a autoridade dos governadores), assume os
contornos de tolerância (pela corrupção das agências executivas, pelo descrédito nas
instituições punitivas, pela vizinhança com o delinqüente pela parca remuneração),
quando não de estímulo, para com essas ações criminosas, enfraquecendo a vigência das
garantias constitucionais, perpetuando o circulo ilegal da violência e dificulta o
fortalecimento da legitimidade do governo democrático como promotor da cidadania.
As diferenças sociais abrem uma brecha para que a grande maioria de excluídos de
nosso país, por falta de alternativas, assumam essa comunidade criminógena como
opção à sua total falta de perspectivas. O estado fomenta ou força, assim, um exército de
excluídos a tomar as armas contra a comunidade nacional. 145
Por essa razão, a vontade política e fatores como desigualdade, pobreza e
práticas policiais precisam ser vistos no contexto urbano da sociedade de consumo, da
destruição dos laços comunitários pelo tráfico de drogas, da ausência de canais
institucionais para solução de conflitos, da socialização em uma cultura que valoriza
determinados objetos de consumo como símbolo de distinção social e poder, e da
145
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o
constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 258-260.
119
reprodução cotidiana de relações sociais autoritárias entre os agentes do estado e a
população-alvo da vigilância.
O que provoca esta política, no fundo, é, do ponto de vista de sua eficácia
preventiva, uma irrelevante diminuição de algumas formas de criminalidade
escassamente relevante desde o ponto de vista qualitativo em troca de um aumento da
criminalização da pobreza. A globalização da economia tem trazido consigo em todo o
mundo, inclusive nos países de maior nível econômico, um aumento de uma população
sub-proletária,
com grande número de desempregados,
escassa qualificação
profissional, imigração ilegal, etc, que logicamente está ligada à delinqüência, ou, pelo
menos, a um certo tipo de delinqüência de sobrevivência. O problema do desemprego
não se soluciona com um aumento da repressão penal e policial, nem com a construção
de mais prisões, mas com uma inteligente política social e econômica, com uma mais
justa redistribuição da riqueza, com maior gasto em ajuda e obras sociais.
Desgraçadamente, isso parece hoje estar distante dos programas da maioria dos
governos, incluindo os de esquerda, nos países de maior nível econômico.
Um tal panorama permite compreender a razão pela qual o princípio isonômico
oriundo do liberalismo jamais foi impeditivo de toda sorte de classificações e
discriminações legislativas, significando tão apenas a exigência de igual tratamento
jurídico para todos ou, ao menos, para todos quantos estejam na mesma circunstância
fática. Tendo a regra igualitária resultado da explosão de liberdade vivida na virada do
século XVIII, sua noção nasceu individualista, nada aduzindo, ipso facto, no tocante à
distribuição da riqueza e dos meios de sobrevivência no convívio social. Bastava que a
lei fosse igual para todos, ou igual para os iguais, sem a adoção dos privilégios
vigorantes no antigo regime, para que ficasse satisfeito o cânone da igualdade jurídica.
Sua função, destarte, não era outra senão a de permitir que a liberdade capitalista
pudesse operar como força motriz do desenvolvimento sócio-econômico, de feição
nitidamente individualista e liberal. O direito constitucional moderno, mormente no
século passado, embutiu a idéia da igualdade no ideal prevalente da liberdade, de modo
a exigir do estado uma atitude de omissão ou parcimônia na regulamentação da
economia, que deveria organizar-se de acordo com a lei natural do laissez faire, laisser
passer. Argumenta Castro que, para alcançar maior eficiência no combate à escalada da
criminalidade, as instituições públicas repressivas acabam alterando seus mecanismos
120
de controle e prevenção de delitos, seja aumentando o caráter punitivo das normas
penais, seja liberando o processo de persecução criminal das garantias investigatórias e
processuais, incluídas na pauta constitucional dos direitos fundamentais do homem.
Com isso, as liberdades civis ficam drasticamente comprometidas.146 147
Por outro lado, o grande contingente dos excluídos por força da indigência
econômica, passam a sofrer um processo de criminalização sumária, que os transforma
em autêntico grupo de risco nas ações policiais de combate à delinqüência. Tem-se aí a
repressão ideologizada, à feição do colonianismo classista, que fez escola no período da
ditadura militar, a ponto de deformar o conceito de ordem pública e transformar o papel
das instituições incumbidas da segurança pública, notadamente as polícias civis e
militares, em forças de arbítrio e de plantão a serviço do modelo econômico
concentrador da riqueza e calcado na exacerbação egoísta da propriedade privada. Sob
essa ótica proprietária e utilitarista do funcionamento das corporações encarregadas da
prevenção e da repressão à criminalidade, as camadas desfavorecidas da população,
sobretudo a gente das favelas e dos morros, é vista sob permanente suspeição, tornandose clientela da cotidiana violência policial.
Os índices de violência não tem correlação direta com a violência; é necessário
ressaltar que as regiões mais pobres não são necessariamente as mais violentas. A
explosão da violência é mais evidente nas grandes cidades, nos aglomerados urbanos,
em regiões que a carência se dá não em nível econômico, mas como meio total de
privação, seja ela de oportunidade, de espaço, poder econômico e visibilidade das
desigualdades sociais. Nas grandes cidades, o estigma da exclusão fica muito mais
146
Nesse sentido SILVA SANCHEZ. Jesus Maria. A expansão do direito penal. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002, p.30. “A sociedade pós-indústria, é além da sociedade do risco tecnológico, uma
sociedade com outras características individualizadoras que contribuem a sua caracterização como
sociedade de objetiva insegurança. Desde logo deve ficar claro que o emprego de meios técnicos, a
comercialização de produtos e a utilização de substâncias cujos possíveis efeitos nocivos ainda não são
conhecidos e, última análise, manifestar-se-ão anos depois da realização da conduta, introduzem um
importante fator de incerteza na vida social. O cidadão anônimo diz ‘estão nos matando’, mas não
consegue saber com certeza nem quem, nem como, nem a que ritmo. Em realidade faz tempo que os
especialistas descartaram à excessivamente remota possibilidade de neutralizar os novos riscos, o
significado que é preferível aprofundar-se nos critérios de distribuição eficiente e justam dos mesmos
existentes e em princípio não neutralizáveis. O problema, portanto, não radica mais nas decisões
humanas que geram os riscos, senão também nas decisões humanas que os distribuem. E se é certo que
são muitos que propugnam a máxima participação pública na tomadas de decisão, não é menos certo
que, de momento, as mesmas tem lugar em um contexto de quase total obscuridade”.
147
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o
constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 259.
121
aparente e excludente. Sabe-se que sociedades mais desiguais que a brasileira possuem
índices de criminalidade freqüentemente inferiores.
Denota-se que, apesar das diferenciações próprias das atividades criminosas
urbanas e transnacionais e o terrorismo, existe algo comum no tratamento que tem sido
dispensado a essas categorias de criminalidade: uma legislação expansionista de viés
inquisitório e um total recrudescimento dos direitos e garantias individuais.
As
características, detectadas no combate ao terrorismo no âmbito internacional, obedecem
aos mesmos contornos das legislações brasileiras expansionistas. Como reação
emergencial à total ineficácia do estado em garantir a segurança dos cidadãos, tem-se
uma legislação com matizes totalmente expancionistas, que, na tentativa de romper a
sólida estrutura econômica, bélica e tecnológica do crime organizado, empreendem uma
dogmática doutrinária e jurisprudêncial de aplicação de medidas restritivas aos direitos
e garantias individuais, que, muitas vezes, atenta aos limites constitucionais e ao
princípio da proporcionalidade. 148 149
A história do direito penal é também a história de constantes e sucessivos
movimentos de neocriminalização, sendo que, no Brasil, essa nova criminalidade está
explicitada e oscila entre o reducionismo penal e sua expansão. Leciona Miranda que os
148
BECK, Francis Rafael. Perspectivas de controle: ao crime organizado e a crítica à flexibilização das
garantias. São Paulo: IBCCRIM, 2004, p. 80. “Uma leitura atenta da bibliografia e da própria realidade
leva a crer que não existe apenas um modelo de crime organizado. Assim, infere Minguardi que existem
pelo menos duas espécies distintas, embora aparentadas, de organização criminosas: a ‘tradicional’ ou ‘
territorial’ e a ‘empresarial’. A primeira delas consistiria no grupo de pessoas voltadas para atividades
ilícitas e clandestinas que possui uma hierarquia própria e capaz de planejamento empresarial, que
compreende a divisão do trabalho e o planejamento de lucros. As suas atividades tem por base o uso da
violência e da intimidação e os lucros se originam da venda de mercadorias ou serviços ilícitos, no que é
protegida por setores do estado. Tem como características distintas de qualquer outro grupo criminoso
um sistema de clientela, a imposição da lei do silencio aos membros ou pessoas próximas e o controle
pela força de determinada porção de território. A segunda espécie por sua vez, é menos definida, mais
difícil de diferenciar das simples quadrilhas ou de empresa legal. Sua característica mais marcante é
transpor para o crime métodos empresariais, ao mesmo tempo em que deixa de lado qualquer resquício
de conceitos como a honra, a lealdade ou a obrigação”.
149
“Embora parte dos traficantes use as favelas como escritórios e escudo, muitos deles, os mais
poderosos, os quais trazem as drogas para os morros, não vivem onde nós vivemos. E a imensa maioria
dos favelados não tem relação direta com o tráfico, para além do temor, necessário na vida sob qualquer
poder armado. (...) Ficamos, então, entre a cruz e a espada, perplexos e impotentes diante de um estado
que só aparece na forma de violência e da humilhação, e de um poder paralelo que, paradoxalmente, em
determinadas ocasiões, até nos protege.(...) Como se bastassem o desemprego e a má qualidade de vida,
as favelas têm esses inimigos internos poderosos. O crescente comércio de drogas forma o quadro mais
triste de um conto de fadas ao avesso, em que os adolescentes são as grandes vítimas, iludidos com o
dinheiro fácil e demais vantagens ilusórias”. Favelas: entre a cruz e a espada de autoria de Rumba
Gabriel (Antonio Carlos Ferreira Gabriel, presidente da Associação de Moradores do Jacarezinho e
122
direitos fundamentais estão necessariamente sujeitos a limites, ainda que de natureza e
grau muito diversos: não há liberdades absolutas; elas aparecem, pelo menos, limitadas
pela necessidade de assegurar a liberdade dos outros. Mas isso não pode significar um
vale tudo. 150 151
No Brasil, com a tônica do expansionismo penal, criam-se também decisões
reafirmando a possibilidade de relativização dos direitos fundamentais, posicionando-se
a jurisprudência no sentido de endossar a restrição aos direitos individuais em prol da
sociedade e da eficiência no combate ao crime organizado. Veja-se decisão do E.
Superior Tribunal Federal:
“Os direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto”
Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias
que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante
interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das
liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos
órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou
coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria
Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear
o regime jurídico a que estas estão sujeitas - e considerado o substrato ético
que as informa - permite que sobre elas incidam limitações de ordem
jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social
e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois
nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem
pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros".
(MANDADO DE SEGURANÇA, Relator (a): Min. CELSO DE MELLO,
Julgamento: 16/09/1999)
No mesmo sentido: "PROCESSUAL – HABEAS CORPUS –
QUEBRA DE SIGILOS BANCÁRIO, FISCAL E DE COMUNICAÇÕES
TELEFÔNICAS” (ART. 5º, X E XII DA CF) – I. Os direitos e garantias
fundamentais do indivíduo não são absolutos, cedendo em face de
determinadas circunstancias, como, na espécie, em que há fortes indícios de
crime em tese, bem como de sua autoria. II. Existência de interesse público e
de justa causa, a lhe dar suficiente sustentáculo. III. Observância do devido
processo legal, havendo inquérito policial regularmente instaurado,
intervenção do parquet federal e prévio controle judicial, através da
apreciação e deferimento da medida. (TRF 2ª R – HC 95.02.22528-7 – RJ 3 ª
T. – Rel. Dês. Fed. Valmir Peçanha – DJU 13.02.96).
membro do Movimento Popular das Favelas), publicado na Seção Opinião do Jornal ‘O Globo’, do dia
23/8/2001, página 7.
150
A fase em que imperou o racionalismo-iluminismo, com seu empenho em torno da descriminalização,
não deixou de ser vislumbrado um movimento neocriminalizador, sobretudo em relação aos crimes contra
o patrimônio, a resguardar os interesses das novas classes abastadas em vias de afirmação. O período
seguinte, por sua vez, sob a influencia cultural do romantismo e dos ensinamentos da s escolas históricas
do direito, se caracterizou por elevar os valores religiosos e morais à categoria de bens jurídicos-penais,
em reação ao direito penal iluminista que pouca (ou nenhuma) importância conferia a violação de tais
valores.
151
MIRANDA, Jorge. Terrorismo e Direito. Os impactos do terrorismo na comunidade internacional e no
Brasil: perspectivas político econômicas. Os Direitos Fundamentais perante o terrorismo, Rio de janeiro:
Forense, 2003, p.160.
123
Criam-se novas legislações no intuito de abarcar esses espaços vazios,
responsabilizando criminalmente a pessoa jurídica. Surgem novas maneiras de penalizar
estes delitos, adaptando-se o processo penal para agir eficazmente a essa nova
criminalidade. Afeta-se o direito à intimidade com quebra de certos sigilos, com base no
postulado da proporcionalidade.
A sociedade reage da mesma maneira emergencial como está sendo agredida,
esquecendo-se que o crime é muito mais do que sua externalização fática. A doutrina
expansionista que defende as tendências restritivas como possibilidade jurídica,
sustenta-se no fato de que os direitos fundamentais do cidadão, o bem-estar da
comunidade e a preservação e repressão criminal também possuem assento
constitucional e não podem ser sacrificados por uma concepção puramente
individualista, defendo então essa mitigação ou supressão como um meio legítimo de
combate à criminalidade.
Ao relativizar os direitos fundamentais, enquanto valores constitucionais,
vincula-os à idéia de responsabilidade unicamente factual, não analisando e nem
sequer questionando qual o referencial societário que permite e propaga essas
sociedades criminosas, eximindo mais uma vez o estado de pensar e atuar como poder
legítimo responsável pela minimização das desigualdades sociais e pela promoção de
uma perspectiva de futuro para as novas gerações, que não sejam tão somente as
atividades criminosas.
A pauta que se coloca, quando que se fala de supressão de direitos e garantias
individuais, é que esse tipo de procedimento, além de, na grande maioria das vezes,
propiciar inquisições sumárias, destituídas do devido processo legal, acarreta eminente
perigo de retrocesso na história de consagração desses direitos, podendo, inclusive,
gerar retornos autoritários ou ditatoriais.
Devido à dificuldade de responsabilização criminal das organizações criminosas,
medidas radicais são tomadas com a finalidade de se buscarem provas dos ilícitos
cometidos, como, por exemplo, medidas como interceptações telefônicas e ambientais,
quebra de sigilo bancário e fiscal dos denunciados. Porém, vale salientar que todos esses
124
procedimentos narrados, permitidos pelo ordenamento jurídico de vários países para a
obtenção de provas, só podem ser realizados através de um juízo de ponderação,
oferecido pelo princípio da proporcionalidade e dentro de um contexto representado
pelo devido processo legal; nunca essas provas poderão ser obtidas sob o signo de
alguma arbitrariedade.
Com a implementação das políticas neoliberais, em que o mercado aparece
como novo critério de regulação social, instaurou-se hoje uma nova fase do capitalismo,
sem limites territoriais para expansão das forças produtivas. Os detentores do poder
econômico, esses novos dirigentes sem pátria ou território, surgem como membros de
uma nova classe, totalmente descompromissada com a coletividade e com o trabalho.
Assim, o discurso neoliberal consolida-se deslegitimando os direitos e garantias
individuais e coletivas. O estado, como depositário desses valores universais, associados
à idéia do público, passa a ser um empecilho ao desenvolvimento dessas relações numa
concepção de mundo que se aproxima de uma noção hobbesiana de guerra total de todos
contra todos.152
Mas, como esse salve-se quem puder não pode ser explicitado, pois feriria
suceptibilidades morais e éticas, os discursos sociais, e o jurídico penal em particular,
acabam por adotar estratégias de mascaramento da gradual ineficiência e deslegitimação
do sistema penal, inclusive, das violações à sua legalidade penal e processual. Lidando
com o direito penal, vê-se que são diversas as formas pelas quais o próprio sistema
penal pratica seu aniquilamento institucional: pela ausência de celeridade nos processos;
pela falta absoluta de critérios de formulação/execução de um sistema de penas; pela
não individualização da pena e não separação dos apenados por grau de periculosidade;
pela não disponibilização de trabalho ao preso; pelas inúmeras afrontas ao direito
fundamental de dignidade da pessoa humana; pela própria segregação representada
pelo cárcere; pela distorção incorrigível das tipificações, pela introdução de elementos
moralistas na construção dos tipos penais; enfim, por um cem número de atrocidades
que gravitam em torno do direito penal, agravando, ao invés de minimizar, o abismo
social em que se encontram os excluídos, que são vítimas da arbitrária atuação das
agências executivas do estado e do sistema penal.
152
COPETTI, André. Direito penal e estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2000. p.70.
125
Nesse sentido, Zaffaroni afirma que se verifica, na operacionalidade social dos
sistemas penais latino-americanos, um violentíssimo exercício de poder à margem de
qualquer legalidade. A esse respeito, basta rever qualquer informe sério de organismos
regionais ou mundiais de direitos humanos para comprovar o incrível número de
seqüestros, homicídios, torturas e corrupção cometidos por agências executivas do
sistema penal ou por seus funcionários. A essas violações, devem ser acrescentadas a
corrupção, as atividades extorsivas e a participação nos benefícios, decorrentes de
atividades como o jogo, a prostituição, o contrabando, o tráfico de drogas proibidas. 153
Mas essa crise do discurso jurídico penal e do próprio direito penal deve-se, sem
dúvida, à adoção de soluções prementes para dar conta da visível ineficácia do estado
em levar ao cidadão o mínimo de segurança jurídica frente à violência e à criminalidade
generalizada e organizada que assola o mundo. O direito penal passou a assumir,
desgarrado de seus objetivos precípuos, contornos emergenciais, na tentativa de
responder aos múltiplos propósitos que lhe são exigidos. Tais contornos, expressos por
uma legislação expansionista, são amparados por discursos jurídicos penais de urgência
e pela profetização de soluções práticas e rápidas. 154
A Lei 8.072/90 é um exemplo de uma legislação simbólica, elaborada dentro da
concepção de Law and Order, constituindo-se em referência significativa de uma
posição político-criminal que expressa um punitivismo desgarrado dos reais
questionamentos a que se deve responder. A fim de alcançar uma concepção jurídica
aceitável de justiça, é preciso que a sociedade civil, estado e o direito trabalhem em
comunhão de ideais; porém, ao contrário, o que se observa é que, diante da desenfreada
escalada da violência, a sociedade acuada permite que o estado se utilize somente de seu
caráter repressivo, abusando de leis mais severas e de impacto imediato e descuidandose dos aspectos preventivos.
153
RAUL, Eugenio. Sistemas penales y derechos humanos en América Latina. Buenos Aires: Depalma,
1984. p.28.
154
SILVA SÁNCHEZ, J. Mª. Aproximación al derecho penal contemporáneo. Barcelona: JM Bosch
Editor AS, 1992. Nesse sentido preconiza o penalista espanhol Jesus Maria Silva Sanchez que “a
corrente dogmática que hoje é denominada funcionalista ou teleológica não é mais que o produto da
126
Afirma Freire que, do ponto de vista normativo, a edição da Lei 8.072/1990
pode ser considerada como marco inicial da escala penalizadora, uma vez que, ao
etiquetar algumas condutas como hediondas, elevou o patamar mínimo das penas,
estabelecendo um regime carcerário integralmente fechado, aumentando o lapso
temporal para a percepção do livramento condicional e obstruindo os direitos de indulto
e comutação para tais delitos. Nesse sentido, a Lei 8.072/1990, além de exasperar as
formas anteriores de execução da pena, criou um obste concreto para o sistema
progressivo, delineando com isso futuros contornos da política penitenciária. 155
Para compreender o caráter simbólico contido na referida lei (8.072/90) dos
crimes hediondos, podem-se analisar a proibição da liberdade provisória e a regra de
que o juiz, ao proferir sentença condenatória em crimes hediondos ou a eles
equiparados, deve, fundamentadamente, conceder o direito de apelar em liberdade, basta
uma passagem por alguns princípios constitucionais. A lei dos crimes hediondos - Lei n.
8.072, de 25 de julho de 1990 - prescreve que: “a prática de tortura, o tráfico ilícito de
entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de fiança e liberdade
provisória” (art. 2.º, inciso II). Esta mesma lei, no § 2º, do art. 2º, reza que, em caso de
sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em
liberdade.
Com isso, o legislador, ao editar a lei dos crimes hediondos, ampliou o rol das
limitações às garantias constitucionais, prescrevendo que os crimes hediondos e
equiparados seriam insuscetíveis de liberdade provisória, incorrendo assim em clara
invasão das garantias fundamentais, arrebatando o texto constitucional, e impondo uma
série de conseqüências ao acusado de um crime abarcado por ela, como a de ter que
ficar, obrigatoriamente, durante toda a instrução no cárcere; ao colocar a obrigação do
juiz fundamentar a concessão da liberdade, no momento de prolatar sentença
condenatória por um crime hediondo, inverteu a ordem natural do tema em um estado
acentuação dos aspectos teleológicos valorativos já presentes na concepção dominante, não constituindo,
assim, algo absolutamente novo, e que como tal ameace destruir toda a dogmática tradicional”.
155
FREIRE, Christiane Russomano. A violência do sistema penitenciário brasileiro contemporâneo: o
caso do regime disciplinar diferenciado. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p.120.
127
democrático de direito, pois coloca a prisão como regra, enquanto a liberdade figura
como exceção.156
Rege o princípio da liberdade, contido no inciso LXVI do artigo 5º da
Constituição, que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir
a liberdade provisória, com ou sem fiança”. Esse direito fundamental à liberdade
provisória está intimamente ligado aos princípios constitucionais antes referidos,
merecendo especial menção o princípio constitucional da presunção de inocência,
balizador no processo penal, expressamente consagrado no artigo 5°, LVII, da
constituição federal. 157 158 159
É necessário repisar que a presunção de inocência deve ser sempre acolhido
como preceito constitucional inarredável no tratamento processual que o juiz deve dar
ao acusado: no processo de apuração da responsabilidade penal de recair sobre o
acusado essa prerrogativa jurídico penal, impondo ao magistrado, a não manter uma
posição negativa em relação ao suspeito considerando-o culpado mas sim, a ter uma
156
São princípios que regem o direito constitucional brasileiro, que, induvidosamente, foram cerceados
pela imposição da proibição da liberdade provisória, tais como o princípio da dignidade da pessoa
humana, o princípio da liberdade, da não-culpabilidade prévia, da presunção de inocência, do devido
processo legal, da necessidade da cautela, do contraditório e da ampla defesa. A liberdade provisória pode
ser deferida no curso da instrução criminal, ou no momento de ser proferida a sentença condenatória
recorrível. Se a Constituição Federal previu a possibilidade da liberdade provisória para qualquer tipo de
crime, não pode uma lei infraconstitucional limitar esse direito, sem autorização expressa no texto
constitucional. Com isto, certo que a liberdade provisória é a regra que impera no ordenamento brasileiro,
sendo a prisão cautelar situação excepcionalíssima, não sendo cabível, pois, pensar-se em uma proibição
generalizada da concessão de liberdade provisória.
157
Inciso LVII, Art. 5°CF: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença
penal condenatória”.
158
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão – teoria geral do garantismo. Tradução de Ana Paula Zomer,
Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo, RT, 2002, p. 559. Nesse sentido
FERRAJOLI defende a dignidade da pessoa humana e a necessidade de manutenção dos direitos e
garantias individuais “Um princípio fundamental de civilidade, fruto de uma opção garantista a favor da
tutela da imunidade dos inocentes, ainda que para isso tenha-se que pagar o preço da impunidade de
algum culpável. Isso porque, ao corpo social, lhe basta que os culpados sejam geralmente punidos, pois
o maior interesse é que todos os inocentes, sem exceção, estejam protegidos”.
159
FREIRE, Christiane Russomano. A violência do sistema penitenciário brasileiro contemporâneo: o
caso do regime disciplinar diferenciado. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p.120 “O processo de incremento
punitivo envolve uma lógica seqüêncial que alcança as diversas dimensões do sistema penal. Dentro
desta continuidade, surgem as Leis 7.960/1989, que (re) estrutura a prisão cautelar (prisão temporária),
7.716/1989, 8.072/1990, 9.034/1995 e 9.455/1997 (novas espécies de inafiançabilidade e vedação da
liberdade provisória), bem como a Lei 8.038/1990 modalidade de execução sem trânsito em julgado da
sentença condenatória (Lei 8,038/1990). Ainda sob o abrigo da idéia de combate ao crime organizado,
serão introduzidas normas supostamente mais eficazes de investigação, como a que prevê a queda de
segredos sobre dados pessoais (Lei 9.034/1995), a que faculta a interceptação de comunicações
telefônicas, pra fins de investigação criminal (Lei 9.296/1996) e a que trata dos crimes de lavagem de
capitais, reafirmando a quebra do sigilo dos dados pessoais (Lei 9.613/1998)”.
128
postura positiva, tratando-o efetivamente como inocente. Assim, caso uma pessoa seja
condenada, em sentença de primeiro grau, pela prática de crimes hediondos ou a ele
assemelhados, estabelece a lei que o juiz prolator deve decidir através de
fundamentação se o réu pode apelar em liberdade. Vê-se aqui perfeitamente um
exemplo do caráter simbólico do direito penal. 160 161
Assim, a própria violência contida no sistema penal afronta os mais elementares
princípios constitucionais de garantia, notadamente o respeito à vida e à igualdade dos
cidadãos. Privilegiando, através de normas jurídicas e posições político-econômicas,
determinados cidadãos e dirigindo-se intencionalmente aos não cidadãos, que, como tal,
se configuram muitas vezes devido a um contexto social em que o estado não assume
suas responsabilidades, acaba o direito penal por externar uma discriminação
operada sobre uma parcela da população que não têm direito aos direitos. O
discurso jurídico penal opera, dessa forma, ele próprio colocando à margem dos direitos
humanos toda sua clientela, aprioristicamente classificada e sancionada antes mesmo da
apuração de sua culpa.162
160
WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. 2. ed. rev. Porto Alegre: SAFE, 1995, p. 73-74.
Para Warat, há a indicação de algumas opiniões jurídicas generalizadas provocadas pelos estereótipos
jurídicos quais sejam: a idéia de que a ordem jurídica nos fornece segurança; a noção de que o sistema do
direito positivo é a garantia da paz social; a necessidade de adaptação ao modelo de ordem que os
discursos jurídicos insinuam; a idéia de que o direito circunscreve as tensões sociais dentro de um marco
de pequenos conflitos; a superação dos problemas sociais através de mecanismos equilibrados do sistema
social; o direito é o árbitro neutro das disputas entre os homens (neutralidade do direito e do Estado); a
transformação da força em legalidade e a dominação em dever; a identificação do poder à lei;
identificação da obrigação de obedecer a certos valores aceitos como “essencialmente justos”; a idéia da
finalidade ética da sanção.
161
“EMENTA: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. PRISÃO EM FLAGRANTE. CUMPRIMENTO
DE MANDADO DE BUSCA E APREENSÃO DE 90 GRAMAS DE CRACK E QUANTIA EM
DINHEIRO. LIBERDADE PROVISÓRIA. RECURSO MINISTERIAL. Nesta etapa processual, não
deve o Magistrado antecipar seu posicionamento, muito menos tecer comentários quanto à capitulação do
delito ou regime prisional. Apenas verificar a legalidade do Auto de Prisão em Flagrante e, por
conseguinte, a presença dos pressupostos autorizadores da prisão cautelar. TRÁFICO DE
ENTORPECENTES. CRIME EQUIPARADO A HEDIONDO. PRESENÇA DOS REQUISITOS
ENSEJADORES DA PRISÃO PREVENTIVA. O delito de tráfico de drogas recebeu, por equiparação,
tratamento idêntico aos crimes hediondos, aplicando-se a ele a vedação da concessão de liberdade
provisória, expressa no art. 2°, inc. II, da Lei n.º8.072/90. Ademais, dadas as circunstâncias da prisão em
flagrante, cumprindo Mandado de Busca e Apreensão para este fim, na residência do flagrado, aliado à
gravidade do delito e alta lesividade social, merece ser garantida a ordem pública. À unanimidade, deram
provimento ao recurso. (Recurso em Sentido Estrito Nº 70010806917, Segunda Câmara Criminal,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: Elaine Maria Canto da Fonseca, Julgado em 19/05/2005.”
162
SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. Dos crimes de perigo abstrato em face da Constituição. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2003, p.94 “Com efeito, o Estado democrático de direito caracteriza-se, entre
outros traços, pelo respeito a dignidade da pessoa humana e pelo respeito à liberdade, não tendo um fim
em si mesmo, ao contrário, devendo estar a serviço do bem estar da população, n]ao devendo intervir na
vida de seus súditos de modo arbitrário, proibindo condutas por mero dever de obediência, ou pretender
conformar seus cidadãos a um determinado posicionamento político ou moral, com a ameaça de pena.
129
Segundo Coppeti, os esgualepados são duplamente atingidos: por um lado, por
não terem acesso aos direitos sociais, pois se encontram constantemente em luta pela
sobrevivência, o que muitas vezes os leva ao cometimento de delitos, especialmente
contra o patrimônio; por outro, porque, não possuindo qualquer capacidade de
articulação frente ao sistema, ao cometerem os delitos, são vítimas fáceis da repressão
estatal, que deles se vale para justificar sua imprescindibilidade à sociedade. 163
Dessa forma, esse direito penal, intitulado empiricamente moderno, de
inarredáveis tendências expansionistas, pretende enxertar novas funções ao direito,
objetivando dotá-lo de atribuições que não lhe dizem respeito. Trata-se de discursos
descomprometidos com a técnica e as possibilidades jurídicas, impregnados de
conotações políticas, que defendem a idéia de que o direito penal deve servir como
instrumento de solução de conflitos sociais, encarregando-se do dever de sustar as
necessidades e a insurreição dos excluídos, diante do abismo social de desigualdades em
que esses se encontram no mundo globalizado. Essa narrativa é instaurada na tentativa
de minimizar a insegurança e de promover a segurança jurídica não alcançadas pelo
estado, tendo como expectativa que o direito penal assuma um funcionalismo a que ele
não se propõe, visto que tais atribuições não lhe dizem respeito e são ilusórias no
controle dos novos perigos representados pela criminalidade contemporânea e
organizada.
Toda e qualquer intervenção estatal, e especialmente intervenção penal, somente se justifica quando for
estritamente necessária adefesa de valores eleitos pelas comunidades como essenciais em face de
agressões intoleráveis”.
163
COPETTI, André, . Direito penal e estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2000, p. 90.
130
3.2 Contextualização da expansão
Como já se referiu, o discurso jurídico penal vem assumindo, nas sociedades
contemporâneas (e democráticas), tendências expansionistas; trata-se de um discurso em
que está implícita e anuída socialmente a intervenção penal legalizada. A democratização
das sociedades modernas trouxe consigo a perspectiva de uma sociedade baseada na livre
iniciativa econômica que desenha o direito penal como a ultima ratio, assentada na
anterioridade da lei penal e na intervenção mínima do estado como meio de coibir que o
poder punitivo seja exercido arbitrária e ilimitadamente. Para ser legal, a intervenção estatal
deve limitar-se ao um direito positivado. 164
Muita coisa mudou no mundo contemporâneo. O poder, que antes passava
necessariamente pelo estado-nação, hoje não tem mais condições de controlar um
conjunto de variáveis que atinge, à sua revelia, duramente as populações. Lugar de
política, mas esvaziado do poder, o estado-nação tem sua soberania ameaçada pela
descentralização do poder. Assim, a impossibilidade de circunscrever o poder, que deixa
de existir enquanto espaço definido, nomeável, pode, mais que o tornar obsoleto,
decretar mesmo o seu desaparecimento. Com isso, pretende-se dizer que, quer
formalmente ou não isso aconteça, quer configure-se ou não como situação de direito,
de fato, isso já está acontecendo.
A proposta de globalização pretende a derrubada das barreiras dos estados e a
promoção do mercado internacional como esfera básica do contrato social, criando-se a
partir dele, uma sociedade global. Salientam os neoliberais, defensores da globalização,
que a abertura indistinta dos mercados internais livremente criaria uma riqueza
econômica que seria multiplicada para melhor atender às necessidades humanas.
Argumentam os neoliberais que a globalização econômica irá trazer à humanidade uma
nova era de paz e prosperidade: respeitando-se as leis do mercado o bem-estar social
estaria garantido a todos os seres humanos.
Ocorre que a eficácia da globalização econômica – essa nova etapa de
dependência dos mercados emergentes em relação ao grande capital internacional, cuja
lógica não é de associação, mas de dominação – está também relacionada ao fato de ela
164
CONDE. Francisco Muñoz. Introducción al derecho penal. Barcelona: Bosch, 1975.
131
não ficar circunscrita à área econômica. As novas tecnologias permitem um fluxo
constante de informações. Ultrapassa-se o nacional em direção ao internacional, ao
transnacional.
Mas, se sob o aspecto econômico, a humanidade assiste a uma nova revolução
tecnológica, com um fabuloso aumento de produtividade; há hoje, todavia, demanda de
menos trabalho vivo para a produção de uma mesma quantidade de mercadoria, gerando
um volume maior de excedente tanto de mercadorias quanto de mercado e de mão-deobra trabalhadora. Como conseqüências desse modelo globalizador, têm-se então o
desemprego e o aumento de capitais voláteis, que giram no mundo em busca de
valorização à base de taxas de juros elevadas.
Segundo Sanchez, a sociedade atual caracteriza-se, basicamente, por um âmbito
econômico rapidamente variante e pelo aparecimento de avanços tecnológicos sem
paralelos em toda a história da humanidade. O extraordinário desenvolvimento da
técnica teve, e continua tendo, obviamente, tanto repercussões diretas no incremento de
bem-estar individual, como, também na dinâmica dos fenômenos econômicos. Dentre
elas, a que interessa aqui ressaltar é a configuração do risco de procedência humana
como fenômeno social estrutural: boa parte das ameaças a que os cidadãos estão
expostos provém precisamente de decisões que outros cidadãos adotam no manejo dos
avanços técnicos: riscos mais ou menos direitos para os cidadãos – como consumidores,
usuários, beneficiários de serviços públicos – que derivam das aplicações técnicas dos
avanços na indústria, na biologia, na genética, na energia nuclear, na informática, nas
comunicações etc. Além disso, a sociedade tecnológica, crescentemente competitiva,
desloca para a marginalidade não poucos indivíduos, que imediatamente são percebidos
pelos demais como fonte de riscos pessoais e patrimoniais. 165
A percepção do homem enquanto mola mestra do sistema social tem como
fundamentamento lógico a transação das relações interpessoais expressas no contrato
social e na figura do estado moderno; a limitação dessa intervenção constitui-se nos
direitos de primeira geração, que encontram, no princípio da legalidade penal, sua mais
real exemplificação, eis que impõe ao estado o dever de agir, tão somente, nos casos
165
SANCHEZ. Jesus Maria Silva. A expansão do direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002,
p. 29.
132
prévia e especificadamente explicitados na lei, devendo a mesma incidir somente nos
casos não alcançados pela razão, frente aos quais se estaria diante do dano. Por isso,
inclusive, um dos vários adjetivos impostos ao direito penal é o de ultima ratio, eis que,
saída a razão, resta o uso da força.
O direito penal é então primeiramente pensado e projetado para entes que detêm
pleno controle de suas ações (livre arbítrio) e, ainda mais, possuem plena capacidade de
racionalizar o seu agir, mediando seus impulsos pela temperança. Para esse contexto de
subjetividade e aprimoramento do ser humano, tem-se o direito penal, representado por
uma intervenção mínima, fragmentária e subsidiária, eis que, como foi afirmado, ele
deve alcançar os casos – raros – em que à solução racional para o conflito não foi
encontrada.
A crise que se abateu sobre o estado nacional e o enfraquecimento da
democracia e do estado de direito, obriga a repensar não somente a eficácia da gestão da
coisa pública e dos interesses e do bem estar coletivo, como também a competência
institucional e coercitiva dos organismos internacionais (que apesar de albergados por
tratados e convenções de direitos fundamentais) não possuem mecanismos para evitar o
uso desmedido da violência como meio de implantação da ordem e legitimação de
guerras. Esse vazio no direito público, numa sociedade global cada vez mais frágil e
interdependente, não se sustenta por muito tempo e certamente conduzirá a violências
cada vez mais atrozes contra populações carentes (sem poder de reação econômico,
intelectual e bélico), às guerras e ao terrorismo permanente A ausência de uma esfera
pública mundial traz como conseqüência um crescimento exagerado da desigualdade,
significante de um novo racismo que se dá por conta da miséria, da fome, das doenças e
da morte de milhares de seres humanos que carecem de valor. É uma desigualdade sem
precedentes.
No livro Multidão: guerra e democracia na era do império, Hard e Negri assim
se manifestam a respeito do estado de exceção:
Hoje, no entanto, em vez de nos movermos em direção à paz na
realização deste sonho, parece que fomos catapultados no tempo de volta ao
pesadelo de um estado de guerra perpétuo e indefinido, com a suspensão do
império internacional do direito e sem uma distinção clara entre a
manutenção da paz e os atos de guerra. Como retrocederam o espaço e o
133
tempo isolados da guerra nos conflitos limitados entre estados soberanos,
fica parecendo que a guerra começou a vazar de volta, inundando todo o
terreno social. O estado de exceção tornou-se permanente e generalizado; a
exceção transformou-se em regra, permeando tanto as relações
internacionais quanto o espaço interno.
O “estado de exceção” é um conceito da tradição jurídica alemã
que se refere à suspensão temporária da constituição e do império da lei,
semelhante ao conceito de estado de sítio e à noção de poderes de
emergência nas tradições francesa e inglesa. Uma longa tradição de
pensamento constitucional considera que em épocas de graves crises e
perigo, como no tempo de guerra, a constituição deve ser suspensa
temporariamente, conferindo-se poderes extraordinários a um executivo
forte ou mesmo a um ditador, para proteger a república.
O conceito constitucional de “estado de exceção” é devidamente
contraditório – a constituição precisa ser suspensa para ser salva-, mas esta
contradição é resolvida ou pelo menos atenuada pelo entendimento de que o
período de crise e exceção é breve. Quando a crise deixa de ser limitada e
específica, transformando-se numa onicrise generalizada, quando o estado
de guerra e, portanto o estado de exceção tornam-se ilimitados ou mesmo
permanentes, como acontece hoje em dia, a contradição manifesta-se
166
plenamente, e o conceito adquire um caráter completamente diferente.
Os Estados Unidos, imbuídos de uma suposta base ética que lhe avoca o poder
de liderar o destino histórico do mundo, vem tornando a exceção regra, ao empreender
seu poderio excepcional e sua capacidade de dominar a ordem global como máxima a
toda a ordem mundial. O conceito de estado de exceção, pautado na temporariedade
permite a suspensão temporária de direitos, conferindo-se poderes extraordinários ao
executivo para equacionar situações de emergência, nas quais prevalecem à mitigação
de garantias jurídicas e liberdades por um tempo limitado.
A lógica que preside a ação americana vem pretendendo a infinitude desse
estado de emergência (pela abrangência da violência institucionalizada que o mesmo
comporta), na qual é permitido que as agências repressoras do estado ajam
posicionando-se acima da lei; trata-se de uma questão de pura força, e não de direito.
A primeira guerra mundial foi um conflito entre estados-nação europeus que se
estendeu a muitas partes do mundo basicamente devido ao alcance global de suas
estruturas imperialistas e coloniais. A segunda guerra mundial em grande medida
repetiu a primeira, já agora centrada tanto na Ásia quanto na Europa, mas foi resolvida
134
pela intervenção dos soviéticos e dos norte-americanos, que posteriormente
determinaram os lados de um novo conflito global. A guerra fria consolidou essa
alternativa global de tal maneira que a maioria dos estados-nação foi obrigada a se
alinhar com um lado ou outro. No atual estado de guerra imperial, no entanto, os
estados-nação soberanos já não definem basicamente os lados do conflito. Existem hoje
novos protagonistas no campo de batalha, e sua clara identificação constitui uma das
principais tarefas no delineamento dessa genealogia.167
Atualmente, com o avanço dessa onda neoliberal, vivencia-se a exclusão de
gigantescas parcelas da humanidade, hoje apartadas de condições elementares de
subsistência, bem como se verifica uma acumulação e concentração de bens por parte de
uma pequena minoria que disputa disfarçadamente a maior fatia da riqueza mundial.
Uma coisa é certa: a globalização não beneficia a todos de maneira uniforme. Uns
ganham muito, outros ganham menos, muitos perdem. Na prática, a globalização exige
menores custos de produção e maior tecnologia. A mão-de-obra menos qualificada é
descartada. Mas o que fazer com esse contingente humano? O problema não é apenas
individual. Trata-se do drama dos países mais pobres, que perdem com a desvalorização
das matérias-primas que exportam e com o seu atraso tecnológico.
Pode-se destacar que tais fenômenos de exclusão são decorrências estruturais do
sistema econômico capitalista vigente desde o século XVI e não apenas uma disfunção
localizada de atraso de algumas de suas conformações em certas regiões do mundo em
relação a um pretenso processo de desenvolvimento e modernização. Mas é inegável
que a atual fase do processo de globalização tem provocado o aumento da pobreza no
mundo, acirrado o drama do desemprego, a marginalização urbana, a degradação
ambiental e a decomposição do tecido social.
A globalização é comandada pelas grandes corporações transnacionais que
procuram abrir novos mercados para sua produção e, ao mesmo tempo, recuperar as
taxas de lucro, reduzindo seus custos pelo aumento da exploração dos trabalhadores,
166
NEGRI, Antonio & HARDT, Michael. Multidão: guerra e democracia na era do império. Tradução de
Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 26-27, 29, 38-42, 44-52, 54-57, 63, 65, 72-74, 76-78,
82, 85, 252 e 253.
167
NEGRI, Antonio & HARDT, Michael. Multidão: guerra e democracia na era do império. Tradução de
Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 72.
135
através do das jornadas de trabalho e eliminação dos direitos dos trabalhadores, do
ataque sistemático às conquistas sindicais e trabalhistas obtidas na era de ouro do
sistema e do desmantelamento do chamado estado de bem-estar social. Ao concentrar a
renda, a globalização faz dos países ricos, mais ricos, e dos pobres, mais pobres. Entre
os motivos para isso, está a redução das tarifas de importação que beneficia muito mais
os produtos exportados pelos mais ricos.
Com a disputa por mercados se acirrando internacionalmente, têm-se, então,
uma concentração de capital cada vez maior – com certos grupos incorporando os
grupos rivais ou dominando seus mercados – e uma internacionalização desse do
capital, forçando as economias dependentes a uma inserção subordinada no mercado
internacional. Por enquanto, os efeitos positivos da globalização só são sentidos por
uma minoria: entre os beneficiados, podem-se citar as instituições financeiras, as
empresas de informática e de telecomunicações, os grupos de criminalidade organizada,
os grupos terroristas e os demais beneficiários diretos da vertigem global.
Por outro lado, não existe a possibilidade de designação de sujeitos individuais
nesse processo de abertura econômica, pois a tecnologia faz desaparecer os indivíduos,
considerando apenas números e códigos. Assim, os fenômenos de transferência de
capitais acontecem como naturais: o capital, o trabalho e toda e qualquer atividade
humana é vista como um dinheiro sem pátria, alocado conforme a produtividade das
máquinas, da tecnologia e dos trabalhadores. A rentabilidade é um resultado automático,
que sai do outro lado da equação matemática e determina a parcela justa de cada um.
Eis o neoliberalismo: cada indivíduo deve buscar sua satisfação sem restrições, e,
qualquer divisão que resulte, será a melhor possível.
Os estados constitucionais democráticos enfrentam, então, seu maior desafio:
efetivar a justiça, não comprometendo os direitos fundamentais dos seres humanos, mas
conciliando-os com sociedades de classes heterogêneas e conflitivas. Mas, a proposta de
um estado democrático, tal como está posta formalmente, nesse contexto torna-se de
difícil efetividade frente aos interesses sectarizados e justapostos a serem ajustados por
normas e princípios selados com antinomias seculares que pretendem a funcionalidade e
a arbitragem pacificadora entre interesses dicotômicos e em permanente conflito:
136
capital/trabalho,
indivíduo/ambiente,
mercado
interno/mercado
externo,
público/privado, pobres/ricos, etc.
Ora, nesse contexto, a desesperança e o pânico coletivo frente à ineficácia da
justiça em promover a efetivação de um estado democrático de direito, fundado no
princípio basilar da justiça, ameaça o projeto democrático: as reações irracionais e
reacionárias em face da questão da violência preconizam a adoção da pena de morte,
operações militares violentas e indiscriminadas em favelas e núcleos de pobreza da
população civil, e até a utilização banal de providências extraordinárias de estabilização
da ordem pública, como o estado de sítio e o estado de defesa previstos nos artigos 136
e 137 da constituição federal. É, nesse contexto que se passou a apregoar mesmo a
adoção da doutrina do direito penal do inimigo, da qual Estados Unidos da
indiscriminadamente, sem a observância aos princípios de dignidade da pessoa humana
vem-se utilizando. Ora, essa doutrina sabidamente vem acompanhada da supressão de
direitos e garantias fundamentais. A reserva legal obriga a anterioridade da lei,
impedido a resolução arbitrária de crimes e sua punição a não ser que estejam
previamente estipulados em uma lei. Com isso, a intenção é exatamente limitar o
arbítrio do estado, oferecendo segurança e certeza jurídica dos efeitos das condutas
realizadas pelos cidadãos que estão sob a égide do contrato social. 168 169
Não obstante, diante da inoperância do estado em proteger o cidadão e efetivar a
justiça, que perde sua eficácia normativa na medida em que é morosa o suficiente para
que precluam os direitos postulados e ineficaz o bastante a ponto de converter-se em um
engodo garantista que dá ao infrator uma total impressão de impunidade – a população
passa a dar respaldo a medidas limitadoras das liberdades e garantias individuais. É que
o aumento da criminalidade violenta veio novamente avivar o debate a respeito da missão
exercida pelo direito penal na proteção dos bens jurídicos, considerados essenciais ao
desenvolvimento pacíficos das sociedades democráticas. Se as medidas de exceção,
porém, se tornam regra, abrem-se espaços para que um novo consenso normativo venha
168
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o
constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
169
Em certas regiões brasileiras a instauração de um estado paralelo a um estado de direito é a regra, esse
espaço carrega ínsita a sua formação regras, códigos comportais específicos e sanções a quem não cumpre
o convencionado. Nesse estado toda ficção de um vínculo entre a violência e o direito desaparece:
instaura-se definitivamente uma zona de anomia em que prevalece a pura violência sem nenhuma
cobertura dos órgãos estatais e onde inexiste a possibilidade de intervenção jurídica
137
à tona. Dessa forma, em consonância com essa tendência de olhar o direito penal como a
ultima ratio, detecta-se uma progressiva expansão do direito penal.
Nessa perspectiva, o direito penal passou a adotar, como já se referiu, contornos
emergenciais, expressos numa legislação expansionista, amparado por discursos
jurídicos penais de urgência e pela profetização de soluções práticas e rápidas.
Essas inarredáveis tendências expansionistas pretendem enxertar novas funções
ao direito, objetivando dotá-lo de papéis que não lhe dizem respeito, fundadas em
narrativa discursiva, instaurada na tentativa de minimizar a falta de segurança jurídica
não alcançada pelo estado. Espera-se hoje, esperando do direito penal um funcionalismo
a que ele não se propõe, visto que essas atribuições não lhe dizem respeito e são
ilusórias no controle dos novos perigos da criminalidade contemporânea e organizada.
Ora, esses discursos expansionistas descomprometidos com a técnica e com as
possibilidades jurídicas e impregnados de conotações políticas, defendem a idéia de que
o direito penal deve servir como instrumento de soluções de conflitos sociais, esperando
que o mesmo consiga sustar a necessidade e a insurreição dos excluídos diante do
abismo social de desigualdades em que se encontra o mundo globalizado.
Perpassam toda essa discussão a respeito do discurso do direito penal, questões
referentes à legitimação do direito penal e seus objetivos, à necessária teorização sobre a
finalidade das penas e ao seu papel no contexto de uma sociedade democrática que
recepciona como norma fundamental os direitos e garantias individuais e a dignidade da
pessoa humana. 170 171
170
WARAT, Luís Alberto. O direito e sua linguagem. 2.v. Porto Alegre: SAFE, 1995. p. 69 “Observa Warat
que a organização coerente de um discurso, por vezes, permite silenciar problemas; através de tais silêncios,
os discursos cumprem funções políticas na sociedade, tornando-se, a partir desta coerência, um discurso
ideológico. Por outro lado, a coerência discursiva força, explicitamente, os sujeitos a dizerem ou reprimirem
certas coisas. Por tais razões, pode-se afirmar que o discurso das ciências sempre terá uma dimensão
ideológica ineliminável pela metalinguagem. Afirma o autor que Kelsen foi o primeiro que utilizou, para o
campo jurídico, as noções de linguagem objeto e metalinguagem, ainda que sem mencioná-las
expressamente. A distinção que efetua entre as normas e as regras de direito correspondem às mesmas
necessidades que levaram Wittgestein a falar de uso e menção e Russel de linguagem objeto e
metalinguagem.”
171
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de derecho penal, parte general I. Argentina: Ediar, 1987. p. 50
“el derecho penal tiene la función de proveer a la seguridad jurídica mediante la tutela de bienes
jurídicos, previniendo la repetición o realización de conductas que los afectan en forma intolerable, lo
que ineludiblemente, implica una aspiración ético- social. Cabe consignar que en este sentido usamos
138
Essa discussão a respeito da legitimidade direito penal, no que concerne à
privação de liberdade do indivíduo ou à supressão dos direitos e garantias individuais,
não pode dispensar a referência a duas correntes teóricas: a de cunho abolicionista que
rechaça em totum a validez da pena e afirma a ausência de propósitos para justificar sua
aplicação; e a de caráter justificacionalista, que atribui sentido à aplicação da pena, não
dispensando a visão do direito penal como instrumento/meio de controle social.
172
Segundo Krebs,
“A análise do aspecto temporal da aplicação da pena (o quando
castigar) evidencia um problema de legitimação do próprio direito penal, de
fato, a possibilidade do estado repreender determinadas condutas é, em
outras palavras, a própria justificação do jus puniendi; qualquer análise,
pois, que se faça as respeito do tema finalidade da pena, sempre dever-se-á
ter em mente a finalidade do próprio estado”. 173
As controvérsias que tangenciam o discurso jurídico penal e o próprio direito
penal servem, ainda, como pano de fundo para inúmeras interpretações equivocadas a
seu respeito, pois quem quer usar o direito penal principalmente para reprimir, vai
acolher de bom grado um direito penal mais rígido e abrangente, só mudando de opinião
quando percebe que mais direito penal promete menos efeito, puramente por motivos de
efetividade. Porém aqueles que criticam e transformam o direito penal ainda repressor e
aqueles que temem justa ou injustamente que o direito penal se volte contra eles podem
ser reunidos em um único grupo. 174
‘ético’ para denotar lo que hace al comportamiento social, expresión que nada tiene que ver con la
moral, que la entendemos como cuestión que incumbe a la conciencia individual y que, por ende, es
autónoma. En este sentido, la ‘aspiración ética’ del derecho, es la aspiración que éste tiene de que no se
cometan acciones prohibidas por afectar bienes jurídicos ajenos. La coerción penal busca materializar
esta aspiración ética, pero la misma no es un fin sí misma, sino que su razón, su " por qué" ( y también su
" para qué") es la prevención especial de futuras afectaciones intolerables de bienes jurídicos.”
172
CANOTILHO J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Livraria
Amedina, 2001, p. 39. “A discutível - mas ao mesmo tempo absolutamente indispensável-teoria do bem
jurídico passou a constituir, especialmente na experiência legislativa dos últimos anos, um dos
‘pretextos’ para uma intervenção” máxima do direito penal, e isso tanto no direito penal acessório como
no direito penal tradicional. A sociedade complexa atual obrigou a intervenção do direito penal para a
tutela de novos bens jurídicos. “Porém, a atividade legislativa penal foi muito além do necessário.”
173
KREBS, Pedro. Teorias a respeito da finalidade da pena. Rev. Ibero-Americana de Ciências Penais.
Cidade: Editora, Ano, p. 99
174
PRITTWITZ, Cornelius, O direito penal entre o direito penal do risco e o direito penal do inimigo:
tendências atuais do direito penal e política criminal.São Paulo: Revista dos Tribunais. Revista do
IBCCRIM nº. 47 , 2004.
139
É de se perguntar, então, a que preço, o direito penal pretende reduzir seu
potencial danoso, seu quantum de violência, sem implicar a perda da eficácia de sua
dissuasória. Assim, a história do direito penal moderno é aquela da confrontação entre
direito penal vigente e a reforma do direito penal, em que são retomadas as
considerações utilitaristas, relativas ao menor dano social e à observância de outros
princípios como o da proporcionalidade, humanidade e igualdade.
Observa-se, porém, que a ansiedade por proteção e assistência é tão urgente que
passa a prestigiar o caráter instrumental do direito penal em detrimento de seu perfil
garantista. O que interessa ao senso comum é a segurança contra a criminalidade mais
sofisticada, ainda que o cidadão perca seus parâmetros existenciais, com relativização
da liberdade. Não é surpresa para ninguém, e a história da humanidade ensina, que o
pânico social traduz-se em terreno fértil para assunção de determinadas ideologias. 175
A quesitação a respeito da missão exercida pelo direito penal e sua proteção aos
bens jurídicos, considerados essenciais ao desenvolvimento pacífico das sociedades
democráticas, passa necessariamente pela certeza de que as constituições, ao fixarem
valores fundamentais a que devem obedecer ao estado e a ordem jurídica, estão, também,
automaticamente a definir quais os bens jurídicos essenciais a que os estados fica obrigado
a defender. Assim, os direitos, liberdades e garantias, constitucionalmente considerados
como valores fundamentais, são base da política criminal, que deve inspirar não só a
atividade de juizes e intérpretes , mas, sobretudo, a dos próprios legisladores penais. 176 177
178
175
Com efeito, a ausência do direito penal suporia o abandono do controle da desviação ao livre jogo das
forças da sociedade: uma dinâmica de agressão-vingança, vingança agressão. Entre as maneiras de limitar
a intervenção do estado temos quanto à definição típica a exigência de uma definição mais taxativa
possível dos comportamentos ao qual deve intervir o direito penal, assim como as sanções que o direito
penal deve aplicar (garantia penal e criminal do princípio da legalidade ou reserva legal) e a exigência de
um processo com os devido requisitos para que um juiz natural determine a sanção a aplicar (garantias
jurisdicionais) e ao fim a execução da sanção da forma previamente estipulada e pretendida pelo juiz e
pela lei correspondente ao caso (garantia da execução). Ademais progressivamente dentro do mesmo
conceito amplo de formalização vão se assumindo pelo próprio estado funções de autolimitação material,
por exemplo, a atribuição da pena com efeitos ressocializadores , auto exigência da proporcionalidade.
176
SARDINHA, José Miguel. O terrorismo e a restrição dos direitos fundamentais no processo penal.
Coimbra, Coimbra Editora, 1989, p. 26.
177
COPETTI, André. Direito penal e estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2000, P. 100. “Instigados fanaticamente pela contradição entre a liberdade do liberalismo e a escravidão
social em que viviam, e teoricamente nas doutrinas socialistas utópica e científica, de Saint Simon e
Marx, a massa proletária ao arrebatar o sufrágio universal, não se contentando apenas com a concessão
formal desse direito, mas utilizando-o em seu próprio benefício, deu início ao processo de instituição do
Estado Social. Cede assim o Estado liberal-burguês às exigências dos trabalhadores. Entrega os anéis
140
Os estados, impotentes e sem recursos suficientes para reprimem a
criminalidade, respondem à sua impotência com a maximização em matéria penal.
Incapazes de combater as causas da geração da criminalidade, apostam num aumento do
aparato legal e policial, o que, pelo seu custo social, tem sérias implicações na
realização do estado social e, reflexamente, na (im) possibilidade de realização do
estado democrático de direito.
Essa maximização do sistema penal se revela, num primeiro momento, pelo
aumento da edição de normas penais com leis destituídas, no mais das vezes, de um
filtro constitucional, que, ao precipitarem condutas impensadas, podem violar conteúdos
de princípios, afrontando direitos fundamentais de primeira geração, seja por seus
conteúdos processuais inquisitivos, seja pela criminalização de uma série de infindável
de condutas, gerando uma situação de incerteza para os cidadãos e invertendo a função
originariamente cunhada para os tipos penais, que, ao invés de servirem como uma
garantia aos membros da sociedade civil contra a atuação arbitrária do estado,
possibilitam, contrariamente, uma atuação estatal penal desmesurada e, não raras vezes,
ilegal.
Pode-se constatar que a tentativa de conferir real legitimidade ao discurso
jurídico penal e ao sistema penal não consiste verdadeira intenção social e, sim,
expressão doutrinária e política, ideologicamente conduzida com a finalidade de
maquilar o arbítrio seletivo e a aniquilamento de todos àqueles que não respondem aos
para não perder os dedos, vendo-se forçado a conferir, constitucionalmente, direitos do trabalho, da
previdência, da educação, a ditar o salário, a manipular a moeda, a intervir na economia como
distribuidor, a comprar a produção, a regular preços, combater o desemprego, proteger o trabalhador,
controlar as profissões, enfim, passa a intervir na dinâmica socioeconômica da sociedade civil.”
178
COPETTI, André. Direito penal e estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2000, p. 57. “mesmo ultrapassada a ditadura militar e restabelecido constitucionalmente o estado de
direito, ainda observamos a manutenção de todo um aparato repressivo, nos mesmos moldes de um
regime autoritário, com prisões e aparelhos policiais intocados e com a aplicação de métodos abusivos
pelas forças policiais no relacionamento com o preso, especialmente a tortura, para não falar na morte.
Aparece, assim, a polícia como uma instituição que executa a função de testa-de-ferro de todo o sistema
de políticas criminais destinadas à repressão violenta dos ‘inimigos’ da sociedade, mas que,
mascaradamente, mediante uma retórica aparentemente democrática, manifesta-se como um sistema de
segurança pública, destinado ao tratamento do delinqüente”.(...) “Enquanto no estado de direito o
fenômeno do exercício do poder é por definição circunscrito e delimitado no seu conteúdo constitucional,
no Estado Social há um extravasamento dessas limitações porque nele as possibilidades de extensão das
formas de domínio são imensas, podendo atingir intensidades sutis e, num certo sentido, até fora de
controle do ponto de vista do estado de direito”.
141
apelos de uma sociedade capitalista e estigmatizante. O discurso que profana a
efetividade do sistema penal e sua legitimação ou é ingênuo em suas assertivas, ou
desconsidera que esse tipo de discurso constrói-se a partir de uma estruturação
semântica racional, que serve para silenciar o exclusivo pragmatismo de suas intenções:
o sistema penal não está montado para a funcionalidade, e, sim, para uma nãooperacionalidade, com a intenção nítida e real do exercício de um poder fundado na
arbitrariedade voltada para a clientela do direito penal. 179 180
As teorias que pretendem sustentar a efetividade do sistema penal, esvaziam-se
de sentido; a ausência de finalidade também é percebida na pena que não cumpre seus
objetivos precípuos: não é preventiva, não é retribuitiva, não ressocializa, não alcança
sequer uma legalidade formal, eis que deslegitimada em seu mero exercício, pelo
simples fato de sua existência não cumprir a finalidade a que se destina. Para Zafarroni,
um discurso dessa natureza somente poderia pretender omitir a pergunta sobre a
legalidade do sistema penal – ou desacreditá-la como pergunta –, remetendo sua
179
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal.
5 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001. “Da pluralidade semântica da expressão legalidade pode-se extrair
outro sentido: a operacionalidade real do sistema penal seria ‘legal’ se os órgãos para que ele
convergem exercessem seu poder de acordo com a programação legislativa tal como a expressa o
discurso jurídico-penal. ‘Legalidade’ no sentido ora utilizado, é um conceito do que o discurso jurídico
penal retira fundamentalmente dois princípios: o da legalidade penal e o da legalidade processual. O da
legalidade penal exige que o exercício do poder punitivo do sistema penal aconteça dentro dos limites
previamente estabelecidos para a punibilidade. O princípio da legalidade processual (ou da legalidade
da ação processual) exige que os órgãos do sistema penal exerçam seu poder para tentar criminalizar
todos os autores de ação típicas, antijurídicas e culpáveis e que o façam de acordo com certas pautas
detalhadamente explicitadas. Isto significa não apenas que o sistema penal somente exercia seu poder
na medida estrita da planificação legal, como também o sistema penal sempre – em todos os casos –
deveria exercer este poder”.
180
CARVALHO, Amilton Bueno de. Magistratura e direito alternativo. 6 ed. Rio de Janeiro: Lumem
júris, 2003, p. 27-28. “(...) b) dirão alguns que a lei penal tipifica aqueles comportamentos que ofendem
mais à moralidade média. Será verdade? Vejamos o que nos causa maior desagrado: a ofensa à honra
(injúria), a ofensa ao corpo (lesão leve), ou a ofensa ao patrimônio (uma pessoa com grave ameaça que
subtraia um relógio- roubo)? Evidente que a ordem de desagrado é em primeiro lugar a honra, após o
corpo e depois o patrimônio. Quais as penas? Detenção de uma a seis meses ou multa (art. 140 do CP);
detenção de três meses a uma ano (art. 129); reclusão de quatro a dez anos (art. 157), respectivamente.
Surge uma questão básica: quem pratica o roubo, ou seja, a subtração de coisa móvel mediante grave
ameaça? Evidente que é o pobre. Os outros dois delitos os não-pobres praticam, o de roubo não! Para
quem foi feito o dispositivo legal com tamanha pena? c) outro exemplo é mais chocante: imaginemos o
mesmo delito de roubo (mediante grave ameaça subtraiam um relógio) em confronto com o delito de
esbulho possessório (mediante grave ameaça invadam um imóvel – art. 161 do CP). Os crimes são
praticamente idênticos, só diferem que num o objeto é móvel, noutro é imóvel. Como valoramos mais o
imóvel, este deveria ser melhor protegido. Mas não é. A pena daquele é de quatro a dez anos, e este é de
uma a seus meses. Pergunta-se: quem comete roubo de relógio? Algum latifundiário? Ora, a subtração
de móvel é crime do pobre, o esbulho possessório é do rico. Logo, as penas são diferentes, absurdamente
diferentes. Todavia, como atualmente o povo (= pobre) está invadindo terras, aparecem democratas
preocupados com a segurança do país e propõem a elevação das penas do esbulho, o que por certo logo
142
desclassificação relegatória à categoria pejorativa dos pseudo-problemas. No entanto, é
importante lembrar que não existem construções acabadas de discurso que pretendam
suprimir a legitimidade do sistema penal com a legalidade do mesmo. Deve-se
reconhecer que, freqüentemente, realiza-se um emprego parcial e incoerente desse tipo
de tentativa em regiões marginais latino-americanas, contexto no qual essa espécie de
discurso se mostra particularmente alienante. 181 182
Os argumentos que tentam dar sustentação ao direito penal são, na grande
maioria das vezes, seletivos, tendo como ponto nodal uma discriminação oriunda de
uma suposta inferioridade biológica; trata-se de um apartheid social, em que os
desprovidos de capital são vistos como impurezas da sociedade, que, pacificamente,
acolhe teses segregadoras e põe à margem a clientela do direito penal antes mesmo de
que ela venha integrar o cárcere.
Vale, ainda, transcrever trecho da lição de Juarez Cirino dos Santos, quando
expõe, como fins da pena privativa de liberdade: 1) o controle repressivo dos inimigos
de classe do estado capitalista (as classes dominadas, em geral, e os marginalizados do
mercado de trabalho, em especial); 2) a garantia da divisão de classes, mediante a
separação força de trabalho/meios de produção, origem das desigualdades sociais,
característica das relações de produção capitalista; 3) a produção de um setor de
marginalizados/criminalizados (reincidentes e rotulados como criminosos, em geral),
marcados pela posição estrutural (fora do mercado de trabalho) e institucional (dentro
do sistema de controle), como amostra do que acontece aos que buscam a socialização
pelo trabalho assalariado. Em síntese, os objetivos da pena criminal (e do aparelho
carcerário) podem ser definidos por uma dupla reprodução: reprodução das
desigualdades sociais, fundadas na divisão da sociedade em classes sociais antagônicas;
virá; d) o pobre que não trabalha é contraventor, pois não coloca no mercado de trabalho a sua força
para ser explorada (art. 59 da LCP). E o rico?”
181
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal.
5 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.
182
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Sistemas penales y derechos humanos en América Latina. Buenos Aires:
Depalma, 1984, p. 7. “Valendo-se de metáfora exemplificativa, o pensador argentino traduz o desconforto
generalizado a respeito do sistema penal ‘os órgãos legislativos, inflacionando as tipificações, não fazem
mais do que aumentar o arbítrio seletivo dos órgãos executivos do sistema penal e seus pretextos para o
exercício de um maior poder controlador’. Continua o mestre numa inteligente ironia, ao dizer que
"ninguém compra um apartamento impressionado por uma bela maquete apresentada por uma empresa
notoriamente insolvente; no entanto, compramos a suposta segurança que o sistema penal nos vende, que
é a empresa de mais notória insolvência estrutural em nossa civilização”.
143
e reprodução de um setor de marginalizados/criminalizados (no circuito da reincidência
criminal), cuja função é manter a força de trabalho ativa integrada no mercado de
trabalho, como força produtiva dócil e útil, intimidada pela inferiorização social
resultante da insubordinação à disciplina do trabalho assalariado.183
Os técnicos do direito, a quem caberia, denunciar essa condução ideológica do
direito penal, na grande maioria das vezes, endossam essa postura segregadora.
Eximindo-se da possibilidade de conferir legitimação ao direito penal; dando às costas à
sua atribuição humana; coisificando a lide, o processo e, principalmente, os sujeitos
processuais que o integram –, os operadores do direito, acabam fazendo do discurso
jurídico penal algo etéreo e a-ético, que renuncia a possibilidade ínsita a cada processo
de reeditar/promover o direito penal. Essa atitude propõe um discurso jurídico penal que
não se interessa nem mesmo por (re) legitimá-lo, com qualquer argumento do direito
penal, mas que, ao contrário, perde o interesse por sua legitimidade. Manifestando-se a
respeito desse tipo de postura dos operadores do direito, ironiza Zafaronni dizendo que a
sua atitude é a mesma que a assumida pelo bom torturador, que se limita a cumprir sua
tarefa como um profissional correto, passando a responsabilidade ao órgão judicial e ao
exercício do poder dos juristas. 184 185
183
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal. Porto Alegre: Forense. 1985, p. 291.
Nesse sentido BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e crítica do direitopenal: introdução à
sociologia di dreito penal. Rio de Janeiro: Revan, 1997. BARATTA procura dar sustentação à adoção do
ponto de vista das classes subalternas como garantia de uma práxis teórica e política alternativa,
afirmando que “enquanto as classes hegemônicas pretendem conter o desvio dentro de limites não muito
perturbadores, as classes subalternas estão empenhadas numa luta radical contra os comportamentos
socialmente negativos (por comportamentos negativos entendem-se a criminalidade econômica, a
poluição, a criminalidade do poder, a máfia, etc)”. Para tanto, BARATTA reclama uma ciência que não
se limite à descrição da mera desigualdade jurídica no campo penal, mas que compreenda a função real
do sistema penal na sociedade tardo-capitalista, como reprodutor das relações sociais de desigualdade, e
que explicite que estas relações não se baseiam na distribuição desigual de bens e valores, mas nas
próprias relações de produção.
185
STRECK, Luiz Lenio & COPETTI, André. O direito penal e seus influxos legislativos pósconstituição de 1988: um modelo normativo eclético consolidado ou em fase de transição? São Leopoldo:
Unisinos. Programa de Pós Graduação em direito, 2002. p.260. Afirma Streck & Copetti “que inobstante
a aprovação e entrada em vigor de uma série de novas leis e da adoção de medidas localizadas do
combate à criminalidade, esta, sem retrocessos, tem assumido posições estatísticas cada vez mais
assustadoras. Muitos criminólogos, especialmente os que fundamentam teoricamente suas pesquisas e
estudos no paradigma da ‘reação social’, poderão afirmar que o aumento da criminalidade tem ocorrido
exatamente em função da ampliação do sistema normativo repressor, mas esta afirmação é de difícil
sustentação e cuja validade é altamente questionável e duvidosa. Ela pode ser tomada como verdadeira
para as condutas que passaram, por exemplo, a ser consideradas delituosas, após a promulgação da
Constituição Federal de 1988, por forças de normas incriminadoras que surgiram como instrumentos
jurídicos de regulamentação infraconstitucional penal de dispositivos presentes na Carta Magna
brasileira. Entretanto a mesma afirmação não pode ser alçada a uma condição equivalente de
veracidade quando referente. A criminalidade tradicional, à econômica, à tributária, e as violação
criminais a uma série de outros bens que já eram anteriormente protegidos pela legislação penal. Estes
184
144
Para Copetti, no estado social, há uma nova concepção de democracia: a social,
que ultrapassa o mero formalismo da democracia representativa, e dispõe de todo
ordenamento jurídico voltado à sua realização. Saliente-se que algumas parcelas do
ordenamento devem contribuir mais do que outras. Nesse aspecto, entende-se que o
direito penal, pela gravidade das sanções que impõe, deva ser a parte do ordenamento
jurídico menos utilizada para tal fim, pois uma exacerbação do ordenamento e da
atuação estatal penal para a realização do estado social, implicaria, necessariamente,
uma violenta redução das liberdades individuais que são, sem dúvida alguma, um dos
pilares fundamentais do estado democrático de direito. 186
A derivação dessa perspectiva repousa na observância dos demais princípios penais
e processuais penais, em especial os que seguem: (a) a reserva legal; (b) a determinação
taxativa; (c) a irretroatividade da lei penal. A inobservância desses princípios desvia os
estados da observância dos direitos e garantias fundamentais, abrindo precedente para
juízos de exceção nos quais postulados como nullum crimen, nulla poena sine lege praevia;
nullum crimen, nulla poena sine lege scripta; nullum crimen, nulla poena sine lege stricta;
nullum crimen, nulla poena sine lege certa, que, se não adotados de forma veemente,
restam em prejuízo da democracia. 187 188 189
A constituição federal brasileira declara, expressamente, ser o Brasil um estado
democrático de direito e considerar os direitos, liberdades e garantias como valores
fundamentais, sendo à base dos princípios da política normativa que deve inspirar não
só a atividade do juiz e do intérprete mas, sobretudo, a do próprio legislador. Desse
nichos de condutas delinqüenciais já previstos normativamente como tais, e que tiveram um salto
quantitativo nos últimos anos, têm suas causas numa pluralidade de fatores que as mais diversas
ciências, que se imbricaram com o direito penal no estudo do crime, têm buscado apontar. Se não poucas
dúvidas e hesitações já existem em relação ao papel que possa a legislação penal cumprir nesse
processo histórico de enfrentamento da criminalidade, também não são poucas as dificuldades de
definição acerca de qual caminho deva ser tomado pelas reformas legislativas que ocupam um lugar de
destaque em todos os debates que envolvem o fenômeno contemporâneo de combate a criminalidade”.
186
COPETTI, André. Direito penal e estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2000.
187
PALAZZO, Francesco. Valores constitucionais e direito penal. Porto Alegre: Fabris, 1989.
188
LUISI, Luiz: Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre: Fabris, 1991.
189
Assim o estado de exceção introduz no direito uma zona de anomia, onde é confundido os atos do poder
executivo e do poder legislativo, definindo-se como um regime no qual os atos que não possuem valor de lei
adquirem sua força. O estado de exceção é um espaço vazio de direito, não podendo ser entendido, porém,
como novo conceito embasando um ordenamento jurídico extraordinário e excepcional, mas sim num estado
145
modo, o poder estatal encontra-se vinculado e controlado pela ordem jurídica. A
atividade legiferante e jurisdicional encontra-se, pois, atrelada aos direitos
fundamentais, assegurados na constituição. 190
Segundo Castro, esse fenômeno, que, em maior ou menor escala, tem hoje,
feição mundial, revela a expansão do movimento Law & order, que se assenta na
deterioração generalizada do tecido social, na violência urbana e na ineficiência do
estado para enfrentá-la, na expansão mundial do terrorismo, do crime organizado, do
narcotráfico e das operações de lavagem de dinheiro (money laundery), obtido por
meios ilícitos. 191
Não se ignora, por evidente, que a escalada da violência nos centros urbanos
brasileiros, especialmente aquelas gerada pelas facções estruturadas, tem atingido
proporções extremas e insuportáveis.
Para Zaffaroni,
“en esta etapa el poder se planetariza y amenaza con una dictadura
global; el potencial tecnológico de control informativo puede acabar con
toda intimidad; el uso de ese potencial controlador no se limitaría a
investigar a terroristas, como toda la experiencia histórica enseña; la
comunicación masiva, de formidable poder técnico, está lanzada a una
propaganda völkisch y vindicativa sin precedentes; el poder planetario
fabrica enemigos en serie. Por ende, por mucho que se atavíe como jurídica,
la reacción inusitada es política, porque la cuestión que plantea es – y
192
siempre fue – de esa naturaleza”.
em que aprioristicamente existe a desobediência a anterioridade da lei, sendo considerado como zona de
anomia na qual todas as determinações jurídicas são desativadas.
190
COPETTI, André. Direito penal e estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2000. “A ordem jurídica transforma-se em instrumento de atingimento de metas sociais concretas, dentro
de uma lógica distributivista de satisfação de direitos humanos sociais, igualitários, destinados a
organizar a sociedade de forma mais justa. O Estado de Direito deixou, assim, de ser formal, neutro e
individualista, para transformar-se em Estado material de Direito, com a pretensão de realização da
justiça social (...) os regimes constitucionais ocidentais prometem, explícita ou implicitamente, realizar o
Estado Social de Direito, quando definem um capítulo de direitos econômicos e sociais, mas a efetivação
desses direitos não tem encontrado um caminho tão pacífico quanto possamos imaginar. Ainda existem
vacilos teóricos, hermenêuticos e operativos que impedem a extração de efeitos jurídicos mais concretos
das normas constitucionais de natureza social”.
191
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o
constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 259.
192
ZAFFARONI Eugenio Raúl. La legitimación del control penal de los extraños. (acessado em
20.1.2006, electivas/criminologia/cronogramateoricos.htm)-
146
Nos crimes de grande comoção popular, os direitos e inviolabilidades
constitucionais, considerados intocáveis quando aplicados às pessoas da classe média e
alta da sociedade brasileira, notadamente as garantias da presunção de inocência e do
devido processo legal, que devem obrigatoriamente condicionar os procedimentos
investigatórios e de prisão, tornam-se difusos no que diz respeito às classes
desfavorecidas, configurando um autêntico e explosivo apartheid social.
A parcialidade, no que concerne aos privilégios da classe dominante no
tratamento legal e jurisdicional, devido às próprias contingências do processo,
sedimentaliza as desigualdades, formalizando jurídicamente
uma impunidade
ideologizada. Dessa forma, um contigente cada vez maior de excluídos é
aprioristicamente discriminado e esbuliado do estado democrático de direito: essa
prática da exclusão não é ocasional nem contingencial – integra um projeto de
sociedade, baseado no extermínio dos desprivilegiados econômica e socialmente.
Segundo Dimenstein, no Brasil, essa violência de caráter endêmico, implantada
no sistema de relações sociais profundamente assimétricas, não é um fenômeno novo: é
a continuação de longa tradição de práticas de autoritarismo, cuja expressão foi
dissimilada pela repressão formal da democracia. Quando a omissão por parte das
autoridades estatais diretamente responsáveis pelas instituições de controle de violência
assume os contornos de tolerância, quando não de estímulo para com essas ações
criminosas, enfraquece a vigência das garantias constitucionais, perpetua o círculo ilegal
da violência e dificulta o fortalecimento da legitimidade do governo democrático como
promotor da cidadania. 193 194 195
193
DIMENSTEIN, Gilberto. Democracia em pedaços: direitos humanos no Brasil. Porto Alegre:
Companhia das Letras, 1996. p 7-9.
194
DIMENSTEIN, Gilberto. Democracia em pedaços: direitos humanos no Brasil. Porto Alegre:
Companhia das Letras, 1996. p 7-9.
195
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o
constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 258-260. “Isso nos
permite compreender a razão pela qual o princípio isonômico oriundo do liberalismo jamais foi
impeditivo de toda sorte de classificações e discriminações legislativas, significando tão apenas a
exigência de igual tratamento jurídico para todos ou, ao menos, para todos quantos estejam na mesma
circunstância fática. Tendo a regra igualitária resultado da explosão de liberdade vivida na virada do
século XVIII, sua noção nasceu individualista, nada aduzindo, ipso facto, no tocante à distribuição da
riqueza e dos meios de sobrevivência no convívio social. Bastava que a lei fosse igual para todos, ou
igual para os iguais. Sem adoção dos privilégios vigorantes no ancien régime, para que ficasse satisfeito
o cânone da igualdade jurídica. Sua função, destarte, não era outra senão a de permitir que a liberdade
capitalista pudesse operar como força motriz do desenvolvimento sócio-econômico, de feição nitidamente
individualista e liberal, o Direito Constitucional moderno, mormente no século passado, embutiu a idéia
147
A história brasileira conta de um passado de esbúlio do patrimônio dos cidadãos,
através da administração pública a das elites corruptas. Não honrando a função pública
o estado desconsidera a eficácia da justiça, entregando as forças da ordem à corrupção.
As diferenças sociais abrem uma brecha para que a grande maioria de excluídos do País,
por falta de alternativas, assumam essa comunidade criminógena como opção à sua falta
de perspectivas. O estado fomenta ou força um exército de excluídos a tomar as armas
contra a comunidade nacional.
Segundo Castro, para alcançar maior eficiência no combate à escalada da
criminalidade, as instituições públicas repressivas acabam alterando seus mecanismos
de controle e prevenção de delitos, seja aumentando o caráter punitivo das normas
penais, seja liberando o processo de persecução criminal das garantias investigatórias e
processuais incluídas na pauta constitucional dos direitos fundamentais do homem. Com
isso, as liberdades civis ficam drasticamente comprometidas. De outro lado, o grande
contingente dos excluídos, por força da indigência econômica, passa a sofrer um
processo de criminalização sumária, que os transforma em autêntico grupo de risco nas
ações policiais de combate à delinqüência. 196
Tem-se aí a repressão ideologizada, à feição do colonianismo classista, que no
Brasil, fez escola no período da ditadura militar, a ponto de deformar o conceito de
ordem pública e transformar o papel das instituições incumbidas da segurança pública,
notadamente as polícias civis e militares, em forças de arbítrio e de plantão a serviço do
modelo econômico concentrador da riqueza, calcado na exacerbação egoísta da
propriedade privada. Sob essa ótica proprietária e utilitarista do funcionamento das
corporações encarregadas da prevenção e da repressão à criminalidade, as camadas
desfavorecidas da população, sobretudo a gente das favelas e dos morros, é vista sob
permanente suspeição, tornando-se clientela da cotidiana violência policial.
da igualdade no ideal prevalente da liberdade, de modo a exigir do Estado uma atitude de omissão ou
parcimônia na regulamentação da economia, que deveria organizar-se de acordo com a lei natural do
laissez faire, laisser passer”.
196
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o
constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 258-260.
148
Dentro da seara do direito penal mínimo, contra a criminalidade de menor
potencial, a reação social adota contornos de coloração privatística, perdendo a norma
seu caráter de retribuição: reparado o dano estaria restabelecido o status quo ante, sendo
desnecessária outra providência oficial. A despenalização de crimes de menor potencial
ofensivo se impõe no contexto de um direito penal mínimo, ao contrário de tendências
americanas atuais de extremada reação criminal, compatíveis com um policiamento
ostensivo que não existe na maioria dos países. 197
E o que mais fomenta o debate científico é exatamente a necessidade de
preservação do sistema de garantias que inspirou o direito penal moderno. Embora a
sociedade atual, muitas vezes motivada pela mídia, demande um direito penal cada vez
mais intervencionista para equilibrar a insegurança das relações complexas, o correto
seria minimizar o universo das normas punitivas.
O princípio da intervenção mínima do direito penal impõe a necessidade de que o
estado intervenha na sociedade somente quando todos os outros meios de controle falharam,
revelando o caráter subsidiário, acessório e fragmentário do direito penal. Na contramão de
toda a construção doutrinária a respeito da subsidiariedade do direito penal moderno, o que
se constata nos estados contemporâneos, cada vez mais, é a expansão do direito penal como
meio de controle social, sem que antes se esgotem todas as outras possibilidades. 198 199
197
LUISI, Luiz: Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre: SAFE, 1991. p. 25 “A lógica
Iluminista era posta no sentido de reduzir a legislação em geral e, especialmente, a penal, estendendo-se
este raciocínio a princípio orientador e limitador na criação de delitos e penas, inaugurando o princípio
da intervenção mínima, só legitimando a criminalização de um fato se o mesma constitui meio necessário
para a proteção de um determinado bem jurídico, existindo outras sanções que se revelam suficientes a
criminalização foi inferida de maneira incorreta, somente se justificando legitimamente (sanção penal) se
servir de instrumento indispensável de proteção jurídica. Portanto, a tipificação penal de uma conduta
deve constituir-se no meio único, último e necessário para a proteção de um bem jurídico, conceito que
exprime a idéia de algo valioso para o indivíduo e a sociedade, cuja tutela deve ser a tarefa do direito
penal”
198
O liberalismo econômico inaugura a noção de direito penal mínimo, século XVIII, tratando-se de
estratagema para afirmação política da classe burguesa que através do movimento Iluminista, questionou
seriamente as instituições vigentes. A noção de pena eminentemente retribuitiva, com penas desumados e
meios inquisitoriais de formação da culpa foram gradativamente substituídos pela noção de direito mínimo,
com a intervenção mitigado do Estado nas relações sociais, dispensar o grande número de leis e
valorizando a educação como base da harmonia e prosperidade social.
199
KIST, Dario José.. Fundamentos do direito penal democrático. Porto Alegre: Revista do Ministério
Público do Rio Grande do Sul, nº 45, 2001.“O respeito ao princípio da intervenção mínima exige do
estado que intervenha através do direito penal, como mecanismo regulador da vida em sociedade,
somente em última instância. Ou seja, trata-se da última e mais enérgica manifestação do poder estatal,
aplicável só e exclusivamente ante a ataque de real gravidade ao conglomerado social, em assuntos que
vulnerem princípios básicos do sistema jurídico. além disso, deve ser xxx somente tanto quanto for
estritamente necessário, e nos casos em que já não é possível lançar mão a outro meio menos drástico,
149
Vê-se que inúmeros são os fatores que podem ser apontados como causas da
expansão do direito penal, sendo que a institucionalização da insegurança, a contrario
sensu do dever do estado em proporcionar segurança jurídica ao cidadão, é elemento
que deve ser considerado. Vive-se sob o império do medo, e o estado proporciona
poucas respostas para a sensação da multiplicação dos riscos existente. Chamado a
tomar providências no cumprimento de seu papel no pacto social, o estado nem sempre
tem respondido democraticamente a esses reclames: a legalidade exige dos operadores
do direito a definição das controvérsias a eles apresentadas com base nas prescrições
legais inscritas em normas legislativas, limitando sua atuação aos domínios previstos e
permitidos pelas leis e ficando alheio a arbitrariedades e ao ferimento de preceitos
constitucionais. 200
Afirma Sanchez que é inegável que a população experimenta uma crescente
dificuldade de adaptação a uma sociedade em contínua aceleração. Desse modo, depois
da revolução dos transportes, a atual revolução da comunicação dá lugar uma
perplexidade derivada da falta – sentida e possivelmente real – de domínio sobre o curso
dos acontecimentos, que não pode traduzir-se senão em termos de insegurança. Por
outro lado, as pessoas acham-se ante a dificuldade de obter uma autêntica informação,
em uma sociedade caracterizada pela avalanche de informações. Essas, de modo
freqüente, mostram-se contraditórias, dificultando sua integração em um contexto
significativo que proporcione alguma certeza. E essa aceleração não é somente uma
questão da técnica, mas, precisamente, também da vida. Afirma o autor que a lógica do
mercado reclama indivíduos sozinhos e disponíveis, pois esses se encontram em
melhores condições para a competição mercadológica e laborativa. Essas novas
realidades econômicas, a que se somaram importantes alterações ético-sociais, vem
ou seja, quando não cabe mais nenhum outro provimento de índole civil ou administrativo. é, portanto,
um critério limitador do direito de punir, notando-se que a criminalização se justifica por um critério de
necessidade, isto é, sua função é induzir o indivíduo a determinado comportamento, fundamentalmente
necessário para a convivência”
200
SANCHEZ, Jesús-Maria Silva. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas
sociedades pós-industriais. São Paulo: Revista dos Tribunais: 2002. p. 33“(...) nossa sociedade pode ser
melhor definida como a sociedade da ‘insegurança sentida’(ou como a sociedade do medo), como efeito um
dos traços mais significativos das sociedades da era pós industrial é a sensação geral de insegurança, isto é o
aparecimento de uma forma especial e aguda de viver os riscos. É certo que desde logo que os novos riscos –
tecnológicos e não tecnológicos – existem. Tanto é assim que a própria diversidade e complexidade social,
com sua enormidade pluralidade de opções, com a existência de uma abundância informativa a que se soma a
150
dando lugar a uma instabilidade ético-familiar que produz uma perplexidade adicional
no âmbito das relações humanas. Este contexto de acelerações e incertezas, de
obscuridade e confusão produz uma crescente desorientação pessoal que se manifesta
como perplexidade da relatividade. 201 202
No ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da legalidade está previsto no
inciso II do art.5 da Constituição Federal, em que expressamente está consignado que
ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude da lei e no
art.5, inciso XXXIX da Constituição Federal, que reitera que não há crime sem lei
anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.
A reserva legal e o respeito às garantias e liberdades individuais alicerçam e dão
condições de legitimidade ao exercício do poder do estado, na medida em que
asseguram ao cidadão a certeza da norma (pois expressa no ordenamento jurídico) e de
sua aplicação somente quando o fato concreto subsimir-se aos estritos termos da norma
enunciada, possibilitando ao cidadão prever as conseqüências das suas ações,
libertando-o da insegurança proveniente das ordens arbitrárias, específicas e
excepcionais, impedindo tratamentos preferenciais entre indivíduos ou grupos.
O uso democrático do princípio da legalidade contempla de fato a efetivação da
separação dos poderes que compõem o estado, impedindo a intervenção de um poder na
seara do outro. A edição de sucessivas medidas provisórias, por exemplo, faz com que o
executivo passe desregradamente a legislar, cabendo ao legislativo o trabalho de
referendar tais atos. Mas, ao fazer isso, o legislativo acaba por endossar uma distorção
que, na área penal, pode gera novas e mais refinadas formas de derrogação do princípio
da legalidade penal.
falta de critérios de decisão sobre o que é bom e o que é mal, sobre o que se pode ou não se pode confiar,
constitui uma fonte de dúvidas incertezas e inseguranças”.
201
SANCHEZ, Jesús-Maria Silva. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas
sociedades pós-industriais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
202
Todo o drama reside no fato de conciliar um direito penal garantista com um direito penal da
prevenção contra os riscos. As posições mais extremadas apregoam a teoria do risco, ou seja, no exercício
de atividades perigosas os agentes ficariam submetidos à imputação em vista da tipificação de certas
condutas. Seria a responsabilidade objetiva em decorrência da realização da conduta típica. O simples
atuar em determinadas áreas acarretaria a assunção dos riscos da resposta penal. Essa maneira de
solucionar o problema do risco tem explicação num Estado ineficiente, sem condições de administrar a
realidade de certas atividades, preocupado em criminalizar para agradar os eleitores, visando à
151
Conceitos genéricos e imprecisos na tipificação, normas penais com diversos
verbos nucleares a ponto de tornar difusas as condutas incriminadas, bem como do
abuso das ditas normas penais em branco com preceitos indeterminados quanto ao seu
conteúdo, estão a serviço de estados pseudo-democráticos, em que a legalidade, quando
não negada, é utilizada para justificar e legitimar um distanciamento do direito penal
mínimo e endossar a expansão do direito penal.
Efetivamente, o respeito ao princípio da legalidade faz com que a punição de
alguém esteja condicionada à existência prévia de lei incriminadora da respectiva conduta.
Esse princípio, entretanto, é incapaz de evitar que o legislador, observando a legalidade, crie
figuras delitivas iníquas ou desnecessárias, bem como penas desproporcionais e que
desrespeitem a dignidade humana. Para impedir tais anomalias é imprescindível a
afirmação de um critério limitador do poder legiferante e do arbítrio legislativo, fornecido
pelo princípio da intervenção mínima. Para que tal princípio se realize, é necessário que
sejam criminalizadas somente as condutas ofensivas a um bem jurídico, aquelas
indispensáveis para a convivência humana e que devem ser protegidas pelo poder coativo
do estado através da pena pública, como é o caso da vida, da integridade corporal, da
liberdade, da propriedade, do patrimônio, entre outros.
Afere-se da Constituição que são invioláveis os direitos à vida, à liberdade, à
segurança e à propriedade (artigo 5º, caput), sendo que o estado democrático de direito e o
princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III) são os fundamentos que alicerçam
a carta magna nacional. Inegavelmente, da explícita adoção desses princípios se segue que a
restrição ou privação desses direitos invioláveis somente se legitima se a sanção penal for
estritamente necessária para a tutela de bens fundamentais do homem, assim como a de
bens instrumentais indispensáveis para sua realização social. Portanto, embora não esteja
expresso no texto constitucional vigente no Brasil, o princípio da intervenção mínima
deduz-se de normas explícitas da constituição, sendo, inegavelmente, um postulado nela
existente.
203 204
eternização no poder e, em especial, carente de pessoal habilitado em razão de uma orientação neo-liberal
de configuração do estado mínimo.
203
Por outro lado, o princípio da intervenção mínima também deve orientar o legislador na cominação das
penas, tanto a sua tipologia, quanto a sua quantidade. Nestes termos, a pena privativa de liberdade, em vista dos
deletérios efeitos que sua execução impõe ao condenado, deve ser a última a ser cominada e reservada para os
152
Nesse sentido, argumentam os autores, as interpretações das normas
constitucionais, que dizem respeito às garantias individuais, devem ser feitas de maneira
mitigada. A permissão dessa atuação de maneira dita mitigada é reconhecida ao estado
diante da existência de justa-causa e ordem judicial que a embase. Aliás, a doutrina e
praticamente unânime em reconhecer a natureza relativa do não intervencionismo do
estado nos direitos individuais do cidadão no intuito de cerceá-los. Os pressupostos básicos
para a realização da referida ponderação, conforme lecione Steinmetz pressupõe: a) a
colisão de direitos fundamentais e bens constitucionalmente protegidos, na qual a
realização ou omitização de um implica na afetação ou restrição ou até mesmo a não
realização do outro; b) a inexistência de uma hierarquia abstrata a priori entre os direitos
em colisão, isto é a impossibilidade de construção de uma regra de prevalência definitiva
ex ante, prescindido das circunstâncias do caso concreto.
205
Depois do fatídico 11 de setembro, a democracia americana e a planetária talvez
nunca mais seja a mesma. Ocorreram nos Estados Unidos inúmeras prisões, diversas
contas bancárias foram violadas, inúmeros direitos constitucionais foram desobedecidos.
Aconteceram discriminações patentes sob o manto protecionista do estado e censuras aos
os meios de comunicação. Houve um aumento das medidas extraordinárias em Nova
York. Como reação ao atentado terrorista, instalou-se o chamado grand jury, um júri
federal de inquisição responsável pelo agilizamento do trabalho dos policiais na busca por
suspeitos do atentado, podendo ser concedidos, em tempo recorde, mandados de busca,
prisão ou escuta telefônica sem que se tivesse que convencer o juiz de uma causa provável
ou achar evidências incriminatórias. 206 207 208 209 210
crimes mais graves e, em vista do princípio constitucional da individualização da pena, somente o limite
máximo é que deveria ser previsto pelo legislador, possibilitando-se ao magistrado uma maior flexibilidade
quando da fixação da pena. Além disso, impõe-se a crescente utilização das denominadas penas alternativas
que, sem ensejar a nefasta impunidade, impedem o contato do condenado com os estabelecimentos penais,
permitindo, também, que este mantenha-se no meio social em que vive, em contato com a família, emprego,
etc.
204
LUISI, LUIZ: Os princípios constitucionais penais. Cidade: Porto Alegre: Fabris, 1991. p. 26.
205
STEINMEZ, Wilson Antônio. Colisão de Direitos Fundamentais e princípio da proporcionalidade.
Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2001. p.139.
206
Vê-se então que estas medidas foram realizadas na urgência que o momento histórico americano requeria,
a título temporário e provisório, pois como é notório na legislação americana o direito a livre expressão é um
mandamento constitucional basilar nos Estados Unidos. É sabido que o mandamento constitucional que
garante direito à liberdade, à intimidade, senta suas bases no direito que goza toda a pessoa de não sofrer
ingerências, sendo preservado de tudo e de todos sua vida privada. O desdobramento desse direito consiste na
não intromissão, seja de quem for, na essência da privacidade das pessoas.
153
É inegável que o legislador constituinte de 1988 deliberou explicitamente a respeito
da tutela da vida privada das pessoas, bem como de vários aspectos seus como intimidade,
honra e imagem, etc, obstando ao estado a intromissão na vida privada e familiar dos
cidadãos, assim como o impedindo de ter acesso a informações sobre a privacidade de
cada um. Não há sombra de dúvidas de que o direito constitucional à privacidade deve ser
analisado de forma relativa, quando sua manutenção torna obscuras informações que, se
não vierem à tona, implicam a impunidade de criminosos e a lesão ao bem-comum. Mas,
para que a quebra desses direitos individuais seja lícita, é indispensável o devido processo
207
Deve haver uma conformação, um ajustamento de valores e a minimização do rigor formal de um dos
valores protegidos pela norma jurídica, que vai sofrer restrição legal, desde que seja no intuito de
salvaguardar outros direitos fundamentais, observando-se, é claro, as limitações delineadas no próprio
texto constitucional e pela doutrina. Daí justificada, em parte, a restrição das liberdades individuais pelo
princípio da proporcionalidade. Busca-se, quando do uso do princípio da proporcionalidade, uma
otimização entre os direitos balizados, para que se possa estabelecer uma concordância prática (praktische
konkordans), sendo mantida a identidade daquele que teve seu rigor formal comprometido: o critério não
será a prevalência absoluta de um valor sobre o outro, mas a tentativa de aplicação simultânea e
compatibilizada de normas, mesmo que no caso em exame se torne atenuada uma delas.
208
No art. 38 § 4 º da Lei 4595/64 existe a previsão da possibilidade do poder legislativo, através das CPIs,
209
GOMES, Luiz Flávio. Crime organizado: enfoque criminológico jurídico (Lei 9.034) e políticocriminal. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 131 “É absolutamente impossível, hoje, que
possam as autoridades administrativas (fiscais, sobretudo) determinar a quebra do sigilo bancário. Por
envolver um direito constitucional fundamental (direito à privacidade), estamos convencidos dessa
impossibilidade. Só a autoridade judicial e o Poder legislativo é que possuem esse autorização. É que o
devido processo legal é impostergável. Dir-se-ia que o processo administrativo fiscal, por exemplo,
satisfaz tal exigência. Ainda que se admita tal conclusão, restaria prejudicada a necessidade de uma
fundamentação judicial para a quebra de tal sigilo. O juiz primordialmente, não as autoridades
administrativas, é o garante dos direitos fundamentais, por ele, por isso, mesmo deve passar qualquer
providência que implique afetação de tais direitos”.
210
A reserva da lei ajuda no estabelecimento de um critério de ponderação, pois aqueles direitos sujeitos a
reserva de lei restritiva tem nos preceitos constitucionais sua garantia e seus limites pré-estipulados, cabendo
ao magistrado a tarefa de conformação dos direitos fundamentais o legislador e o hermeneuta não poderão
disponibilizá-los, sendo que as normas legais conformadoras caberá a tarefa de apenas completar, concretizar
ou definir o conteúdo e o limite de proteção de um determinado direito fundamental: as decisões da
administração que afetem direitos e interesses dos cidadãos, só devem ir até onde seja imprescindível para
assegurar o interesse público, não se devendo utilizar medidas mais gravosas quando outras, que o sejam
menos, forem suficientes para atingir os fins da lei. Para o princípio da proporcionalidade o aplicador do
direito deverá sopesar entre dois direitos conflitantes, de mesma hierarquia legal, optando, excepcionalmente,
em aplicar aquele que vai ao encontro do bem comum. Este método subjetivo de análise nunca deve deixar de
lado o critério da razoabilidade.
154
legal, através de prévia autorização judicial, garantindo-se, assim, a irrestrita observância
do estado constitucional de direito. 211
Nesse sentido, o devido processo legal é condição para a restrição de quaisquer
garantias individuais juridicamente tuteladas. São notórios os estratagemas utilizados pela
criminalidade organizada tendo como pano de fundo as garantias constitucionais. Em
assim sendo, vale questionar as posturas doutrinárias arraigadas no rigor formal, que não
interpretam a norma à luz de um critério de razoabilidade que busca a obtenção de
informações indispensáveis à apuração de certos crimes, em casos excepcionais. O
chamado right of privacy deve ser interpretado de maneira temperada, diante do argumento
de que inexiste direito fundamental absoluto, cedendo, quando for o caso, em atenção ao
princípio da proporcionalidade.
Mas, independentemente da primazia a que deve ser alçada à norma constitucional
garantidora do direito a intimidade e suas matizes, são necessárias provas a fim de que
sejam incriminadas certas condutas. Nessa seara, destaca-se a importância do principio da
proporcionalidade.
Observe-se que, sob o manto do critério de proporcionalidade é
permitido caráter excepcional e, em casos extremamente graves, o emprego de provas
ilícita, baseada no equilíbrio entre valores fundamentais contrastantes. É importante
observar que o princípio alemão da proporcionalidade recorda a construção jurisprudencial
da razoabilidade, tão importante e significativa nas manifestações da Suprema Corte
americana. Embora reconhecendo que o subjetivismo incito no princípio da
proporcionalidade pode acarretar sérios riscos, alguns autores têm admitido que sua
utilização poderia transformar-se no instrumento necessário à salvaguarda de valores
conflitantes, desde que aplicado única e exclusivamente àquelas situações tão
extraordinárias que levariam a resultados desproporcionais, inusitados e repugnantes, se
inadmitida a prova ilicitamente colhida. Para Guerra Filho, só se fundamenta a inscrição de
211
A perfectibilização dos direitos fundamentais só acontece validamente diante de direitos fundamentais
instituídos diretamente pela Constituição. É um método ou procedimento que permite a satisfação da
unidade da Constituição, da concordância prática e da otimização (máxima efetividade possível) dos
direitos fundamentais. A discussão sobre conflito de direitos fundamentais (Grunrechtskollision) é fonte
de constantes indagações e questionamentos, debruçando-se a doutrina sobre seu conceito e seus limites
legais. A colisão de direitos fundamentais ocorre no mais das vezes quando o exercício de um direito
fundamental de um titular de direitos fundamentais tem conseqüências negativas sobre os direitos
fundamentais de outros titulares de direitos fundamentais, criando-se a necessidade de um cotejamento
entre os direitos conflitantes, sendo desconsiderado um deles, através de um juízo ponderação que exija o
sacrifício mínimo de ambos os direitos de modo a eliminar (ou pelo menos amenizar) o estado de tensão
mútua existente.
155
um principio no plano constitucional se deduzido da opção por um estado de direito ou,
então, dos próprios direitos fundamentais, não restando dúvida quanto da sua inserção à
base do ordenamento jurídico. 212 213
Vivemos sob a égide da globalização que, concomitantemente a desigualdade
social, leva a transnacionalização dos espaços econômicos nacionais, rompendo com os
limites fronteiriços do capital financeiro. Superando-se a noção de território físico e
geográfico, avança-se em direção à denominada flexibilidade mundial, com índices
enormes de miséria, criminalidade e violência urbana. 214
212
GRINOVER, Ada Pellegrini, FERNANDES Scarance Antonio e Filho Antonio Magalhães Gomes. As
nulidades no processo penal. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p.137.
213
FILHO, Willis Santiago Guerra. Direitos fundamentais, processo e principio da proporcionalidade: dos
direitos humanos aos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 27.
214
LEAL, Rogério Gestam. Globalização, urbanismo e os operadores do direito Santa Cruz do Sul:
Editora da Universidade de Santa Cruz do Sul, 1995, p 92.
156
3.3 Discurso penal do inimigo
A doutrina do direito penal do inimigo é um novo marco histórico na doutrina
do direito penal e o pensa totalmente desgarrado do direito penal contemporâneo,
reducionista por natureza. Em assim sendo, o estudo aprofundado do discurso do
direito penal do inimigo é de suma importância.
Observe-se que é diante do contexto de globalização econômica, de profunda
desigualdade social, de níveis de criminalidade altíssimos, decorrentes de um número
infindáveis de injustiças infringidas sobre a grande massa de excluídos que floresce a
doutrina do direito penal do inimigo. Trata-se de uma visão doutrinária expansinista que
figura na contra-mão do direito penal garantista e reducionista. Para a doutrina do
direito penal inimigo, o direito penal opera com dois pólos ou tendências em seus
regulamentos: (1) o trato com o cidadão, do qual se espera que exteriorize sua conduta
para reagir com a finalidade de confirmar a estrutura normativa da sociedade; (2) o trato
com o inimigo, que deve ser interceptado muito antes, em estágio prévio à ação e
combatido pela sua periculosidade.215
Acontece, como já se viu, que o direito penal foi projetado para ser acolhido por
uma sociedade idealizada, com o nível cultural e racional compatível com a conferência
de sentido à norma (o livre arbítrio existe para quem tem possibilidades de escolher não
para quem não tem escolhas), efetivando seu cunho coercitivo somente pela
possibilidade de consciência potencial da ilicitude e pela capacidade de escolha do
infrator de infringir ou não a norma penal. Em uma sociedade em condições anárquicas
são a práxis e pauta cotidiana, em que estados paralelos ao estado de direito se instalam
com regras e coações próprias e na qual parte da população vive à margem do contrato
social, ao abandono de suas vivências instituais, o direito penal não opera seu sentido
precípuo, tampouco, oferece essa capacidade de escolha projetada pelo direito penal:
escolhe quem não passa fome, escolhe quem tem outas opções, alternativas e projetos
que não a adesão ao estado paralelo.
215
PRITTWITZ, Cornelius. O direito penal entre direito penal do risco e o direito penal do inimigo. São
Paulo: Revista Brasileira CCRIM Nº 47, 2004. p.41. Segundo PRITTWITZ “o direito penal do inimigo é
um direito penal por meio do qual o Estado confronta não os seus cidadãos, mas os seus inimigos; em
que isto se faz visível?. Primeiramente afirma o autor, tomando-se a lei concretamente o código penal e a
legislação processual penal, o que se vê é que , onde se trata de punição de inimigos, se pune antes de
157
A esse respeito, afirmam Jakobs:
“neste sentido que a doutrina do Derecho penal del enemigo es
indicativo de uma pacificación insuficiente (...) en primer lugar, está la
coacción en cuanto portadora de un significado, portadora de la respuesta al
hecho: el hecho, como hecho de una persona racional, significa algo,
significa una desautorización de la norma, un ataque a su vigencia, y la pena
también significa algo, significa que la afirmación del autor es irrelevante y
que la norma sigue vigente sin modificaciones, manteniéndose, por lo tanto,
la configuración de la sociedad. En esta medida, tanto el hecho como la
coacción penal son medios de interacción simbólica, y el autor es tomando
en serio en cuanto persona; pues si fuera incompetente, no sería necessario
217
contradecir su hecho”.216
Na terminologoia o termo inimigo, do latim inimicus (hostil, adversário), na
terminologia jurídica é empregado para indicar a pessoa que mantém contra outros
sentimentos de animosidade ou malquerença, impregnados de rancor e ódio. Um não
amigo, sendo hostil e adversário da pessoa, a quem, longe de desejar bem, quer o
malefício, configura-se como um inimigo. A condição de inimigo assenta-se, pois, na
falta de estima; na linguagem do direito internacional, assim se diz do país, povo ou
tropas, quando se está em luta armada ou guerra.
Para Jacokbs, o inimigo é aquele delinqüente que infringe o contrato social de
maneira tão ostensiva que já não deve participar de seus benefícios: a partir desse
momento, já não vive com os demais dentro de uma relação jurídica. Essa definição de
inimigo apóia-se na concepção rousseauniana que considera como malfeitor todo aquele
que ataque ao direito social, deixando por/com isso, de ser membro do estado, posto que
se encontra em guerra contra esse, como demonstra a pena pronunciada contra o
malfeitor. 218
Analisando a conceituação desenhada por Jacokbs, vê-se claramente a distinção
estabelecida por seus argumentos entre aqueles que aderem ao contrato social, e que,
portanto, devem estar abrigados pelos direitos e garantias individuais, e aqueles que se
forma mais rígida, do ponto de vista de direito material, a liberdade do cidadão de agir e (parcialmente)
de pensar é restringida; ao mesmo tempo, subtraem-se direitos penais do inimigo”.
216
GÜNTER, Jakobs . Derecho penal del enemigo. Madrid: Civitas, 2003.
217
GÜNTER, Jakobs. Derecho penal del enemigo. Madrid: Civitas, 2003.
218
Nesse sentido JACOKBS Günther. Direito penal do inimigo: noções e críticas, org. e trad. André Luis
Callegari, Nereu José Giacomolli, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
158
mostram alheios ao contrato social, devendo, segundo a teoria do direito penal do
inimigo, ser tratados não cidadãos.
Argumenta Jacokbs quem abandona o contrato cidadão no ponto em que, no
contrato, se contava com a sua prudência, seja de modo voluntário ou por imprevisão,
em sentido stricto, perde todos os direitos como cidadão e como ser humano e passa a
um estado de ausência completa de direitos.
Curiosamente, mediando seus próprios argumentos, afirma Jacokbs que um
ordenamento jurídico deve manter dentro do direito também o criminoso por uma dupla
razão: por um lado, porque o delinqüente tem o direito a voltar a ajustar-se à sociedade,
e, para isso, deve manter seu estado de pessoa, de cidadão; por outro, porque o
delinqüente tem o dever de proceder à reparação e também tem deveres pressupostos
pela existência da sua própria personalidade. Dito de outro modo, ele próprio admite
que o delinqüente não pode despedir-se arbitrariamente da sociedade.
Mas, certamente, esse despedir-se arbitrariamente da sociedade foi pensando no
contexto de uma sociedade realmente comprometida com o bem-estar social, que
alcançasse ao ser humano grande parcela de efetivação dos seus direitos fundamentais,
que proporcionasse ao mesmo meios de sobrevivência: direito ao trabalho, à moradia, à
educação, à assistência médica e psicológica, a uma previdência social que não
abandone o trabalhador, aposentado-o à mingua depois de uma vida inteira de trabalho.
Argumenta Jacokbs todo delinqüente é per si um inimigo, para Hobbbes, é, ao
menos o réu de alta traição. 219
Kant, já havia entabulado semelhante noção argumentando que faz uso do
modelo contratual como idéia reguladora de uma fundamentação e limitação do poder
do estado, situa o problema na passagem do estado de natureza (fictício) ao estado
estatal, no sentido de que aquele ser humano ou povo que se encontra em um mero
estado de natureza, privado da segurança necessária, lesiona, já por esse estado, aquele
219
JACOKBS Günther. Direito penal do Inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2005.
159
que está ao seu lado, mesmo que não seja de maneira ativa, pela simples ausência de
legalidade de seu estado (status iniusto), que ameaça constantemente os demais. Em
assim sendo, argumenta o autor deve ser obrigado a entrar em um estado comunitário
legal ou abandonar a vizinhança.220
Conseqüentemente, quem não participa na vida de um estado comunitário legal,
deve retirar-se, o que significa ser expelido (ou impelido à custódia da segurança); em
todo caso, não há que ser tratado como pessoa. Pode, não obstante, ser tratado, como
anota expressamente Kant, como inimigo. Frente a essa concepção do outro, como
diferença, restaria questionar quem seriam hoje os inimigos?
E a teoria responde: podem ser considerados inimigos os criminosos
econômicos, os terroristas, os delinqüentes organizados, os autores de delitos sexuais e
outras infrações penais perigosas, ou todos aqueles que se afastam de modo permanente
do estado de direito, não oferecendo à sociedade garantias cognitivas mínimas de que
venha saldar eventual sanção, quando do descumprimento da norma.
O inimigo, pensado por Jacokbs, não é um sujeito processual, sendo-lhe
suprimido o gozo dos direitos e garantias individuais, do devido processo legal, do
contraditório, da ampla defesa, da vedação de obtenção de prova ilícita ou obtida por
meios ilícitos, cabendo ao estado, segundo o imperativo dessa tese doutrinária, uma
postura de não reconhecimento de seus direitos. O procedimento, argumenta Jacokbs, a
ser adotado contra o inimigo seria um procedimento de guerra, não se justificando a
adoção de um procedimento penal legal, acobertado pelos direitos e garantias
individuais.
O raciocínio entabulado em relação ao inimigo faz crer que quem não oferece
segurança cognitiva suficiente, demonstrada por um comportamento pessoal que
corresponda às exigências de um estado de direito, não só não deve esperar ser
tratado como pessoa, senão que o estado não deve considerá-lo como pessoa, pois,
do contrário, vulneraria o direito à segurança das demais pessoas.
220
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo: Martin
Claret, 2003.
160
Há, não obstante, uma pergunta diante da qual insistemente todos se calam.
Aquela referente às responsabilidades, isto é, às razões que levam alguém a portar-se
como inimigo. A história da humanidade, em sua construção cultural, realizou-se
sempre no sentido da existência de práticas de submissão dos indivíduos em nome do
bem comum. Argumentos que pretendem isolar, a tal ponto que implique o
aniquilamento daquele que se mostrar alheio ao contrato social, não são práticas novas
de uma sociedade em crise: esse procedimento, nominado de outras formas, sempre foi
erigido em nome da saúde e do vigor das populações, da segurança pública. Dos
desmandos do poder. Os argumentos daqueles que pretendem dispor dos corpos
humanos como objetos de manejo político são construídos a partir de um discurso que
contempla e que pretende legitimar a existência de dois mundos: um regido por leis e
normas éticas; e outro ao qual essas normas não se aplicam. 221
E é, nesse contexto de vida matável, vida sobre a qual o estado tem ingerência,
que o direito penal do inimigo é acolhido: aniqulia-se todo aquele a quem o Estado
elege como desviante_ não cidadão. Essa construção teórica, aliás, nada mais é do que
um exemplo de direito penal de autor, que pune o sujeito pelo que ele é, opondo-se ao
direito penal do fato, que pune o agente pelo que ele fez. Esta proposta, na verdade,
pouco se distancia do nazismo. O direito penal do inimigo reporta-nos a esse trágico
período, pois opera uma nova demonização de alguns grupos de delinqüentes.
Demonizando o inimigo, fazendo-o com que o mesmo figure como
conseqüência de todas as inações do Estado, implica em vê-lo como ser destituído de
direitos: não se reprova, segundo o direito penal do inimigo, a culpabilidade do agente,
sim, sua periculosidade, não se reprova o que ele fez e sim o que ele é. 222
A distinção desenhada com direito penal para/do inimigo, porém não é práxis
somente da contemporaneidade: a dicotomia no tratamento dos corpos foi delineada sob
diversos argumentos no transcorrer da história, porém a distinção realizada sempre
221
No fim o século 20 (1998-2000) foram conduzidas as pesquisas sobre HIV na África a partir de um
estudo com mulheres grávidas portadoras do vírus. Esses estudos suscitaram críticas da comunidade
científica às quais os pesquisadores responderam defendendo a necessidade de aceitar a existência do
chamado “relativismo ético” ou “duplo standartd”. Argumenta-se que é possível não aceitar as normas
que constam na Declaração de Helsinque (1996) por tratar-se de pesquisas realizadas em sociedades
pobres, sem condições de ministrar assistência à população, cujos governos se manifestam favoráveis à
realização das mesmas.
161
enquadrou a sociedade, marcando a existência de corpos cuja saúde exige cuidados, que
devem ser maximizados, melhorados, otimizados, e a existência de populações de
indivíduos, considerados postos fora da jurisdição humana, que merecem ser adestrados
para servirem aos fins a que a sociedade política os relegou.223 224
No século XVIII, inicia-se uma nova administração dos corpos e uma nova
gestão calculada da vida. Essa nova forma de administração permite a emergência de
uma rede de saber sobre as populações que inclui estudos estatísticos sobre demografia;
taxas diferenciais de mortalidade; registros de nascimento e doenças; conhecimento da
distribuição, concentração e controle das epidemias. Então, e pela primeira vez na
história, o biológico ingressa no registro da política: a vida passa a entrar no espaço do
controle de saber e da intervenção do poder. O sujeito, na qualidade de sujeito de
direitos, passa a ocupar um segundo plano em relação à preocupação política por
maximizar o vigor e a saúde das populações: a vida paara a ingressar no domínio dos
cálculos explícito do Estado, sendo que este estrutura seu poder na gestão da omitização
dos corpos.
As políticas públicas a partir desse momento histórico estavam voltadas,
inclusive, para a omitização ou não dos corpos, para seu gerenciamento, higinização, a
disponibilização do direito a saúde em certas regiões e sua desconsideração em outras.
225
É a idéia de que é preciso definir e redefinir o normal em contraposição àquilo
que se lhe opõe, isto é, a figura dos anormais, incorporada logo à categoria de
degeneração que se inscreve nas margens do jurídico. Esses sujeitos se definem, como
afirma Agamben, por seu caráter de exceção: são aqueles que o estado mais sujeita
222
Nesse sentido GÜNTER, Jakobs. Derecho penal del enemigo. Madrid: Civitas, 2003, p. 59
AGAMBEM, Giorgio. Homo sacer O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002.
224
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1989, p.23. “Foucault aponta esse
deslocamento significativo nas estratégias de poder, o controle da sociedade sobre os indivíduos não se
opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no
biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma
realidade bio política.”
225
Os estudos e as estratégias eugênicas são as que melhor definem as características dessa biopolítica da
população que, ao mesmo tempo em que se propõe ao melhoramento da raça e da espécie, parece precisar
do controle e da submissão de corpos sem direito, que se configuram como simples vida nua, vida que se
mantém nas margens, vida que pode ser submetida e aniquilada, vida de qual o estado se vale para seus
experimentos, a vida submetida a tortura, a vida número, massa de manobra passível de ser atacada por
uma bomba nuclear, como aconteceu em Hiroschima.
223
162
explicitamente, pois maneja com seus corpos de maneira a otimizá-los ou a aniquilá-los,
conforme os objetivos políticos a que se propõe.226
Assim, sempre houve no transcorrer da história da humanidade seres humanos
tidos como inimigos e assim tratados com delitos atrozes e uma discriminação que se
operou a priori: esse também é o caso do direito penal do/para o inimigo. Tomando
emprestadas as palavras de Giorgio Agamben em Homo Sacer, pode-se afirmar que:
a questão correta sobre os horrores cometidos não é, portanto,
aquela que pergunta hipocritamente como foi possível cometer delitos tão
atrozes para com os seres humanos; mais honesto e sobretudo mais útil seria
indagar atentamente quais procedimentos jurídicos e quais dispositivos
políticos permitiram que seres humanos fossem tão integramente privados de
seus direitos e de suas prerrogativas, até o ponto em que cometer contra eles
qualquer ato não mais se apresentava como delito.227228
Na visão do direito penal do inimigo os indivíduos deixam de ser sujeitos de
direito e passam a ser encarados como corpos-espécies, isto é, corpos limitados não só a
seu estatuto vital, respondendo, também, aos desmandos dos Estados: é trazido à tona,
como formulação doutrinária, construção jurídica que pretende legitimar o tratamento
de qualquer pessoa humana como não cidadão, sujeito que não tem direito a direitos.
226
AGAMBEM, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002,
p.43 “Para se compreender melhor esse raciocínio, convém lembrar com Agamben, que a exceção se
situa em posição simétrica em relação ao exemplo, com o qual forma um sistema. Esta constitui um dos
modos pelos quais um conjunto procura fundamentar e manter a própria coerência. Mas, ela tem uma
função estratégica, ela auxilia na conformação da identidade de um grupo, pois a relação de exceção é
uma relação de bando. Aquele que foi banido não é, na verdade, simplesmente o que foi posto fora da lei
ou é indiferente a esta, mas o que foi abandonado por ela, ou seja, exposto e colocado em risco no limiar
em que vida e direito, interno e externo se confundem.”
227
AGAMBEM, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
228
Vale considerar quando se pensa em direito penal do/para inimigo que os novos dispositivos políticos
que aqui entram no jogo já não dizem respeito a sujeitos de direito, nem a cidadãos que pertencem a uma
determinada nação ou estado. No registro da biopolítica da população, as leis são substituídas pelo
império dos fatos, pela urgência e o imediatismo dos governantes que pretendem domar os corpos aos
seus propósitos políticos, transformando-os em objeto de manipulação direta da ideologia. O que entra em
jogo aqui já não é o direito à vida ou à saúde dos pacientes, membros de uma comunidade política; o que
se converte em objeto de pesquisa é, nas palavras de Foucault, o corpo espécie, aquilo que Agamben
denomina de vida nua, algo semelhante ao que, para Hannah Arendt, representa o espaço da necessidade
vital muda e silenciosa. Nessa perspectiva, o sujeito político é identificado com o domínio das
necessidades vitais; o corpo deixa de ser de alguém, para ser transformado em um elemento na mecânica
geral dos seres vivos, que serve de suporte aos processos biológicos de nascimento, mortalidade, saúde,
epidemias.
163
Volta-se novamente a pergunta formulada por Agamben quais dispositivos
políticos que permitiram que essa ordem de coisas fosse aceita? Pode-se responder a
essa questão fazendo referência ao estreito vínculo que, a partir do séc XIX, se deu entre
a vida e a política. O autor questiona também quem são esses sujeitos que foram
privados de seus direitos? Os sujeitos escolhidos são em geral a população (pobre)
necessitada de assistência econômica, cultural, social, psicólgica e médica: a clientela
do direito penal.229
O processo normal e quotidiano da socialização global pelos mercados implica o
não reconhecimento permanente de inúmeras existências humanas, normalmente
àqueleas que por circunstâncias econômicas estão à margem dos direitos e das
possibilidades de consumo. Isso se confirma na prática (a descartabilidade e a não
concessão de direitos a todos àqueles que se opõe ao mercado capitalista) quando os
bombardeiros high-tech dos Estados Unidos largam a sua carga mortal estão, também,
a utilizar, embora de maneira ativa e violenta, a mesma lógica que, no dia-a-dia, se
aplica passivamente, sem ruído e numa escala bem maior, através do sistema econômico
que flagela a fome todo o terceiro mundo. Todos os anos, milhões de seres humanos,
entre os quais muitas crianças, morrem de fome e de doenças pela simples razão de não
serem solváveis, isto é, não terem com o que/como pagar e assim sendo não tem
direito aos direitos, vistos também como não cidadãos. 230
Claro que o universalismo ocidental sugere o reconhecimento sem limites de
todos os indivíduos como homens a priori, porém são as regras do mercado que estão a
constituir o fundamento de todos os direitos só atribui direitos àqueles que tem algo a
dar em troca para o mercado capitalista. Não sendo assim nãoi serão sujeitos de direitos.
229
Assim, quando analisamos o modo como recentemente foram construídas certas pesquisas de uma das
epidemias emergentes que mais desafios apresentam para os pesquisadores, a AIDS, vemos reiterarem-se
os mesmos procedimentos e argumentos que caracterizaram os estudos médicos e epidemiológicos do
século 19 e inícios do século 20. Hoje as pesquisas com seres humanos relativas à AIDS concentram-se
na África, onde a incidência da doença atinge, em algumas populações, até 50% dos habitantes.
230
Observe-se que foi sempre em nome de princípios ideais, que exércitos foram postos em marcha, que
se mataram homens, se devastaram países e se destruíram cidades. A mais recente potência mundial e os
seus vassalos não fogem à regra: no Iraque, junto com porta-aviões, tanques e helicópteros de combate,
foi mais uma vez mobilizada a idéia dos direitos do homem como legitimação para as atrocidades
cometidas. Se existe um direito à vida e à integridade física, como se pode aceitar que as intervenções
militares ocidentais matem mais inocentes do que os crimes dos ditadores e dos terroristas?
164
A contradição aparente dissipa-se quando se examina a definição de homem sob
a ótica do mercado capitalista, na qual assenta este paradoxo. A primeira proposição
desta definição diz: o homem é por princípio aquele que é solvável. O que, pela inversa,
quer dizer que, por princípio, o indivíduo totalmente insolvável, isto é, que nada pode
pagar, não pode ser um homem é não cidadão. Quanto mais um ser for solvável, mais se
parecerá com um homem, e quanto menos preencher esse critério, mais se afasta desse
estatuto.231
Pensando nessa ótica estritamente capitalista e utilitária do ser humano,
premissa, aliás, na qual se pauta o direito penal do inimigo, só um ser capaz de ganhar
dinheiro pode ser um sujeito de direito. A capacidade de participar de uma relação de
direito está, assim, ligada à de participar, de uma forma ou de outra, do processo de
valorização do capital. Segundo essa definição, o homem tem de ser capaz de trabalhar,
tem de ter qualquer coisa para vender, no limite, até os órgãos do seu corpo. A sua
existência deve preencher o critério da rentabilidade. É esta a condição silenciada
do/pelo direito moderno em geral, e, por conseguinte, também dos direitos do homem
faz questionar o próprio direito como marco evolutivo do ser humano.232
231
NEGRI, A.; HARDT, M. Império. São Paulo: Record, 2001, p.42 “Se o imperialismo diz respeito à
soberania moderna, em que temos o Estado-nação como o poder central exercido em um território, o
império, por sua vez, emerge em uma nova situação de soberania, marcada pelas fronteiras flexíveis,
pelas novas redes de comunicação e controle surgidas com as novas tecnologias, pelo poder das
corporações transnacionais, por novas formas pós- industriais de produção e de trabalho, por novas
concepções de identidade e diferença, por novos racismos e controle da migração. Para situarem o biopoder, traçam algumas diferenças entre a sociedade disciplinar e a de controle. Em relação à primeira
afirmam que: a sociedade disciplinar é aquela na qual o comando social é construído mediante uma rede
difusa de dispositivos ou aparelhos que produzem e regulam os costumes, os hábitos e as práticas
produtivas. Consegue-se pôr para funcionar essa sociedade, e assegurar a obediência a suas regras e
mecanismos de inclusão e/ou exclusão, por meio de instituições disciplinares (a prisão, a fábrica, o asilo,
o hospital, a universidade, a escola e assim por diante) que estruturam o terreno social e fornecem
explicações lógicas adequadas para a ‘razão’ da disciplina. O poder disciplinador se manifesta, com
efeito, na estruturação de parâmetros e limites do pensamento e da prática, sancionando e prescrevendo
comportamentos normais e/ou desviados.
232
Nesse sentido NEGRI, A.; HARDT, M. Império. São Paulo: Record, 2001, p.42-43 “ Bio-poder: o
poder voltado para a produção e reprodução da própria vida, mecanismos de comando e tornam cada vez
mais ‘democráticos’, cada vez mais imanente ao campo social, distribuídos por corpos e cérebros dos
cidadãos. Os comportamentos de integração social e de exclusão próprios do mando são, assim, cada vez
mais interiorizados nos próprios súditos. O poder agora é exercido mediante máquinas que organizam
diretamente o cérebro (em sistemas de comunicação, redes de informação etc.) e os corpos (em sistemas
de bem-estar, atividades monitoradas etc.) no objetivo de um estado de alienação independente do sentido
da vida e do desejo da criatividade. A sociedade de controle pode, dessa forma, ser caracterizada por uma
intensificação e uma síntese dos aparelhos de normalização de disciplinariedade que animam
internamente nossas práticas diárias e comuns, mas, em contraste com a disciplina, esse controle se
estende bem para fora os locais estruturados de instituições sociais mediante redes flexíveis e flutuantes..
165
Assim, o direito implica, na sua própria essência, uma relação de inclusão e de
exclusão Como já se viu acerca do caráter aparente da solvabilidade, trata-se do
domínio de uma abstração social, incarnada na forma monetária e, portanto, no direito.
Essa forma abstrai precisamente a existência física, as necessidades biológicas, sociais e
culturais dos homens para os reduzi-los à existência nua, enquanto unidades de
dispêndio de energia, para o fim em si da valorização monetária. O homem, evocado
nos direitos do homem, é exclusivamente o homem abstrato, portador e ao mesmo
tempo servidor da abstração social dominante. E só este homem abstrato é
universalmente reconhecido pelos direitos do homem, pois o homem que está em
superlotação no cárcere ou tortura em Guantánamo, para essa acepção do direito é nãohomem, não cidadão, sujeito que não tem direito aos direitos.
Contudo, isso significa que esse reconhecimento inclui, ao mesmo tempo, um
não reconhecimento, uma exclusão, uma estigmatização. As necessidades materiais,
sociais e culturais estão, precisamente, excluídas desse reconhecimento fundamental. O
homem reconhecido pelos direitos do homem só o é enquanto ser reduzido à abstração
social; primeiramente, como bem diz Agamben, começa-se por reduzi-lo a uma vida
nua, definida por uma finalidade que lhe é estranha. O famoso reconhecimento não é
mais do que uma reivindicação sobre a vida dos indivíduos, obrigados a sacrificar essa
vida à função, tão banal quanto realmente metafísica, de valorização infinita do dinheiro
pelo trabalho. Só depois disso, secundariamente, para um resto de vida que afinal só
lhes serve para se regenerarem para o mesmo objetivo totalitário. Dessa forma, a
satisfação das suas necessidades não passa de um subproduto deste movimento
autônomo metafísico do dinheiro, ao qual eles são entregues precisamente pelo
reconhecimento enquanto sujeitos abstratos do direito.
Esse reconhecimento paradoxal do homem abstrato pelo não reconhecimento do
homem concreto, social e real extrai sua singular força de persuasão do fato de que o
pior é sempre possível. Isso porque o não reconhecimento relativo, contido neste
reconhecimento exclusivamente abstrato, pode sempre transformar-se em não
reconhecimento absoluto: os homens que são expulsos do fim em si totalitário
capitalista, perdem, por esse fato, qualquer possibilidade de serem sujeitos e ficam então
166
completamente fora da capacidade de serem reconhecidos; saem completamente dessa
definição do homem.233
Se o reconhecimento é apenas negativo e exige uma submissão, os excluídos
escapam ainda menos à exigência totalitária do sistema. A submissão dos homens a essa
forma abstrata tira os seus galões do fato de essa submissão se revelar vantajosa, se
comparada com os que já não são sequer submissos, mas completamente extraídos da
humanidade.234
Segundo essa definição, entre a simples existência humana e o direito de
submissão cria-se esse vazio sistemático. Logo, os indivíduos não são naturalmente
homens, só podendo tornar-se seres humanos e sujeitos de direito quando passarem por
um processo de reconhecimento seletivo. Este processo de seleção pode ser objetivo,
isto é, segundo as leis da valorização e a situação do mercado; ou ser conduzido
subjetivamente, ou seja, segundo definições ideológicas ou estatais de amigo ou
inimigo. A verdadeira existência dos indivíduos pode, por esse processo, ser rejeitada da
mesma forma que uma mercadoria não reconhecida pelo mercado é considerada inútil.
E, como último recurso, os bombardeamentos, ou, como ultima ratio, as armas
nucleares põem definitivamente um termo ao processo de reconhecimento,
transformando realmente os indivíduos, cujo reconhecimento já não se pode assegurar,
em matéria inerte passível de explosão/implosão.
Para isso, a promessa dos direitos do homem é, já em si mesma, uma ameaça:
quando as condições não explicitadas que definem o homem na modernidade não
podem ser preenchidas não há reconhecimento. Vale salientar, porém que todosw nós
em algum momento poderíamos catalogados nessa categoria: nos dias que correm, a
maioria dos humanos já não pode preencher esses requisitos, mesmo que se esforcem,
até ao autosacrifício, por se submeter à forma abstrata do dinheiro e “do direito”.
233
KURZ, Robert. Os paradoxos dos direitos do homem. Publicado em 27/11/99, Caderno Mais, Folha de
São Paulo.
234
KURZ, Robert. Os paradoxos dos direitos do homem. Publicado em 27/11/99, Caderno Mais, Folha de
São Paulo.
167
Tudo parece ser permitido nessa lógica na qual os sujeitos necessitados podem
ser utilizados em beneficio do melhoramento do vigor, da vida e da saúde das
sociedades opulentas: um exercício de biopolítica da população, que reproduz as velhas
estratégias de poder próprias do sec. XIX, tão utilizadas e bem aceitas quando as
pesquisas se referiam aos sujeitos sem direito que habitavam as colônias pobres.235
236
237
A grande novidade que se produz no mundo moderno, da qual falam Foucault,
Arendt e Agamben, está dada pela identificação entre o vital e o político. No mesmo
momento em que o homem moderno conquista os direitos que se pretendem universais,
é o domínio do vital que entra em questão. A vida, o corpo, a saúde, as necessidades, a
reprodução, que antes faziam parte da esfera pré-política, transformam-se em questões
políticas por excelência, então, passíveis de manipulação por quem detém o manus do
poder. As estatísticas contribuem para dotar esse processo de maior objetividade: taxas
de mortalidade e morbidade, taxas de natalidade, concentração de epidemias e doenças.
Há todo um novo domínio de saber e de intervenção política que se refere
exclusivamente ao espaço do vital e a seus fenômenos correlatos: de natalidade,
reprodução e morbi-mortalidade.
235
De fato, a resposta dada à demanda internacional sobre um posicionamento ético dos esquisadores
quando se questionou os limites os quais toda pesquisa deve respeitar foi a seguinte: Nossas pesquisas
não são realizadas conforme as regras da ética? Pois bem, mudemos as regras da ética. A dificuldade
está na nova posição geográfica dos pesquisadores americanos e europeus que até os anos 90 conduziam
suas pesquisas com sujeitos de seus próprios países. O peso econômico e as restrições éticas e legais que
são exigidas no Primeiro Mundo não são idênticas às exigidas nos países pobres. Aquilo que antes da
Declaração de Helsinque (e ainda depois desta declaração como o evidencia o Caso Tuskegee) podia
acontecer no interior de cada país com as populações consideradas marginais e que décadas de discussão
impediram de continuar a acontecer, hoje foi deslocado dos indivíduos que estão nas margens da
sociedade (loucos, delinqüentes) para as populações carentes dos países localizados nas margens do
mundo: os países mais pobres do Terceiro Mundo.
236
Lembremos que a Declaração de Helsin-que, de 1964, afirma que o bem-estar de cada sujeito
(pertença ou não a um grupo vulnerável) deve prevalecer sobre as necessidades da ciência ou da
sociedade. No entanto, parece que quando passamos essa afirmação para escala planetária, ela tende a
perder sua força.
237
Essas populações, situadas nas margens, deixam de ser pensadas como sujeitos de direito passando a
ser consideradas, exclusivamente em termos de corpos vivos que, para poder contar com algum tipo de
assistência, devem contribuir para a construção de um conhecimento aplicável a todos. Foucault
considera fato determinante da construção das sociedades modernas o processo pelo qual a vida, isto é, a
vida nua, a vida natural que compartimos com os animais, passa a ser investida por cálculos
explícitos e por estratégias de poder. O momento em que a vida ingressa, como elemento privilegiado,
no registro da política.
168
Mas existe outra face, obscura, desse mesmo processo: se a condição humana é
definida pela vida política e pelo diálogo argumentativo entre iguais, isto é como zoon
logon ekhon (como ser vivo capaz de fala), seu contrário, como afirma Arendt, o que
caracteriza a vida nua e sem conseqüência política é o aneu logou (sem logos), é uma
vida sem significação alguma, uma vida que se esgota no próprio fato da
sobrevivência, na sua característica única de ser vivo. A esse corpo espécie não
correspondem outros direitos mais que sua natalidade, sua reprodução e sua morte. Ela
pertence
inteira
mente
ao
registro
do
biológico,
da
pura
corporeidade.
Conseqüentemente, suas conquistas e lutas prescindem de argumentos e devem estar
fundados na aceitação passiva de ordens ou na violência e na força. Em outras palavras,
se antes a pertinência às redes de sentido e de existência, aos modos de vida e aos
territórios subjetivos dependia de critérios intrínsecos, tais como tradições, direitos de
passagem, relações de comunidade e trabalho, religião, sexo, hoje, cada vez mais, esse
acesso é mediado por pedágios comerciais, impagáveis para uma grande maioria. O que
se vê então é uma expropriação das redes de vida da maioria da população, através de
mecanismos cuja inventividade e perversão parecem ilimitadas.238 239
Assim, esses sujeitos não reconhecidos como cidadãos com direitos e deveres,
mas como pura e nua corporeidade, passam a ocupar esse espaço politicamente perigoso
e ambíguo de uma vida nua são apenas números nas estatísticas dos governos
facilmente esquecíveis e deletáveis: esse é o perigo de nãoi colocar sob a jurisdição
humana uma parcela dessas estatísticas os inimigos do estado, que devem ser tratados
segundo as lições de Jackobs como não- pessoas.
238
MACHADO, Arlindo. Máquina e imaginário: o desafio das poéticas tecnológicas. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 1996 “As máquinas de vigiar representadas por computadores, satélites,
máquinas fotográficas, objetivas, microfones, visores, gravadores etc são olhos mecânicos que varrem de
forma macro e micro continentes e corpos interligados em tempo real, que nos incitam a pensar e
vivenciar o movimento se concluindo. Multiplicando-se em uma progressão geométrica, em todos os
lugares, essas máquinas com seus olhares técnicos, impessoais e de forma indolor nos recortam e
desvendam nossas intimidades com um voyeurismo automático e despudorado. O olho voraz e verossímil
traz a imagem capturada pela câmera e se projeta com uma instantaneidade e com uma clareza de
detalhes tamanhas que o nosso tempo torna-se o tempo de um movimento onde coisas são criadas. O
momento ou lugar onde elas eram capturadas pelo sensível tornou-as, agora, obsoletas, descartáveis ou
mesmo inverossímeis.
239
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1989
169
Em contraposição à lógica colonialista, hoje resulta necessário enunciar e
justificar o que antes não precisava ser justificado: a existência de dois mundos, o
mundo dos direitos e aquele das exceções, o mundo dos corpos que devem ser cuidados
e o mundo habitado por aqueles que têm o estatuto de vida nua, de vidas que foram
postas fora da jurisdição humana de modo tal que a violência cometida contra eles não
constitui nenhum sacrilégio. 240
“Homo sacer uma pessoa é simplesmente posta para fora da
jurisdição humana sem ultrapassar para a divina”. De fato, a proibição da
imolação não apenas exclui toda equiparação entre o homo sacer e uma
vítima consagrada, mas, como observa Macróbio citando Trebácio, a licitude
da matança implicava que a violência feita contra ele não constituía
sacrilégio, como no caso das res sacrae (cum cetera sacra violari nefas sit,
hominem sacrum ius fuerit occidi). Se isto é verdadeiro, a sacratio
configura uma dupla exceção, tanto do ius humanum quanto do ius
divinum, tanto do âmbito religioso quanto do profano. A estrutura
topológica, que esta dupla exceção desenha, é aquela de uma dúplice
exclusão e de uma dúplice captura, que apresenta mais do que uma
simples analogia com a estrutura da exceção soberana.241
A margem de liberdade para dar respostas aos fatos é quase inexistente, fazendo
com que os sujeitos envolvidos possam passar facilmente ao estatuto de cobaias, de não
pessoas e vida matável, pois quando os Estados estão projetando seus palnos
estratégicos não estão aparentemente a lidar com pessoas e sim com a representação
delas através de números (o que faz com quem se opere facilmente essa abstração, essa
coisificação do ser humano). Esses números definem nessa mjedida facimente os corpos
exclusivamente como corpo espécie, como vida nua, destituídos de sua subjetividade
inteclectual e sua objet6ividade física, figuram assim, como seres alheios a jurisdição
humana, seres sem cidadania nem direitos, alguém que qualquer um pode matar
impunemente.
240
ARENDT, Hannah. La condición humana. Siglo XXI, México: Benchimol, 1993
AGAMBEM, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2002, 145. “A biopolítica, modalidade de exercício do poder própria dos estados modernos, no momento
em que garante a sobreposição entre vida e política, possibilita que com um mesmo gesto, sejam definidas
as populações que pertencem ao espaço da vida nua e aquelas que fazem parte da vida ativa, isto é, da
condição humana que deve ser cuidada, estimulada, multiplicada. Atente-se ao fato de que, para
multiplicar a vida e o cuidado com os cidadãos, para garantir seus direitos, seu vigor e sua saúde, pode
resultar legítimo admitir como precondição o uso experimental de seres humanos sem que eles se
beneficiem dos melhores meios diagnósticos e terapêuticos existentes, como é exigido pela Declaração de
Helsinque 1996, ainda em vigor.”
241
170
Aquilo que define a condição do homo sacer, então, não é tanto a pretensa
ambivalência originária da sacralidade que lhe é inerente, quanto, e sobretudo, o caráter
particular da dupla exclusão em que se encontra preso e a violência à qual se encontra
exposto. Esta violência – a morte insancionável que qualquer um pode cometer em
relação a ele – não é classificável nem como sacrifício e nem como homicídio, nem
como execução de uma condenação e nem como sacrilégio. Subtraindo-se às formas
sancionadas dos direitos humano e divino, ela abre uma esfera do agir humano que não
é a da ordem do sagrado e nem da ação profana. 242
Trata-se de uma esfera-limite do agir humano que se mantém unicamente em
uma relação de exceção. Esta esfera é a da decisão soberana, que suspende a lei no
estado de exceção e assim implica nele a vida nua. A politização da vida nua, a
biopolítica faz interrogar tematicamente a relação entre vida nua e política que governa
secretamente as ideologias da modernidade aparentemente mas distantes entre si poderá
fazer sair o político de sua ocultação e, ao mesmo tempo, restituir o pensamento à sua
vocação prática.
Os atos de auto-imolação espetacularizada que esses jovens protagonizam em
suas rebeliões, diante das tropas de choque e das câmaras de televisão, não seriam a
tentativa de reversão a partir desse mínimo que lhes resta, isto é, o corpo nu, o corpo não
cidadão, o corpo destituídos de direitos? E para impossibilidade do Estado em conter
essa insurreição que foi criado o direito penal do inimigo. Ora, o direito penal do
inimigo é uma construção doutrinária explicitamente expansionista, constituindo-se em
um discurso jurídico penal voltado mais à segurança nacional do que ao respeito as
liberdade individuais (aliás ignora esse preceito a uma parcela da população). É uma
posição doutrinária suis generis, no qual são esquecidas ou mitigadas às liberdades
individuais: os suspeitos são tratados como criminoso de guerra e a razoabilidade e o
devido processo legal ficam em segundo plano, justificados pela urgência de um estado
de segurança que, muitas vezes, não é garantido por tais atos.
242
243 244 245 246
AGAMBEM, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2002, 145.
243
BOSCHI, Antonio Paganella. Das penas e de seus critérios de aplicação. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2000. “No estágio atual de desenvolvimento da ciência penal, os estudiosos tendem a se
distribuir entre dois grupos distintos e antagônicos: há de um lado, os que se propõem o uso
preponderante do direito penal como instrumento de contenção das demandas sociais relacionadas com
171
No caso da teoria do direito penal do inimigo, não se segue um procedimento
democrático, isto é, o devido processo legal, mas sim, um verdadeiro procedimento de
guerra. Entretanto, essa lógica de guerra da intolerância, do “vale tudo” contra o
inimigo não se coaduna com o estado de direito.
O direito penal do inimigo não repele a idéia de que as penas sejam
desproporcionais; ao contrário, como se pune a periculosidade, não entra em jogo a
questão da proporcionalidade, em relação aos danos causados. Os autores do fatídico 11
de setembro de 2001 enquadram-se no perfil de inimigo, porque suas ações externam
manifestação inequívoca de um ato típico de alguém que não pretende ingressar no
estado de cidadania, não podendo, assim, segundo Jacokbs, participar dos benefícios do
conceito de pessoa.
Ora, o direito penal do inimigo corresponde à constatação da impotência do
estado em dar sustentação a um estado formal de direito, em garantir sua soberania e em
dar seguridade jurídica ao cidadão, tendo em vista que a criminalidade organizada e
transnacional, agora com ênfase ao terrorismo, trabalha com um nível de lesividade
social que exacerba todos os parâmetros. Esta criminalidade, perpetrada muitas vezes
através de atos de terror, visa ao estabelecimento de um estado de guerra, criando um
o crime e a criminalidade e, de outro, aqueles que advogam a tese de que o direito penal só serve só deve
ser convocado a atuar como um soldado de reserva, se fracassarem os instrumentos oficiais de cunho
político, administrativo ou social; direito penal mínimo ou minimalismo é uma proposta redutora da
incid6encia do direito penal e simultaneamente maximizadora do Estado Social”.
244
GÜNTER, Jakobs. Derecho penal del enemigo. Madrid: Civitas, 2003.
245
Günter Jakobs, tido como um dos mais brilhantes discípulos de Welzel, foi o criador do funcionalismo
sistêmico (radical), que sustenta que o direito penal tem a função primordial de proteger a norma (e só
indiretamente tutelaria os bens jurídicos mais fundamentais). No seu mais recente livro (Derecho penal
del enemigo, Jakobs, Günter e Cancio Meliá, Manuel, Madrid: Civitas, 2003), abandonou claramente sua
postura descritiva do denominadodireito penal do inimigo (postura essa divulgada primeiramente em
1985, na Revista de Ciência Penal - nº 97, 1985, págs. 753 e seguintes), passando a empunhar (desde
1999, mas inequivocamente a partir de 2003) a tese afirmativa, legitimadora e justificadora dessa linha de
pensamento.”
246
GÜNTER, Jakobs & MELIÁ Manuel Cancio. Derecho penal del enemigo. Madrid: Civitas, 2003 Por
consiguiente, HOBBES y KANT conocen un Derecho penal del ciudadano – contra personas que no
delinquen de modo persistente, por principio – y un Derecho penal del enemigo contra quien se desvía
por principio; éste excluye, aquél deja incólume el status de persona. El Derecho penal del ciudadan es
Derecho también en lo que se refiere al criminal ; éste sigue siendo persona. Pero el Derecho penal del
enemigo es Derecho en outro sentido. Ciertamente, el Estado tiene derecho a procurarse seguridad
frente a individuos que reinciden persistentemente en la comisión de delitos; a fin de cuentas, la custodia
de seguridad es uma institución jurídica. Más aún: los cuidadanos tienen drecho a exigir del Estado que
tome las medidas adecuadas, es decir, tienen un derecho a la seguridad, com base em el cual HOBBES
fundamenta y limita al Estado: finis oboedientiae est protectio”.
172
campo de batalha no cotidiano do cidadão comum, às vezes vítima de uma ação, cuja
origem e motivos desconhece. 247
Inquestionável é o fato de que, ao se fazer a distinção difusa, digamos de
passagem, entre aquele que está disposto a integrar o contrato social e aquele que
pretende negá-lo, necessárias se fazem algumas reflexões: não seria a própria
inoperância do estado e da sociedade como um todo de dar perspectivas reais – sociais,
econômicas, físicas, espirituais – de socialização aos cidadãos, que os fazem tão à
margem desse contexto social?
Os que distinguem os indivíduos, classificando-os, enquadrando-os, avocam
para si um poder discricionário imenso, arma perigosa que pode por em risco a própria
democracia, se se fizer dela uma utilização abusiva indiscriminada. É preciso ter
presente que ingerências excessivas nos direitos fundamentais podem indicar uma
decomposição do caráter democrático do estado de direito.
É verdade que essa concepção expansionista do direito penal aparece como uma
tentativa da abafar a proliferação de organizações criminosas nacionais e transnacionais
e de estados paralelos ao estado de direito que governam vastos territórios no Brasil e
no mundo. Mas, essa construção teórica, já adotada, na prática, por alguns países,
defende também, a idéia da flexibilização do princípio da legalidade da lei, admitindo a
possibilidade da existência de tribunais de exceção, a descrição típica obscura ou de
uma maneira não precisa, ou seja, a apuração de processos regidos pelo inquisitório,
sem o devido processo legal.
Na mesma seara de desproporcionalidade entre os fatos e a atribuição das penas,
o discurso do direito do inimigo dá ensejo a procedimentos não acobertados pelos
direitos e garantias fundamentais, tais como a descabida e exagerada antecipação da
tutela penal; a concessão de prêmios ao inimigo delator – delação premiada ou
colaboração premiada –; e o uso e abuso de medidas preventivas ou cautelares como a
interceptação telefônica sem justa causa, ou a quebra de sigilos sem autorização judicial.
173
Ora, em um regime democrático, pressupõe-se o pleno gozo das liberdades
individuais e veda-se qualquer tipo de ingerência do estado, acontecida ao arrepio da lei.
As limitações aos direitos fundamentais impostos por uma constituição são variáveis,
conforme os direitos positivados naquela constituição e dependem do regime a regê-la.
Em relação a uma sociedade democrática, é inadmissível a possibilidade de privação,
restrição ou suspensão de direitos por exercício contrário à sociedade democrática ou às
finalidades da constituição, impossibilitando a ocorrência de qualquer restrição que não
esteja fundada na constituição, ou em princípios e preceitos constitucionais.
Professa Miranda, ao se posicionar em relação à restrição dos direitos
fundamentais, que se o princípio é a liberdade, a restrição não se lhe pode sobrepor.
Assim: (a) nenhuma restrição podem deixar de se fundar na constituição, ou em
princípio ou preceitos constitucionais, ou de se destinar a salvaguardar de direitos e
interesses constitucionalmente protegidos; (b) nenhuma restrição pode ser definida ou
concretizada senão por lei, não podendo haver regulamentos restritivos de direitos, não
podendo a administração exigir para esse efeito a não ser com fundamento na lei e no
exercício de um poder vinculado; (c) as leis restritivas tem se que se revestir de caráter
genérico e abstrato; (d) as leis restritivas apresentam-se como inovadoras ou como
interpretativas, não podendo ter efeito retroativo, porque as leis retroativas envolveriam
pessoas e atos determinados ou determináveis e, por conseguinte, não revestiriam de
caráter geral e abstrato e ofenderiam a confiança dos cidadãos; (e) as leis restritivas não
podem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos direitos, não podendo
transformar em causa a finalidade dos direitos ou retirar qualquer sentido prático ao seu
exercício; (f) as restrição estão sujeitas ao princípio da proporcionalidade, só podendo
ser estabelecidas quando os fins, os interesses e os valores constitucionais somente
através deles puderem ser protegidos, devendo, em cada caso, realizar esses fins e não
os outros e corresponder à justa medida, também em cada caso requerido por estes fins.
248
Pensa-se, como se vê em boa companhia, que esse tipo de construção,
representada pela expressão Direito penal do inimigo é um retrocesso nas garantias e
174
direitos fundamentais. Trata-se de um antidireito que segrega a priori certos grupos e
serve como emblema repressivo, puramente simbólico. O princípio da intervenção
mínima e fragmentária do direito penal está insculpido, repete-se, no contexto do direito
penal democrático e de garantias de um estado social a serviço do indivíduo, atitudes
totalmente inconciliáveis com estados totalitários ou os regimes de exceção.249
Mas, esse fenômeno hoje se dá na contramão do garantismo e assume contornos
globais. Nos Estados Unidos, à guisa de exemplo, projetos legislativos objetivam a
mudança do conceito de tortura. Não sem propósito isso está acontecendo; basta se ter
ciência de Gantánamo para entender a necessidade premente do governo americano de
justificar suas ações perante a comunidade internacional. Convém lembrar que os
Estados Unidos ratificaram convenção contra a tortura e maus-tratos, proposta pela
Organização das Nações Unidas, em 1984, com o objetivo de se insurgir contra
tratamentos cruéis e desumanos dos criminosos e proibir o emprego de técnicas de
torturas. 250
Segundo Rosa, no Brasil, inserida nessa linha de normatização, extraordinária,
está a Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003 que, entre outras coisas, alterou a Lei
de execução penal, criando o chamado regime disciplinar diferenciado para a execução
da sanção privativa de liberdade. O artigo 58 dessa lei limita a restrição de direitos aos
presos, com uma ressalva: o isolamento, a suspensão e a restrição de direitos não podem
exceder a trinta dias, resguardada a hipótese do regime disciplinar diferenciado. 251
248
MIRANDA, Jorge. Os direitos fundamentais perante o terrorismo: terrorismo e direito; Os impactos
do terrorismo na comunidade internacional e no Brasil: perspectivas políticas-jurídicas; O desafio da
comunidade internacional frente ao terrorismo. Forense: Rio de Janeiro, 2003, p.61
249
BOSCHI, Antonio Paganella. Das penas e de seus critérios de aplicação. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2000, p. 56 “Leciona Boschi que não é preciso muito esforço para demonstrar que o nosso
país prioriza o direito penal e, desse modo, caminha na contramão do garantismo; basta lembrar que a
inflação legislativa brasileira, ao tipificar intensamente novas condutas e ao aumentar exageradamente e
desproporcionalmente as penas, culminou por evidenciar outro paradoxo de um país de paradoxos: o do
avanço no sentido do aperfeiçoamento do direito penal comum nos períodos negros da ditadura – Estado
Novo e Golpe de 64 – e os retrocessos depois de 1988, muito embora a redemocratização do país e o
advento da Constituição Cidadã de 1988.
250
Essa Convenção define tortura como: qualquer ato pelo qual dores e sofrimentos agudos, físicos ou
mentais, são infligidos internacionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa,
informações ou confissões; de castigá-la.
251
ROSA, Fábio Bittencourt da. Da vingança de sangue ao direito penal do inimigo. In: Derecho penal
online (Revista electrónica de doctrina y jurisprudencia en línea, citado el 6/3/2005). Disponible en
Internet: http://www.derechopenalonline.com)
175
A perda de alguns os direitos civis da população norte americana foi elaborada a
partir da perspectiva definida pelo movimento conhecido por Lei e ordem, que apregoa
a maximização do direito penal, em prol da segurança nacional. Essas normas,
entretanto, não se coadunam com a construção centenária e gradativa de preservação
dos direitos civis dos cidadãos e de um estado constitucional e democrático de direito.
Segundo o que se tem notícia, carecem de transparência inúmeros fatos ocorridos em
Guantánamo, sendo que a instauração de corte militar não respeita ao direito
internacional, nem está prevista na convenção internacional de direitos políticos e civis
de 1966, ratificada pelos Estados Unidos. 252
Nenhum criminoso pode ser punido sem o devido processo legal. Sobretudo
quando as mais drásticas sanções do direito penal – privação da liberdade, privação de
direitos fundamentais etc – devem ter incidência: o estrito respeito a todas as garantias é
de fundamental relevância. Porém, é fato notório, via mídia global, que a nomeação
pelo presidente George W. Bush em 2001 de uma comissão militar foi responsável pelo
julgamento dos acusados – supostamente pertencentes à rede terrorista Al-Qaeda. A
legalidade dos referidos julgamentos baseia-se em uma decisão da Suprema Corte
Americana do ano de 1942, que serviu de base jurídica para que Franklin D. Roosevelt
pudesse julgar sabotadores alemães nos Estados Unidos.
Entre os argumentos que servem de sustentáculo de tais ações, há aquele
definido pela teoria do direito penal do/para o inimigo de que o indivíduo que não se
enquadra no contexto do contrato social, que não está congregado a um estado de
cidadania, não deve, portanto, usufruir, por sua voluntária exclusão social, das
liberdades e garantias individuais asseguradas pelo estado. Não participando dos
deveres em relação ao estado, negando sua cidadania, não é um sujeito processual, logo,
não pode contar com as garantias oriundas a um processo legalmente instituído: cabe ao
252
A quinta emenda da Constituição Federal norte-americana diz que “nenhuma pessoa será tida como
responsável por um crime capital ou infame, a menos que sob acusação ou processo perante o grande
júri, exceto em casos originados quando crimes militares ou em serviço em tempo de guerra ou perigo
público; nenhuma pessoa será sujeita a mais de um julgamento pelo mesmo fato; ninguém será
compelido em nenhum caso criminal a fazer prova contra si mesmo (princípio da não incriminação
própria), nem ser privado da vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal; ninguém será
privado de sua propriedade para uso público sem a devida indenização. A sexta emenda diz que “em
todo processo penal o acusado usufruirá o direito de ter um julgamento público e célere, por um júri
imparcial do estado ou circuito federal, previamente competente pela lei e ser informado sobre a
176
estado não reconhecer seus direitos, ainda que de modo juridicamente ordenado,
devendo dispensar ao mesmo não um procedimento penal legal, mas sim, um
procedimento de guerra. 253 254
Ocorre que os contornos que configuram o inimigo são difusos, ainda que a
sociedade norte-americana queira imprimir a ele sempre o rosto de Bin Laden. O
terrorista pode ser qualquer pessoa que pisa o solo americano; então, a reação contra o
presumido malfeitor pode, hipoteticamente, se voltar para qualquer um de nós. Nessa
perspectiva, a incerteza em relação ao inimigo ameaça a todos, pairando sob qualquer
cidadão, americano ou não. Todos se deparam hoje com a possibilidade de perda dos
direitos civis, das garantias fundamentais, e de prisões e inquisições sem volta, como
Gantánamo. Não foi isso que aconteceu com um pacífico brasileirinho, confundido com
perigoso terrorista no metrô em Londres?
É fácil compreender essa reação, pois a própria consciência da revolta
enfraquece e dilui-se quando se perdem os contornos do alvo a ser atingido, não
permitindo distinguir sobre quem se deve descarregar munições. Parece que os antigos
modos repressivos deram lugar hoje a uma espécie de incorporação classificatória, nova
ou renovada, que ordena, absorve e exclui, sem uma análise mais aprofundada, sem o
devido processo legal: com a tomada de depoimentos sob tortura, qualquer pessoa,
mesmo as classificadas politicamente corretas, confessaria crimes que não comenteu.
Para legitimar essas seleções destituídas de critério, ondas repressoras defendem esse
tipo de retrocesso no discurso jurídico.
natureza e causa da acusação; bem como de contrariar as provas contra si e ter possibilidade de
produzir provas a seu favor e obter assistência de advogado em sua defesa”.
253
JAKOBS, entende como características do direito penal do inimigo, as seguintes: (a) o inimigo não
pode ser punido com pena, sim, com medida de segurança; (b) não deve ser punido de acordo com sua
culpabilidade, senão consoante sua periculosidade; (c) as medidas contra o inimigo não olham
prioritariamente o passado (o que ele fez), sim, o futuro (o que ele representa de perigo futuro); (d) não é
um direito penal retrospectivo, sim, prospectivo; (e) o inimigo não é um sujeito de direito, sim, objeto de
coação; (f) o cidadão, mesmo depois de delinqüir, continua com o status de pessoa; já o inimigo perde
esse status (importante só sua periculosidade); (g) o direito penal do cidadão mantém a vigência da
norma; o direito penal do inimigo combate preponderantemente perigos; (h) o direito penal do inimigo
deve adiantar o âmbito de proteção da norma (antecipação da tutela penal), para alcançar os atos
preparatórios; (i) mesmo que a pena seja intensa (e desproporcional), ainda assim, justifica-se a
antecipação da proteção penal; (j) quanto ao cidadão (autor de um homicídio ocasional), espera-se que ele
exteriorize um fato para que incida a reação (que vem confirmar a vigência da norma); em relação ao
inimigo (terrorista, por exemplo), deve ser interceptado prontamente, no estágio prévio, em razão de sua
periculosidade.
177
Tratar o criminoso comum como criminoso de guerra, ou melhor como não
pessoa é tudo de que ele necessita, de outro lado, para questionar a legitimidade do
sistema –desproporcionalidade, flexibilização de garantias, processo antidemocrático
etc –: tratar os criminosos a partir de uma lógica da guerra, da intolerância excessiva, do
vale tudo, conduz a excessos, destrói a razoabilidade e coloca em risco o estado
democrático. É igualmente necessário advertir que o garantismo não pode ser
confundido com a simpatia aos delinqüentes, nem com perspectivas radicais como o
abolicionismo. Com efeito, o garantismo não se propõe a negar a nocividade do delito e
a quebra da convivência social que o mesmo representa. O garantismo não postula que
seja possível prescindir de maneira taxativa e absoluta da ferramenta punitiva do
controle social e de cárcere, pois se trata de um mal necessário, tendo em vista não
existirem outras formas de cumprimento dos mesmos objetivos com igual eficácia. O
garantismo postula, isso sim, o uso limitado do direito penal, isto é, a redução dos
espaços de intervenção da possibilidade punitiva na vida do cidadão e a submissão
desses limites infranqueáveis a determinados princípios e garantias fundamentais que
amparam o cidadão em relação às interferências abusivas do estado.
O significado da democracia é a revalorização do homem, “en toda la
complicada red de las instituciones procesales que sólo tienen un significado si se
entienden por su naturaleza y por su finalidad política y jurídica de garantía de aquel
supremo valor que no puede nunca venir sacrificado por razones de utilidad: el
hombre”. Os direitos fundamentais, por sua vez, como tais, regulam a atuação no estado
contra ingerências sobre seus cidadãos, e pertencem, por conseguinte, à seção que trata
do amparo do indivíduo em relação ao estado. Prova disso é a quantidade de
dispositivos que integram as constituições modernas, regulando o processo penal, com a
finalidade de garantir a plena eficácia dos direitos fundamentais do acusado enquanto
estiver sendo processado. Cabe ressaltar ainda que o processo penal constitui um ramo
do direito público, e, portanto, tem como essência a autolimitação do estado. 255
A democracia é um sistema político-cultural que valoriza o indivíduo frente ao
estado e que se manifesta em todas as esferas da relação estado-indivíduo, levando, por
254
GÜNTER Jakobs & MELIÁ Cancio, Manuel. Derecho penal del enemigo. Madrid: Civitas, 2003.p.45
Nesse sentido BETTIOL, Guiseppe. Instituciones de Derecho Penal y Procesal. Trad. Faustino
Gutiérrez-Alviz y Conradi. Barcelona, Bosch, 1976.
255
178
conseguinte, a uma democratização do processo penal, e refletindo essa valorização do
indivíduo no fortalecimento do sujeito passivo do processo penal. Pode-se afirmar, com
toda segurança, que o princípio que primeiro impera no processo penal é o da proteção
dos inocentes, ou seja, o processo penal enquanto direito protetor dos inocentes e como
regulador dos procedimentos a serem adotados para a imputação da responsabilidade
criminal. Esse status tem caráter constitucional e deve ser mantido até que exista uma
sentença penal condenatória transitada em julgado.
O processo, como instrumento para a realização do direito penal, deve realizar
sua dupla função: de um lado, tornar viável a aplicação da pena; de outro, servir como
efetivo instrumento de garantia dos direitos e liberdades individuais, assegurando os
indivíduos contra os atos abusivos do estado. Nesse sentido, o processo penal deve
servir como instrumento de limitação da atividade estatal, estruturando-se de modo a
garantir plena efetividade aos direitos individuais constitucionalmente previstos, como a
presunção de inocência, contraditório, ampla defesa, etc, pois não podemos correr o
risco que acusar inocentes deixando à mercê do etado qualquer cidadão que não se
ajuste a seu projeto político.
O objeto primordial da tutela não deve ser somente a salvaguarda dos interesses
da coletividade, mas também a tutela da liberdade processual dos imputados e o respeito
à sua dignidade como pessoa, como efetiva parte do processo. O direito penal mínimo é
uma técnica de tutela dos direitos fundamentais e configura a proteção do débil contra o
mais forte; tanto do débil ofendido ou ameaçado pelo delito, como também do débil
ofendido ou ameaçado pela vingança; contra o mais forte, que no delito é o delinqüente,
e na vingança é a parte ofendida ou os sujeitos públicos ou privados solidários com ele.
A proteção vem por meio do monopólio estatal da pena e da necessidade de prévio
processo judicial para sua aplicação, e da existência, no processo, de uma série de
instrumentos e limites, destinados a evitar os abusos por parte do Estado na tarefa de
perseguir e punir. 256
Existe uma profunda relação entre o atual modelo de direito penal mínimo e seu
correspondente processo penal garantista. O primeiro é condicionado e limitado ao
256
Nesse sentido FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão – teoria geral do garantismo. São Paulo, RT, 2002,
p. 335.
179
máximo, correspondendo não só ao máximo grau de tutela das liberdades dos
indivíduos em relação ao arbítrio punitivo, mas também a um ideal de racionalidade e
de certeza. Existe uma clara vinculação entre garantismo e racionalismo.
O sistema garantista está sustentado por cinco princípios básicos sobre os quais
deve ser erguido o processo penal: (1) jurisdicionalidade - Nulla poena, nulla culpa sine
iudicio: Não só como necessidade do processo penal, mas também em sentido amplo,
como garantia orgânica da figura e do estatuto do juiz. Também representa a
exclusividade do poder jurisdicional, direito ao juiz natural, independência da
magistratura e exclusiva submissão à lei; (2) inderrogabilidade do juízo, no sentido de
infungibilidade e indeclinabilidade da jurisdição; (3) separação das atividades de julgar
e acusar - Nullum iudicium sine accusatione, configurando-se o ministério público como
agente exclusivo da acusação, garantindo a imparcialidade do juiz e submetendo sua
atuação a prévia invocação por meio da ação penal; (4) presunção de inocência, como a
garantia de que será mantido o estado de inocência até o trânsito em julgado da sentença
condenatória implica diversas conseqüências no tratamento da parte passiva, inclusive
na carga da prova (ônus da acusação) e na obrigatoriedade de que a constatação do
delito e a aplicação da pena será por meio de um processo com todas as garantias e
através de uma sentença; (5) contradição - Nulla probatio sine defensione que consiste
no método de confrontação da prova e comprovação da verdade, fundando-se não mais
sobre um juízo potestativo, mas sobre o conflito, disciplinado e ritualizado, entre partes
contrapostas: a acusação (expressão do interesse punitivo do estado) e a defesa
(expressão do interesse do acusado em ficar livre de acusações infundadas e imune a
penas arbitrárias e desproporcionadas). Para o controle da contradição e de que existe
prova suficiente para derrubar a presunção de inocência, também é fundamental o
princípio da motivação de todas as decisões judiciais, pois só ele permite avaliar se a
racionalidade da decisão predominou sobre o poder. 257
O modelo acusatório também exige que o juiz se mantenha alheio ao trabalho de
investigação e passivo no recolhimento das provas tanto da imputação como de
descargo. O processo deve ser predominantemente oral, com plena publicidade e com
um procedimento contraditório e de trato igualitário das partes (e não meros sujeitos).
257
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão – teoria geral do garantismo. São Paulo, RT, 2002, p. 732.
180
Com relação à prova, vigora o sistema do livre convencimento motivado e a sentença
produz a eficácia de coisa julgada.
Após os cidadãos terem aberto mão da sua autotutela em prol do pacto social,
delegando ao estado o manus puniendi, este assumiu o monopólio da jurisdição. Como
contrapartida a essa delegação de tutela, o estado conferiu aos particulares o direito de
ação para que busquem a solução da lide. Decorre daí, a extrema importância, dentro de
uma estrutura de estado democrático de direito, do princípio da jurisdição, pois vez que
o particular delega poderes desta ordem ao estado, nada mais justo e coerente do que
receba, na mesma proporção, direitos e garantias contra a abusividade do poder
público.258
Nesta direção, obviamente, se sabe dos altos custos que são inerentes à pena,
assinalando a ênfase de extrema ratio que deve ser dado ao direito penal, toda a vez que
se defronta a possibilidade de fazer frente com outros meios coercitivos, que valer-se
destes em detrimento da pena privativa de liberdade, que deve ser entendida como
última opção a que se poderia acolher para tutelar bens jurídicos de grande valia para as
sociedades humanas – devendo a mesma sempre ser pensada levando-se em contra o
princípio da proporcionalidade e a proibição do excesso. Deve sempre existir uma
relação entre as ações realizadas pelos indivíduos e as medidas a serem exercidas frente
às mesmas. Assim quando fala-se de punitivismo, rechaça-se a idéia de excesso,
frisando que apenas deve guardar uma necessária relação de equilíbrio com o crime
258
Nesse sentido ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. São Paulo: Cultrix, 1991, p. 9/10. “Eu
imagino os homens chegados ao ponto em que os obstáculos, prejudiciais à sua conservação no estado
natural, os arrastam, por sua resistência, sobre as forças que podem ser empregadas por cada indivíduo a
fim de se manter em tal estado. Então esse estado primitivo não mais tem condições de subsistir, e o
gênero humano pereceria se não mudasse sua maneira de ser. Ora, como é impossível aos homens
engendrar novas forças, mas apenas unir e dirigir as existentes, não lhes resta outro meio, para se
conservarem, senão formando, por agregação, uma soma de forças que possa arrastá-los sobre a
resistência, pô-los em movimento por um único móbil e fazê-los agir de comum acordo. (...) Encontrar
uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e os bens de cada
associado, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, não obedeça portanto senão a si mesmo, e permaneça
tão livre como anteriormente.” Tal é o problema fundamental cuja solução é dada pelo contrato social.
(...) “Cada um de nós põe em comum sua pessoa e toda a sua autoridade, sob o supremo comando da
vontade geral, e recebemos em conjunto cada membro como parte indivisível do todo. Logo, ao invés da
pessoa particular de cada contratante, esse ato de associação produz um corpo moral e coletivo, composto
de tantos membros quanto a assembléia de vozes, o qual recebe desse mesmo ato sua unidade, seu eu
comum, sua vida e sua vontade. A pessoa pública, formada assim pela união de todas as outras, tomava
outrora o nome de cidade, e toma hoje o de república ou corpo político, o qual é chamado por seus
membros: Estado, quando é passivo; soberano, quando é ativo; autoridade, quando comparado a seus
semelhantes. No que concerne aos associados, adquirem coletivamente o nome de povo, e se chamam
particularmente cidadãos, na qualidade de participantes na autoridade soberana (...)
181
cometido pelo sujeito ativo do delito.
Finalmente, deve-se fazer referência à impossibilidade de se sustentar uma
ideologia punitivista como a professada pelo direito penal do inimigo. A este respeito, é
preciso fazer menção ao respeito à dignidade da pessoa humana, igualmente inegável
em sua atualidade e cujo valor é incontestavelmente universal referendado e consagrado
expressamente em tratados internacionais e nas diversas constituições democráticas do
mundo. Efevitamente não se pode negar que no momento presente toda a pessoa e que
esta é inerente a todo o ser humano e que implica, em definitivo, admitir que seja
dispensado ao ser humano um tratamento compatível com os direitos e garantias
individuais. Em tal direção pauta-se o uso da violência pelo estado nos estritos termos
de coação da liberdade como sanção ao cometimento de crimes que a prevejam, nunca o
uso de uma violência desnecessária sobre os cidadãos ou não prevista no ordenamento
jurídico.
As práticas sociais precisam ser revistas no contexto urbano da sociedade de
consumo, pois muito mais do que a privação econômica, a destruição dos laços
comunitários pelo tráfico de drogas, ausência de canais institucionais que dêem conta,
encaminhem e propaguem motivações diversas a da criminalidade, uma socialização
deficiente e acrítica que não contempla a diversidade e e valoriza determinados objetos
de consumo como símbolo de distinção social e poder e da reprodução cotidiana de
relações sociais autoritárias entre os agentes do Estado e a população-alvo da vigilância,
ao invés de oferecer caminhos, conduzem de maneira inexorável a criminalidade, pela
omissão.
O legislador, porém, em seu afã de não deixar nenhum vazio deixa nas mãos do
julgador perigosas armas que este pode utilizar para penalizar qualquer comportamento
que, a seu juízo. A famosa “tolerância zero” tem tido eco também na política criminal_e
seus efeitos negativos têm sido já denunciados repetidas vezes e são tanto de caráter
jurídico, como criminológico. Desde o ponto de vista jurídico, supõem uma infração
clara ao princípio de intervenção mínima e de proporcionalidade e a conversão do
direito penal do fato, em um direito penal do autor” mais próprio dos sistemas penais
autoritários e, inclusive, de caráter totalitário e racista.
182
A idéia de tolerância zero também conduz a criminalização de condutas como a
mendicância ou a prostituição de rua, que certamente podem representar um mal estar
ou incômodo para a segurança ou a tranqüilidade pública, mas que não são
verdadeiramente condutas delitivas. A vítima individual apenas é tida em conta e a
relação delinqüente/vítima é substituída pela idéia de que todos podemos ser vítimas e,
portanto, o motivo de intervenção é a segurança de todos em geral, e não a possível
lesão a um bem jurídico em particular. E tudo isto, não só como um fato isolado, ou
uma reação desproporcionada explicável, ainda que não justificável, em função de
circunstâncias extremas, senão como uma regra geral, como uma forma normal de
proceder.
Mas as principais objeções contra a «tolerância zero» provêem desde o ponto de
vista de sua escassa eficácia na prevenção geral da delinqüência. Efetivamente, tem sido
demonstrado que as políticas de «tolerância zero», que foram implantadas em muitas
cidades americanas, seguindo o modelo da de Nova York a princípios dos anos noventa,
ainda que momentaneamente tenham parecido reduzir algo nas cifras de criminalidade
geradora de insegurança pública (furtos, roubos, danos, etc.), analisadas em um prazo
mais longo foi constatado que não fizeram baixar de forma relevante o número de
delitos, nem sequer o dos delitos menores, e sim, ao contrário, provocaram um aumento
impressionante do gasto policial, o que, obviamente, conduz também a um aumento da
atividade judicial e do número de condenações, com o conseqüente aumento da
população penitenciária, já que a maioria destes delinqüentes é condenada a penas de
prisão.
Para Eugenio Raúl Zaffaroni, La legitimación del control penal de los “extraños”
Con la abierta vuelta al inquisitivo operada por el positivismo
criminológico, se teorizó todo el derecho penal como derecho administrativo
y todas las penas como medidas de coerción directa frente a peligros. El
principio inquisitorio en definitiva acaba con el derecho penal y lo disuelve
en el administrativo. Cuatro siglos después del Malleus, el positivismo
criminológico, con el mismo esquema integrado de criminología etiológica,
derecho penal, procesal penal y criminalística, volvió desembozadamente al
sistema inquisitivo. El extraño, tanto el criminal grave como el disidente,
volvió a ser biológicamente inferior, no en razón de género como en el caso
de las brujas, sino por patológico o perteneciente a una raza no
suficientemente evolucionada (es un colonizado nacido por accidente en
Europa) o por ser un degenerado (producto involutivo de una raza superior).
La pena desapareció, reemplazada por medidas administrativas de coerción
directa destinadas a contener el peligro que los infractores presentaban para
la sociedad. Los jueces asumían la función de policías (como en el Malleus)
183
y, por supuesto, los extraños (reconocibles por el estereotipo) resultaban
mucho más peligrosos que los iguales y, dada su inferioridad inmodificable,
sólo cabía eliminarlos. El planteo teórico cancelaba el viejo trato diferencial
de matriz hegeliana, los iguales también eran sometidos a medidas
policiales, sólo que las destinadas a los extraños eran eliminatorias. Las
expresiones más groseras de esta peligrosidad pertenecen a Rafael Garófalo,
quien afirmaba que la ciencia penal tiene por objeto la defensa contra los
enemigos naturales de la sociedad y que la indulgencia de los magistrados
no es más que el triunfo de la lógica conseguido a expensas de la seguridad y
moralidad sociale[. A los ojos del pueblo –escribía, en lo que parece el mejor
tono de la publicidad vindicativa de comienzos del siglo XXI- los códigos, los
procedimientos y el mismo Poder Judicial, parece que se han puesto de
acuerdo para proteger al criminal contra la sociedad, más bien que a la
sociedad contra el criminal]. Como seguidor de Spencer, afirmaba que la
sociedad debe producir un equivalente a la selección natural de Darwin[38] y,
por ende, los enemigos deben eliminarse, pues mediante una matanza en el
campo de batalla la nación se defiende contra sus enemigos exteriores;
mediante una ejecución capital, de sus enemigos interiores]. Los enemigos no
se agotaban en los criminales graves, sino que abarcaba a los molestos
(pequeños ladrones, prostitutas, homosexuales, ebrios, vagabundos,
jugadores, etc.), caracterizados como clases peligrosas], luego bautizadas
como mala vida y objeto de literatura con pretensiones de trabajos de
campo[. Para ellos destinaban penas sin delito (medidas detentivas policiales
ilimitadas. (...) En la variante más juridizante del positivismo, Franz von
Liszt proponía la imposición de penas resocializadoras para los iguales un
tanto equivocados y penas meramente intimidantes para los ocasionales
(muy iguales), pero a los incorregibles (los verdaderos extraños, abarcando
las categorías de criminales graves y molestos), ante la imposibilidad de
matarlos o deportarlos, optaba por imponerles penas eliminatorias : La
sociedad –escribía- debe protegerse de los irrecuperables, y como no
podemos decapitar ni ahorcar, y como no nos es dado deportar, no nos
queda otra cosa que la privación de libertad de por vida (en su caso, por
tiempo indeterminado). Esta última categoría se dificultaba a medida que la
doctrina volvía al idealismo y, por ende, al retomarse el esquema que puede
remontarse a Hegel, su discípulo Karl Stooss la reemplazó con medidas
administrativas policiales, inventando lo que hoy se conoce como medidas de
seguridad. Desde el proyecto suizo de Stooss se teoriza un derecho penal
para iguales y otro para extraños, destinando a los primeros penas
retributivas y a los segundos medidas que están con un pie en el penal y otro
en la coerción administrativa directa, pues responden a la peligrosidad
positivista. En definitiva, son penas sin los límites ni garantías de las penas,
259
por lo cual desde temprano se denunció el embuste de las etiquetas”.
Como exemplo de antecipação da intervenção do Direito penal a supostos
afastados, inclusive da colocação em perigo do bem jurídico, temos os preceitos
relativos à apologia do genocídio (art.607, 2) e a indireta do terrorismo, através de seu
enaltecimento ou justificação (art.578), ou a penalização da convocatória de
referendums ilegais (art.506 bis), e da concessão de ajudas ou subvenções a partidos
políticos dissolvidos ou suspensos por resolução judicial (art.576 bis), introduzida de
259
ZAFFARONI
Eugenio
Raúl,
La
legitimación
“extraños”.www.derechepenal.on line.Acessado em 5/2/2005
del
control
penal
de
los
184
forma sub-reptícia na Lei Orgânica 20/2003, de 23 dezembro 2003, aproveitando uma
Lei de acompanhamento à Lei de Orçamentos. Até tal ponto se considerou que estes
dois últimos preceitos constituem uma extrapolação do poder punitivo, que uma das
primeiras reformas penais que pretende adotar o Governo saído das eleições de 14 de
março de 2004, é as suprimir.
Para Eugenio Raúl Zaffaroni, La legitimación del control penal de los
“extraños”.
El debate actual en torno del derecho penal del enemigo propuesto
por Jakobs se hace referencia a otras explicaciones de la represivización
actual, como el derecho penal simbólico, la expansión del derecho penal, el
derecho penal a varias velocidades, etc., y se critica la tesis de este autor
sosteniendo que se trata de introducir un derecho penal de autor260. Pero lo
cierto es que la única forma de admitir un derecho penal del enemigo
realmente limitado a los enemigos sería como un extremo derecho penal de
autor, o sea, limitado a un grupo de personas identificables incluso por
características físicas, pues de lo contrario, lo que se discute no es si se puede
tratar a algunos extraños de manera diferenciada, sino si el estado de derecho
puede limitar las garantías y libertades de todos los ciudadanos. Esto es así,
porque al permitir la intervención de las comunicaciones privadas se afecta la
intimidad de todos, al limitar garantías procesales se pone a todos en riesgo
de ser indebidamente procesados y hasta condenados por terrorismo, al
tipificar actos preparatorios equívocos se conmina con pena a todos por
conductas que en la mayoría de los casos son inofensivas (comprar un
precursor para pintar la casa o abonar el jardín, llevar dinero para comprar
legalmente una propiedad, llevar cortaúñas en un avión, bromear sobre
alguna medida de seguridad, omitir la declaración de una transferencia
bancaria, etc.), o sea, que la pretendidamente novedosa anticipación de la
tipificación sigue el camino casi dos veces milenario de la lex Julia contra
crímenes de lesa majestad, con cuya ampliación se llegó a penar la tenencia y
fabricación de tela púrpura, por implicar el riesgo de preparación de un
magnicidio. (...) Por ende, la discusión es claramente política: primero, si es
admisible en el estado de derecho la categoría de enemigo u hostis romano y,
segundo, si en base a ella se pueden limitar los derechos y garantías de todos
los habitantes. Estas preguntas políticas no son independientes, pues
descartando que el hostis se refiera a un grupo étnicamente diferenciado, su
admisión importa una limitación a la libertad ciudadana. Es decir que el
tratamiento penal diferenciado del hostis implica una lesión a los límites del
estado respecto del ciudadano, o sea, que es un tratamiento más represivo
para todos, lo que se compagina mucho más con el estado absoluto que con
el estado de derecho.261
260
GÜNTER Jakobs. Derecho penal del enemigo. Madrid: Civitas, 2003, p. 65.
Zaffaron Eugenio Raúl i, La legitimación del control penal de los “extraños” .www.derechepenal.on
line.Acessado em 5/2/2005
261
185
Ferrajoli pronunciando-se a respeito da expansão do direito penal expressa nos
seguintes termos:
O direito penal dos ordenamentos desenvolvidos é produto
predominantemente moderno; os princípios sobre os quais se funda seu
modelo garantista clássico – a legalidade estrita, a materialidade e a
lesividade dos delitos, a responsabilidade pessoal, o contraditório entre as
partes, a presunção de inocência – são, em grande parte, como se sabe, fruto
da tradição jurídica do iluminismo e do liberalismo. Os filões que se
misturam nessa tradição, maturada no século XVIII, são muitos e distintos:
as doutrinas dos direitos naturais, as teorias contratualistas, a filosofia
racionalista e empirista, as políticas da separação dos poderes e da
supremacia da lei, o positivismo jurídico e as concepções utilitaristas do
direito e da pena. Estes diversos filões, contudo, além de não serem
filosoficamente homogêneos entre si, tampouco, são univocamente liberais.
Por exemplo, as filosofias utilitaristas, podem fundamentar, como nas
doutrinas da Escola Clássica italiana de Beccaria a Carrara, uma
concepção da pena como mínima aflição necessária, mas também podem
informar tecnologias penais autoritárias e antigarantistas, como as da
prevenção especial ou as da defesa social, orientadas ao objetivo da máxima
segurança possível. E o positivismo jurídico, se por um lado está na base do
princípio da estrita legalidade, por outro também permite modelos penais
absolutistas, caracterizados pela ausência de limites ao poder normativo do
soberano, ao mesmo tempo em que se mostra, em todo caso, completamente
neutro a respeito de todas as demais garantias penais e processuais. Sem
falar das concepções contratualistas, que têm servido igualmente de base à
teoria hobbesiana do estado absoluto, à lockeana dos direitos naturais e do
estado de direito, à fichteana do estado pedagogo e à rousseauiana da
democracia direta.
Sem dúvida, para além da heterogeneidade e da ambivalência de
seus pressupostos teóricos e filosóficos, é certo que os princípios
mencionados, tais como se consolidaram nas constituições e codificações
modernas, formam em seu conjunto um sistema coerente e unitário. A
unidade do sistema, depende, segundo meu modo de ver, do fato de que os
diversos princípios garantistas se configuram, antes de tudo, como um
esquema epistemológico de identificação do desvio penal, orientado a
assegurar, a respeito de outros modelos de direito penal historicamente
concebidos e realizados, o máximo grau de racionalidade e confiabilidade
do juízo e, portanto, de limitação do poder punitivo e de tutela da pessoa
contra a arbitrariedade.
Esse esquema, como se sabe, apresenta numerosas aporias lógicas e
teóricas, que fazem dele um modelo ideal e em grande parte ideológico, e
que em várias ocasiões tem provocado sua desqualificação científica e
política por parte da cultura jurídica, com resultados indefectivelmente
antigarantistas. Ademais, antes de empreender sua crítica e revisão teórica,
é útil delinear, ainda que apenas esquematicamente, seus elementos
constitutivos. Estes elementos são dois: um relativo à definição legislativa, e
outro à comprovação jurisdicional do desvio punível. E correspondem a
singulares conjuntos de garantias – as garantias penais e as garantias
262
processuais – do sistema punitivo que fundamentam.
262
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal, São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2002, p.29.
186
Acontece que os personagens do Iluminismo pensando deter o total controle
sobre a natureza e os riscos, plenos de consciência, racionais, objetivos, apostavam
estado Liberal e Social para a estruturação da sociedade. Diante a inoperância do estado
Liberal e Social, em proporcionar o bem-estar social idealizado e sustar a onda de
delinqüência incrementanda por desigualdades sociais, favorece a formação de um
direito penal hipertrofiado, prevencionista e expansivo, para aplacar as expectativas não
conseguidas pelo estado liberal.
Esta expansão dá-se com a acolhida de novos bens jurídicos (tais como meio
ambiente, saúde pública, mercado de capitais, tributos, relações de consumo), um
incremento na tipificação dos crimes de perigo, crimes comissivos por omissão, nãodistinção ente autoria e participação, inversão da carga de probatória, além da
substituição do modelo clássico de justiça pela justiça negociada (ver o casos dos
juizados especiais criminais e da delação premiada na lei de tóxicos), adaptado o direito
penal para uma função de eminente instrumento de prevenção. Da análise destes
pontos, vê-se que o direito tradicional-liberal-antropocêntrico (paradigma das
sociedades democráticas industriais do fim do século XX) não pode fazer frente a esta
nova ordem, pois o fenômeno global está a modificar a realidade de forma instantânea,
imprimindo uma pressão capitalista que aniquila grande parcela das populações.
A setorização das classes sociais e a hegemonia da classe dominante sobre a
classe dominada, a concentração de riqueza nas mãos de poucos leva a eliminação da
livre concorrência e livre iniciativa, demarcando a supremacia do poder econômico
sobre o social e acentuando os limites alarmantes da miséria e outras formas emergentes
de exclusão social.
Para o aplacamento da insurreição dos excluídos reedita-se
constantemente o direito penal para combater a crescente marginalidade.
Vislumbra-se o fato de que as concessões sociais operadas durante o transcorrer
do século XIX e XX aconteceram não por um projeto visionário da burguesia na busca
de uma equidade na distribuição de renda, e sim para manter a possibilidade de um
estado liberal e da livre exploração do capital. Nesta seara de concessões mitigadas com
a classe operária o estado deixa a postura abstencionista onde não tinha nenhuma
preocupação social e econômica e passa a intervir no domínio econômica regulando-o e
em alguns casos, passando a professar um discurso estrutural (econômico e político) no
187
qual assume teoricamente a responsabilidade pela assistência destes excluídos do
sistema social e econômico dando aos mesmos a ilusão de pertencimento (não de
exclusão) a uma sociedade voltada para satisfazer suas necessidades.
O estado Liberal não mais conseguindo conter ideologicamente a insureição dos
excluídos adota uma gradativa mudança de postura perante as questões socioeconômicas, fazendo concessões as classes trabalhadoras e tutelando determinados
direitos sociais como a limitação da jornada de trabalho, a regulamentação do trabalho
do menor e a previdência social. Nos Estados Unidos, em 1890, temos a lei Sherman,
modelo de legislação anti-truste, visava combater a concentração econômica que
provoca a eliminação da concorrência e da livre iniciativa, estrutura básica do estado
liberal: uma falácia ideológica estruturada no princípio da igualdade dos homens e das
oportunidades.
Podemos caracterizar esta terceira fase como um momento de transição entre o
estado liberal e o estado social que nasceria com a primeira guerra mundial. Embora no
final do século XIX e início do século XX as Constituições liberais mantivessem ainda a
característica de ser essencialmente um texto político, sem a previsão de intervenção no
domínio econômico e nas questões sociais, a legislação infra-constitucional incorpora
estas mudanças, demonstrando a necessidade de urgente mudança de postura por parte
do estado na tutela
A primeira grande guerra mundial (1914 - 1918), é marco divisor de águas entre
o estado abstencionista e o novo estado Social assistencialista, sendo que 1917 no
México o mundo assiste a primeira Constituição Social, que mantendo o núcleo liberal
de direitos individuais e políticos, amplia o catálogo de direitos fundamentais
acrescentando dois novos grupos de direitos: os direitos sociais relativos ao trabalho,
saúde, educação, previdência e os direitos econômicos que marcam a postura
intervencionista do estado que passa a regular a economia e em alguns casos a exercer
atividades econômicas.263
263
Entretanto a organização internacional de trabalhadores e a existência na segunda metade do século
XIX, de uma proposta científica como alternativa ao Estado liberal, fazem com que, a elite que se afirmou
188
O estado liberal e a democracia representativa demonstram-se impotentes em
oferecer respostas imediatas para o caos social e econômico em boa parte da Europa,
especialmente Alemanha e Itália. O estado social-liberal diferentemente do estado
liberal clássico (que objetivava preservar a idéia de uma econômica capitalista livre),
passa a reestruturar a ideologia eminentemente liberal ensaiando uma preocupação
social para preservar uma importante parcela do núcleo do pensamento liberal.
A motivação se dá pela pressão dos trabalhadores e dos movimentos sociais; a
grave crise social, abre a possibilidade para um o intervencionismo estatal, a fim de
manutenção do status quo _ na intenção de dar continuidade do processo de
concentração de riqueza, mantendo (com as ínfimas concessões barganhada com a
classe operária) os privilégios econômicos, construídos durante o século XIX e XX.
Dentro desta seara de aplainamento e silenciamento social que implicava a
promessa da participação do estado na vida social e sua contra prestação pelo
beneficiamento geral das condições de vida das populações as Constituições Sociais
elevam os direitos sociais e econômicos ao nível de norma fundamental, havendo uma
ampliação do leque de direitos fundamentais, somando-se estes ao núcleo liberal de
direitos individuais e políticos.
A manutenção dos Estados Unidos estruturado como grande potência global
após a segunda guerra mundial, manterá os países periféricos sob seu domínio: o
terceiro mundo recepcionarão Constituições sociais, porém seus governos autoritários
ou ditaduras militares instrumentadas e financiados pelos Estados Unidos terão a
finalidade de manter e consolidar seu poderio imperialista ainda que com isso fosse
comprometida a soberania estatal pelo nível de comprometimento econômico (dívida
externa) destes países para com o capital estrangeiro que acaba por ditar normas e
políticas econômicas que incidirão diretamente nas escolhas e na economia destes
países.
com o modelo econômico construído neste século, percebesse a necessidade de gradativamente incorporar
reivindicações dos trabalhadores e propostas dos socialistas, numa tentativa de atenuar as distorções
sociais e econômicas e acalmar a tensão social.
189
Diz Zafarroni”
Os Estados Unidos, A Europa, a União Soviética e o Japão
disputaram entre si essas tenologias), Atualmente, encontramo-nos na
terceira revolução tecnológica com conseqüências planetárias: a revolução
técnico científica. Os países centrais lutam pelo domínio tecnológico em
determinadas áreas_ disputam entre si estas novas tecnologias visando a
obtenção de resultados produtivos imediatos e, ao não pouparem esforços
nessse sentido, a velocidade de renovação nestas áreas é vertiginosa. A
aceleração histórico-tecnológica já produziu efeitos até agora desconhecidos
nas relações dos países centrais. Enquanto alguns –como no Japão e na
Europa_ conseguem ameniza-lo, os Estados Unidos na década de oitenta,
realizaram uma tercerização em sua economia que deslocou massas
humanas enormes do setor secundário para os de serviços, evitando a
desocupação, mas provocando, simultaneamente, grave baixa de salários
médios e o aumento de uma polarização da riqueza. Ao mesmo tempo
reduziu-se o orçamento do serviços sociais e deslocaram-se fundos para a
máquina repressiva do estado, transformando-a em fonte considerável de
trabalho em serviços, ao levar a prisionalização a limites incríveis: um preso
para cada trezentos habitantes, em geral sendo que para cada vinte negros
(entre 20 e 29 anos), um está preso. O impacto produz ou tende a produzir e
redução das classes operárias centrais, ao mesmo tempo em que vai
submergindo nossa região marginal em uma situação desesperadora.Os
elementos que nos permitiam protestar por algum respeito no intercâmbio
eram, basicamente, a mão-de-obra barata e a disponibilidade de matériasprimas e alimentos. No entanto, o primeiro elemento já não interessa ao
poder central e o segundo tende a, rapidamente, perder o interesse, em
decorrência de sua substituição por novas tecnologias.
Os direitos e garantias fundamentais próprias do Estado de Direito, sobretudo as
de caráter penal material (princípios de legalidade, intervenção mínima e culpabilidade)
e processual penitenciária (direito à presunção de inocência, à tutela judicial, a não
declarar contra si mesmo, etc), são pressupostos irrenunciáveis da própria essência do
Estado de Direito. Caso seja admitida sua derrogação, embora seja em casos pontuais
extremos e muito graves, tem-se que admitir também o desmantelamento do Estado de
Direito, cujo Ordenamento jurídico se converte em um ordenamento puramente
tecnocrático ou funcional, sem nenhuma referência a um sistema de valores ou, o que é
pior, referido a qualquer sistema, embora seja injusto, sempre que seus protetores
tenham o poder ou a força suficiente para impô-lo.
Para Copetti, mesmo ultrapassada a ditadura militar e restabelecido
constitucionalmente o estado de direito, ainda se observa no Brasil, por exemplo, a
manutenção de todo um aparato repressivo, nos mesmos moldes de um regime
autoritário, com prisões e aparelhos policiais intocados e com a aplicação de métodos
abusivos pelas forças policiais no relacionamento com o preso, especialmente a tortura,
190
para não falar na morte. Aparece, assim, a polícia como instituição que executa a função
de testa-de-ferro de todo o sistema de políticas criminais, destinadas à repressão
violenta dos inimigos da sociedade, mas que, mascaradamente, mediante uma retórica
aparentemente democrática, manifesta-se como um sistema de segurança pública,
destinado ao tratamento do delinqüente. Incapazes de combater as causas de geração da
criminalidade, os estados nacionais apostam num aumento do aparato legal e policial, o
que, pelo seu custo social, tem sérias implicações na realização do estado social e,
reflexamente, na (im) possibilidade de realização do estado democrático de direito. 264
Segundo Coppetti, essa maximização do sistema penal revela-se, num primeiro
momento, com o aumento da edição de normas penais, fato que tem algumas
conseqüências imediatas. A grande quantidade de leis penais não têm passado por um
filtro constitucional, havendo, a partir disso, uma violação dos conteúdos
principiológicos existentes na constituição. Com isso, são afrontados os direitos
fundamentais de primeira geração, seja por conteúdos processuais inquisitivos, seja pela
criminalização de uma série infindável de condutas, gerando uma situação de incerteza
para os cidadãos e invertendo a função originariamente cunhada para os tipos penais,
que, ao invés de servirem como uma garantia aos membros da sociedade civil contra a
atuação arbitrária do estado, possibilitam, contrariamente, uma atuação estatal penal
desmesurada e, não raras vezes, ilegal. Enquanto, no estado de direito, o fenômeno do
exercício do poder é por definição circunscrito e delimitado no seu conteúdo
constitucional, no estado social há um extravasamento dessas limitações, porque nele as
possibilidades de extensão das formas de domínio são imensas, podendo atingir
intensidades sutis e, num certo sentido, até fora de controle do ponto de vista do estado
de direito. 265 266
264
COPETTI, André. Direito penal e estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2000.
265
COPETTI, André. Direito penal e estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2000.
266
Dentre as diversas origens de leis na democracia, encontram-se as constituições escritas, os estatutos e
regulamentos, os ensinos religiosos e etnicos, bem como as tradições e práticas culturais; contudo,
independentemente da origem, a lei deve preservar certas cláusulas fundamentais para a proteção dos
direitos e liberdades dos cidadãos, quais sejam: a) No âmbito do requisito de proteção igualitária perante a
lei, esta não pode ser aplicável unicamente a um indivíduo ou grupo; b) Os cidadãos devem ser protegidos
da prisão arbitrária, da busca sem razão em seus lares ou da apreensão de seus bens pessoais; c) Os
cidadãos acusados de crime têm direito a um julgamento rápido e público, bem como à oportunidade de
confrontar e questionar seus acusadores. Se forem condenados, não podem ser sujeitos à castigo cruel ou
excepcional; d) Os cidadãos não podem ser forçados a testemunhar contra si mesmos. Este princípio
191
O “Direito penal do inimigo” tem, portanto, duas questões básicas que
responder, se é que quer ultrapassar a soleira de uma expressão brilhante e mais ou
menos provocadora, mas tautológica ou vazia de conteúdo. Uma é de tipo conceitual e
afeta a seu próprio conteúdo: Quem define ao inimigo e como lhe define? Que tipo de
sujeitos autores de delitos se inclui no grupo dos cidadãos ou no dos inimigos? A outra
está relacionada com o marco de referência: é compatível com o Estado de Direito e
com o reconhecimento, sem exceções, a todos dos direitos humanos fundamentais? É
compatível com o princípio de que todos somos iguais diante da lei?
Jakobs não responde, então, satisfatoriamente a nenhuma das duas questões
suscitadas. Limita-se a constatar uma realidade e alude à necessidade de uma
“segurança cognitiva” como fundamento de sua existência. Esta “segurança cognitiva”
que Jakobs descreve como aspiração fundamental do Direito penal do inimigo é, obvio,
também uma aspiração de qualquer sistema jurídico; “por conseguinte, diz Jakobs, não
pode tratar-se de contrapor duas esferas isoladas do Direito penal, mas sim de descrever
dois pólos de um só mundo ou de mostrar duas tendências opostas em um só contexto
jurídico-penitenciário” (itálicos no original). Mas uma segurança cognitiva total nunca
pode ser garantida por nenhum sistema seja do tipo que seja. Poderá haver níveis
maiores ou menores de segurança, e do que se trata é de determinar quando esses níveis
são compatíveis com o exercício dos direitos fundamentais. O equilíbrio entre os dois
pólos é difícil e, como já dissemos anteriormente, sempre se encontram em tensão. Mas
se, como acontece em momentos de crise, a balança se inclina descaradamente e sem
nenhum tipo de limites a favor da segurança cognitiva, a conseqüência imediata será a
paz, mas a paz dos cemitérios. Uma sociedade em que a segurança se converte no valor
fundamental, é uma sociedade paralisada, incapaz de assumir a menor possibilidade de
mudança e de progresso, o menor risco.
Finalmente, fica a questão: embora os discursos jurídicos penais varieem suas
posturas ideológicas e jurídicas, sempre paira sobre eles, velada ou expressamente a
pergunta: se a pena não cumpre suas funções e se o estado não tem vontade política para
realiza um investimento a longo prazo para estruturar o sistema carcerário, como conter
protege os cidadãos da coerção, do abuso ou da tortura e reduz significantemente a tentação da polícia em
192
a eclosão de todos esses apenados que vivem à berlinda de qualquer direito fundamental
e tem a dignidade da pessoa humana violentada a todo momento? Se o cárcere, ao invés
de ressocializar, torna o apenado mais perigoso, o que fazer com esse excedente
humano que está sempre na iminência de insurreição e que aumenta em progressão
geométrica? Qual é a parcela de responsabilidade de cada um nesta explosão que está
prestes a acontecer? Qual é o papel do estado, da magistratura, dos operadores do
direito na mudança do discurso jurídico penal e na responsabilidade de encontrar
respostas para este dilema do capitalismo contemporâneo dos países de terceiro mundo?
Para essas perguntas e tantas outras que podem ser feitas, o discurso jurídico penal não
tem respostas suficientemente convincentes, pois, o enfretamento desse dilema não se
detém a aspectos estritamente jurídicos, trata-se de uma questão multidisciplinar que
deve ser enfrentada como tal.
Resta então ao estado constitucional democrático enfrentar seu maior desafio:
efetivar a justiça, não comprometendo os direitos fundamentais dos seres humanos e
conciliando-os com sociedades de classes heterogêneas e conflitivas. A gravidade da
questão e do momento histórico em que vive a sociedade contemporânea em nível
planetário reforça o questionamento sobre as desigualdades sociais, principalmente
econômicas: há muito por que lutar na direção de um mundo possível, fraterno,
democrático, solidário.
Destruir as causas da violência é trabalho interminável, enquanto os pontos nodais
dos conflitos submersos travados no mundo contemporâneo não forem revelados,
minimizados com educação e instrumentalização da sociedade para enxergar perspectivas,
para poder sonhar, para poder projetar o futuro.
empregar tais medidas.
193
3.4 Estado de exceção
Os estados democráticos são estados de direito, assim, o estado de exceção, por
sua origem de medida sui generis pressupõe uma violência para “fora” e para “além” do
direito, quebrando com a dialética entre a violência que funda o direito e a violência que
o conserva. O estado de exceção trata-se de um território difuso em que o ordenamento
tem sua força mitigada ou suspensa. Acontece nessa zona de anomia uma espécie de
gestão totalitária que se estatui pela instauração, por meio do estado de exceção, de uma
entropia civil (instaurada na maioria dos casos pelo medo), responsável pela eliminação
física de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não
integráveis ao sistema. O estado de exceção apresenta-se, nessa perspectiva, como um
patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo.
O estado de exceção instaura-se, no mais das vezes, sob o argumento de que a
ordem constitucional de um país está ameaçada. Trata-se de uma proposta de governo
transitório onde a legalidade formal de um país sob a égide de um estado direito é
substituída por uma legalidade extraordinária que irá definir e reger esse estado de
exceção. Diz-se, então, estado de exceção quando um estado democrático de direito é
tomado por disputas de poder que num determinado momento assumem uma situação
de crise que comprometem a soberania e a observância dos preceitos constitucionais.
No estado de exceção é ilimitada a vigência da legalidade extraordinária. O estado de
exceção sem a observância do critério da temporariedade e extraordinariedade é
qualquer regime que não o democrático de direito. A definição do termo estado de
exceção está no liame entre duas ciências encontrando seus limites entre a política e o
direito. Em realidade, se as medidas excepcionais que denunciam o estado de exceção
são frutos de períodos de crise política, e por essa razão, é preciso compreendê-las
também no terreno da política, encontram-se elas na situação paradoxal de serem
medidas jurídicas pouco questionadas dentro de uma perspectiva crítica. O estado de
exceção apresenta-se então como forma instituída daquilo que tem uma aparência de
legalidade, mas que na verdade afronta o estado de legalidade exigível a um estado de
direito.
Quando da instauração do estado de exceção em um território, verifica-se a
suspensão da ordem jurídica vigente, afrontando-se, para tanto, os direitos fundamentais
194
pátrios que, se violados, subtraem do ordenamento toda a histórica construção jurídica a
respeito dos direitos humanos. Instaura-se, então, um espaço vazio de direito, que
decorrente da substituição da legalidade formal por uma outra ordem, assumindo o
detentor do poder de exceção competência para impor e determinar de certas regras,
dotadas de aparência de valor supremo, tal como as expressas pela assembléia
representativa do povo. 267
O estado de exceção vale-se então do poder simbólico para exercer seus fins e
legitimar-se como poder; trata-se de um poder invisível, que só pode ser exercido com a
cumplicidade daqueles que não querem saber se lhe estão sujeitos ou mesmo se o
exercem: é um poder revestido de um discurso que o maquia de forma tão eficaz, que
permite obter resultado equivalente àquilo que é obtido pela força (física ou
econômica); sujeita sem aparentemente subjugar quem é sujeitado, só exercendo sua
força quando ignorado como arbitrário. É um discurso de aplainamento social, eufêmico
por natureza. 268
O conceito de estado de exceção, embora continue difuso entre os doutrinadores,
interessa a essa pesquisa na sua relação com a expansão do direito penal. Para Agamben o
totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do
estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos
adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer
razão, pareçam não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de
um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no
sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos estados contemporâneos,
inclusive daqueles ditos democráticos. Diante do incessante avanço do que foi definido
como uma guerra civil mundial, o estado de exceção tende cada vez mais a se
apresentar como paradigma de governo dominante na política contemporânea. Esse
268
PASTANA, Débora Regina. Cultura do medo: reflexões sobre violência criminal, controle social e
cidadania no Brasil. São Paulo: Método, 2003. p. 100 “os regimes autoritários procuram evitar o
exercício da cidadania no âmbito social, e uma das formas de viabilizar isso é desviar a atenção do
cidadão de seus reais problemas, disseminando a insegurança (...) Para o autoritarismo, deve-se
eliminar as formas de organização da sociedade que possam atuar como grupos intermediários entre o
indivíduo e o Estado. Uma das maneiras é justamente exacerbar alguns problemas sociais e, o mais
importante, atribuir a determinados grupos a responsabilidade por eles. Isso fica claro no que se refere
ao problema da violência criminal urbana, em que a insegurança pública é mostrada como um problema
195
deslocamento de medida provisória e excepcional, para técnica de governo ameaça
transformar radicalmente – e, de fato, já transformou de modo muito perceptível – a
estrutura e o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição. O
estado de exceção apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação
entre democracia e absolutismo. 269 270
Historicamente, no que concerne ao estado de exceção, a doutrina tem
demonstrando a dificuldade de encontrar um conceito para essa medida excepcional.
Verifica-se que uma conceituação precisa a respeito do estado de exceção continua
faltando no direito público, tanto para os juristas quanto para os historiadores do direito:
o problema parece ser mais uma questão de fato (quæstio facti) do que um autêntico
problema jurídico, o que também é271 272.
A afronta à legalidade demonstra-se patente, quando por conseqüência da
implementação de um estado de exceção, não se respeita o limite da temporariedade,
crônico (daí o surgimento de uma cultura do medo), e o responsável direto, reconhecido pela imprensa e
pelo discurso político, é o delinqüente”.
269
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 12-13.
270
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La legitimación del control penal de los extraños. Los crímenes de
destrucción masiva e indiscriminada. Del 11-S, del 11-M y del 7-J.” Son expresiones de brutal violencia
que configuran crímenes de lesa humanidad, pero que responde a otra violencia y así podríamos seguir
regresando. No es necesario caer en el extremo de sostener dogmáticamente que a toda violencia debe
responderse con la no violencia, para verificar que nunca un conflicto fue solucionado definitivamente por
la violencia, salvo que se confunda solución definitiva con solución final (genocidio). Los que no
terminaron en genocidio, se solucionaron por la negociación, que pertenece al campo de la política. Pero
la globalización, empobreció la política hasta reducirla a su mínima expresión. Las decisiones
estructurales actuales asumen en la práctica la forma premoderna definida por Carl Schmitt, o sea, del
mero poder de señalar al enemigo. Esto va delineando dos frentes: el de los Derechos Humanos y la
negociación por un lado, cuyo bastión más importante se halla en Europa y en el campo académico de
casi todo el mundo (incluyendo el de los Estados Unidos) y, por otro, el de la solución violenta que arrasa
con los Derechos Humanos y acaba en el genocidio. La conciencia de la disyuntiva es mayor donde las
experiencias de terrorismo de estado permanecen en la memoria colectiva (Europa y América Latina), no
así en los Estados Unidos, donde existieron otros abusos represivos, pero nunca su población padeció el
terrorismo de estado.
271
WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. 2a versão. Porto Alegre: SAFE, 1995, p. 71-73. “
Para Warat, há a indicação de algumas opiniões jurídicas generalizadas provocadas pelos estereótipos
jurídicos, quais sejam: “a idéia de que a ordem jurídica nos fornece segurança; a noção de que o sistema
do direito positivo é a garantia da paz social; a necessidade de adaptação ao modelo de ordem que os
discursos jurídicos insinuam; a idéia de que o direito circunscreve as tensões sociais dentro de um marco
de pequenos conflitos; a superação dos problemas sociais através de mecanismos equilibrados do
sistema social; o direito é o árbitro neutro das disputas entre os homens (neutralidade do direito e do
Estado); a transformação da força em legalidade e a dominação em dever; a identificação do poder à
lei; identificação da obrigação de obedecer a certos valores aceitos como “essencialmente justos”; a
idéia da finalidade ética da sanção”.
272
Acredita-se que um dos elementos que tornam difícil a referida definição é a estreita relação existente
entre guerra civil, a insurreição e a resistência que encontram em suas matizes conceituais, um ponto em
comum: a instauração de um estado de exceção.
196
instaurando-se, com o passar do tempo, um também “legalizado/legitimado” (em sua
excepcionalidade) tribunal de exceção. Esse tribunal de exceção, por situações
contingentes, conta com a conivência da grande maioria dos operadores do direito para
se otimizar, tendo em vista que quem detém o poder de se insurgir contra essa afronta
mantém-se omisso na situação implementada.
Dito de outro modo, verifica-se que, quando da instauração de um estado de
exceção em um território, há a suspensão da ordem jurídica vigente, afrontando-se, para
tanto, direitos fundamentais pátrios que, se violados, subtraem do ordenamento toda a
construção jurídica a respeito da reserva legal. Acontece, pois, o estado de exceção
quando a legalidade formal de um estado é substituída, por exemplo, por decretos do
poder executivo que desrespeitam o dogma da temporalidade, assumindo a aparência de
valor supremo dos atos expressos pela assembléia representativa do povo.
A incerteza da definição do fenômeno corresponde exatamente a uma incerteza
terminológica. A denominação estado de exceção implica em uma tomada de posição
quanto à sua natureza e quanto à lógica mais adequada à sua compreensão, tendo em
vista que, semanticamente, está-se a representar o caráter de excepcionalidade e
temporalidade que deve assumir qualquer estado, quando da adoção de medidas de
emergência. As relações com o estado de guerra, no qual está presente na noção de
estado de sítio e de lei marcial são inadequadas para definir a estrutura própria do
estado de exceção, necessitando essa definição de qualificativos como político ou
fictício, também são um tanto equivocados. O estado de exceção encontra seu conceito
limite no estado de guerra enquanto suspensão temporária da própria ordem jurídica, e
nada mais que isso. 273 274
273
ALCORTA, Amancio. Las garantías constitucionales. Buenos Aires: Félix Lajouane, 1897. p. 145. “o
governo pela lei marcial não é normal: é um extremo que surge quando o exercício da lei comum não se
mostra suficiente para conjurar a tormenta, e o estado vê-se num imenso perigo de se ver envolvido pela
anarquia. Não se trata de desgoverno nem arbitrariedade, mas de aplicação de normas severas, é a
submissão sem contestações, é o procedimento breve e sumário, que retira da justiça ordinária seu
império e assimila os tribunais ordinários”.
274
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 15-17. “a história do termo
‘estado de sítio fictício ou político’ é, nesse sentido, instrutiva. Remonta à doutrina francesa, em
referência ao decreta napoleônico de 24 de dezembro de 1811, que previa a possibilidade de um estado
de sítio que podia ser declarado pelo imperador, independentemente da situação efetiva de uma cidade
sitiada ou diretamente ameaçada pelas forças inimigas. Prossegue o filósofo italiano argumentando que a
origem do instituto do estado de sítio encontra-se no decreto de 8 de julho de 1791 da Assembléia
Constituinte francesa, que distinguia entre état de paix, em que a autoridade militar e a autoridade civil
agem cada uma em sua própria esfera. A história posterior do estado de sítio é a história de sua
197
O estado de exceção introduz no direito uma zona de anomia onde são
confundidos os atos do poder executivo e do poder legislativo, definindo-se como um
regime no qual atos que não possuem valor de lei, adquirem força coercitiva de uma
legislação legítima.
Existe no ordenamento jurídico brasileiro a previsão legal da decretação do
estado de defesa e do estado de sítio que são instrumentos extraordinários de defesa do
estado, colocados à disposição do presidente da república para manejar as situações de
crises institucionais. É necessário lembrar, entretanto, que tanto o estado de defesa
quanto o estado de sítio regem-se pelo princípio da provisioriedade e da necessidade,
tendo um tempo pré-determinado para vigir, além de somente serem admitidos em seu
caráter de indispensabilidade para se constituir.
Quando quem rompe a legalidade de um estado democrático é o próprio
executivo, que se propõe a governar sem os limites previamente estabelecidos na ordem
constitucional, tem-se o dito estado de exceção na sua mais requintada acepção
negativa. Esses estados de exceção visam especialmente a criar condições para a
implantação de ditaduras, funcionando, no mais das vezes, como instrumento de
preservação de poder de uma classe dominante.275
A partir do momento que o estado de exceção torna-se a regra, ele não só se
apresenta muito mais como uma técnica de governo do que como uma medida
progressiva emancipação em relação à situação de guerra à qual estava ligado na origem, para ser
usado, em seguida, como medida extraordinária de polícia em caso de desordens e sedições internas,
passando, assim, de efetivo militar a fictício ou político. Em todo caso é importante não esquecer que o
estado de exceção moderno é uma criação da tradição democrático-revolucionária e não da tradição
absolutista. Embora, de um lado (no estado de sítio) , o paradigma seja a extensão em âmbito civil dos
poderes que são da esfera da autoridade militar em tempo de guerra, e, de outro, uma suspensão da
constituição (ou das normas constitucionais que protegem as liberdades individuais), os dois modelos
acabam, com o tempo, convergindo para um único fenômeno jurídico que chamamos de estado de
exceção”.
275
Várias vezes no passado presenciamos a decretação de um estado de sítio, mas que no fundo
objetivavam reprimir divergências político partidárias. A implementação do regime ditatorial de Vargas
foi erguida sob a vigência de um estado de emergência em todo país. Não foi diferente o panorama
histórico desenhado no Brasil de 1964/1978, onde se viveu num permanente estado de exceção, sob a
normatividade excepcional instrumentadas por atos institucionais.
198
excepcional, mas também deixa clarificar sua natureza de paradigma constitutivo da
ordem jurídica.276
Como explanado o estado de exceção na sociedade moderna tornou-se um
paradigma normal, então a legislação, que deveria ser realizada pelo parlamento, é
efetuada pelo poder executivo sob a forma de decretos-lei; isso significa que o
parlamento tem somente poder de controle sobre a faculdade legislativa que foi
apropriada pelo governo, ou seja, o poder executivo não executa, mas faz as leis. Essa
parece ser uma prática de camuflagem legal em todos os estados democráticos
modernos.
A progressiva erosão dos poderes legislativos do parlamento, que hoje se limita,
com freqüência, a ratificar disposições promulgadas pelo executivo sob a forma de
decretos com força de lei, tornou-se durante as guerras mundiais uma prática comum. A
primeira guerra mundial – e os anos seguintes – aparece, nessa perspectiva, como o
laboratório em que foram experimentados e aperfeiçoados os mecanismos e dispositivos
funcionais do estado de exceção como paradigma de governo. Uma das características
essenciais do estado de exceção – a abolição provisória da distinção entre poder
legislativo, executivo e judiciário – mostrou naquele contexto, sua tendência a
transformar-se em prática duradoura de governo.
Na doutrina, há uma divisão entre os que procuram inserir o estado de exceção
no âmbito do ordenamento jurídico e aqueles que o consideram exterior a esse
ordenamento, isto é, como um fenômeno essencialmente político ou, em todo caso,
extra-jurídico. Os primeiros concebem o estado de exceção parte integrante do direito
positivo, pois a necessidade que o funda age autônoma do direito. Divergem os
segundos pensadores sobre esse tema considerando o estado de exceção e a necessidade
que o funda como elementos de fato substancialmente extra-jurídicos, ainda que
possam, eventualmente, ter conseqüências no âmbito do direito. 277
276
Nesse sentido AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 18.
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 39. “Segundo a teoria
objetiva do estado de necessidade todo ato realizado em estado de necessidade e fora ou em oposição à
lei é contrário ao direito e, enquanto tal, juridicamente passível de acusação. A teoria subjetiva do
estado de necessidade, por sua vez, considera que o poder excepcional se baseia num direito
constitucional ou pré-constitucional (natural) do Estado, em relação ao qual a boa fé é suficiente para
garantir a imunidade jurídica”.
277
199
A simples oposição topográfica (dentro/fora) implícita nessas teorias sobre o
estado de exceção não são suficientes para dar conta de seu fenômeno como instituto
jurídico e político – afere-se desse ponto uma questão mais complexa que é as
conseqüências jurídicas advindas da suspensão temporária (que muitas vezes adota
contornos definitivos) da ordem jurídica, um limbo normativo de faz uso o poder
executivo para torna-se único e totalitário na gestão do estado. No dizer de Agamben278,
o estado de exceção não é nem exterior nem interior ao ordenamento jurídico; o
problema de sua definição diz respeito a um patamar, ou uma zona de indifereniação,
em que dentro e fora não se excluem, mas se determinam.
A suspensão da norma não significa sua abolição e a zona de anomia por ela
instaurada não é (ou, pelo menos, não pretende ser) destituída de relação com a ordem
jurídica. Daí o interesse por teorias como a de Schmitt que transformam a oposição
topográfica em uma relação topológica mais complexa, no qual o que está em questão é
o próprio limite do ordenamento jurídico. Em todo caso, a compreensão do problema do
estado de exceção pressupõe uma correta determinação de sua localização (ou de sua
deslocalização).
Por outro lado, há posições que colocam como fundamento do estado de exceção
o conceito de necessidade; assim, para que haja um estudo da estrutura e do significado
do estado de exceção, pressupõe-se uma análise do conceito jurídico de necessidade.
A teoria da necessidade não é outra coisa senão uma construção jurídica, uma
arresta legal na qual existe a permissão de escusar-se à obrigação da observância da lei.
A necessidade não é fonte de lei e tampouco suspende, em sentido próprio, a lei; ela se
limita a subtrair, em casos particulares, a aplicação literal da norma: aquele que, em
caso de necessidade, age além do texto da lei, não julga a lei, mas o caso particular em
que vê a letra da lei não deve ser observada.279
Dessa forma o fundamento último da exceção não é a necessidade, mas o
princípio segundo o qual toda lei é ordenada à salvação comum dos homens, e só por
278
279
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 41.
200
isso tem força e razão de lei; à medida que, ao contrário, sua faltar implica a perda de
sua força de obrigação. No estado contemporâneo, o estado de necessidade tende a ser
incluído na ordem jurídica e apresentar-se como verdadeiro estado da lei. A necessidade
nesse caso constitui, por assim dizer, o fundamento último e a própria fonte da lei. 280
As conseqüências desse sentido emergencial conferido à lei sob o argumento do
estado de necessidade são as justificativas de necessidade, não só para os interesses de
um estado contra o outro, mas também para fundamentar a validade dos decretos com
força de lei emanados do executivo no estado de exceção.
Diante disso, Agamben analisa a posição do jurista Santi Romano, que exerceu
extraordinária influência sobre o pensamento jurídico europeu entre as duas guerras.
Romano concebia a necessidade não só como não estranha ao ordenamento jurídico,
mas também como fonte primária e originária da lei. O autor opera a distinção entre os
que vêem na necessidade um fato jurídico ou mesmo um direito subjetivo do estado
que, enquanto tal, se funda, em última análise, na legislação vigente e nos princípios
gerais do direito; e aqueles entendem a necessidade como mero fato, portanto,
baseando-se os poderes excepcionais nessa realidade factual que não têm nenhum
fundamento nos sistema legislativo.
A necessidade é o esteio da lei; se se pode perceber a existência da lei é porque a
necessidade dela se fez presente na sociedade, o que significa dizer que a necessidade é
a fonte primária e originária do direito, sendo que as outras fontes de direito são dela
derivadas, ademais existe de uma verdadeira fonte de direito além da legislação. Assim,
o estado de exceção, enquanto figura da necessidade, apresenta-se por si só como
medida ilegal, mas perfeitamente jurídica e constitucional, que se concretiza na criação
de novas normas (ou de uma nova ordem jurídica).
Desse ponto de vista, parece que a necessidade seria uma forma de suspensão da
lei e dos direitos, estando à disposição sempre que necessário, como, por exemplo, nos
casos de terrorismo, violência, segurança, etc. Verifica-se então que foi construído um
280
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 43.
201
aparato para intervir sempre que alguma desordem se produz, esquecendo que seria
mais conveniente para os cidadãos que o estado efetivamente prevenisse as desordens.
Assim, o conceito de necessidade que embasa e justifica o estado de exceção é
um conceito volátil e vago, possibilitando sempre uma interpretação extensiva e
assegurando assim, uma ampliação de caráter subjetivo nos seus limites conceituais e
fáticos – o que não é nada prudente para um estado democrático de direito. O
conceito/situação referente a um estado de necessidade é totalmente subjetivo; trata-se
de algo sempre relativizado dentro do contexto do objetivo que se quer atingir ou
promover. A necessidade para operar seus efeitos dentro de um contexto de estado de
direito, para servir como causa justificante de determinadas ações ou restrições impõe a
promulgação de uma dada norma que lhe dê guarida, recepcionando-a, porque, de outro
modo, a ordem jurídica corre o risco desmoronamento.
Afirma Agamben que a tentativa de tentar resolver o estado de exceção
justificando-o pelo estado de necessidade choca-se, assim, com tantas e mais graves
aporias, quanto com o fenômeno que deveria explicar. Não só a necessidade se reduz,
em última instância, a uma decisão, como também aquilo sobre o que ela decide é, na
verdade, algo indecidível de fato e de direito. 281 282
O estado de exceção apresenta-se, assim, como a abertura de uma lacuna fictícia
no ordenamento jurídico, com o objetivo de salvaguardar a existência da norma e sua
aplicabilidade à situação normal; tem como finalidade dissuadir seu caráter de
excepcionalidade a fim de conferir uma aparência legitimadora à ordem legal e estatal.
A representação elucidativa de Agamben leciona que é como se o direito contivesse
uma fratura essencial entre o estabelecimento da norma e sua aplicação, que, em caso
281
Conforme ministra Warat no que se refere ao critério de decidibilidade: “... quando se estuda uma
linguagem-objeto qualquer, a primeira preocupação metalingüística é a de contar com um critério de
decidibilidade qualquer, isto é, com critério que nos permita decidir se qualquer enunciado ou proposição
forma ou não parte da referida linguagem-objeto. Como esse critério de decidibilidade baseia-se em certas
propriedades significativas, pode, por outro lado, ser também analisado como uma tentativa de definição
da região temática que pretende descrever ou ordenar a linguagem-objeto (nesse caso a validez). Ela
operaria como critério de decidibilidade das normas que podem ou não integrar um direito positivo,
distinguindo-se de outros tipos de normas”.
282
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 47.
202
extremo, só pudesse ser preenchida pelo estado de exceção, ou seja, criando-se uma área
onde essa aplicação é suspensa, mas onde a lei, enquanto tal, permanece em vigor. 283
No livro Teologia Política, de Carl Schimitt, propõe-se que os termos ditadura e
estado de sítio desapareçam, sendo substituídos por estado de exceção. A razão da
teoria do estado de exceção nas duas obras de Carl Schmitt é a inscrição do estado de
exceção num contexto jurídico. Mesmo sabendo que o estado de exceção é a suspensão
de direitos, o autor entende que o mesmo não pode ser comparado com a anarquia e o
caos, pois, na medida excepcional, ainda existe uma ordem, mesmo que seja a inversão
de uma ordem jurídica. O aporte específico da teoria schimittiana é exatamente o de
tornar possível tal articulação entre o estado de exceção e a ordem jurídica. Trata-se
de uma articulação paradoxal, pois o que deve ser inscrito no direito é algo
essencialmente exterior a ele, isto é, nada menos que a suspensão da própria ordem
jurídica. 284 285 286
Por outro lado, na Teologia política, o operador da inscrição do estado de
exceção na ordem jurídica é a distinção entre dois elementos fundamentais do direito:
norma e decisão. Suspendendo a norma, o estado de exceção revela, em absoluta
pureza, um elemento formal especificamente jurídico: a decisão. Os dois elementos,
norma e decisão, mostram aqui sua autonomia factual. Diante disso, a teoria do estado
de exceção fica conhecida, na Teologia política, como doutrina da soberania. O estado
de exceção pode até ser normatizado por legislação emergencial, e alicerçado e anuído
pelo discurso do risco e do medo, optando o executivo por operar uma montagem legal
que dê ancoragem a esse estado de exceção. Isso, porém, não legitima os atos
totalitários empreendidos em nome da necessidade e do medo. É notório que a falta
temperança se impõe sempre que o manus do estado está concentrado nas mãos de
determinados interesses setorizados. 287 288
283
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 48-49.
Carl Schimitt, por duas vezes, tentou de maneira mais rigorosa construir uma teoria sobre o estado de
exceção, uma delas ocorreu no livro sobre a ditadura e posteriormente em uma obra sobre a teologia
política. No primeiro deles, o estado de exceção é apresentado através da figura da ditadura, onde o
contexto que se inscreve a medida excepcional distinguem-se a “ditadura comissária”, que visa defender
ou a restaurar a constituição vigente, e a “ditadura soberana” na qual como figura da exceção, ela alcança
sua massa crítica ou se ponto de fusão.
285
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 53.
286
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 54.
287
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 56-57 “O soberano, que
pode decidir sobre o estado de exceção, garante sua ancoragem na ordem jurídica. Mas, enquanto a
284
203
Observe-se que a desesperança e pânico coletivo, frente à ineficácia da justiça
em promover a efetivação de um estado democrático de direito e de seu princípio basilar
de justiça, ameaçam o projeto democrático: as reações irracionais e reacionárias em face
da questão da violência preconizam desde a adoção da pena de morte, passando por
operações militares violentas e indiscriminadas em favelas e núcleos de pobreza da
população civil, até a utilização banal de providências extraordinárias de estabilização
da ordem pública, como o estado de sítio e o estado de defesa, previstos nos artigos 136
e 137 da Constituição Federal, sabidamente acompanhadas da conseqüente supressão de
direitos e garantias fundamentais.289
A impossibilidade de efetivação de um estado de direito abre espaço para a
implementação de estados de exceção. As brechas deixadas pela omissão do estado em
prover a segurança jurídica a que se propõe o tornam vulnerável, pois a tentativa de dar
real legitimidade ao discurso que decorre de estados de exceção e do discursos jurídico
decisão diz respeito aqui à própria anulação da norma, enquanto, pois, o estado de exceção representa a
inclusão e a captura de um espaço que não está fora nem dentro, “o soberano está fora da ordem
jurídica normalmente válida e, entretanto, pertence a ela, porque é responsável pela decisão quanto à
possibilidade da suspensão da constituição”.
288
Impulsionaram o regime militar de exceção de 1964 crises políticas fomentadas pelas articulação
coordenada por três forças políticas que já haviam marcado sua posição no processo político na década de
50: o capital multinacional associado ao nacional, o capital de Estado e os militares . A ruptura de sua
primeira experiência democrática brasileira iniciada com o fim do Estado Novo, em 1945, possibilitou
que, em 1965 o Ato Institucional Nº 2, extinguir todos os partidos que haviam florescido durante o
período de 1945. Encerrava-se assim o primeiro ciclo de uma experiência multipartidária efetiva onde a
marca principal foi o surgimento de partidos com abrangência nacional e perfis ideológicos distintos,
acompanhando o desenvolvimento urbano-industrial ocorrido na década de 50. Entretanto, as forças
golpistas que haviam articulado a derrubada do governo João Goulart não eram fruto de uma ação política
extemporânea, puramente movida pela emoção do momento. Pelo contrário, eram resultado de uma
competente articulação político-ideológica movida pela Ideologia da Doutrina de Segurança Nacional e
Desenvolvimento, cujo principal pólo irradiador era a ESG -Escola Superior de Guerra-, que, com o apoio
do capital multinacional, do capital nacional, associado ao estrangeiro, e com a participação do governo
norte-americano, através da CIA, conseguiram construir oportunidades sobre o aparente clima de caos
político-social, favorecendo a queda do governo João Goulart. A Ideologia de Segurança Nacional foi
transplantada para o Brasil após a 2ª Guerra Mundial, quando vários oficiais superiores foram treinados
no National War College (centro de treinamento do alto escalão do exército norte-americano). O objetivo
principal desta ideologia era garantir metas de segurança para implantar uma geo-política para todo o
Cone Sul do Continente Americano, capaz de bloquear o perigo expansionista do comunismo
internacional. A Ideologia da Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento representava uma
completa weltanschauung que tinha como meta criar condições para, através do fortalecimento do
Estado, construir um modelo de desenvolvimento econômico extremamente favorável à entrada do capital
estrangeiro, pretendendo implantar uma infra-estrutura capaz de transformar o país em uma potência
econômica. Para que isto pudesse ocorrer, era necessário manter sob controle o crescimento dos
movimentos sociais organizados que, cada vez mais, ocupavam espaços no cenário político, criando um
clima político-social de grande instabilidade, ameaçando os interesses da classe dominante nacional.
289
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira, A constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o
constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 78.
204
penal que intenciona legitimá-lo é expressão doutrinária e política ideologicamente
conduzida com a finalidade de maquilar um arbítrio seletivo e um aniquilamento de
todos aqueles que não respondem aos apelos de uma sociedade capitalista e
estigmatizante. Assim, o discurso que propaga a efetividade do estado de exceção e sua
legitimação ou é ingênuo em suas assertivas, ou desconsidera que se está frente a uma
estruturação semântica racional que serve para silenciar o exclusivo pragmatismo de
suas intenções. 290 291
Os argumentos empíricos que tentam dar sustentação ao estado de exceção são,
na grande maioria das vezes, seletivos, tendo como ponto nodal uma discriminação e
uma tentativa de extermínio de toda a fonte de ameaça ao sistema organizacional em sua
dimensão gerencial, visando subornar e silenciar qualquer discurso de resistência; tratase de um apartheid social onde todos aqueles que não aderem aos interesses dos
governantes são vistos como impurezas sociedade que pacificamente acolhe teses
segregadoras.
290
CARVALHO, Amilton Bueno de. Magistratura e direito alternativo. 6 ed. Rio de Janeiro: Lumem
júris, 2003, p. 27-28. Leciona Carvalho, que afirma: “(...) b) dirão alguns que a lei penal tipifica aqueles
comportamentos que ofendem mais à moralidade média. Será verdade? Vejamos o que nos causa maior
desagrado: a ofensa à honra (injúria), a ofensa ao corpo (lesão leve), ou a ofensa ao patrimônio (uma
pessoa com grave ameaça que subtraia um relógio- roubo)? Evidente que a ordem de desagrado é em
primeiro lugar a honra, após o corpo e depois o patrimônio. Quais as penas? Detenção de uma a seis
meses ou multa (art. 140 do CP); detenção de três meses a uma ano (art. 129); reclusão de quatro a dez
anos (art. 157), respectivamente. Surge uma questão básica: quem pratica o roubo, ou seja, a subtração
de coisa móvel mediante grave ameaça? Evidente que é o pobre. Os outros dois delitos os não-pobres
praticam, o de roubo não! Para quem foi feito o dispositivo legal com tamanha pena? c) outro exemplo é
mais chocante: imaginemos o mesmo delito de roubo (mediante grave ameaça subtraiam um relógio) em
confronto com o delito de esbulho possessório (mediante grave ameaça invadam um imóvel – art. 161 do
CP). Os crimes são praticamente idênticos, só diferem que num o objeto é móvel, noutro é imóvel. Como
valoramos mais o imóvel, este deveria ser melhor protegido. Mas não é. A pena daquele é de quatro a
dez anos, e este é de uma a seus meses.”
291
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal,
Rio de Janeiro: Revan, 2001. “da pluralidade semântica da expressão legalidade pode-se extrair outro
sentido: a operacionalidade real do sistema penal seria ‘legal’ se os órgãos para que ele convergem
exercessem seu poder de acordo com a programação legislativa tal como a expressa o discurso jurídicopenal. ‘Legalidade’ no sentido ora utilizado, é um conceito do que o discurso jurídico penal retira
fundamentalmente dois princípios: o da legalidade penal e o da legalidade processual. O da legalidade
penal exige que o exercício do poder punitivo do sistema penal aconteça dentro dos limites previamente
estabelecidos para a punibilidade. O princípio da legalidade processual (ou da legalidade da ação
processual) exige que os órgãos do sistema penal exerçam seu poder para tentar criminalizar todos os
autores de ação típicas, antijurídicas e culpáveiis e que o façam de acordo com certas pautas
detalhadamente explicitadas. Isto significa não apenas que o sistema penal somente exercia seu poder
na medida estrita da planificação legal, como também o sistema penal sempre em todos os casos deveria
exercer este poder”.
205
Os técnicos do direito, a quem caberia elucidar, denunciar essa condução
ideológica que tenta dar legitimadade a legislações e estados de exceção, na grande
maioria das vezes, endossam essa postura segregadora. Eximindo-se, por exemplo, da
possibilidade de conferir legitimação ao direito penal, dando as costas à sua atribuição
humana, coisificando a lide, o processo e, principalmente, os sujeitos processuais que a
integram, os operadores do direito, assim, acabam recepcionando o reacionário discurso
do estado de exceção, isto é, do totalitarismo e da imposição da supremacia do
executivo sobre os demais poderes fazendo uso do discurso jurídico penal,
transformando-o em algo etéreo e a-ético que renuncia a possibilidade ínsita a cada
processo de reeditar/promover o direito na busca de uma sociedade mais eqüânime. O
discurso do estado de exceção não pretende compor com os cidadãos uma sociedade
mais justa que tenha possibilidade e espaço para recepcionar um ordenamento jurídico
legítimo; almeja, isto sim, exterminar pela violência todo aquele que se opõe ao
totalitarismo dessa legislação emergencial, que sempre suprime, incinera e cala pela
fome, pelo gás, pela escopeta, pelos desmandos, pela corrupção, pelo abuso de poder,
seus opositores. 292 293
O estado de exceção, pela exclusão que efetiva quando da sua implementação,
propõe-se a executar a eliminação de categorias inteiras que pareçam não integráveis ao
sistema político. Contudo, precisa-se ressaltar que o estado de exceção não se dá
necessariamente em uma ditadura, mas em um espaço vazio de direito. De fato, o estado
de exceção, em sua na sua forma moderna foi criado pela Revolução Francesa,
pertencendo, portanto, à tradição da democracia e não àquela do absolutismo, ou, mais
292
A teoria de BARATTA procura dar sustentação à "adoção do ponto de vista das ‘classes subalternas’
como garantia de uma práxis teórica e política alternativa, afirmando que, enquanto as classes
hegemônicas pretendem conter o desvio dentro de limites não muito perturbadores, as classes subalternas
estão empenhadas numa luta radical contra os comportamentos socialmente negativos (por
comportamentos negativos entendem-se a criminalidade econômica, a poluição, a criminalidade do poder,
a máfia, etc.). Para tanto, BARATTA reclama uma ciência que não se limite à descrição da mera
desigualdade jurídica no campo penal, mas que compreenda a função real do sistema penal na sociedade
tardo-capitalista, como reprodutor das relações sociais de desigualdade, e que explicite que estas relações
não se baseiam na distribuição desigual de bens e valores, mas nas próprias relações de produção.
293
FELDENS Luciano. A constituição penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de normas
penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 21. “O surgimento de uma Constituição projeta , a
partir de seu nascimento e para o futuro, o novo modelo de Estado sob cujo os parâmetros deseja
orientar-se a sociedade. A partir da superioridade político-normativa formata-se, em vários níveis
essenciais, a legitimidade da atuação dos tradicionais Poderes de Estado, bem assim de outras
instituições públicas que desfrutam de um perfil constitucional. Paralelamente, são-lhes fixados campos
onde lhe será interdito adentrar, o que decorre não apenas da limitação constitucional de competências,
mas do necessário respeito àquilo que se faz, com igual proeminência, matéria constitucional: os direitos
fundamentais”.
206
apropriadamente, pertencendo a “um patamar de indeterminação entre democracia e
absolutismo”.
Hoje, o estado de exceção realiza-se como uma gestão de uma nova desordem
mundial, modulável segundo dispositivos de vigilância. Dentre esses dispositivos,
encontram-se, além dos olhares maquínicos das câmeras de monitoramento, presentes
em espaços públicos e privados, fichamentos eletrônicos das impressões digitais e da
retina, tatuagens subcutâneas, coleiras eletrônicas, práticas do confinamento e, até,
coleira auditivas (microfones) que os participantes do reality shows são obrigados a
usar, caso contrário serão punidos.
O que está em jogo, assim, é o estatuto normal de cidadãos dos estados ditos
democráticos, que são persuadidos a aceitar como naturais práticas de controle que
sempre foram consideradas excepcionais e desumanas. Ou seja, o que está em jogo é
uma nova relação biopolítica entre estado e indivíduo, o qual passa a ser considerado
um corpo, assim como a idéia de povo, outrora sujeito político, torna-se sinônimo de
simples população.
Uma vez que a vida humana e o corpo biológico se tornam o alvo central dos
difusos mecanismos de poder, todo o campo da política se transforma, e as oposições
que anteriormente o definiam, tais como público-privado, esquerda-direita, democraciaabsolutismo começam a se atenuar.
A princípio a oposição entre a norma e a decisão são irredutíveis, no sentido de
que a decisão nunca pode ser deduzida da norma sem deixar rastro, sem ser motivada
por uma decisão judicial que forneça no mínimo o enquadramento negativo que negue
o dever ser de uma ação humana subsimindo-se a ela (reserva legal). Havendo do
sujeito ativo de qualquer crime, um elemento acéfalo – porque qualquer pessoa que não
se enquadre na expectativa do órgão gestor – e da ação humana possível de condenação,
qualquer ato cotidiano, destituído do necessário comando não infringível: sem a
tipificação precisa do delito, do bem jurídico tutelado, do sujeito ativo que infere a uma
determinada conduta e que pode escusar-se a ela por uma excludente legal (legitima
defesa, estado de necessidade). Na decisão sobre o estado de exceção, a norma é
suspensa ou completamente anulada; mas o que está em questão nessa suspensão é a
207
criação de uma situação que torne possível a aplicação da norma. O estado de exceção
separa a norma de sua aplicação para tornar possível a aplicação, mas cria é também um
espaço anômico, onde o que está em jogo é uma força de lei sem lei. 294
Retoma-se então, Agamben que enuncia, sob a forma de tese, os resultados de
uma pesquisa genealógica sobre o iustitium:
(1) O estado de exceção não é uma ditadura (constitucional ou
inconstitucional, comissária ou soberana), mas um espaço vazio de direito,
uma zona de anomia em que todas as determinações jurídicas – e, antes de
tudo, a própria distinção entre público e privado – estão desativadas.
Portanto, são falsas todas aquelas doutrinas que tentam vincular diretamente
o estado de exceção ao direito, o que se dá com a teoria da necessidade como
fonte jurídica originária, e com a que vê no estado de exceção o exercício de
um direito do estado à própria defesa ou à restauração de um originário
estado pleromático do direito. Mas igualmente falaciosas são as doutrinas
que, como a de Schmitt, tentam inscrever indiretamente o estado de exceção
num contexto jurídico, baseando-o na divisão entre normas de direito e
normas de realização do direito, entre poder constituinte e poder constituído,
entre norma e decisão. O estado de necessidade não é um “estado do direito”,
mas um espaço sem direito (mesmo não sendo um estado de natureza, mas se
apresenta como a anomia que resulta da suspensão do direito). (2) Esse
espaço vazio de direito parece ser, sob alguns aspectos, tão essencial à ordem
jurídica que esta deve buscar, por todos os meios, assegurar uma relação com
ele, como se, para se fundar, ela devesse manter-se necessariamente em
relação com uma anomia. Por um lado, o vazio jurídico de que se trata no
estado de exceção parece ser absolutamente impensável se reveste, para a
ordem juríca, de uma relevância estratégica decisiva e que, de modo algum,
se pode deixar escapar. (3) O problema crucial ligado à suspensão do direito
é o dos atos cometidos durante o iustitium, cuja natureza parece escapar a
qualquer definição jurídica. À medida que não são transgressivos, nem
executivos, nem legislativos, parecem situar-se, no que se refere ao direito,
em um não lugar absoluto. (4) É a essa indefinibilidade e a esse não-lugar
que responde a idéia de uma força de lei sem lei. É como se a suspensão da
lei liberasse uma força ou um elemento mísitico, uma espécie de mana
jurídico, de que tanto o poder quanto seus adversários, tanto o poder
constituído quanto o poder constituinte tentam apropriar-se. A força de lei
separada da lei, a vigência sem aplicação e, de modo geral, a idéia de uma
espécie de “grau zero” da lei, são algumas das tantas ficções por meio das
quais o direito tenta incluir em si sua própria ausência e apropriar-se do
estado de exceção ou, no mínimo, assegurar-se uma relação com ele. 295 296
294
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 58.
Resumidamente, o Iustitium implica em uma suspensão não apenas da administração da justiça, mas
do direito enquanto tal. É o sentido desse paradoxal instituto jurídico, que consiste unicamente na
produção de um vazio jurídico. É a interrupção, a suspensão do direito.
296
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 78-80.
295
208
Em análise realizada sobre um debate entre Walter Benjamim e Carl Schmitt
sobre o estado de exceção, Agamben tenta ler a teoria schmittiana da soberania como
uma resposta à crítica benjaminiana da violência. Já de início afirma: 297
O objetivo do ensaio é garantir a possibilidade de uma violência
absolutamente “fora” e “além” do direito e que, como tal, poderia quebrar
a dialética entre violência que funda o direito e violência que o conserva.
Benjamin chama essa outra violência de “pura” ou de “divina” e, na esfera
humana, de revolucionária. O que o direito não pode tolerar de modo algum,
o que sente como uma ameaça contra a qual é impossível transigir, é a
existência de uma violência fora do direito; não porque os fins de tal
violência sejam incompatíveis com o direito, mas pelo simples fato de sua
existência fora do direito.298
Importante ressaltar que enquanto a estratégia benajamimana visava à existência
de uma violência pura e anômica, em Schmitt, ao contrário, trata-se de trazer tal
violência para um contexto jurídico. O estado de exceção é o espaço em que ele procura
capturar a idéia benjaminiana de uma violência pura e inscrever a anomia no corpo
mesmo do nomos. Segundo Schmitt, não seria possível existir uma violência pura, isto
é, absolutamente fora do direito, porque, no estado de exceção, ela está incluída no
direito por sua própria exclusão. O estado de exceção é, pois, o dispositivo por meio do
qual Schmitt responde à afirmação benjaminiana de uma ação humana inteiramente
anômica.299
Assim, Carl Schmitt elabora sua teoria da soberania, mais precisamente a
violência soberana a qual responde à violência pura do ensaio benjaminiano por meio de
uma figura que não funda nem conserva o direito, mas o suspende. No mesmo sentido, é
em resposta à idéia benjaminiana de uma indecidibilidade última de todos os problemas
jurídicos que Schmitt afirma a soberania como lugar da decisão extrema.300
Do ponto de vista schimittiano, o funcionamento da ordem jurídica baseia-se, em
última instância, em um dispositivo – o estado de exceção – que visa a tornar a norma
aplicável suspendendo, provisoriamente, sua eficácia. Quando a exceção se torna a
regra, a máquina não pode mais funcionar. Nesse sentido, a indiscernibilidade entre
norma e exceção deixa a teoria schmittiana em situação difícil. A decisão soberana não
297
Aqui o autor se refere ao ensaio benjaminiano “Crítica da violência: Crítica do poder” de 1921.
BENJAMIN Apud AGAMBEN, Giorgio. op. cit. p. 85.
299
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 85-86.
298
209
está mais em condições de realizar a tarefa que a Teologia Política lhe confiava: a regra,
que coincide agora com aquilo de que vive, se devora a si mesmo.301
O que está em jogo no debate entre Benjamin e Schmitt sobre o estado de
exceção, é que a discussão se dá numa mesma zona de anomia que, de um lado, deve ser
mantida a todo custo em relação com o direito e, de outro, deve ser também
implacavelmente libertada dessa relação. O que está em questão na zona de anomia é,
pois, a relação entre violência e direito – em última análise, o estatuto da violência
como código da ação humana. Ao gesto de Schmitt que, a cada vez, tenta reinscrever a
violência no contexto jurídico, Benjamin responde procurando, a cada vez, assegurar a
ela – como violência pura – uma existência fora do direito.302
Cumpre salientar que violência pura é ilegítima sem um respaldo legal que
autoriza a exercício do jus puniendi e sem o devido processo legal a dar sustentação a
apuração da responsabilidade penal. A ação humana, por si só, não funda nem conserva
o direito, só sendo relevante para o direito no momento em que momento em que é
capturada e inscrita na ordem jurídica. Ela é apenas o que está em jogo no conflito sobre
o estado de exceção, o que resulta dele e, que somente desse modo, é pressuposto ao
direito.303
Nesse contexto, é importante observar que a relação entre violência pura e
violência jurídica, entre estado de exceção e violência revolucionária, se faz tão estreita
que os dois jogadores que se defrontam no tabuleiro de xadrez da história parecem
mexer o mesmo pião. É decisivo, entretanto, que o critério para sua distinção se baseie,
em todos os casos, na solução da relação entre violência e direito.304
O que parece é que o estado de exceção no universo do direito se apresenta
como um campo de forças percorrido por duas tensões conjugadas e opostas: uma que
vai da norma à anomia e a outra que, da anomia, leva à lei e à regra.305
300
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 86.
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 90-91.
302
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 92.
303
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 93-94.
304
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 96.
305
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 110-111.
301
210
Daqui resulta um duplo paradigma que marca o campo do direito
com uma ambigüidade essencial: de um lado, uma tendência normativa em
sentido estrito, que visa a cristalizar-se num sistema rígido de normas cuja
conexão com a vida é, porém, problemática, senão impossível (o estado
perfeito de direito, em que tudo é regulado por normas); de outro lado, uma
tendência anômica que desemboca no estado de exceção ou na idéia do
soberano como lei viva, em que uma força de lei sem lei privada na norma
age como pura inclusão da vida.306
Por fim, Giorgio Agamben faz uma análise do estado de exceção em Roma, e
trabalha o conceito de auctoritas a qual se refere a uma fenomenologia jurídica
relativamente ampla, que diz respeito tanto ao direito privado quanto ao público.
No âmbito privado, a auctoritas é a propriedade do auctor, isto é,
da pesso sui iuris que intervém para conferir validade jurídica ao ato de um
sujeito que, sozinho, não pode realizar um ato jurídico válido. Assim, a
auctoritas do pai “autoriza” isto é, torna válido o matrimônio do filho in
potestate. De modo análogo, o vendedor é obrigado a assistir o comprador
para validar seu título de propriedade durante um processo de reivindicação
que o oponha a um terceiro. (...) Tudo se passa, então, como se, para uma
coisa poder existir no direito, fosse necessária uma relação entre dois
elementos (ou dois sujeitos): aquele que é munido de autoctoritas e aquele
que toma a iniciativa do ato em sentido estrito. Se os dois elementos ou os
dois sujeitos coincidirem, então o ato está perfeito. Se, ao contrário, houver
entre eles uma distância ou uma ruptura, será necessário introduzir a
auctoritas para que o ato seja válido. (...) No direito público, a auctoritas
designa a prerrogativa por excelência do Senado. Sujeitos ativos dessa
prerrogativa são, portanto, os patres: auctoritas patrum e patres auctores
fiunt são fórmulas comuns para se expressar a função constitucional do
Senado.307
A analogia realizada acima, não significa necessariamente que o povo deva ser
considerado como um menor em relação ao qual os patres agem como tutores: o
essencial é, sobretudo, que haja a dualidade de elementos que na esfera do direito
privado, define a ação jurídica perfeita.308
O outro instituto em que a auctoritas mostra sua função específica de suspensão
do direito é a hostis iudicatio.
Em situações excepcionais, em que um cidadão romano ameaçasse,
através de conspiração ou de traição, a segurança da república, ele podia
ser declarado pelo Senado hosits, inimigo público. O hostis iudicatus não era
simplesmente assimilado a um inimigo estrangeiro, o hostis alienígena,
306
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 111.
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 117/119.
308
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 120.
307
211
porque este, entretanto, era sempre protegido pelo ius gentium; o hostis
iudicatus era, antes, radicalmente privado de todo estatuto jurídico e podia,
portanto, em qualquer momento, ser destituído da posse de seus bens e
condenado à morte. O que é suspenso pela auctoritas não é, aqui,
simplesmente a ordem jurídica, mas o ius civis, o próprio estatuto do cidadão
romano. (...) A auctoritas do Senado aparece, pois, em sua forma mais pura
e mais evidente quando é invalidada pela potestas de um magistrado, quando
vive como mera escrita em absoluta oposição à vigência do direito. Por um
instante, a auctoritas revela aqui sua essência: o poder, que pode “conferir a
legitimidade” e, ao mesmo tempo, suspender o direito, mostra seu caráter
mais específico no momento de sua ineficácia jurídica máxima. Ela é o que
resta do direito se ele for inteiramente suspenso.309
O sistema jurídico do ocidente apresenta-se como uma estrutura dupla, formada
por dois elementos normativo e jurídico em sentido estrito – que se pode inscrever aqui
sob a rubrica de potestas –; e um elemento anômico e metajurídico – que se pode
designar pelo nome de auctoritas.310
O que a arca do poder contém em seu centro é o estado de exceção – mas este é
essencialmente um espaço vazio, onde a ação humana sem relação com o direito está
diante de uma norma sem relação com a vida. O estado de exceção, hoje, atingiu
exatamente seu máximo desdobramento planetário. O aspecto normativo do direito pode
ser, assim, impunemente eliminado e contestado por uma violência governamental que,
ao ignorar no âmbito externo o direito internacional e produzir no âmbito interno um
estado de exceção permanente, pretende, no entanto, ainda aplicar o direito.311
Essa realidade fica especialmente clara após o 11 de setembro, a partir de
quando diversos países começaram a promulgar legislações perigosas, com o objetivo
de ampliar sua segurança. A preocupação com a segurança é legítima, mas ela não pode
afrontar os direitos constitucionais e humanos, que são violados hoje em dia das mais
diversas formas. Existem, inclusive, situações nas quais essas afrontas são usadas como
forma de esconder outras violações aos direitos humanos, mais graves. Exemplo disso
seria o caso das torturas cometidas nas prisões do Iraque. Elas são, de fato, grandes
violações aos direitos humanos, mas sua publicidade acabou encobrindo uma outra
violação, muito maior, anterior e responsável por aquela, que é a própria guerra do
309
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.p 122-123.
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 130.
311
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 131.
310
212
Iraque. Mas essa, por algum motivo, não é considerada uma violação aos direitos
humanos.
Parece que a ordem jurídica encontra-se realmente num vazio com relação ao
estado de exceção, e o curioso é que foi preciso um filósofo – muito embora com
formação jurídica – preocupar-se com o assunto diante da inércia dos juristas e
políticos.
É, nesse contexto, que o pertencimento de decretos de urgência ao âmbito
problemático do estado de exceção aparece com clareza, pois a partir de uma situação
de necessidade a constituição poderá ser violada. Nessa perspectiva o próprio presidente
Bush poderá produzir uma situação em que a emergência se torne a regra, podendo a
partir daí violar ainda mais os direitos civis.
A função do estado tem, portanto uma dupla face: por um lado, como detentor
do monopólio da violência, o estado deve impor limitações a seus poderes e ações; por
outro lado, como guardião da ordem pública, ele deve ser o protetor e o garantidor de
todas as liberdades. O rumo tomado pelo processo penal emergencial, por exemplo, faz
recear uma involução no progresso democrático do processo penal e suspeitar que a
ideologia do estado de direito tenha capitulado cedo demais.
Em certas regiões brasileiras, a instauração de um estado paralelo a um estado de
direito é a regra. Esse espaço carrega ìnsita a sua formação regras, códigos comportais
específicos e sanções a quem não cumpre o convencionado. Nesses estados, toda ficção
de um vínculo entre a violência e o direito desaparece: instaura-se definitivamente uma
zona de anomia em que prevalece a pura violência sem nenhuma cobertura dos órgãos
estatais e onde inexiste a possibilidade de intervenção jurídica.
Quando se abdicar da autotutela, da vingança privada, delega-se ao estado o
direito de punir, sendo que o mesmo em contraprestação teoricamente daria a certeza
normatizada da punição àqueles que violam a legislação e a seguridade jurídica da
convivência harmônica em sociedade e da defesa do bem-comum.
213
4 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
O presente capítulo é dedicado a pesquisa da dignidade da pessoa humana como
direito fundamental partindo da análise desse princípio como pressuposto de um estado
democrático de direito e questionando a possibilidade da disponibilização da dignidade,
visível em leis especiais e em doutrinas jurídicas que objetivam a flexibilização dos
direitos e garantias individuais fundamentais frente a criminalidade organizada.
É sabido que todos os valores que pautam as sociedades humanas de uma forma
ou de outra giram em torno da pessoa humana, fonte e sustentáculo valorativo do
direito. Sua importância avulta-se no mundo contemporâneo tendo em vista que muitas
vezes é o próprio valor do ser humano que é posto em causa. Mas, independentemente
das conquistas alcançadas no campo dos direitos humanos, o cotidiano tem mostrado
que as vicissitudes e as constantes crises e guerras a que são submetidos diferentes
povos, nações, ou agrupamentos humanos revelam que o processo de afirmação do
homem como pessoa portadora de valores éticos insuprimíveis, tais como a dignidade, a
autonomia, a liberdade, exige uma constante vigilância. 312
A dignidade da pessoa humana é um direito fundamental. Os direitos
fundamentais podem ser entendidos, em sua acepção formal, como aqueles direitos
básicos do indivíduo e do cidadão, reconhecidos pelo direito positivo de um estado e
que exigem ou uma abstenção ou uma atuação no sentido de garanti-los. No Brasil, essa
expressão engloba vários direitos, tais como: os individuais, os coletivos, os difusos, os
sociais, os nacionais e os políticos.313
Saliente-se que a história dos direitos fundamentais está diretamente ligada ao
aparecimento do constitucionalismo e da dignidade da pessoa humana, sendo que no
312
Os primeiros direitos reconhecidos surgiram contra a opressão do monarca e seus abusos de poder,
assim, pela evolução histórica os direitos voltados ao valor liberdade foram inicialmente classificados
como direitos negativos, na qualidade de limites constitucionais ao poder do Estado. Como corolário
dessa visão, os direitos da liberdade seriam sempre eficazes, já que não dependeriam de regulamentação.
Conquanto fosse admitida a regulação das liberdades, o gozo das mesmas decorreria da própria
constituição, não do trabalho do legislador inferior.
313
Direitos do homem seriam os direitos referentes à condição do indivíduo enquanto ser humano, que,
portanto, se estendem à toda humanidade, em todos os lugares, sem limitação temporal. Estes direitos se
baseariam no conceito de direito natural, os quais não necessitariam de serem criados pelo direito
positivo, mas tão somente de serem reconhecidos e declarados, em razão de serem verdadeiros direitos
humanos, expressão esta utilizada como sinônima de direitos do homem.
214
final do século XVIII, sua maior expressão está na célebre Magna Carta, escrita na
Inglaterra, em 1215, pela qual o Rei reconhecia alguns direitos dos nobres, limitando o
poder do monarca. A Revolução Francesa, em 1789, promoveu vários documentos
escritos que buscavam garantir aos cidadãos os seus direitos elementares em face da
atuação do poder público, sendo que o que alcançou maior visibilidade foi a
denominada Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, produto
daquela revolução ocorrida em território francês.
A Declaração de Virgínia, elaborada em 1776, procurava estabelecer os direitos
fundamentais do povo norte-americano, tais como a liberdade, a igualdade, eleição de
representantes etc. Logo após a 2a Guerra Mundial, em 1948, a Organização das Nações
Unidas fazia editar a Declaração Universal dos Direitos do Homem, estendendo para
praticamente todo o mundo o respeito e a proteção aos direitos fundamentais do ser
humano.
Defende Sarlet a ligação da dignidade da pessoa humana com os direitos
fundamentais, afirmando que ao centrar-mos a nossa atenção na dignidade da pessoa
humana, desde logo há de se destacar que a íntima e, por assim dizer, indissociável_
embora complexa diversificada_ vinculação entre a dignidade da pessoa humana e os
direitos fundamentais já constitui , por certo, um dos postulados nos quais se assenta o
direito constitucional contemporâneo. Afirma o autor que se virtualmente incontroverso
o liame entre a dignidade da pessoa e os direitos fundamentais, o consenso,
praticamente se limita ao reconhecimento da existência e da importância desta
vinculação, além disso, levando-se em conta que a dignidade acima de tudo diz da
condição humana, deve ser tratado de assunto de perene relevância, vigilância e
atualidade. Salienta o autor que apenas quando e (se) o ser humano viesse ou pudesse
renunciar a sua condição é que se poderia cogitar da absoluta desnecessidade, todavia,
justamente pelo fato de que a dignidade vem sendo desconsiderada (pelo menos para
muitos e mesmo que não exclusivamente) constitui-se qualidade intrínseca e
indissociável de todo e qualquer ser humano e certos de que a destruição de um
implicaria na destruição de outro, é que o respeito e a proteção da dignidade da pessoa
215
(de cada e de todas) constitui-se uma meta permanente da humanidade, do Estado e do
Direito. 314 315
Leciona Jorge Miranda:
“ Nos séc. XVII e XIX dir-se-ia existir somente uma concepção de direitos
fundamentais, a liberal. Não obstante as críticas de várias origens _legitimistas,
socialistas, católicas _era o liberalismo que prevalecia em todas as Constituições e
Declarações e não inobstante a pluralidade de escolas jurídicas jusnaturalistas a
positivista e histórica era a ele que se reportavam de uma maneira ou de outra, as
interpretações de liberdade individual.
(...) A situação muda no séc.XX: não tanto por desagregação ou dissociação das
três vertentes liberais (em especial pelo fato de o liberalismo político deixar de se
fundar necessariamente, no liberalismo filosófico e se separar do liberalismo
econômico) quanto por todas as grandes correntes _religiosas, culturais, filosóficas,
ideológicas e políticas- se interessarem pelos direitos do homem e quase todas se
afirmarem empenhadas na sua promoção e na sua realização. O tema dos direitos do
homem deixou de ser no nosso tempo, uma exclusiva aspiração liberal. Assiste-se,
por conseguinte, a um fenômeno de universalização dos direitos do homem não sem
paralelo com o fenômeno da Constituição, e , como este, acompanhado da
multiplicidade ou da plurivocidade de entendimentos_ porque a uniformidade das
técnicas não determina a unidade das culturas e das concepções políticas. Se pode
antever uma “civilização do universal” também no domínio dos direitos do homem
equivalente ao “ideal comum a atingir” de que fala a Declaração Universal- e pelo
menos por agora se afiguram irredutíveis a sensibilidades e valorações (como base
religiosa ou não), que se situam nos diversos povos a respeito dos direitos e deveres
do homem e do Estado. Isto não impede (nem tem impedido que se atinjam
patamares e convergência de garantia e efetivação”. 316
Ssliente-se que o reconhecimento e a proteção dos direitos fundamentais do
homem no mundo alcançou o seu estágio atual de uma forma lenta e gradual, passando
por várias fases. Estas etapas da evolução desses direitos são chamadas de gerações,
pois foram construídas em diferentes momentos históricos. Essas gerações, numa
primeira análise, representariam a conquista pela humanidade de três espécies de
direitos fundamentais, amparada nos ideais divulgados especialmente na Revolução
Francesa, os quais se resumiam no lema “liberdade, igualdade e fraternidade”.
Coincidentemente, cada uma dessas expressões representaria uma geração de direitos a
ser conquistada.
314
SARLET, Ingo Wolfgang, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição
Federa de 1988, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p.27.
315
Nessa evolução histórica, vieram as várias declarações de direitos do homem, como as já mencionadas
Magna Charta Libertatum (1215), a Declaração americana (1776), a francesa (1789), e a Declaração da
ONU (1948), que, certamente, influenciaram o surgimento das proteções jurídicas dos direitos
fundamentais em outros países.
316
MIRANDA, Jorge. Terrorismo e Direito. Os impactos do terrorismo na comunidade internacional e no
Brasil: perspectivas político econômicas. Os Direitos Fundamentais perante o terrorismo, Rio de janeiro:
Forense, 2003, p.54
216
Considerando a maneira como os direitos fundamentais nasceram, bem como os
valores que buscam garantir, eles podem ser analisados sob várias óticas e deles serem
extraídas algumas características que lhe são comuns: a) a historicidade, pois são o
resultados de um longo processo histórico, de uma lenta evolução, não nasceram em
uma data específica e nem foram engendrados em um único país, sua evolução não é
estanque posto que ainda encontram-se em andamento, pois à medida que a humanidade
avança outros direitos necessitam ser garantidos e outras tantas violações desses direitos
precisam ser coibidas; b) a universalidade pois destinam-se a todos os homens, sendo
que sua essência por si própria já rejeita a idéia de discriminação na aplicação e
garantia desses direitos básicos; c) a relatividade, característica que decorre da idéia de
que os direitos fundamentais não podem ser tidos como absolutos, de aplicação
ilimitada; c) a irrenunciabilidade que caracteriza-se pela não disposição deste direitos,
pois os seus destinatários não podem a eles renuncia, têm a faculdade de escolher o
momento de exercê-los, em certas hipóteses, mas nunca de dispor dos mesmos de forma
definitiva.
No transcorrer da história, o homem vem pensando sobre si mesmo e a respeito
do lugar que ocupa no universo. Da evolução deste pensamento reflexivo do homem
acerca de sua própria essência e de sua condição existencial, pode-se extrair traços que
delineiam o conceito de dignidade da pessoa humana. No âmbito da filosofia, é no
pensamento clássico que se encontram as origens da idéia de que a pessoa humana seria
dotada de um valor intrínseco. Tal premissa, extraída da concepção de que todo ser
humano possui um valor próprio, foi usada para realizar a distinção dos seres humanos
dos demais elementos da realidade. Bem mais tarde, essa idéia evoluiria para a noção de
que esse mesmo ser humano, na figura de uma só pessoa, representaria toda a
humanidade.
Em assim sendo, para adentramos na discussão da (im)possibilidade de
relativização da dignidade da pessoa humana, prática que tem ocorrido (de maneira
também normatizada) no Brasil e no mundo, necessário fazermos um breve histórico do
conceito da dignidade da pessoa humana.
217
4.1 Histórico da dignidade da pessoa
O princípio da dignidade da pessoa, segundo Goddard, fundamenta a grande
diferença de tratamento entre as pessoas e as coisas. As coisas – qualquer ser corpóreo,
incluindo seres vivos –, como não têm domínio de si, podem ser objeto do domínio de
outros, e em conseqüência, objeto dos atos jurídicos: podem ser comprados e vendidos,
arrendados, cedidos, doados etc. As pessoas, ao contrário, não podem ser objeto de
domínio, nem de ato jurídico. Por isso, diz-se que a pessoa é inalienável. A dignidade
que todos os homens possuem pelo simples fato de terem a natureza humana,
independentemente de qual seja o grau de desenvolvimento ou de perfeição de cada
pessoa em particular, funda-se no fato de ela constituir-se em ser corpóreo de natureza
racional ou, como se tem preferido dizer, em um espírito encarnado. 317
Na antigüidade clássica, a dignidade (dignitas) da pessoa humana baseava-se na
posição social ocupada pelo indivíduo: o conceito que gozava a pessoa humana estava
atrelado à posição que a mesma ocupava na pirâmide social, cogitando-se a
possibilidade de quantificação da dignidade e admitindo-se a existência de pessoas mais
ou menos dignas, de acordo com o seu reconhecimento pelos demais membros da
comunidade.
Foi entre os filósofos sofistas que se deu o deslocamento do eixo reflexivo do
pensamento físico (cosmos) para o pensamento humanista antigo (homem como
indivíduo e como membro de uma sociedade), atribundo-se ao homem o paradigma
valorativo, que o alçava a medida de todas as coisas ("homo mensura”)
independentemente de sua origem, devendo então os mesmos serem tratados como
iguais.
317
GODDARD, Jorge Addame. Naturaleza, persona y derechos humanos. Cuadernos Constitucionales
México-Centroamérica, n° 21, 1 ed. Instituto de investigaciones jurídicas. México: Universidad Nacional
Autónoma de México, 1996, p. 150-154 "Desde el punto de vista jurídico, la dignidad de la persona
fundamenta la gran diferencia de tratamiento entre las personas y las cosas. Las cosas (cualquier ser
corpóreo incluyendo seres vivos), como no tienen dominio de sí, pueden ser objeto del dominio de otros y
pueden ser, en consecuencia, objeto de los actos jurídicos: pueden comprarse y venderse, arrendarse,
cederse, donarse, etcétera; en cambio, las personas no pueden ser objeto de dominio ni pueden ser objeto
de un acto jurídico. Por eso se dice que la persona es inalienable... Es una dignidad que poseen todas por
el mero hecho de tener la naturaleza humana, independientemente de cuál sea el grado de desarrollo o
de perfección de cada persona en particular. La tienen los varones lo mismo que las mujeres, los niños lo
mismo que los adultos, los extranjeros al igual que los nacionales... en suma, la tiene cualquier ser
humano, porque sea cual sea su desarrollo o perfeccionamiento es un ser corpóreo de naturaleza
racional o, como se ha preferido decir, es un espíritu encarnado".
218
Para os estóicos, a dignidade era tida como qualidade inerente ao ser humano,
aquilo que o distinguia das demais criaturas, resultando em um embate primordial com
os demais pensamentos e conceitos supra citados, uma vez que, para ele, todos os seres
humanos eram dotados da mesma dignidade: a dignidade apresentava-se, então,
articulada, de forma intrínseca, com a noção da liberdade pessoal do indivíduo, na qual
cada um é responsável por seus atos e livre para exercê-los como almejar.
Observa Fábio Konder Comparato que muito embora não se trate de um
pensamento sistemático, o estoicismo organizou-se em torno de algumas idéias centrais
como a unidade moral do ser humano e a dignidade do homem, considerando-o filho de
Zeus e possuidor, em conseqüência, de direitos inatos e iguais em todas as partes do
mundo, não obstante as inúmeras diferenças individuais e grupais. 318
O valor intrínseco da pessoa humana está assim alicerçado no pensamento
clássico e também no ideário cristão de respeito ao próximo, de compaixão, de sentido
de justiça, de contemplação da vida em sua plenitude, uma vez que, tanto nos escritos
do antigo testamento quanto nos do novo testamento, há alusões que classificam o
homem como sendo uma criatura formada à imagem e semelhança de Deus.
Contudo, mesmo diante da premissa cristã de ser o homem criado a partir de
moldes de um ser superior, o cristianismo só reconhecia dignidade àqueles que
endossavam e propagavam seus conceitos; os demais eram colocados à margem,
relegados à condição de inimigos dos cristãos e submetidos a todo tipo de barbárie em
nome da santa inquisição. Constata-se, pois, que o conceito de dignidade, para a
doutrina cristã daquela época, estava atrelado aos valores cristãos, sendo que todos os
que não compactuavam com esse paradigma valorativo eram relegados à discriminação,
não contando com a dádiva divina da dignidade, ofertada somente aos escolhidos.319
318
Nesse sentido COMPARATO Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo:
Saraiva, 1999, p. 11 a 30.
319
COMPARATO Fábio Konder, A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1999,
p. 11 “... parece inequívoco que o tema da dignidade da pessoa humana encontra no pensamento e na
doutrina cristã um marco fundamental, como verdadeiro e decisivo ‘divisor de águas’. A contribuição do
cristianismo para o desenvolvimento de um efetivo humanismo, ainda que possa ser encontrada desde os
primórdios de sua difusão, no caso da Idade Antiga, veio a se expressar de forma contundente no
contexto contemporâneo com a edição de inúmeros documentos pontifícios a partir da Encíclica Rerum
Novarum, de Leão XIII, no ano de 1891”.
219
Embora os estóicos tenham feito os primeiros ensaios em direção do pensamento
acolhido nos dias atuais à cerca de dignidade humana, a inspiração cristã a respeito do
conceito de dignidade permaneceu sustentada e defendida por inúmeros pensadores,
dentre os quais se destaca Tomás de Aquino, que trouxe à baila o termo dignitas
humana, que se baseava não só na noção de que a dignidade fundamenta-se na
circunstância de o ser humano ter sido feito à imagem e semelhança de Deus, mas
também se consolida na capacidade de autodeterminação inerente à natureza humana
que, devido ao seu livre arbítrio, fixa sua existência no caminho redigido por sua
dignidade.
Já no contexto antropocêntrico renascentista, pode-se apontar como expoente
sobre o tema do teórico Giovanni Pico Della Miranda que defendia os interesses do
catolicismo, utilizando-se da seguinte preleção “o homem por ser criatura de Deus,
diferentemente dos demais seres, foi-lhe outorgada uma natureza indefinida, para que
fosse seu próprio arbítrio, soberano e artífice, dotado da capacidade de ser e obter
aquilo que ele quer e deseja”. 320
Acompanhando o transcurso natural do tempo, verifica-se que, nos séculos XVII
e XVIII, a concepção de dignidade humana, assim como, a idéia do direito natural,
enfrentaram significativas mudanças. Nesse período, pode-se referenciar o nome de
Immanuel Kant, cuja concepção de dignidade baseia-se na autonomia ética do ser
humano, como fundamento da dignidade do homem, e na sustentação de que o ser
humano não pode ser tratado nem por ele próprio como objeto.321
Dentre os vários benefícios acrescentados pelos ensinamentos kantianos,
ressalta-se que, de certo modo, sua concepção foi o ponto de partida para a perpetuação
do processo de secularização da dignidade e o abandono, de uma vez por todas, dos
dogmas sacrais.
320
MIRANDOLA Giovanni Picco della. Discurso sobre a dignidade do homem. São Paulo: Renovar,
2000, p. 52-3.
321
KANT, Imanuel. Crítica da Razão Pura. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998, p. 15.
220
Para Kant, a fonte norteadora que compõe a complexidade da dignidade do ser
humano é a racionalidade. Com fundamento nessa natureza peculiar ao ser humano, ele
ressalta “que o homem, é de uma maneira geral, todo o ser racional, existindo como um
fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela
vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo,
como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado
simultaneamente como um fim.”322
Em síntese, Kant classificava a racionalidade como uma qualidade peculiar
insubstituível dos humanos, sendo assim, fonte norteadora para a composição da
dignidade, que, por sua essência, está acima de qualquer preço, não podendo, dessa
forma, ser posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa, muito menos, ser tutelada
por disposições éticas ou sociais, já que isso feriria a mácula da dignidade.
Não há que se discutir a grande importância dos estudos deixados por Kant, no
entanto, não se pode deixar passar em branco os apontamentos de Hegel em sua
Filosofia do direito, na qual o filósofo, a partir de uma perspectiva escolástica, também
compartilhada por Tomás de Aquino, propõe que a dignidade constitui também uma
qualidade a ser conquistada. Na condição de um dos expoentes do idealismo filosófico
alemão do século XIX, Hegel – aqui na interpretação outorgada por Carlos Ruiz Miguel
– acabou por sustentar uma noção de dignidade centrada na idéia de eticidade (instância
que sintetiza o concreto e o universal, assim como o individual e o comunitário), de tal
sorte que o ser humano não nasce digno – já que Hegel refuta uma concepção
estritamente ontológica da dignidade –, mas torna-se digno a partir do momento em que
assume sua condição de cidadão. 323 324 325
Tal ensinamento, concretizado na obra de Hegel, faz da dignidade o resultado de
um reconhecimento, noção essa consubstanciada na máxima de que cada um deve ser
pessoa a respeitar os outros como pessoas (sei eine Person und respektiere die anderen
als Personen). Mas, esse importante estudo, vale ressaltar, de certo modo fere o trilhar
322
KANT, Imanuel. Crítica da Razão Pura. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998, p. 45.
MIGUEL,
Carlos
Ruiz.
Human
dignity:
history
of
http://web.usc.es/~ruizmi/pdf/dignity.pdf.
324
KANT, Imanuel. Crítica da Razão Pura. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998, p. 45.
323
an
idea.
In:
221
jurídico, para quem a capacidade jurídica (competência de ser sujeito de direitos) é
idêntica para todas as pessoas, independente de suas relações culturais ou sociais.
De forma clara, pode-se verificar uma distância significativamente expressiva
entre os posicionamentos de Kant e Hegel, e, com isso, da maioria dos autores. Dentre
outros aspectos, pode-se referir o fato de Hegel não fundar a sua concepção de pessoa e
dignidade em qualidades inerentes a todos os seres humanos, além de não condicionar a
condição de pessoa, à dignidade e à racionalidade. Mesmo possuindo um entendimento
contrário à maioria dos grandes estudiosos, as concepções de Hegel tiveram grande
influência na produção jurídica.
No entanto, inegavelmente o grande expoente na construção de uma concepção
secularizada da dignidade foi Kant, que promoveu uma guinada decisiva no pensamento
filosófico, depois robustecido por inúmeros outros estudiosos que também sustentavam
a dignidade como resultado da própria vida.
No século XVIII, renasce uma ordem constitucional consagrada à idéia da
dignidade do homem, que possui como pressuposto tão somente a condição humana,
independente de qualquer outra circunstância, uma vez que se reconhece o homem
como titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados por todos, inclusive
pelo estado. Mais do que isso admite-se a dignidade humana, em sua manifestação
jurídica, significa uma última garantia da pessoa em relação a total disponibilidade por
parte do poder estatal e social.
Entretanto, mesmo diante de inúmeros defensores que, desde a antiguidade,
buscaram ressaltar a necessidade de se respeitar todo o ser humano como pessoa dotada
de intrínseca dignidade, ela foi menosprezada em vários momentos cruciais da história
humana. E, ao desconsiderá-la, escreveu-se uma horrenda história de maldade entre os
homens: uma história de guerras, escravidão e crueldades, movidas pelo ódio, orgulho
preconceito, ganância e sede de poder; uma história traduzida em atos de racismo,
genocídios, torturas e todo tipo de horror contra milhões de seres humanos. Para
testemunhar tais assertivas bastam trazer à memória algumas cenas das duas guerras
325
MIGUEL,
Carlos
Ruiz.
Human
http://web.usc.es/~ruizmi/pdf/dignity.pdf.
dignity:
history
of
an
idea.
In:
222
mundiais do século XX. Foram tamanhas as atrocidades cometidas que, ao findar a
segunda guerra mundial, a consciência dos povos participantes daquela hecatombe ou
dos que assistiram aterrorizados seu desenrolar – assustada pelo saldo do horror – viuse tocada pela inarredável necessidade de proclamar ao mundo, ainda coberto de cinzas
e lacrimoso pelas tantas vítimas, a declaração universal dos direitos humanos.326
A declaração universal de direitos do homem de 1948 reflete esses direitos
universais e indivisíveis, sendo que a dignidade da pessoa humana deve ser interpretada
como toten paradigmático onde a própria ordem abriga seu sentido. A dignidade da
pessoa humana consagra-se como um marco máximo a orientar o direito internacional e
o direito interno, princípio distintivo e excludente que harmoniza a unidade material da
constituição, constituindo-se no norte e o lastro ético dos demais instrumentos
internacionais de proteção dos direitos humanos.
327 328
O princípio da dignidade da pessoa humana impõe-se, assim, como imperativo
categórico, pela pressuposição de possuir todo ser humano um absoluto valor em si
mesmo, intrínseco ao fato de existir: a dignidade. Esta seara de reconhecimento de
direitos subjetivos é, aliás, consagrada na declaração da independência dos Estados
Unidos sendo os mesmos tratados como direitos subjetivos universais inerentes ao
indivíduo, tão primordiais como o direito à vida, a liberdade, e à busca de felicidade.329
326
Nesse sentido ALVES A J. A. Lindgen. A declaração dos direitos na pós-modernidade. In. Revista da
Associação dos Magistrados Brasileiros, n. 5. Rio de Janeiro: AMB, 1998, p.6.
327
PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos: o princípio da dignidade da pessoa humana e a constituição
brasileira de 1988. (NEO). Constitucionalismo. Ontem os códigos. Hoje as constituições. Revista do
Instituto de Hermenêutica Jurídica, vol.1, n.2. Porto Alegre: Instituto de Hemenêutica Jurídica, 2004, p.
82 “Neste sentido, o valor da dignidade da pessoa humana impõe-se como núcleo básico e informador
de todo o ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e
compreensão do sistema constitucional. Considerando-se que toda a Constituição há de ser
compreendida como uma unidade e como um sistema que privilegia determinados valores sociais, podese afirmar que a Carta de 1988 elege o valor da dignidade da pessoa humana como valor essencial que
lhe doa unidade de sentido. Isto é, o valor da dignidade da pessoa humana informa a ordem
constitucional de 1988, imprimindo-lhe uma feição particular.”
328
PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos: o princípio da dignidade da pessoa humana e a constituição
brasileira de 1988. (NEO). Constitucionalismo. Ontem os códigos. Hoje as constituições. Revista do
Instituto de Hermenêutica Jurídica, vol.1, n.2. Porto Alegre: Instituto de Hemenêutica Jurídica, 2004, p.
79-117.
329
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição
federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p.69 “Com efeito, se em outras ordens
constitucionais, onde igualmente a dignidade da pessoa humana foi objeto de expressa previsão, nem
sempre houve clareza sobre seu correto enquadramento, tal não ocorre ao menos que aparentemente
entre nós. Inspirando-se neste particular- especialmente entre nós. Inspirando-se neste particular
especialmente no constitucionalismo lusitano e hispânico, o Constituinte de 1988 preferiu não incluir a
dignidade da pessoa humana no rol dos direitos e garantias fundamentais, guindando-a, pela primeira
223
Esta universalidade abstrata dos direitos naturais codificada pela declaração dos
direitos dos homens, é materializada, concretizada, especificada na formalização do
consenso a respeito desses direitos no direito interno de cada país. Com a formalização
de dogmas universais passa-se do reconhecimento de direitos naturais à sua
materialização através da possibilidade que é dotado todo cidadão, pelo direito positivo
fundamental, de promover ações judiciais, inclusive, contra os próprios órgãos do
estado, impedindo, assim, que os estados venham a infringir direitos e garantias
fundamentais. O reconhecimento da dignidade da pessoa humana trata-se então de
princípio construído e alicerçado pela tradição, pela construção histórica e evolutiva das
sociedades a respeito do que seja devido (direitos, garantias e deveres) a todo aquele
que compõe o pacto social.
Dessa forma, os próprios direitos e garantias individuais sustentam-se, no
principio da dignidade do ser humano, princípio esse que veio ganhando forma em meio
ao desenvolvimento cultural da humanidade.
Contudo, ao se analisar o caminho histórico da construção dos direitos humanos,
verifica-se que não bastam textos legais para que se tenham garantidos os direitos
fundamentais e seja reconhecido a dignidade da pessoa humana como marco fundante
da unidade a constituição, uma vez que o formalismo jurídico, apesar de toda a sua
parafernália normativa, quando despido de fundamentos ético-humanistas, pode se
colocar a serviço de qualquer finalidade, inclusive do terror totalitário, como fizeram os
fiéis servidores de Hitler. Nesse sentido, escreve Jürgen Habermas.330
“Os soldados jamais questionaram a legitimidade das ordens e
intenções de Führer. Agiam como seres despidos da mínima consciência
moral, apenas acreditavam no valor da pura legalidade, desvinculada de
quaisquer preocupações éticas”.
vez consoante já reiteradamente frisado à condição de princípio (e valor) fundamental (artigo 1º inciso
III) . Aliás a positivação na condição de princípio jurídico constitucional fundamental é, por sua vez, a
que melhor afina com a tradição dominante no pensamento jurídico constitucional luso-brasileiro e
espanhol, apenas para mencionar os modelos mais recentes e que tem exercido ao lado do paradigma
germânico_significa influ6encia sobre a nossa própria ordem jurídica”.
330
HABERMAS M Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 5 ed. São Paulo: Saraiva,
1997, p. 114.
224
Nesse ponto da história, vislumbra-se um paradoxo entre a Alemanha com
riquíssimo acervo cultural, pátria de Kant, Goethe Jhering, Bach e de tantas outras
celebridades, e o espaço por ela perdido para o totalitarismo que ceifou milhares de
vidas, destinadas ao matadouro como inocentes ovelhas.
Posterior a esta longa jornada de sofrimento e dor, a humanidade acordou,
finalmente, para uma nova etapa da história do direito internacional público, que passou
então a contar com uma segunda face, a do direito internacional dos direitos humanos.
Todos os seus instrumentos normativos adotaram como objetivo a salvaguarda da
dignidade inerente ao ser humano, fazendo com que o indivíduo, visto como pessoa,
passasse também a ser reconhecido como sujeito de direito internacional dos direitos
humanos, dotado de personalidade e capacidade jurídicas internacionais.
A cristalização da personalidade e capacidade jurídicas internacionais do ser
humano constitui-se no legado mais precioso da ciência jurídica do século XX. Trata-se
de
uma
notável conquista da civilização, lograda graças ao considerável
desenvolvimento do direito internacional ao longo das cinco últimas décadas. Tal
conquista requer uma atenção bem maior e mais cuidadosa do que a que vem sendo
dispensada ao tema até o presente por grande parte da doutrina jurídica, aparentemente
ainda apegada a posições dogmáticas-ideológicas do passado. 331
Isso porque, a partir desse avanço, também os estados-nações adaptaram-se às
mudanças ocorridas, passando a adotar uma política de estado democrático de direito, a
começar pela própria Alemanha, em esforço facilmente identificável nas constituições
do pós-1945, que passaram a positivar o princípio da dignidade da pessoa humana,
colocando-o como princípio fundamental do ordenamento jurídico, ao qual todas as
demais normas jurídicas devem se conectar. Assim, a dignidade dos homens passou a
qualificar-se como pressuposto fundamental da ordem jurídica, e, como tal, deve ser
tutelado e respeitado acima de qualquer contexto constitucional. 332 333
331
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado internacional dos direitos humanos. Vol. III.
Porto Alegre: Fabris, 2003. p. 447-448.
332
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 3 ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2005. p. 63-65.
333
PIOVERSAN, Flávia, Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 5ºed. São Paulo:
Max Limond, 2002. p. 56-57.
225
4.2 Atualizações contextuais do conceito de dignidade
Conceituar de forma clara e precisa o que seja dignidade humana, nem de longe
é tarefa fácil; muito antes pelo contrário, conforme já foi elucidado até o momento,
trata-se de um tema complexo cercado por contornos vagos e imprecisos, uma vez, que,
o importante não é conceituar a dignidade do ser humano como um tema isolado e
estanque, mas, sim, conformá-la nos moldes da sociedade contemporânea, definindo o
seu âmbito de proteção como norma jurídica fundamental.334
Dentre vários percalços encontrados na delimitação desse conceito, destaca-se que
“a maior dificuldade reside no fato de que no caso a dignidade da pessoa, diversamente do
que ocorre com as demais normas jusfundamentais, não se cuida de aspectos mais ou
menos específicos da existência humana, como a integridade física, intimidade, vida,
propriedade, etc., mas sim, de uma qualidade tida como inerente a todo e qualquer ser
humano, de tal sorte que a dignidade , como já restou evidenciada, passou a ser
habitualmente definida como constituindo o valor próprio que identifica o ser humano
como tal definição, esta que, todavia, acaba por não contribuir muito para uma
compreensão satisfatória do que efetivamente é o âmbito de proteção da dignidade.
Mesmo diante de toda problemática levantada à cerca de um conceito puro de
dignidade, o que não se pode negar é que a dignidade é fato, já que não se verifica maior
dificuldade em identificá-la claramente nas muitas situações concretas em que ela é
maculada e agredida. Mas talvez seja mais fácil defini-la pela negação expondo o que a
dignidade não é, do que apontar para moldes em que à dignidade se encaixe
definitivamente.
Para, além disso, o que dificulta a precisão dessa definição é a diversidade de
valores que se manifestam nas sociedades atuais, razão pela qual se está frente a um
334
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º
da Constituição da república Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2000,
p. 60 “A dignidade humana se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável
da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se
um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente
excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício os direitos fundamentais, mas sempre sem
menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. O direito à
vida privada, à intimidade, à honra, à imagem, dentre outros, aparecem como conseqüência imediata da
consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil.”
226
conceito em permanente processo de edificação e reestruturação. Devido a essa
característica intrínseca da dignidade, seu conceito resulta em vacuidade e abertura,
ocasionando uma constante necessidade de concretização e delimitação do conceito
jurídico normativo pelas praxes constitucionais, para que esse não fuja dos moldes
indicados à manutenção da ordem social.
Certamente, as dificuldades enfrentadas ao se tentar conceituar dignidade
humana, não datam de hoje, visto que como já disse, a idéia nuclear da dignidade do
homem já se fazia presente no pensamento clássico, como qualidade irrenunciável e
inalienável, intrínseca ao ser humano, servindo de fonte qualificadora da própria
condição humana, que, como tal, deveria ser reconhecida, respeitada e protegida, já que
não podia ser criada, pois fazia parte da essência do indivíduo.
Dessa forma, vale lembrar que a dignidade evidentemente não existe apenas
porque é reconhecida pelo direito, uma vez que ela nasce com a própria pessoa.
Contudo, importa não olvidar que o direito pode exercer papel crucial em sua proteção e
promoção. E não há necessidade, para isso, sequer de uma definição precisa de
dignidade, na medida em que se trata de valor próprio da natureza da vida humana.
Neste contexto, há demonstrações dispares, e até mesmo conflitantes entre si, na
aplicação concreta da noção de dignidade, devido à tese de que dignidade não constitui
um conceito juridicamente apropriável, como sustenta, por exemplo, Habermas335.
Mas, no que concerne à opinião largamente majoritária, a dignidade independe
das circunstâncias concretas; todos são considerados titulares de dignidade, já que é
característica inerente a toda e qualquer pessoa humana, visto que, em princípio, todos
os homens são iguais em dignidade, no sentido de serem reconhecidos como pessoas,
ainda que não se portem de forma igualmente digna nas relações com seus semelhantes.
Diante do exposto, apela-se novamente a matriz kantiana, centrada na autonomia
e no direito de autodeterminação da pessoa como fonte embasadora da dignidade
humana. Importa aqui se ter bem claro que essa autonomia é considerada em abstrato,
335
HABERMAS, M Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, 5 ed. São Paulo: Saraiva,
1997, p.70
227
como sendo a capacidade potencial que cada ser humano tem de autodeterminar sua
conduta, não dependendo de sua efetiva realização em concreto, de tal sorte que
também o absolutamente incapaz possui exatamente a mesma dignidade que qualquer
outro ser humano física e mentalmente capaz. Ressalte-se, por oportuno, que com isso
não se está a sustentar a equiparação, mas a intrínseca ligação entre as noções de
liberdade e dignidade.
Por outro lado, ainda há aqueles à maneira de Hegel que sustentam que a
dignidade da pessoa não deve ser considerada exclusivamente como algo inerente à
natureza humana, como uma qualidade exclusiva, uma vez que a dignidade também se
forma com base na evolução cultural alcançada com o mudar dos tempos, razão pela a
qual as dimensões naturais e culturais da dignidade da pessoa se completam e
integram-se mutuamente.
Um outro aspecto fundamental a ser ventilado à cerca da dignidade da pessoa
humana é o fato de ela, simultaneamente, servir de limite e tarefa para os poderes
estatais. Como sua garantia é tarefa imposta ao estado, as pessoas reclamam do estado
para que ele guie suas ações tanto no sentido de preservar a dignidade existente, como
no de criar possibilidades para que o seu exercício atue livremente.
Diante dessa dupla dimensão de dignidade, que trilha caminhos entre a
autonomia do ser humano e a sua necessidade de assistência e proteção, quando em
estado de fragilidade ou quando ausente a capacidade de autodeterminação, depara-se
aqui com a prevalência da dignidade assistencial em face da autonômica, de tal sorte,
que, a quem faltar condições para uma decisão própria responsável, deve ser-lhe
nomeado um eventual curador, a quem cabe resgatar ao mesmo o direito de ser tratado
com dignidade .
Tal concepção encontra-se embasada na doutrina de Dworkin, que parte do
pressuposto de que a dignidade possui:
“Tanto uma voz passiva quanto uma voz ativa e que ambas
encontram-se conectadas. Onde desta forma, até mesmo o indivíduo que já
perdeu completamente sua capacidade de autodeterminação, é titular da
dignidade, e como tal deve sem dúvidas, receber um tratamento digno. De tal
228
sorte, que é no valor intrínseco da vida humana de qualquer indivíduo, que
encontramos a explicação para o fato de que mesmo aquele que já perdeu a
336
consciência da própria dignidade merece tê-la”.
Ainda no que diz respeito à tentativa de clarificação do conceito de dignidade da
pessoa humana, importa considerar que apenas à dignidade de determinada pessoa é
passível de ser respeitada, inexistindo atentado à dignidade da pessoa em abstrato, uma
vez que a dignidade constitui atributo da pessoa humana considerada individualmente, e
não, abstratamente, razão pela qual se deve ter o cuidado de não confundir as noções de
dignidade da pessoa e de dignidade humana, quando, então, a referência for a
humanidade como um todo.
Por outro lado, esses não são temas estanques, pelo fato de a dignidade da
pessoa encontrar-se ligada à condição humana de cada indivíduo. Dessa forma, não há
como descartar uma necessária dimensão comunitária da dignidade de uma única pessoa
em relação as outras pessoas em geral. Deve-se ter em mente que a dignidade da pessoa
humana implica uma obrigação geral de respeito pela pessoa; em outras palavras, essa
obrigação exprime-se num feixe de direitos e deveres correlativos a um conjunto de
bens indispensáveis ao progresso humano.
Tomando ainda por base a disposição de que a dignidade da pessoa, numa
acepção rigorosamente moral e jurídica, encontra-se vinculada à simetria das relações
humanas, torna-se pertinente o questionamento de, até que ponto, a dignidade não está
acima das especificidades culturais, que, muitas vezes, justificam atos que, para a maior
parte da humanidade, são considerados atentatórios à dignidade da pessoa humana, mas
que, em certos quadrantes, são tidos por legítimos na prática jurídica de determinadas
sociedades.
Como fonte solucionadora desse ponto conflitante, utilizam-se, mais uma vez, os
ensinamentos de Dworkin, “que sustenta o direito das pessoas de não serem tratadas
de forma indigna, utilizando-se para isso os padrões desenvolvidos particularmente por
336
DWORKIN R. El dominio de la vida. Barcelona: Ariel, 1994. p. 306-7.
229
cada sociedade civilizada, que utilizam-se de critérios que variam conforme o local e a
época vivenciada.”. 337 338 339
A título de exemplificação dessa mistura de fatores que determinam a conduta
digna, utiliza-se a prática da pena de morte, acatada por diversos estados norteamericanos e considerada constitucional pela Suprema Corte que, por sua vez, tem
entendido serem inconstitucionais determinadas técnicas de executar a pena capital,
com base na proibição da aplicação de penas cruéis e desumanas (cruel and unusual
punishment), prevista na oitava emenda de 1791. Nesse sentido, em relativamente
recente decisão, envolvendo recurso impetrado por um condenado à morte no estado de
Washiton, a Suprema Corte reconheceu que a morte por enforcamento constitui prática
atentatória à dignidade da pessoa humana, notadamente, pelo fato de infringir – ao
menos em relação aos outros meios utilizados (injeção letal e eletrocutamento) –
sofrimento desnecessário ao sentenciado, já que foi constatada a possibilidade maior de
uma postergação do estado de inconsciência e morte, com risco de asfixia lenta e até
mesmo decapitação parcial ou total, verificada em diversos casos. Aponta-se então para
a possibilidade de a pena de morte não ferir a dignidade, desde que aplicada
dignamente.
Diante dessa miscelânea de sentimentos culturais e sociais que compõem o
entendimento acerca da dignidade, não parece possível reduzir a uma fórmula abstrata e
genérica o conteúdo da dignidade da pessoa humana; em outras palavras, a definição do
seu âmbito de proteção ou de incidência.
Isso, no entanto, não significa que não se deva buscar uma definição, até porque
se faz necessário um norteamento acerca da definição de dignidade, justamente em face
da exigência de um certo grau de segurança, imprescindível à manutenção da ordem
pública.
Como ponto de partida nessa empreitada, utiliza-se a fórmula desenvolvida por
During, na Alemanha, para quem a dignidade da pessoa humana seria considerada
337
DWORKIN R. El dominio de la vida. Barcelona: Ariel, 1994, p. 305.
DWORKIN R. El dominio de la vida. Barcelona: Ariel, 1994. p. 306-7.
339
Caso Kampbell v. Wood, U.S. Supreme Court. 1994.
338
230
maculada sempre que a pessoa concreta, o indivíduo, fosse rebaixado a objeto, a mero
instrumento, tratado como uma coisa; em outras palavras, sempre que a pessoa venha a
ser descaracterizada e desconsiderada como sujeito de direitos.
Essa concepção, embora largamente acolhida por grande parte das decisões
proferidas pelo Tribunal Federal Constitucional da Alemanha, por evidente, não pode
ser tomada como modelo universal, visto que, conforme já se referiu, não existe a
possibilidade de se chegar a uma unanimidade devido à ingerência de conteúdos sociais
e culturais, constitutivos das diferentes sociedades.
Nesse sentido, diante da impotência de se alcançar, de forma concreta, um
conceito aplicável a todo o contexto social mundial, as doutrinas e jurisprudências tem
apontado o caminho a ser trilhado para que se consiga identificar uma série de
disposições que integram a noção de dignidade humana.
Sarlet definiu com precisão a dignidade:
“a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser
humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do
estado e da Comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos
e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer
ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as
condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e
promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria
existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.”. 340
Em última análise, o que se pode verificar, é que onde não houver respeito pela
vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas
para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do
poder, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade e os direitos fundamentais não
forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade
da pessoa humana.
340
Sarlet, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa e direitos fundamentais na constituição de 1988. Porto
Alegre: Livraria do Advogado. 2004, p. 59.
231
4.3
Princípio da dignidade da pessoa humana como sustentáculo aos
direitos fundamentais
A dignidade é o valor mais alto que pode ser conferido à pessoa humana. Em
razão disso, tem sido considerada um princípio fundante de toda a construção éticojurídico, tendo como característica principal a seguridade (pelo menos teórica) de um
minimum de respeito ao homem. Vem configurando-se, nessa perspectiva, como valor
supremo da democracia, raiz antropológica constitucionalmente estruturante do estado
de direito. 341
Assim, dentre o rol de funções pertinentes ao princípio fundamental da
dignidade humana, destaca-se pela sua magnitude, o fato de ser, simultaneamente,
“elemento que confere unidade de sentido e legitimidade a uma determinada ordem
constitucional”. 342
Compartilhando desse espírito, Jorge Miranda, que confere uma unidade de
sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais, ao
considerar que ele repousa sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, isto é,
sobre a concepção que faz da pessoa fundamento e fim da sociedade e do estado
democrático de direito. 343
Entretanto, como já se ressaltou anteriormente, somente depois de longos anos
de barbárie, prática das contra o ser humano pelo totalitarismo, sobretudo no regime
nazista, é que o princípio da dignidade da pessoa humana tornou-se fundamento do
estado democrático de direito. O estado totalitário voltou-se contra milhões de seres
humanos; seus agentes praticaram tamanha violência nos campos de concentração que,
ao final da II Guerra Mundial (1939-1945), mesmo sem lei penal anterior aos fatos,
muitos deles foram julgados e condenados, em Nuremberg, por crimes de lesahumanidade.
341
SANTOS Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana Jus
Navigandi,
Teresina,
v.
3,
n.
27,
dez.
1998.
(Disponível
em:
http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=160. Acesso em: 13 set. 2004).
342
SARLEt, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa e direitos fundamentais na constituição de 1988.
Cidade: Editora, 2004. p. 59.
343
MIRANDA, Jorge. Terrorismo e Direito. Os impactos do terrorismo na comunidade internacional e no
Brasil: perspectivas político econômicas. Os Direitos Fundamentais perante o terrorismo, Rio de janeiro:
Forense, 2003, p.159
232
Seguindo um referencial alemão, a constituição brasileira erigiu a dignidade da
pessoa humana à condição de fundamento de seu estado democrático de direito. Face à
tal princípio, questiona-se qual o papel dos direitos fundamentais.
Tentando solucionar esse impasse, faz-se necessário, antes, elucidar o
significado da expressão direitos fundamentais, uma vez que inexiste unanimidade
doutrinária quanto à sua utilização.
Nesse sentido, José Afonso da Silva, ao trabalhar com a questão do “conceito de
direitos fundamentais”, observa: 344
“A ampliação e transformação dos direitos fundamentais do
homem no envolver histórico dificulta definir-lhes um conceito sintético e
preciso. Aumenta essa dificuldade à circunstância de se empregarem várias
expressões para designá-los, tais como: direitos naturais, direitos humanos,
direitos do homem, direitos individuais, direitos públicos subjetivos,
liberdades fundamentais, liberdades públicas e direitos fundamentais do
homem”..
Após analisar as várias denominações o constitucionalista adota a expressão
direitos fundamentais do homem “porque, além de referir-se a princípios que resumem
a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico,
é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e
instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de
todas as pessoas”.
Já o mestre Canotilho, em busca de precisão terminológica, assim estabelece a
distinção entre direitos do homem e direitos fundamentais:
“Direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em
todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalita); direitos
fundamentais são os direitos do homem, jurídico-intitucionalmente
garantidos e limitados espacio-temporalmente. Os direitos do homem
arrancariam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável,
344
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2001,
p. 179-182. E esclarece mais: “No qualificativo fundamental acha-se a indicação de que se trata de
situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive, às vezes, nem mesmo
sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas
formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados”.
233
intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos
objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta”.
Reportando-se à questão já enunciada, pode-se, de forma sucinta, respondê-la da
seguinte forma: os direitos fundamentais, em razão do conteúdo que os caracteriza
como tais, tem como função e finalidade salvaguardar a existência da pessoa humana de forma e intensidade diversificada -, já que todos aferem à noção de proteção e
desenvolvimento de todas as pessoas.
Nesse contexto, apontam-se alguns exemplos que perfazem essa estreita
vinculação entre os direitos do homem e os direitos fundamentais. Para tanto, observamse os estudos da professora Maria Garcia, que ressalta:
“O art. 5.º, caput, da Constituição especifica cinco direitos direitos
fundamentias básicos: vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade,
que constituem o fundamento de todos os demais direitos consagrados, quer
pelo inciso do art. 5º, quer pelos dispositivos seqüenciais, do mesmo Título
II, bem como de toda a Constituição – dado que órgãos, bens, direitos,
deveres instituições refluem, todos, para um destino único, em especial, o ser
humano.” 345
Assim, não há como negar que os direitos à vida, à de liberdade e à igualdade
correspondem diretamente às exigências mais elementares da dignidade da pessoa
humana, já que a vida é o bem maior que possibilita a existência do próprio ser humano.
Esse, por natureza, é chamado à vivência da liberdade, mas essa é exercitada na
convivência com os demais seres humanos, os quais, também necessitam exercitar suas
liberdades. Para conciliá-las, prima-se pela igualdade de oportunidades. Da mesma
forma, o sentimento de insegurança perturba profundamente a existência humana,
roubando-lhe a possibilidade de construí-la com tranqüilidade, o que demonstra a
necessidade que o ser humano tem de se sentir seguro para viver de forma plena. De
outra parte, todos sabem o que o ser humano, em sua existência aspira por encontrar a
felicidade; não se ignora também, que sem bens materiais básicos (alimentos, vestuário,
moradia), não lhe será possível viver dignamente, com autonomia, passando à simples
sobrevivência dependente da caridade e até mesmo da humilhante mendicância. Dessa
forma, percebe-se, desde logo, que boa parte dos direitos sociais radicam-se no
234
princípio da dignidade da pessoa humana, bem como nos demais princípios que
compõem o estado social de direito. 346
Diante de tamanha importância do princípio da dignidade da pessoa humana,
deve-se ressaltar sua função instrumental integradora, na medida em que serve de
parâmetro para aplicação, interpretação e integração não apenas dos direitos
fundamentais e das demais normas constitucionais, mas de todo o ordenamento
jurídico.347
Como fonte ilustradora da função integradora do princípio da dignidade humana,
cada vez mais se encontram decisões dos tribunais valendo-se da dignidade da pessoa
como critério hermenêutico, isto é, como fundamento para a solução das controvérsias,
notadamente interpretando a normativa infraconstitucional à luz da dignidade da pessoa
humana.348
Frente às diversas formas exemplificativas sobre a importância do princípio da
dignidade da pessoa humana em todas as esferas do ordenamento jurídico pátrio, parece
não ser exagero atribuir-lhe o status de princípio maior da hierarquia de todas as ordens
jurídicas que o reconhecem; em outras palavras, ele atua como o “alfa e o ômega” dos
sistemas constitucionais.349
345
GARCIA, Maria. Quais são os direitos fundamentais? In: Revista de direito constitucional e
internacional. n. 39. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 115-123.
346
Cf. acórdão do tribunal de Justiça do RS, proferido em 25.08.99, relatado pelo Dês. Osvaldo
Stefanello.
347
Apelação Cível nº 007.512-4/2-00, 2º Câmara Cível, julgada em 18/08/1998, publicada na RT nº 758
(1998), p. 106 e ss, relatada pelo Dês. Cezar Peluso, no seu voto.
348
Cf. Hábeas Corpus nº 14.333, Distrito Federal, julgado em 07/11/2000
349
DELPÉRÉE Francis. O direito à dignidade humana. In: “Direito Constitucional – Estudos em
homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho”. São Paulo: Ed. Dialética, 1999, p. 161.
235
4.3.1 Eficácia da dignidade da pessoa humana
No curso natural desse pretenso esboço, torna-se então oportuno, examinar com
vagar o status jurídico-normativo do conteúdo da dignidade da pessoa humana no
âmbito do ordenamento constitucional brasileiro. No ordenamento constitucional
brasileiro, a dignidade da pessoa humana recebeu condição de norma fundamental, uma
vez que, o dispositivo constitucional no qual se encontra enunciada, contém não apenas
mais uma norma, mas que esta, para além de seu enquadramento na condição de
princípio fundamental, é também fundamento de posições jurídico-subjetivas, isto é,
constitui-se em norma definidora de direitos e garantias, como também de deveres
fundamentais.350
Ao se adentrar na história trilhada pelo constitucionalismo pátrio, verifica-se que
a Carta Magna, promulgada em 1988, vigente até os dias atuais, foi a primeira a prever
um título próprio destinado aos princípios fundamentais, sem sombra de dúvidas, com
intuito de render-lhes o tributo que lhe é devido pelo seu especial significado, e pelo
reconhecimento de seu estatuto de normas embasadoras e informativas de toda a ordem
constitucional, outorgando-lhes inclusive a qualidade de normas definidoras de direitos
e garantias fundamentais.
Em outras palavras, podem-se referenciar os princípios fundamentais como o
núcleo essencial da constituição brasileira atual, tanto formal como materialmente.
Corroborando com o exposto, constata-se que a dignidade da pessoa humana é
fundamento do estado democrático de direito brasileiro.
Registre-se, por oportuno, que a previsão constitucional acerca da dignidade da
pessoa humana, não se restringe exclusivamente ao artigo 1º, inciso III, da Carta Magna,
uma vez que possui uma larga presença em outros capítulos da Lei Fundamental, seja
quando se estabelece que a ordem econômica tem por finalidade assegurar a todos uma
existência digna (artigo 170, caput), seja quando, na esfera da ordem social, funda-se o
planejamento familiar nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade
350
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa e direitos fundamentais na constituição de 1988.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 69.
236
responsável (artigo 226, § 6º), além de assegurar à criança e ao adolescente o direito à
dignidade (artigo 227, caput).
Diante de tudo o que foi aqui exposto, subscreve-se a opinião de Carlos Roberto
Siqueira Castro, no sentido de que: “O Estado Constitucional Democrático da
atualidade é um Estado de abertura constitucional radicado no princípio da dignidade
do ser humano”. 351
Observando a constituição brasileira de 1988, vê-se claramente a pretensão do
constituinte, seguindo inspiração do constitucionalismo lusitano e hispânico, em não
incluir a dignidade da pessoa humana no rol dos direitos e garantias fundamentais,
outorgando-lhe a condição de princípio fundamental.
Assim, a dignidade da pessoa humana foi consagração como princípio
constitucional fundamental tornando-se explicitamente um dos fundamentos do estado
democrático e social de direitos brasileiro. Com essa importante decisão, deixou-se às
claras a finalidade e a justificação do exercício do poder estatal e do próprio estado,
concluindo o raciocínio com a reiteração de que o estado que existe em função da
pessoa humana, e, não, o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua,
e não o meio da atividade estatal.
Todavia, ao se ponderar a respeito do reconhecimento normativo da dignidade
da pessoa humana, não se está afirmando, nem de longe, que a dignidade exista apenas
onde e na medida em que seja reconhecida pelo direito. Muito antes pelo contrário, seu
reconhecimento e proteção, em cada ordenamento jurídico, bem como no âmbito
internacional depende da dimensão jurídica da dignidade dentro de cada contexto
constitucional.352
Mas, muito embora, os direitos fundamentais, encontrem seu fundamento, ao
menos em regra, no princípio da dignidade da pessoa humana, trata-se de dois conceitos
351
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o
constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2003, pg. 19.
352
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o
constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2003, pg. 257.
237
intimamente ligados, pois não há como reconhecer que exista um direito fundamental à
dignidade, ainda que se encontrem algumas parcas referências neste sentido.
Dworkin entende que nos princípios (principles), está contida a exigência de
exercício da justiça na direção da dimensão moral da dignidade da pessoa humana,
estabelecendo uma razão (fundamento) que impele o intérprete numa direção, mas que
não reclama uma decisão específica, única. A exigência da realização da dimensão
moral de um dado princípio até permite sua mitigação em prol de uma razão maior que
contemple a necessidade da satisfação do bem comum e da segurança jurídica através
do intervencionismo do estado, porém, há de estar atrelado ao limite imposto pela
dignidade da pessoa humana.
É e dentro da concepção de dignidade da pessoa humana como standard
máximo indeclinável que o conflito de regras constitucionais pode ser harmonizado, ou
seja, quando da interpretação das normas, para solucionar o conflito, deve existir um
critério racional (cujo o paradigma é a dignidade da pessoa humana) que irá privilegiar
algum valor em detrimento de outro na dimensão de sua validez no caso concreto. Este
juízo hermenêutico somente pode ser solucionado, introduzindo-se uma regra de
exceção que minimize o rigor formal de um dos direitos fundamentais, debilitando o seu
caráter definitivo.
Apreende-se da lição Dworkin que a colisão de princípios se resolve na
dimensão de peso: um dos dois tem que ceder frente ao outro, porquanto um limita a
possibilidade jurídica do outro. Entretanto, salienta Santos, o fato de um dos princípios
ceder frente ao outro não implica que o princípio desprezado seja inválido, pois a
colisão de princípios se dá apenas entre princípios válidos. 353
Assim, o fato de o estado existir em função do homem, não conduz a uma
concepção individualista da dignidade da pessoa humana, pois o que se busca é a
compatibilização, a interrelação entre os valores individuais e coletivos, não existindo
aprioristicamente, um predomínio do indivíduo ou o predomínio do todo: a solução há
353
SANTOS Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana Jus
Navigandi,
Teresina,
v.
3,
n.
27,
dez.
1998.
(Disponível
em:
http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=160. Acessado em: 13 set. 2004)
238
de ser buscada, em cada caso, de acordo com as circunstâncias, solução que pode ser
tanto a compatibilização, como também a preeminência de um ou outro valor.
Dentro desse contexto, a dignidade da pessoa humana é conditio sine qua non
para a existência e manutenção de um estado democrático de direito, erigindo-se como
paradigma estruturante que se encontra no eixo central do sistema constitucional, núcleo
essencial dos direitos fundamentais; trata-se de fonte ética, que confere unidade de
sentido, de valor e de concordância prática ao sistema dos direitos fundamentais.
Leciona Faria que, entre o estado moderno e as relações sociais, condensam-se as
contradições entre um determinado modo de produção e as lutas sociais que elas suscitam.
Esse, aliás, é um dos problemas da globalização econômica. Ela está muito distante dos
sonhos do profeta Isaias de paz e harmonia entre os homens. Seu fim é o lucro que nunca
esteve tão concentrado nas mãos de tão poucos. 354 355
Ora, o direito positivo não é uma instância autônoma e subsistente por si mesma,
porém dependente de outras instâncias que o determinam e o condicionam, ao mesmo
tempo em que acabam sendo por ele determinadas e condicionadas. A positivação do
direito apresenta-se ela própria como produto do conflito hegemônico entre os grupos e
classes que procuram manipular e adaptar os mecanismos de regulação e repressão a seus
fins, impondo, mantendo e assegurando um padrão específico de relações sociais.
Ocorre que a falta de respeito ao princípio da dignidade humana e, principalmente,
ao valor pétreo que ela embasa, cria uma descrença em relação à legitimidade do estado, e,
conseqüentemente, no exercício de seus poderes, inclusive, pelo juiz e pela justiça. Sabe-se
que o problema de legitimação do poder está associado às múltiplas formas de organização
política da sociedade e aos diferentes modos de solução dos conflitos e seus respectivos
procedimentos decisórios. Evidentemente, uma sociedade equilibrada socialmente, que
354
FARIA, JOSÉ E. A crise constitucional e a restauração da legitimidade. Porto Alegre: Sérgio Fabris,
1985. p15.
355
Necessária a distinção entre um atentado terrorista e um ato de violência desgarrado desta finalidade,
nem sempre um ato de violência é terrorista, mesmo quando a vítima é uma personalidade política. A
tentativa de assassinato do presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, em 1981, é um exemplo de
violência sem conotação política, refere o noticiário que nos disparos, John Hinckley Jr., agiu
isoladamente, motivado por questões pessoais. Já o assassinato do premiê israelense Yitzhak Rabin por
um extremista judeu, em 1995, configura-se em sua plenitude um ato terrorista.
239
oportuniza eqüidade de direitos e deveres, consolidando a democracia, confere
legitimidade enquanto estado-nação. Logicamente existe, por parte do estado, uma
situação de dependência em torno do consenso social a respeito de sua satisfatoriedade no
desempenho das funções que lhes são concernentes, da coerência lógica de seu processo
legislativo e das instituições de direito na resolução das lides. Sem essa coerência, julga-se
não haver maneira de se superar o temor do arbítrio estatal e de sua ingerência sob o
particular.
Acontece, no entanto, que, com a globalização econômica, houve um esvaziamento
do poder dos estados-nação que passou às mãos das grandes corporações multinacionais.
Por isso, embora os direitos fundamentais cumpram uma função primordial na arquitetura
jurídica política, constituindo-se num paradigma de legitimação de regimes políticos, –
vale dizer que quanto mais um estado os consagra e procura torná-los eficazes, mais
legitimidade adquire perante a comunidade internacional –, há hoje uma grande
interferência que advém de segmentos que detêm o poder econômico, e,
conseqüentemente, o poder decisório em nível planetário, estabelecendo-se como uma
instância de decisão acima dos estados-nação.
Mas, a despeito das diferenças políticas e ideológicas existentes no mundo, os
direitos fundamentais reúnem em torno de si um certo consenso sobre sua necessidade
como valores essenciais contemporâneos. Então, pode-se caracterizar o princípio da
dignidade da pessoa humana como um mandato prima facie no sentido de que, para seu
cumprimento, devem-se levar em conta as condições fáticas jurídicas existentes.
A qualificação de princípio fundamental não acarreta à dignidade da pessoa
humana apenas valores de cunho ético e moral; o status de norma jurídico-positiva, de
caráter constitucional formal e material e, implica também sua eficácia, razão pela qual
se justifica plenamente seu alçamento à condição de princípio constitucional de maior
hierarquia axiológica-valorativa, dentro do ordenamento constitucional.
Mesmo porque, pelo fato de ter sido reconhecida como princípio fundamental,
não afasta a dignidade da pessoa humana de seu papel como valor fundamental para a
estruturação de toda a ordem jurídica; muito antes pelo contrário, outorga a esse valor
uma maior pretensão de eficácia e efetividade, demonstrando, assim, que as críticas
240
proferidas em relação ao enquadramento da dignidade da pessoa humana como
princípio, na realidade, não restringe a amplitude da dignidade humana.
241
4.3.2 A (im)possibilidade de relativização do caráter absoluto da dignidade
Conforme, já foi aqui amplamente exposto e sustentado, toda a pessoa é titular
do princípio da dignidade, que não se adquire, ou compra, mas é intrínseco ao ser
humano. Diante dessa afirmativa, surgem inúmeros questionamentos, dentre eles aquele
que se pergunta sobre até que ponto, para se assegurarem a dignidade e os direitos
fundamentais de uma determinada pessoa, não se acaba, por vezes, afetando dignidade
de outro ser humano? Por outro lado, como operar o direito frente a um conflito direto
entre as dignidades de pessoas diversas?
Partindo-se da premissa de que a dignidade, por ser qualidade inerente ao ser
humano, é absoluta, certamente haverá infinitas dificuldades de confrontações com as
problemáticas apontadas.
É, nesse sentido, que se relembram os estudos de Alexy
“Até o princípio da dignidade da pessoa humana acaba por
sujeitar-se, em sendo contraposto à igual dignidade de terceiros, a uma
necessária relativização”.
A aceitabilidade de relativização do princípio da dignidade da pessoa humana,
parece necessária frente à realidade da vida, que oferece situações limites, diante das
quais dificilmente não haverá questionamentos sobre determinados entendimentos
diante dos casos concretos.
Neste balizamento constante onde se contrapõem interesses sociais, não se pode
esquecer que os direitos humanos são produto da civilização humana, direitos históricos
mutáveis, suscetíveis de transformação e de ampliação, devendo ser tomados na sua
relatividade e historicidade, pois, por mais fundamentais que sejam, são oriundos de um
determinado momento histórico, nascidos em certas circunstâncias caracterizadas por
lutas em defesa de novas liberdades, pautados pelos valores daquela determinada época.
Nesse sentido, deve-se utilizar argumentação dialética que englobe razão,
vontade e sensibilidade, unidas na elaboração da interpretação e aplicação do direito, em
determinados casos concretos, cuja complexidade lida concomitantemente com a
242
colisão de dignidades de duas ou mais pessoas, uma vez que a dignidade individual do
ser humano completa-se e efetiva-se dentro de um contexto social, mediante o respeito à
dignidade dos outros seres humanos que compõem uma coletividade. Frente a esse
embate, não resta alternativa senão a relativação do princípio da dignidade, para que se
proceda, da forma mais justa possível, dentro do contexto social.
Assim, mesmo que se possa reconhecer a possibilidade de alguma relativização
da dignidade humana diante da análise de um caso real, não há como transigir no que
diz respeito à preservação de um elemento nuclear intangível da dignidade , oriunda da
fórmula kantiana, que justamente consiste na vedação de qualquer conduta que importe
em coisificação e instrumentalização do ser humano, que é o fim e não o meio do
sistema jurídico.
Desde sempre houve ideais em nome dos quais exércitos foram colocados em
marcha, seres humanos mortos, países devastados, cidades destruídas. A última grande
potência mundial e seus vassalos não constituem exceção alguma: junto com os portaaviões, os tanques e os helicópteros de batalha do exército de invasão ao Iraque, a idéia
de direitos humanos foi novamente mobilizada para se poder apresentar ao mundo um
argumento legitimador. Mas o notável é que os críticos desse processo apelam aos
mesmos ideais. Os milhões que protestam no mundo todo contra os planos de guerra
não falam uma língua ideológica diferente daquela do governo norte-americano.
Assim, em nome dos direitos humanos que cai a chuva de bombas; e é em seu
nome que as vítimas são assistidas e consoladas. Usualmente, os críticos dizem que a
realidade não concorda com os ideais. Se há um direito à vida e à integridade física,
como se pode aceitar então, com anuência que as intervenções militares ocidentais
matem mais pessoas inocentes que as atrocidades dos ditadores e dos terroristas? Os
EUA, é o que se diz, utilizam os direitos humanos como pretextos totalmente profanos
do poder e da economia; não lhes interessa a situação jurídica da população, mas apenas
o petróleo. Esses argumentos não são de modo algum falsos, no que concerne aos fatos.
O problema reside na interpretação desses fatos. Trata-se simplesmente de uma
incoerência do poder imperial ocidental, que repousa em seus próprios princípios?
243
Observa-se, porém que a história é marcada por oscilações nesse sentido. A
segunda guerra mundial, por exemplo, assinalou uma total ruptura com a construção
dogmática a respeito dos direitos humanos. Uma vez finda, houve todo um movimento
de reconstrução intelectual de valores como a dignidade da pessoa humana e os valores
que lhe são inerentes. A emergência do chamado direito internacional dos direitos
humanos tornou-se a pauta, conjuntamente com a nova feição do direito constitucional
ocidental. Os direitos humanos passaram a ser delineados como um sistema
internacional de proteção ao homem.356
A dignidade da pessoa humana tornou-se, assim, o paradigma balizador que
devia perpassar todas as constituições globais na construção de estados democráticos de
direitos. Esse novo paradigma centrou-se na elevação da dignidade da pessoa humana a
pressuposto
ineliminável
de
todos
os
consitucionalismos.
As
constituições
contemporâneas tornaram-se, hoje cada vez mais vinculadas a princípios e regras de
direito internacional, que se convertem em parâmetros de validade das próprias
constituições nacionais. 357
Ao adotarem um núcleo mínimo a ser preservado, no que diz respeito os direitos
humanos, as constituições democráticas inspiradas no paradigma valorativo da
356
PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos: o princípio da dignidade da pessoa humana e a constituição
brasileira de 1988. (NEO). Constitucionalismo. Ontem os códigos. Hoje as constituições. Revista do
Instituto de Hermenêutica Jurídica, vol.1, n.2. Porto Alegre: Instituto de Hemenêutica Jurídica, 2004,
p.79. “é como se se projetasse a vertente de um constitucionalismo global, vocacionado a proteger a
proteger direitos fundam,enmtais e a limitar o poder do Estado, mediante a criação de um aparato
internacional de proteção de direitos (...) Por sua vez, no âmbito do direito Constitucional Ocidental,
percebe-se a elaboração de textos constitucionais abertos a princípios, dotados de elevado carga
axiológica, com destaque ao valor da dignidade humana. Este será a marca das constituições européias
do pós-guerra. Observe-se, desde logo, que na experiência brasileira e mesma latino americana, a
abertura das constituições a princípios e a incorporação do valor da dignidade da pessoa humana
demarcarão a feição das Constituições promulgadas ao longo do processo de democratização
política_até por tal feição seria incompatível com a vigência de regimes militares ditatoriais. A respeito
basta acenar a Constituição Brasileira de 1988, em particular a previsão inédita de princípios”
fundamentais, dentre eles o princípio da dignidade da pessoa humana”.
357
PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos: o princípio da dignidade da pessoa humana e a constituição
brasileira de 1988. (NEO). Constitucionalismo. Ontem os códigos. Hoje as constituições. Revista do
Instituto de Hermenêutica Jurídica, vol.1, n.2. Porto Alegre: Instituto de Hemenêutica Jurídica, 2004,
p.81.“Fortalece-se a idéia de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio
reservado do Estado, isto é, não deve se restringir a compet6encia nacional exclusiva ou à jurisdição
doméstica exclusiva, porque revela tema de legítimo interesse internacional. Por sua vez, esta concepção
inovadora aponta a duas importantes conseqüências: 1) a revisão da noção tradicional da soberania
absoluta de estado, que passa a sofrer um processo de relativização, na medida em que são admitidas
intervenções no plano nacional em prol da proteção dos direitos humanos; isto é, transita-se de uma
concepção hobbesiana de soberania centrada no Estado para uma concepção ‘kantiana’ de soberania
centrada na cidadania universal”.
244
Declaração Universal elegeram a pessoa humana como ponto de convergência. que tem
como standt a dignidade da pessoa humana.
“Estes sistemas se complementam, interagindo como um sistema
nacional de proteção, a fim de proporcionar maior efetividade possível na
tutela e na proteção de direitos fundamentais; esta é, inclusive a lógica
principológica próprias do Direito Internacional dos Direitos Humanos (...)
uma lógica material inspirada no valor da dignidade d a pessoa humana,
sendo afastadas critérios de temporiedade (lei posterior revoga a lei anterior
com ela incompatível) e da especialidade (lei posterior revoga a lei especial
revoga a geral no que ela tem de especial”. 358
Porém, vale ressaltar que todas essas construções doutrinárias em torno do
respeito aos direitos civis vem sofrendo um abalo durante o governo Bush, com sua
política de guerra preventiva. Se os direitos não são absolutos, devendo ser revisados e
reavaliados a cada momento histórico, sem dúvida, os atos de barbárie promovidos no
11 de setembro transformaram todos em prisioneiros de seus próprios medos. O
terrorista, ao romperem efetivamente com o contrato social, jogaram a humanidade de
volta ao estado de natureza hobbesiano.
Afirma Barber,
“durante os últimos quatrocentos anos, fizemos um caminho que
levou a dissolução do feudalismo e a criação do estado-nação, da anarquia
insegurança e medo ao domínio da lei e da ordem legal, segurança política e
gozo da liberdade civil. No entanto as guerras do sec. XIX e XX, os
genocídios que as acomponhou, as jihads tribais e os terroristas das últimas
décadas, bem como a conduta predatória dos livres agentes que operam em
mercados internacionais anárquicos reverteram, com o tempo, as flechas da
liberdade. Funcionando fora da lei, tornando a insegurança onipresente e
fazendo da liberdade um sinônimo de risco, o terror constitui a apoteose da
anarquia internacional, a qual. Por sua vez, intensifica a repressão brutal”.
359
A liberdade manifesta-se como direito fundamental de primeira geração, sendo
externalizada através de instrumento normativo constitucional que garante aos cidadãos
os direitos civis e políticos dos quais são titulares. Esses direitos, manifestos no rol de
garantias individuais dos quais são titulares o indivíduo, são o direitos de resistência ou
358
PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos: o princípio da dignidade da pessoa humana e a constituição
brasileira de 1988. (NEO). Constitucionalismo. Ontem os códigos. Hoje as constituições. Revista do
Instituto de Hermenêutica Jurídica, vol.1, n.2. Porto Alegre: Instituto de Hemenêutica Jurídica, 2004,
p.82.
359
BARBER. Benjamin R. O império do medo. Rio de janeiro: Record, 2005. p.95.
245
de oposição perante o estado, necessários para a perfectibilização da dignidade da
pessoa humana.360
O art. 10.1 da Constituição espanhola repisou o dogma da dignidade no sentido
de que a mesma deve ser tomada como paradigma inalterável qualquer que seja a
situação em que a pessoa se encontre, constituindo, em conseqüência, um mininum
invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar.361
360
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na onstituição
Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2004. “Para além disto, coloca-se o problema de
saber quais direitos fundamentais efetivamente possuem um conteúdo em dignidade da pessoa humana,
em outras palavras, se podem ser tidos como manifestação (exigência) direta ou, pelo menos, indireta
desta dignidade. Ainda que se parta da premissa (não de todo inquestionável no sistema jurídicoconstitucional brasileiro) de que todos os direitos fundamentais possuem, como elementos comum, pelo
menos um conteúdo mínimo em dignidade, remanesce a dúvida de qual é exatamente este conteúdo em
dignidade que, para além disso, violação e, portanto, encontra-se vedada pelo ordenamento jurídico.
Nesta linha de entendimento, nem mesmo o interesse comunitário poderá justificar ofensa à dignidade
individual, esta considerada como valor absoluto e insubstituível de cada ser humano.:
”.
361
Ronald Dworkin, aponta para a necessidade do direito oferecer um certo grau de efetividade no que se
refere aos direitos fundamentais, assessorando-se para tanto de standards que não funcionam como
regras, mas trabalham com princípios, política e outros gêneros de standards, que aliados a norma
jurídica dêem sustentação as interpretações jurídicas tento como paradigma a dignidade da pessoa
humana.
246
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A civilização é uma ordem imposta a uma humanidade naturalmente
desordenada. As sociedades humanas impõem compromissos, contratos – redução e
submissão dos anseios e sonhos individuais ao princípio da realidade. E essa realidade
são as normas, as regras que tornam possível a vida em sociedade, fruto de trocas
constantemente negociadas, de sacrifícios impostos a todos os seus membros.
Os valores que penetraram a consciência coletiva e modelaram o pensamento
que norteou a aventura moderna foram a beleza, a limpeza e a ordem. Vale lembrar que
o preço pago pelo quinhão de segurança advindo desses valores foi à abdicação da
liberdade, a renúncia ao instinto, impondo grandes restrições à sexualidade e à
agressividade humanas.
Em verdade, nada predispõe o ser humano naturalmente aos valores de
contenção de sua natureza instintiva, o que implica na necessidade de controle sobre os
indivíduos, agindo sobre os seus impulsos. Dessa forma, os prazeres da vida civilizada
moderna vinham num pacote fechado onde coexistiam prazeres e sofrimentos,
satisfação e mal-estar, submissão e rebelião, pois ao excesso de ordem corresponde
sempre escassez de liberdade.
A insurreição contra esse primado da ordem, os fluxos libertadores do século
XX transformaram essa realidade, de forma, dizem muitos, bastante radical. A
globalização econômica, o desenvolvimento técnico-científico e a onipresença dos
mídias formam o tripé de sustentação dessa nova ordem (ou desordem?) que caracteriza
os tempos atuais. Nesse contexto, pode-se afirmar, segundo inúmeros teóricos, que a
sociedade contemporânea celebra a liberdade como bem maior_ valor pelo qual todos os
outros valores se pautam e se avaliam
Aparentemente, os tempos contemporâneos são de euforia, mobilidade e
profusão. Vive-se a era da desregulamentação, da ausência de regras. Presidida pelo
princípio do prazer, a renúncia forçada que caracterizou a modernidade, converteu-se no
reino de uma liberdade que chega à beira da selvageria. A liberdade tornou-se a
referência pela qual todas as normas e resoluções passaram a ser medidas.
247
Realizados esses sonhos seculares, essas facilidades libertadoras e gratificantes,
o homo mundialis modernicus experimenta a plasticidade, a maleabilidade, a ductilidade
assustadoras de um novo tempo. Isso, todavia não significou a abdicação dos ideais de
beleza, pureza e ordem, mas a crença na sua realização pelo desejo e esforço
individuais, pois a sociedade contemporânea exibe um individualismo triunfante. Nesse
sentido, é curioso que as celebrações a críticas da disseminação individual e a visão das
sociedades como coexistência errática dos impulsos e desejos alcancem tanto prestígio.
Como decorrência do processo de libertação, instaurou-se um individualismo
que nada tem em comum com aquele próprio da responsabilidade, da recusa ao
conformismo grupal, da vontade de emancipação pessoal. O indivíduo, como sujeito
ativo da sociedade política e civil, cede lugar ao indivíduo-objeto, passivamente
integrado à máquina social e respeitosamente preso a ela. A identidade pessoal então se
quebra e o indivíduo deixa-se seguir à deriva num narcisismo que se afirma como
semelhança: os mesmos impulsos de subjetividade, os mesmos desejos e prioridades, os
mesmos hábitos constroem narcisos clonados.
Não obstante a sociedade contemporânea, com todas essas características de
libertação, desregulamentação, também produz estranhos.Nesse contexto, o estranho é
aquele que, seguindo as tendências de descompromisso, indiferença e livre competição,
leva-as ao extremo, ameaçando exibir o potencial suicida da estratégia. Os seres
humanos que transgridem os limites transformam-se em estranhos, poluindo a alegria
com angústia.
Como forma de absorção dos estranhos, a sociedade contemporânea substitui as
atividades de purificação dos estranhos por estratégias de desregulamentação e
privatização. Estas ações políticas, pelas quais os consumidores ascendem à condição de
cidadãos, implicam uma concepção do mercado não como simples lugar de troca de
mercadorias, mas como parte de interações sócio-culturais mais complexas.
Tais estratégias, no entanto, não significam o fim do martírio do estranho. O severo
teste a que os estranhos são submetidos é mostrar-se capaz de ser seduzido pela infinita
possibilidade e constante renovação promovida pelo mercado consumidor, interessado em
248
transformar o consumidor num permanente insatisfeito em busca de sensações cada vez
mais intensas e de experiências novas. A sujeira que precisa ser removida são os
consumidores falhos, incapazes de responder ao apelo do mercado, ironicamente porque
aceitaram o desafio de levar a proposta pós-moderna às últimas conseqüências.
O contexto de medo e insegurança se deve à nova desordem político-estrutural do
mundo; à inquestionável prioridade conferida à irracional e cega competição do mercado; à
desintegração ou enfraquecimento de outras redes de segurança como a família, a
vizinhança, a comunidade local; e à incerteza a propósito do mundo material e social. Em
razão desses medos, a sociedade contemporânea é extremamente vigilante. Trata-se de
uma sociedade que é muito menos dos espetáculos do que da vigilância. Mas sua sabedoria
está em transformar o próprio espetáculo em observatório de vigilância.
A sociedade contemporânea apresenta características cada vez maiores de
incivilidade: o indivíduo não é mais uma entidade estável provida de identidade intangível
e capaz de fazer sua própria história, antes de se associar com outros indivíduos,
autônomos, para fazer a história do mundo. Movido por uma pulsão gregária, é, também, o
protagonista de uma ambiência afetual que o faz aderir, participar magicamente de
agrupamentos escorregadios.
A incivilidade é construída pela própria estrutura da sociedade moderna através
(1) de lideranças políticas carismáticas que destroem qualquer distanciamento entre os
sentimentos e impulsos do líder e os da platéia, desviando-a da possibilidade de medir
seus atos. As mídias desempenham um papel crucial nessa deflexão superexpondo vida
pessoal e obscurecendo competência e trabalho; (2) da perversão da fraternidade na
experiência comunal moderna. O ato de compartilhar centraliza-se na decisão de quem
deve pertencer a uma comunidade: quanto maior intimidade, menor passa a ser a
sociabilidade. A fraternidade passa a se constituir pela exclusão dos intrusos.
A sociedade contemporânea continua presa a parâmetros de beleza, pureza e
ordem, porém nenhuma sociedade e nenhum grupo suportam por muito tempo a
irrupção errática dos desejos, nem a conseqüente incerteza dos significados. As
sociedades parecem acreditar que sua preservação está ameaçada ou prejudicada com a
presença de certas pessoas que não se ajustam ao sistema, que estão fora de seu lugar,
249
que são negativas ou estragam o quadro, ofendendo o censo esteticamente agradável,
harmonioso e moralmente tranqüilizador.
O grande problema é que há nas sociedades pessoas ou seres para os quais
não foi previsto ou reservado lugar em qualquer fragmento da ordem social. Essa
pessoas ficam, pois fora do lugar em todos os lugares para os quais o modelo de pureza
foi projetado, visto que o mundo dos que procuram pureza é pequeno de mais para
acomodá-las. Hóspedes não convidados, esses seres, por não terem lugar, controlam sua
própria localização e, ao fazê-lo: (1) revelam a fraqueza e a instabilidade de todas as
acomodações; (2) desafiam não só o modelo de pureza, mas o próprio esforço de
protegê-lo. Se os tempos contemporâneos são de euforia, mobilidade e profusão que
aturdem os mais favorecidos, eles flagelam como um insulto os mais desprovidos de
bens, avivando suas frustrações.
É por meio dos rituais que os grupos selecionam e fixam, graças a acordos
coletivos, os significados que regulam sua vida. Tanto isso é verdade, que a sociedade
contemporânea, à revelia de suas aspirações de liberdade, adota um perfil punitivista
como resposta à criminalidade organizada e ao terrorismo, males por ela própria gerada.
Daí a importância de ser repisada, em termos doutrinários, a necessidade de se
rechaçar de maneira categórica esse tipo de pseudo solução encontrada pelas sociedades
pós-modernas, que entabulam a obrigatoriedade de respostas veementes para a
contenção do flagelo da criminalidade, tais como o recrudescimento das penas e da
legislação punitivista.
O punitivismo age diversamente de todo garantismo construído no transcorrer da
história da humanidade que entende que a violência penal só pode ser exercida
restritivamente e com o respeito aos direitos e garantias individuais, não permitindo que
seja submetido à pena, qualquer sujeito (ente vivo), sem que antes lhe seja legado o
cumprimento de um ordenamento pautado pela observância dos direitos fundamentais e
dos princípios da dignidade da pessoa humana. As realidades atuais têm mostrado uma
atuação diversa desses determinismos humanitários categóricos. São evidentes hoje, na
prática, tanto legislativa quanto judicial, altas doses de punitivismo realizado com a
anuência e concordância da comunidade jurídica que, não fixa posições ante a esse
250
retrocesso jurídico que, em muitos casos, além de suprimir direitos e garantias individuais,
opera pela inquisição sumária de seus suspeitos.
Agir à deriva da uma construção histórica alicerçada na continuidade e no
desenvolvimento da sociedade e de sua construção humanitária, condizente com o
respeito à dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais, implica eliminar o
direito e a equidade, negando a todos (igualitariamente) erga ominis os ditames da lei.
Essa função de filtragem do que é válido ou inválido está reservada aos juízes e,
sobretudo, às Cortes Superiores.
Relegando o inimigo à qualidade de uma não-pessoa, abstrai-se a vitalidade a ele
inerente, uma vez que deixa de ser visto como um sujeito de direitos. Como se
intensifica a ação punitiva contra todo aquele que não detém a possibilidade de
responder a obrigações e ter direito aos direitos, pois é dispensado pela exclusão de
todos os pactos sociais: é inqualificável a quantidade de violência a ele dispensada em
todas as partes do mundo, particularmente nos países periféricos (incluindo-se a
América Latina), por onde transpassa a combinação da ausência de tradição democrática
com uma mídia e um legislador comprometidos com a ideologia do punitivismo a
qualquer preço, aliado a todo tipo de privação a que se possa imaginar, da saúde à fome.
Certamente, não se pode ser ingênuo ao avaliar a situação atual, conferindo ênfase
ao punitivismo como instrumento prioritário para fazer frente às mais variadas questões.
Deve-se, antes, reforçar a necessidade de manutenção de uma posição garantista e do
respeito inarredável aos direitos e garantias individuais, bem como a defesa do
desenvolvimento de uma sociedade marcada por uma ênfase diametralmente oposta a da
violência institucionalizada e dogmatizada. Nada justifica a negação do próprio direito
através de práticas exterminatórias, que acabam por colocar em risco a própria estrutura do
estado.
251
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