O Conhecimento Científico: Da Epistemologia às Redes Sócio

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O CONHECIMENTO CIENTÍFICO: DA EPISTEMOLOGIA ÀS REDES SÓCIO-TÉCNICAS
Marcia Moraes
Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da
Universidade Federal Fluminense.
Embora Figueiredo afirme um “progressivo desinteresse pelas questões epistemológicas
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(e metodológicas)” , fazendo referência principalmente ao que ele chama de epistemologia forte,
isto é, uma epistemologia que funciona como uma espécie de juíza do conhecimento delimitando
que tipo de conhecimento deveria ser tomado como válido, acredito que a questão volta a ganhar
relevância à luz de alguns estudos contemporâneos que analisam o modo como os conteúdos das
ciências são produzidos na prática dos cientistas, nas bancadas dos seus laboratórios. Figueiredo
esclarece bem o problema quando esvazia o sentido da questão acerca da cientificidade da
psicologia referindo-a a uma epistemologia forte. No entanto, a meu ver, o que ele chama de
epistemologia forte não esgota o campo possível no qual essa questão pode ser levantada. Os
trabalhos de Latour são a esse respeito referências necessárias, não apenas pela sua atualidade
mas também pelas inovações que trazem para o campo dos estudos em ciências.
Partindo de uma investigação etnográfica minuciosa da prática dos cientis-tas, bem como
acompanhando as suas controvérsias, Latour (1994) nos mostra como os conteúdos da ciência
são tramados, agenciados nesse domínio heterogêneo do qual fazem parte as inscrições, os
dispositivos técnicos, as instituições de financiamento de pesquisa, as revistas científicas, os
colegas - “os caros colegas”. A ciência é afirmada como uma prática híbrida, distante da imagem
epistemológica que a encerrava no domínio das teorias e dos conceitos. Prática híbrida no sentido
de estar longe de ser puramente objetiva, de lidar com fatos e apenas fatos, ao contrário o
hibridismo da ciência se faz notar quando acompanhamos a sua empiria, a sua praxis no contexto
mesmo do laboratório. Ao longo de seus trabalhos, Latour (1994) questiona as distinções clássicas
entre o que se faz no universo purificado e asséptico do laboratório e a sociedade lá fora.
Sociedade e Natureza são efeitos, são negociadas e produzidas no laboratório - é o que Latour
(1995, 1992-b) nos mostra em seus estudos sobre Pasteur. Trata-se de mostrar como a ciência,
definida por seu funcionamento híbrido, impura por nascimento, define o que é a sociedade em
que vivemos e a natureza a qual nos referimos. Não vivemos num mundo separado por pólos
opostos, natureza de um lado, sociedade de outro. Vivemos num mundo povoado por objetos que
já não sabemos se são naturais ou sociais. São mistos de natureza e sociedade, de objeto e
sujeito. As velhas dicotomias já não nos permitem viver. Exemplos disso nos surgem todos os dias
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nas páginas dos jornais. Num artigo recentemente publicado no jornal O Globo ficamos sabendo
que o príncipe herdeiro do Japão, Naruhito, de 37 anos é esteril e estuda a possibilidade de
inseminação artificial de sua mulher, a princesa Masako, de 33 anos com o sêmem do pai dele.
Seria uma maneira de garantir a continuidade da dinastia japonesa. Se tudo ocorrer como se
espera, a criança será filha do sogro com a nora e irmã do seu padrasto. É a ciência
comparecendo na redefinição inteiramente original das relações de parentesco e, com isso,
levantando questões políticas, biológicas, sociais e éticas. É a ciência tal como é tratada por
Latour, como ciência nômade, ciência híbrida ou ciência como rede heterogênea. Acredito que um
enfoque como esse permite trazer à tona a questão da cientificidade da psicologia numa visada
inteiramente diferente daquela proposta por certas leituras epistemológicas. Neste artigo, faço
uma apresentação do modo epistemológico de tratar a ciência tomando a epistemologia não como
um fardo a ser eliminado, criticado e rebatido, mas sim tentando entrever de que modo ela lida
com essa heterogeneidade da ciência. Não pretendo afirmar um dualismo a mais: ou
epistemologia ou rede heterogênea, mas sim mostrar que a primeira é, em certo sentido, um caso
da segunda, como um de seus modos. Em seguida, apresento o estatuto polêmico da
cientificidade da psicologia tal como ele é visado na perspectiva epistemológica. Vale notar que
quando falo de epistemologia faço referência principalmente aos trabalhos de Canguilhem. As
razões dessa escolha apontam para o seu caráter fraco - para usar a terminologia de Figueiredo -,
isto é, uma epistemologia cuja finalidade não se esgota na tarefa de julgar a ciência, mas sim de
acompanhar o modo como ela se constrói a partir de uma conexão peculiar entre erros e acertos,
entre ideologia e ciência. Por fim, somos levados a nos aventurar no modo latouriano de tratar a
ciência, tomando como positiva a sua multiplicidade.
QUESTÕES EPISTEMOLÓGICAS
Sobre o que exatamente incidem as questões que a epistemologia levanta em relação a
uma ciência qualquer e, em particular, em relação à psicologia? Importa estabelecer um sentido
amplo para a epistemologia, mais do que propor especificações detalhadas do modo como cada
autor que trata deste tema se refere ao termo epistemologia. Neste sentido, não pretendo mapear
os muitos sentidos do termo, mas antes estabelecer um sentido geral que me permita avançar nos
trabalhos de Canguilhem ao mesmo tempo que situar os pontos de vista de Latour acerca deste
assunto. Assim o objetivo é mais fazer operar a noção de epistemologia no corpo deste trabalho e
menos propor uma exaustiva taxionomia sobre o assunto.
É possível afirmar que, diante do faktum das ciências positivas, dois enfoques podem ser
adotados: um consiste em deixar na sombra a sua facticidade, a sua positividade para mostrar ser
a ciência em questão uma explicitação da estrutura humana do conhecer, este é o estilo
racionalista. Já o outro consiste em afirmar o caráter autóctone dos princípios que uma ciência dá
a si mesma e, além disso, o caráter singular de seu arcabouço conceitual e teórico que permitem
determinar de maneira inédita um certo objeto de conhecimento. Em resumo, ao invés de tomar a
ciência como exemplo de uma racionalidade dada, interessa apontar o modo como a ciência
produz os enunciados e as regras capazes de construí-la, tal é o estilo epistemológico, pois é o
estado de fato das ciências o que consagra e batiza a epistemologia.
Uma ciência só se torna objeto da curiosidade epistemológica na medida em que
comporta uma unidade que não é garantida por uma razão a priori, mas uma unidade que remete
a um trabalho produtivo, empírico, normatizado por regras locais, revisáveis e instáveis. Do ponto
de vista epistemológico, a unidade de uma ciência, longe de ser remetida a “monstros identitários
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forjados por manuais” , é afirmada no domínio singular e local de uma prática científica. Seria
possível traçar duas condições essenciais ao surgimento da epistemologia: em primeiro lugar,
sendo cada ciência considerada pelo que ela tem de diferencial, de heterogêneo e vista como
produtora de um conhecimento singular, autêntico e legítimo do ponto de vista de sua facticidade
e, em segundo lugar, cada ciência prestando-se a um exame ao mesmo tempo histórico e crítico,
ao invés de aparecer como uma constelação de verdades. Neste sentido, podemos dizer ser a
epistemologia uma investigação que vem após a positividade empírica da ciência interrogando-a
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acerca dos seus princípios, seus fundamentos, suas estruturas, suas condições de validade .
Segundo Lebrun (1977) as epistemologias, como saberes sobre as ciências podem ser
caracterizadas como “gais savoirs”, isto é,
saberes ainda adolescentes, agressivos, insolentes, dissolventes, desrespeitosos da
cientificidade de direito divino porque mais respeitosos da ciência como trabalho e
como documento ... as ciências não se tornam agradáveis senão quando se as toma
por jogos dos quais é preciso buscar as regras, elas não se tornam interessantes
senão quando não se crê mais na Verdade” (p. 21).
O CONHECIMENTO DA VIDA
Não crer mais na Verdade é justamente o que Canguilhem (1977-a) nos convida a fazer
quanto delimita o campo de aplicação da epistemologia em relação à história das ciências. Uma
história das ciências, isenta de qualquer contaminação epistemológica, acaba por reduzir uma
ciência, num momento dado, a uma exposição das relações cronológicas entre os seus
enunciados. A epistemologia, ao contrário, problematiza a noção de passado de uma ciência:
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“essa ciência do passado é um passado da ciência atual?” Esta é, parece-me, a questão
fundamental para tratar da epistemologia no sentido que lhe confere Canguilhem (1977-a)e nela
está precisamente o tema da Verdade embutido. Porque, quando o autor se pergunta sobre o
passado de uma ciência atual, o que está em jogo é uma aliança entre algo que é sancionado pela
atualidade da ciência em questão e aquilo que não é mais. Canguilhem nos faz ver a insipidez de
uma história apenas da Verdade, sendo o entrelaçamento da ciência com a ideologia científica o
que impede a redução da história de uma ciência à pobreza de um simples quadro sem sombras
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de relevo . Em lugar de considerar a negatividade ou o caráter ilusório de uma formação
discursiva para suprimi-la do conhecimento científico, é preciso estar atento para o seu núcleo
positivo, de modo a mostrar que ela pertence à história da formação do saber. Canguilhem afirma
a positividade de tais formações discursivas, situando-as no campo do saber. Assim, ele
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problematiza a idéia de que a formação de um discurso científico se constitui por purificação ou
expurgo das crenças, das ilusões imaginárias e aceita menos tal idéia como uma regra
epistemológica, que segundo Delaporte (1994), se refere a principio à epistemologia
bachelardiana.
Existe portanto, no trabalho de Canguilhem, uma oscilação entre duas posições em
história: uma continuísta e outra descontinuísta. O epistemólogo deve trabalhar em dois registros
articulados: aquele da ideologia científica e aquele da constituição do discurso científico.
É possível dizer que Canguilhem afirma uma epistemologia bipolar, no sentido de lidar
tanto com os obstáculos à formação de um conceito científico, quanto com os elementos díspares,
que são a sua condição de possibilidade. Para ele é a ideologia científica aquilo que funciona ao
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mesmo tempo como condição de possibilidade e como obstáculo à formação de uma ciência . No
caso da formação de um discurso científico, a ideologia é afirmada como uma “aventura intelectual
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sobre a racionalização” , de forma que uma história das ciências inclui uma história das ideologias
científicas.
Dois pontos são relevantes neste enfoque epistemológico das ciências. Primeiro as
ciências são tomadas em sua facticidade, em sua historicidade empírica que comporta elementos
díspares e heterogêneos. Em segundo lugar, cumpre ressaltar que a ciência é afirmada como
prática produtora de seus próprios meios de validade e verificação. O trabalho de Canguilhem é a
este respeito exemplar, pois, ao afirmar o caráter bipolar da epistemologia, o autor enfatiza uma
articulação inseparável entre erro e errância
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no campo da ciência. Em outras palavras, a
constituição de uma ciência não se explica pura e simplesmente por um expurgo dos erros ou
ilusões imaginárias, mas antes por uma deriva ou errância da qual fazem parte indissoluvelmente
as ideologias científicas. A história de uma ciência é irredutível a uma oposição maniqueísta e
unipolar entre o verdadeiro e o falso; ela é um certo modo de articulação da qual fazem parte tanto
o verdadeiro quanto o falso. Por isso insisto na importância do aspecto errante próprio da ciência
afirmado pela epistemologia e penso que uma das riquezas do trabalho de Canguilhem reside
precisamente em fazer da ciência uma deriva.
Num texto em que analisa o trabalho de Canguilhem, Foucault
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afirma que, por traçar sua
perspectiva histórico-epistemológica sobre as ciências da vida, o autor fez aparecer um conjunto
de traços essenciais que a singularizam em relação às outras ciências. O conhecimento da vida
encontra sua especificidade na interrogação sobre a doença, a morte, a monstruosidade, o erro, e
disso decorre uma situação paradoxal, própria às ciências da vida. Se por um lado, em sua
constituição ela depende da constituição de domínios como a química celular, os modelos
matemáticos, por outro, ela é estreitamente ligada ao vitalismo, entendido aqui como um indicador
da especificidade das ciências da vida do que como uma filosofia de biólogos.
As ciências da vida levantam um problema relacionado ao próprio conhecer, porque a
biologia deve dar conta da vida como objeto específico e, mais do que isto, ela deve dar conta do
fato de haver, dentre os vivos, seres capazes de conhecer. É o caso de buscar, do lado dos
sistemas vivos, um sentido originário para o conhecer ou, dito de outro modo, de enraizar o
conhecimento na vida. No cerne desta questão está o problema do erro porque, “no limite, a vida 12
daí seu caráter original - é o que é capaz de errar” . A este dado fundamental é preciso interrogar
a respeito das anomalias, das mutações e também, por fim, sobre este fato singular que faz com
que o homem seja um vivo votado a errar , a sempre se enganar. A vida é para o epistemólogo
uma “experiência, quer dizer, improvisação, utilização de ocorrências; é tentativa em todo o seu
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sentido. De onde o fato, (...) de que a vida tolera monstruosidades” . Partindo do princípio de que
o conceito é, para Canguilhem, a resposta oferecida pela vida a este imperativo que faz dela uma
errância, é preciso convir que o erro está na raiz do pensamento humano e de sua história. Daí ser
importante ressaltar a relação da errância do humano com a própria história das ciências, de tal
modo que esta última, entendida como uma articulação entre o falso e o verdadeiro, entre ciência
e ideologia científica, seja talvez “a resposta mais tardia a esta possibilidade de errar intrínseca à
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vida” . Assim, como a história das ciências comporta uma descontinuidade, isto é, como só
podemos analisá-la em termos de uma série de correções, que não atinge jamais uma verdade
definitiva, o erro não deve ser considerado como um esquecimento, uma falha, ou um fracasso
mas algo inerente à dimensão própria da vida e, portanto, do pensamento. O erro é semelhante a
uma perturbação permanente em torno da qual se constitui a história da vida e a história das
ciências, em torno da qual, poderíamos dizer, desenrola-se o devir dos homens. É neste sentido
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que Foucault se refere a Canguilhem como o “filósofo do erro” , o que significa dizer ser o erro o
ponto de partida para ele destacar os problemas filosóficos da verdade e da vida. Ao lado de uma
tradição filosófica que relaciona verdade e sujeito, Canguilhem opera um deslocamento ao
relacionar o conhecimento à errância da vida.
SOBRE O NORMAL E O PATOLÓGICO
Tanto no Normal e o Patológico quanto nas Novas Reflexões Referentes ao Normal e ao
Patológico, Canguilhem
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apresenta um estudo sobre a noção de erro na patologia.
O ponto essencial na tese de Canguilhem é a afirmação da vida como uma atividade
normativa, isto é, como a instituição de normas.
Embora filosoficamente, o termo normativo
implique um julgamento que aprecia ou qualifica um fato em relação a uma norma com relação à
vida, essa normatividade deve ser entendida como uma função imanente e, mais do que isto,
como uma capacidade biológica de questionar as normas usuais por ocasião de situações críticas.
A vida é nesse sentido a possibilidade de diferir, de produzir diferenças; a vida é polaridade no
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sentido de que “viver é, mesmo para uma ameba, preferir e excluir” . Há uma polaridade dinâmica
da vida cujo esforço espontâneo é lutar contra qualquer valor negativo para a vida. O normal é um
efeito da normatividade e, como tal, é sempre relativo a um indivíduo. Assim não é pertinente falar
de uma normalidade como média estatística, nem de uma normalidade referida a uma avaliação
extrínseca sobre a adaptação.
De um modo geral, a característica de uma norma, seja ela externa, seja imanente, é
poder ser tomada como ponto de referência em relação a objetos ou fatos ainda à espera de
serem classificados como tal. Uma norma é o que serve para retificar algo, uma exigência imposta
a uma existência, ao passo que o normal é a extensão e a exibição da norma, ele tem por função
multiplicar a norma, ao mesmo tempo que a indica. O importante é marcar que o normal requer
fora de si, a seu lado e junto a si tudo o que lhe escapa. Uma norma tira sua função e seu sentido
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do fato de existir fora dela algo não correspondente à exigência a que ela obedece . Além disso,
uma regra só começa a ser regra fazendo regra, ou seja, a sua função de correção surge da
própria infração a qual, embora não seja a origem da regra, é a origem da necessidade de uma
regulação. Daí ser a infração primeira na ordem do normativo. Dito de outro modo, o anormal é
existencialmente anterior ao normal, ainda que logicamente - como negação do normal - ele lhe
seja posterior. Sendo o efeito da normatividade, a norma de vida de um organismo é fornecida por
ele mesmo e está contida em sua existência. “A norma de um organismo humano consiste na sua
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coincidência consigo mesmo” , de tal maneira que a medida para avaliar os limites do normal e
do anormal devem ser procurados na história de cada um de nós. Ao reconhecer essa relatividade
individual das normas, Canguilhem afirma mais uma tolerância diante da diversidade do que um
ceticismo, o que faz com que a singularidade individual seja, por isso mesmo, interpretada como
uma aventura em vez de um fracasso. Somente para aqueles que consideram a norma como um
tipo ideal a ser seguido faz sentido dizer que aquilo que escapa a este tipo é um fracasso.
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Diferentemente disso, Canguilhem afirma o caráter individual da norma , isto é, seu caráter
sempre relativo.
O patológico é definido por Canguilhem como o pathos da vida, como um “sentimento
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direto e concreto de sofrimento e impotência, sentimento de vida contrariada” . Assim, nem toda
anomalia - entendida como variações morfológicas ou funcionais sobre o tipo específico - são
patológicas. Somente são patológicas aquelas anomalias experimentadas como um mal orgânico,
vividas como um valor negativo. As anomalias não são apenas desvios estatísticos, são
deformidades incompatíveis com a vida normativa e incompatíveis no sentido de impor ao ser vivo
uma fixidez que o impede de instituir normas, que o impede, enfim, de se diferir fixando-o numa
certa norma. E justamente por se tornar patológica, uma anomalia suscita um estudo científico. Do
mesmo modo, uma anomalia pode se tornar uma doença, na medida em que se entende esta
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última como uma “norma inferior de vida” , no sentido de não tolerar nenhum desvio das
condições em que ela é válida, sendo incapaz de se transformar em outra norma. O ser vivo
doente perdeu a capacidade normativa, a capacidade de inventar suas próprias normas. A noção
de doença implica um abalo à existência, logo a noção de doença como efeito da normatividade é
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uma noção relativa a um indivíduo: “o doente é doente por só admitir uma norma” . A saúde, por
sua vez, nada mais é do que a indeterminação inicial da capacidade de produzir normas; ela é
uma certa tolerância com relação às infrações à norma habitual, tolerância no sentido de que um
ser saudável é aquele capaz de inventar novas normas quando as condições assim exigirem.
Neste sentido a doença é parte constitutiva da saúde, já que esta última não é entendida como
uma repetição mecânica de certas constantes, mas compreendida como uma luta, um debate com
um meio em que há fugas, desvios, resistências inesperadas. O conceito de saúde é, portanto, ele
também relativo a um indivíduo e a seu meio. Canguilhem afirma que “a saúde é uma margem de
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tolerância às infidelidades do meio” , pois o meio de um organismo vivo é caracterizado por
acontecimentos imprevistos, é um meio sempre em transformação.
Assim, o conceito de normatividade é o fio condutor a partir do qual Canguillhem (1990)
analisa os conceitos de doença, patologia, saúde. A patologia, bem como a doença, não é a
ausência de norma, é a afirmação de uma outra norma, uma que contraria a vida. O erro e a
diferença são aqui considerados em relação à normatividade da vida, à sua errância, à sua deriva.
O erro tomado como errância é afirmado como uma ocasião para a invenção ou renovação de
uma forma de vida. Se o conhecimento está enraizado na vida, é possível dizer que, assim como a
doença é uma norma de vida, o movimento de produção do conhecimento científico não se reduz
a uma eliminação do falso, mas implica uma retomada do erro no campo do saber. Se em matéria
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de biologia, é o pathos que condiciona o logos , na história da ciência é a anterioridade da
aventura intelectual sobre a racionalização o que condiciona a produção do conhecimento.
DA EPISTEMOLOGIA ÀS REDES SÓCIO-TÉCNICAS: CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que significa pensar as ciências a partir do conceito de rede? Na teoria de rede de
atores, a noção de rede refere-se a fluxos, circulações, alianças, movimentos em vez de remeter a
uma entidade fixa. Uma rede de atores não é redutível a um ator sozinho; nem a uma rede, ela é
composta de séries heterogêneas de elementos, animados e inanimados conectados, agenciados.
Por um lado, a rede de atores deve ser diferenciada dos tradicionais atores da sociologia, uma
categoria que exclui qualquer componente não-humano. Por outro lado, a rede também não pode
ser confundida com um tipo de vínculo que liga de modo previsível elementos estáveis e
perfeitamente definidos, porque as entidades da quais ela é composta, sejam elas naturais, sejam
sociais, podem a qualquer momento redefinir sua identidade e suas mútuas relações, trazendo
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novos elementos para a rede. Assim, uma rede de atores é simultaneamente um ator , cuja
atividade consiste em fazer alianças com novos elementos, e uma rede capaz de redefinir e
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transformar seus componentes . Essa definição de rede implica uma ontologia de geometria
variável cujas conseqüências para os estudos em ciências devem ser seguidas a fim de não
deixarmos escapar as contribuições da teoria de rede de atores tanto em relação aos estudos
sociais em ciências quanto em relação aos estudos epistemológicos.
A noção de rede de atores fala de um plano de conexões heterogêneas a partir do qual
emergem tanto as ciências quanto as crenças, as religiões, etc. Retomando o sentido de rede
proposto por Serres, podemos dizer que ela se caracteriza por estabelecer um campo de tensões
heterogêneas no qual a síntese não é um resultado necessário. Uma rede, como já dissemos
acima, é marcada por múltiplas conexões, múltiplas entradas. Diferentemente de um enfoque
dualista que afirma a existência de dois pólos privilegiados - o sol e a terra, o sujeito e o objeto,
deus e o diabo - uma ontologia de geometria variável afirma múltiplas entradas possíveis. Penso
ser o princípio de simetria generalizada proposto por Latour (1994) uma conseqüência dessa
ontologia de múltiplas entradas e conexões. Trata-se de analisar simetricamente não apenas o
erro e o acerto, mas antes, todo e qualquer efeito das negociações em rede, dentre eles, a
natureza e a sociedade. Latour (1996) reconhece a importância dos estudos sociais em ciências e
do princípio de simetria tal como ele foi proposto por David Bloor. A análise social das ciências
teve, segundo Latour, o mérito de estabelecer um princípio de análise a-epistemológico que
colocava em cena a prática mesma dos cientistas estabelecendo uma exigência de que o
verdadeiro e o falso fossem explicados com os mesmos termos.
Contudo, na perspectiva de Latour, esse princípio a-epistemológico é ainda assimétrico
porque joga todo o peso de suas explicações no pólo da sociedade. É, portanto, assimétrico
porque mantém a sociedade como uma entrada privilegiada para os estudos sociais em ciências.
Por isso, Latour (1994) propõe uma extensão radical desse princípio, fazendo-o valer tanto para a
natureza quanto para a sociedade. Ele nos propõe portanto “mais uma volta nos estudos sobre
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ciências depois da volta social” . Isso significa dizer que, para estabelecer uma simetria
generalizada, é preciso uma guinada a mais nos estudos sobre as ciências, de modo que a
sociedade assim como a natureza sejam simetricamente estudadas. Natureza e sociedade são
efeitos negociados em rede, nem uma nem outra podem funcionar como fundamentos
preestabelecidos para os estudos sobre ciências. O princípio de simetria não tem como finalidade
apenas estabelecer uma condição de igualdade entre natureza e sociedade. Ele tem por finalidade
“gravar as diferenças, ou seja, no fim das contas, as assimetrias, e o [objetivo] de compreender os
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meios práticos que permitem aos coletivos dominarem outros coletivos” .
As redes não são, portanto, amorfas. Ao contrário, elas são altamente diferenciadas.
Eliminar a oposição binária característica do pensamento moderno não implica a afirmação de um
solo homogêneo e indiferenciado. Está em foco a afirmação de uma diferença ontológica. A rede é
nesse sentido uma afirmação dessa diferença. Ela consolida a potência do empírico como solo de
invenção da razão, da verdade, da sociedade, da natureza.
Uma ciência definida como rede de atores não se caracteriza por sua racionalidade, sua
objetividade ou pela veracidade dos fatos por ela engendrados. Todas essas noções, tão caras ao
pensamento moderno, são redimensionadas pela noção de rede e devem ser entendidas como
efeitos, resultados alcançados a partir das tensões próprias à rede de atores. Definir a ciência
como rede de atores significa defini-la por sua não-modernidade, por suas hibridações, enquanto
considerar as ciências a partir de noções tais como objetividade, neutralidade, etc. implica
considerá-las à luz do ideal de purificação, princípio característico do pensamento crítico ou
moderno. Nesse último caso as ciências são consideradas a partir de uma crítica cuja função é
estabelecer as condições ideais a priori para o conhecimento científico. Insisto que, para o
pensamento crítico, interessa demarcar as condições ideais do conhecimento científico, o que nos
leva a pensar numa analogia entre as ciências e o mito bíblico da queda: para regressar ao
paraíso perdido, as ciências precisam excluir do seu domínio tudo o que é da ordem da hibridação
e que, em última instância, constitui a sua prática, numa palavra, as ciências precisam excluir
aquilo que Serres nomeava o mal, a morte, o sofrimento. Latour (1995) concorda com Serres: o
pensamento moderno faz nascer a ciência pela exclusão da finitude do homem e, partindo dessa
concordância entre os autores, parece-me lícito afirmar que, assim como a filosofia mestiça de
Serres nos convida a instruir a razão na mestiçagem, a teoria de rede de atores, proposta por
Latour, convida-nos a instruir a ciência nas práticas de hibridação.
Por certo que o estudo das ciências e das técnicas a partir da teoria ator-rede marca
distinções importantes no que diz respeito à perspectiva epistemológica de Canguilhem. Em seu
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livro já clássico, Jamais Fomos Modernos, Latour faz duras críticas à epistemologia , ressaltando
principalmente seu caráter assimétrico circunscrito em torno da noção de descontinuidade e da
oposição entre o verdadeiro e o falso na construção do conhecimento científico. Ao tomar o ponto
de vista da simetria, Latour indica que o conhecimento científico se constrói por meio de alianças
muito heterogêneas, articulando elementos tão díspares quanto um dispositivo técnico, as
instituições de fomento, a rivalidade entre os cientistas. Nas redes, a diferenças é ontológica e a
racionalidade é instável e a posteriori.
Também me parece legítimo dizer, como o faz Latour, que a epistemologia é uma das
pontas do pensamento moderno, sendo por esse motivo marcada pelos dualismos sujeito X
objeto, verdade X erro. No entanto, penso ser interessante indicar na epistemologia não aquilo que
ela de algum modo exclui – os híbridos -, mas sim o modo como a diferença é, nesse campo,
tratada e acolhida. Nesse sentido, Canguilhem é uma referência necessária porque afirma o
enraizamento do conhecer na errância da vida. Errância tomada em sua positividade como solo de
invenção do pensamento. Não pretendo apontar Canguilhem como precursor de Latour, mas ante
mostrar em que medida pode ser possível retomar Canguilhem para falar de rede como diferença
ontológica.
A crítica de Latour (1994) à epistemologia acaba por cair numa contradição com a
ontologia proposta: uma ontologia em rede. Porque, se a rede é a ontologia do mundo em que
vivemos, nada pode escapar de suas tramas. Como então dela excluir a epistemologia? É preciso,
nesse caso, interrogar não o que a epistemologia não tematiza, mas sim quais redes ela mobiliza,
quais conexões ela afirma serem necessárias para a construção do conhecimento científico.
NOTAS
1
FIGUEIREDO, L.C.M. 1995,p.14.
DUARTE, C. O Incesto Tecnológico, Casos de Inseminação Artificial entre Parentes Provocam
Polêmica sobre a Ética Médica. O Globo, Jornal da Família, 18/05/97. Devo a Maria de Nazaré
Freitas Pereira a sugestão desta referência, que aliás aparece na sua tese de doutorado, cf.
PEREIRA, M.N.F. 1997, p.282.
3
LEBRUN, G. op. cit., p.16.
2
4
Cf. BLANCHÉ, R. 1972.
CANGUILHEM, G. 1977-a, p.13.
6
CANGUILHEM, G. 1977-b, p. 41.
7
“É inevitável interrogarmo-nos se a história do que é ciência autêntica deve excluir, ou tolerar,
ou ainda reivindicar ou incluir também, a história das relações de evicção do inautêntico pelo
autêntico. É intencionalmente que falamos de evicção, quer dizer de expropriação jurídica de um
bem adquirido de boa fé. Há muito que deixamos de qualificar, como o fazia Voltaire, as
superstições e as falsas ciências como maquinações e fraudes, cinicamente inventadas por
dervixes e perpetuadas por amas ignorantes.” CANGUILHEM, G. 1977-b, p.31, grifo nosso.
8
Canguilhem toma a noção de ideologia num sentido diferente daquele que lhe é conferido por
Marx. Falar de ideologia científica na perspectiva marxista é uma aberração porque nesta,
segundo Canguilhem, uma ciência só se constitui autenticamente por oposição e separação da
ideologia e neste caso as ideologias aparecem, pois, como ilusões, erros. No entanto, Canguilhem
aceita um sentido geral dado pelo marxismo de ideologia como um desvio, um deslocamento do
ponto de aplicação de um estudo. Cf. CANGUILHEM, G. op. cit., p. 35-6.
9
CANGUILHEM, G. op. cit., p.42.
10
O sentido que atribuímos a este termo corresponde a um dos sentidos de errar: vaguear,
vagabundear, espalhar-se em várias direções. Cf. FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário Aurélio de
Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1986, p.679. Cf. também o uso que
DELAPORTE, F. 1994, p.38 faz do mesmo termo.
11
Cf. FOUCAULT, M.,1994.
12
FOUCAULT, M. op. cit., p.774.
13
CANGUILHEM, G. 1976, p.138.
14
FOUCAULT, M. 1994, p.775.
15
FOUCAULT, M. op. cit., p.775.
16
Cf. CANGUILHEM, G. 1990.
17
CANGUILHEM, G. op. cit., p.105.
18
Cf. CANGUILHEM, G. op.cit..
19
CANGUILHEM, G. op.cit., p.233.
20
Canguilhem nos adverte que tratar deste caráter individual relativo da norma não deve ser um
caminho para se anular a diferença entre o normal e o patológico. A diferença entre ambos é
relativa a um indivíduo dado. “Se o que é normal aqui pode ser patológico ali, é tentador concluir
que não há fronteira entre o normal e o patológico. De acordo, se quer-se dizer que de um
indivíduo a outro a relatividade do normal é a regra. Porém isto não quer dizer que para um
indivíduo dado a distinção não seja absoluta. Quando um indivíduo começa a sentir-se enfermo,
(...) passa a outro universo, passa a ser outro homem.” CANGUILHEM, G. 1976, p.195-6.
21
CANGUILHEM, G, 1990, P. 106.
22
“Uma norma de vida é superior a outra quando comporta o que esta última permite e também o
que ela não permite.” CANGUILHEM, G. op. cit., p.146.
23
CANGUILHEM, G. op. cit., p.148.
24
CANGUILHEM, G. op. cit., p.159.
25
Cf. CANGUILHEM, G. op. cit., p.169.
26
Latour utiliza a noção de ator - algumas vezes ele fala em actantes - no sentido semiótico: um
ator ou actante se define como qualquer pessoa, instituição ou coisa que tenha agência, isto é,
produz efeitos no mundo e sobre ele. É importante diferenciar a noção de ator no sentido
semiótico que lhe atribui Latour, da noção de ator no sentido sociológico tradicional. Porque, nesse
último caso, a noção de ator se confunde com a noção de fonte de ação atribuída a um humano.
Na acepção de Latour, um actante é caracterizado pela heterogeneidade de sua composição, ele
é antes, uma dupla articulação entre humanos e não-humanos e sua construção se faz em rede.
Cf. LATOUR, B. 1992-d, p.59, nota 11; 1991-b, p. 15-6, 1992-a, p.293, nota 5.
27
Cf. CALLON, M. 1986, p. 93.
28
Cf. LATOUR, B. 1992-a, p. 279.
29
LATOUR, B. 1994-a, p. 105.
30
Cf. LATOUR, B. 1994, pp. 91-93.
5
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