A falta do coletivo Estive recentemente em uma conferência

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A falta do coletivo
Estive recentemente em uma conferência internacional em Cusco, Peru. Entre
as maravilhas dos incas, suas trilhas perfeitas pelas montanhas e as ruínas que
nos permitem vislumbrar aquela civilização avançada, discutiu-se como o mundo
está cada vez mais conectado e quais políticas globais fazem falta (muitas).
Pensar em como melhorar a arquitetura financeira internacional – e a inserção
do Brasil – fez bem. Mas a volta foi dura: tanto a realidade no Brasil, com as
dificuldades na recuperação da economia, quanto no mundo, com o conflito em
Israel que me aflige.
Neste mundo cada vez mais interconectado, cada país essencialmente parece
só. Na economia, apesar de todo o arcabouço existente, políticas econômicas
são desenhadas mirando o interesse nacional. O impacto nos outros países fica
em segundo plano.
Um exemplo relevante é a premente decisão do Fed, o banco central norteamericano, sobre quando elevar os juros, que hoje estão nas mínimas históricas,
em zero. Essa decisão é soberana. Será definida pelos dados econômicos nos
EUA, não no resto do mundo, como o desemprego, que está caindo, e a
expectativa de inflação ainda baixa. A subida dos juros ocorrerá quando ficar
mais claro para o Fed que a economia dos EUA saiu da longa estagnação,
iniciada na crise de 2007-2008. Tudo indica que acontecerá no ano que vem.
Mas a subida de juros sinalizará simultaneamente que a época de dinheiro
barato e fluxos de capitais abundantes estará no seu fim. Os fluxos de capitais
mudarão de direção e afetarão os outros países. Sem decidir quando, cada país
precisará lidar com a pressão de depreciação, inflação e juros mais altos na sua
economia. A política é local, mas suas consequências, globais.
De certa forma, os interesses não estão completamente desalinhados. Uma
política adequada do Fed permitirá à economia norte-americana crescer de
forma segura e, ao mesmo tempo, evitar riscos financeiros, como bolhas em
alguns ativos. O mundo deve se beneficiar do crescimento dos EUA e do risco
financeiro menor. Mas permanece a preocupação sobre o impacto nas outras
economias no momento da reversão da direção dos fluxos de capital. Estarão
todos os países preparados para isso? Na semana passada, o Fundo Monetário
Internacional (FMI) divulgou um relatório analisando o impacto de um choque
externo em 29 países. O impacto não será igual em todas as economias e nem
todas estão preparadas.
Seria mais fácil se houvesse um arcabouço internacional que permitisse aos
países se coordenarem em momentos de necessidade, financiando os que
precisam de liquidez, permitindo suavizar o choque. O FMI, na sua composição
atual, não tem ainda a agilidade necessária nem os recursos para essa tarefa
(não é um emprestador de última instância, como os bancos centrais). Na crise
de 2008, coube ao Fed decidir quem teria liquidez, através de suas linhas de
swap com alguns poucos bancos centrais (o Brasil, inclusive). Mas é necessário
algo mais organizado, multilateral.
Hoje em dia, cada país se defende montando seu arsenal, acumulando reservas
internacionais para serem usadas em caso de crise. Quando há choques e
saídas de capital, a venda de reservas suaviza o impacto na economia. O
acúmulo de reservas é o sinal da falta de confiança numa resolução coletiva,
num arcabouço internacional.
Mas todos armam a sua defesa e o resultado coletivo é pior. A busca por
reservas – basicamente ativos líquidos e seguros – é exagerada, pelo menos do
ponto de vista coletivo. A intensa busca por ativos internacionais considerados
sem risco (como os títulos do Tesouro norte-americano) eleva muito o seu
preço. Países pagam para terem reservas, para guardarem seus arsenais.
A reciclagem desses recursos de volta para financiamento de atividades
produtivas é imperfeita. Há “empoçamento” de liquidez. Os recursos não fluem
com facilidade e segurança (muito concentrados no curto prazo) dos que
poupam para aqueles que precisam de financiamento para investir. Portanto,
suspeito que o potencial de crescimento no mundo deva sofrer com essa versão
moderna do “mercantilismo”.
Sofre também a flutuação do câmbio. As flutuações puras são raras. Muitas
economias intervêm direta ou indiretamente na sua taxa de câmbio. Existem
explicações alternativas para esse fenômeno. Alguns acreditam que o que está
ocorrendo é um conflito entre as economias, conhecido por vários nomes, como
desvalorizações competitivas, “rouba-monte” ou “guerras cambiais”. Um câmbio
mais competitivo leva a ganhos de mercado e tenderia a aquecer a economia de
um país à custa das demais. Outros acreditam que ocorre apenas uma falta de
sincronização. O movimento nas taxas de câmbio é apenas consequência de
outras políticas, como as políticas monetárias domésticas, que buscam alcançar
a meta de inflação, com pleno emprego.
Uma outra explicação, mais comum em economias emergentes, é que os
bancos centrais têm a preocupação de acumular reservas em momentos de
bonança, para usá-las quando há escassez. Para isso precisam intervir.
Compram dólares quando há excesso e vendem quando falta. O regime de
câmbio intermediário vem dessa intervenção.
Um mecanismo internacional que de fato permita suavizar o choque entre os
países, atuando como um efetivo mecanismo de emprestador de última
instância, poderia reduzir a insegurança coletiva atual. Só assim seria possível
diminuir a necessidade de acúmulo de reservas, o mecanismo mais claro do
mercantilismo moderno. Com isso, as distorções no mercado financeiro
internacional poderiam diminuir e o potencial de crescimento no mundo
aumentar. Enquanto essa realidade não chega, o recomendável é manter a
economia em ordem e preparar-se para o próximo choque internacional, que
pode já ocorrer no próximo ano.
Ilan Goldfajn é economista-chefe e sócio do Itaú Unibanco.
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