O Brasil e a crise dos empréstimos NINJA

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O Brasil e a crise dos
O
s recentes solavancos no mercado financeiro internacional, oriundos da
incerteza reinante no mercado imobiliário norte americano denotam a complexidade do quadro econômico mundial. Há
fatores conjunturais envolvidos, mas também
reflexos de mudanças estruturais importantes.
A globalização financeira é o fenômeno
novo, manifestado no último quarto do século vinte. A sofisticação dos fundos mútuos, de
pensão e de hedge, os mercados de capitais, de
câmbio, de private equity, de derivativos, entre
outros, criou um mundo novo. Em complemento, as inovações tecnológicas fizeram diminuir
acentuadamente os custos de transação, agilizando o fluxo de informações. Os mercados cada
vez mais interligados, funcionando on line, 24
horas por dia, passaram a determinar um quadro de liquidez e volatilidade sem precedentes
na história econômica mundial.
Esse quadro, sob a clara supremacia do dólar
norte-americano, viabilizou o financiamento
da globalização comercial e produtiva, ao mesmo tempo que potencializou a volatilidade e a
instabilidade dos mercados financeiros globais.
Diante da fraqueza imposta pelas novas circunstâncias às instituições multilaterais pós Bretton
Woods, especialmente o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, criou-se um vácuo de referência no sistema financeiro internacional. A alternativa aos países não emissores de
moedas conversíveis foi adotar uma clara estratégia de acumulação de suas reservas cambiais,
que hoje superam os US$ 3 trilhões. Destaquese que parcela significativa dessas reservas financiam o déficit externo norte americano, por
meio das aplicações em títulos do tesouro.
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O cenário tornou-se bastante favorável aos
EUA. Como emissores exclusivos da principal
moeda de referência internacional puderam se
dar ao luxo de manter a economia em crescimento, abastecendo-se de manufaturas oriundas da China. O déficit externo decorrente,
superior a US$ 900 bilhões ao ano, pode ser
financiado a taxas de juros reais baixas, pela
crescente demanda pelos títulos norte americanos, absorvedores da liquidez global.
A deflação dos produtos industrializados,
propiciada pela invasão chinesa compensou a
inflação das commodities. Ao contrário do que
ocorrera na década de 1970 em que o choque
dos preços do petróleo inviabilizou a economia norte americana e de muitos outros países, o quadro agora é diferente. A desinflação e
a liquidez propiciaram aos EUA financiar-se a
taxas de juros reais baixas. Os ajustes finos na
calibragem das taxas de juros conduzidos com
maestria por Greenspan e depois Bernanke,
após o estouro da bolha da “exuberância irracional” na bolsa de Nova York de 2000-2001,
viabilizaram a retomada e, mais recentemente,
pavimentaram o caminho muito provável do
soft landing do nível de atividades.
O quadro de liquidez internacional também
incentivou as operações carry trade, a tomada
de recursos a juros reais baixos, muitas vezes negativos, para especular em fundos de commodities, mercados imobiliários e de capitais, etc.
mundo afora. Os chamados mercados subprime
ganharam espaços, aumentando a desconfiança,
mesmo nos EUA. Ganharam espaço os empréstimos a credores de baixa qualidade, os chamados NINJA (No INcome, no Jobs, no Assets) de
alto risco de inadimplência.
Antonio Corrêa de Lacerda
s empréstimos NINJA
O que mudou foi que esses empréstimos tornaram-se securitizados mediante a emissão de
títulos repassados a terceiros. De forma que os
riscos de inadimplência e seus efeitos acabam
contaminando outros ativos e mercados. Muito
do que se observou no comportamento das bolsas e moedas na primeira semana do pânico revelava uma tentativa de reprecificação dos ativos.
Ninguém ainda sabe, na verdade, a profundidade
e extensão dos estragos.
Assim, as crescentes imbricações entre os mercados dos países, e entre esses e a economia real,
tornaram o jogo cada vez mais complexo e volátil. A crescente interdependência entre os países
amplia o desafio dos bancos centrais e dos órgãos
multilaterais para a gestão da (des)ordem econômica. Muito provavelmente, os ajustes em curso
nos preços dos ativos nas bolsas não devem mudar substancialmente, no curto prazo, o quadro
positivo de expansão global.
Enquanto prevalecer a lógica descrita anteriormente, a economia mundial continuará crescendo, embora menos intensamente, com ajustes
localizados de preços de ativos. Mas, por outro
lado, a expansão por si só também gera seus limites físicos e estruturais. Até que ponto serão
sustentáveis os crescentes déficits norte-americanos e a alavancagem da economia chinesa, para
citar duas das grandes variáveis determinantes
do jogo?
Para o Brasil a crise também representa uma
oportunidade para refletir sobre as escolhas feitas e reorientar a estratégia das políticas econômicas. Há um relativo consenso de que a economia brasileira tem hoje uma condição de defesa
muito melhor do que por ocasião das crises do
final dos anos 1990. De fato, a redução da dívi-
da externa líquida, o superávit em conta corrente do balanço de pagamentos e a acumulação
de reservas cambiais representam uma verdadeira blindagem em momentos de turbulência. Se
esses fatores não nos tornam imunes às conse­
qüências da crise, eles colaboram para minimizar os seus efeitos.
O quadro também nos revela as contradições
entre o curtíssimo prazo e a visão de mais longo
prazo, especialmente no que se refere às definições de caminhos a seguir. Houve progressos importantes, especialmente no que toca à redução
da nossa vulnerabilidade das contas externas. As
reservas cambiais brasileiras cresceram de US$ 16
bilhões no final de 2002 para cerca de R$ 160 bilhões. Muito se questionou a respeito do custo de
carregamento das reservas. Mas, a eminência da
crise também evidencia o benefício de possuí-las.
O custo ainda muito mais elevado seria, diante
dessa situação, não poder contar com elas!
Antonio Corrêa de Lacerda é diretor de economia da
Abinee, economista-chefe da Siemens e professor-doutor da PUC-SP. É autor de vários livros de economia
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