Vivências: Revista Eletrônica de Extensão da URI ISSN 1809-1636 O PENSAMENTO CIENTÍFICO SOB A ÉGIDE DA DESCONTINUIDADE: PROBLEMATIZAÇÕES À LUZ DOS ESTUDOS DE GEORGES CANGUILHEM The Scientific Thinking Under the Aegis of Discontinuity: Reflections Raised in the Light of the Studies of Georges Canguilhem Ederson Luís SILVEIRA1 RESUMO: O presente trabalho descritivo de natureza qualitativa visa trazer reflexões acerca de modos de olhar para o pensamento científico à luz dos estudos de Georges Canguilhem. A história apreendida como terreno de descontinuidades e, principalmente, a história das ciências como terreno de rupturas, desdobramentos, deslocamentos vários contribui para pensarmos na falência da modernidade enquanto era das certezas que apresentava o discurso científico como permeado de inscrições no verdadeiro, no irrefutável, assentando-o sob o solo da continuidade e da linearidade histórica. Não se trata apenas de redirecionar as velas do barco da modernidade, mas de empreender exercícios de modo a desconfiar das naturalizações lineares do fazer científico, o que nos permite apreender deslizes do pensamento moderno e perceber o pensamento científico a partir de outras vozes, considerando fissuras constantes nos próprios modos de refletir acerca do fazer científico que não se baseie na busca de origens ou de precursores, mas no reconhecimento das descontinuidades que tornaram historicamente a ciência possível como objeto de estudo. Palavras-chave: História. Pensamento. Ciência. ABSTRACT: This descriptive paper of qualitative nature aims to bring reflections about ways of looking at the scientific thought in the light of the studies of Georges Canguilhem. The story seized as ground of discontinuities and, mainly, the history of science as terrain of ruptures, wheeling, multiple displacements contributes to think bankruptcy of modernity while era of certainties which featured the scientific discourse as permeated by entries in the real, in irrefutable, seating under the soil of the historic continuity and linearity. It is not just redirect the sails the boat of modernity, but to undertake exercises so suspicious of the distrust of the naturalization of scientific linear, which allows us to apprehend slip-ups of modern thought and realize the scientific thinking from other voices, considering cracks in own ways to reflect about doing science that don't rely on finding sources or precursors, but in recognition of discontinuities that become historically science possible as object of study. Keywords: Story. Thought. Science. 1 Mestrando em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina –UFSC, bolsista CAPES; pós-graduando em Ontologia e Epistemologia; graduado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande; membro do Grupo de Estudos em Territorialidades da Infância e Formação Docente (GESTAR/CNPq). E-mail: [email protected] Vivências. Vol. 11, N.21: p.121-124, Outubro/2015 121 Vivências: Revista Eletrônica de Extensão da URI ISSN 1809-1636 Com Kant aprendemos que a razão chega ao limite das possibilidades daquilo que lhe é possível apreender. Isso faz com que tenhamos cautela em levar a cabo as verdades irrefutáveis que seguidas vezes nos são apresentadas enquanto únicas e incontestáveis. Segundo Foucault, as “verdades” precisam ser problematizadas, já que foram produzidas, com o passar do tempo, assentando-se sob o solo das certezas e do verdadeiro. Deve-se, portanto, desconfiar das evidências e de tudo o que é colocado como “verdadeiro”. Neste contexto, para a filósofa Márcia Tiburi (2008), a experiência do pensamento é importante porque a cada vez que é escrita, falada, experienciada, é recriada por aquele que enuncia ou escreve tanto quanto pelo interlocutor e leitor. Isso faz com que sejam levantadas reflexões acerca do papel do intelectual, que não parte da ação de dizer aos outros o que estes têm que fazer, mas “[...] reinterrogar as evidências e os postulados, sacudir os hábitos, as maneiras de fazer e de pensar, dissipar as familiaridades aceitas, retomar a medida das regras e das instituições [...] a partir dessa reproblematização”. (EWALD, 1984, P. 83) Ao assinalar a importância de re-interrogar as evidências, os postulados, o que se reveste com discursos que o apresentam como “pronto e acabado”, está-se atacando a inércia do pensamento. Cabe destacar que o intelectual está dentro do espírito de curiosidade que vive em cada um. O exercício de pensar não pode ser engolido por “evidências” que não passaram pelos critérios de verificação e problematização. Para Bakhtin, o exercício do pensamento é um ato responsável que se assenta sobre a responsabilidade de dizer e o direito de resposta em relação aos argumentos alheios e em relação ao próprio pensar. Não se trata apenas de pensar sobre o que é possível pensar, mas também de pensar o impensado, o impossível, o redirecionamento. Se com Foucault o novo não está no que é dito, mas no retorno de sua volta, é com o retorno das coisas já ditas através da reproblematização que extrapolaremos a continuidade de preconceitos e verdades que vão sendo reproduzidas anulando sujeitos e saberes e oprimindo possibilidades de encontro com outros saberes. Se há os que são autorizados a dizer, também há que assinalar o direito de voz a todo aquele que estiver disposto a experienciar o pensamento. É a experiência que possibilita a liberação de verdades que foram se constituindo como tais com o passar do tempo a partir de repetições e reproduções ad infinitum que precisa ser praticada, pois: [...] a experiência, e não a verdade, é o que dá sentido à escritura. Digamos, com Foucault, que escrevemos para transformar o que sabemos e não para transmitir o já sabido. Se alguma coisa nos anima a escrever é a possibilidade de que esse ato de escritura, essa experiência em palavras, nos permita liberar-nos de certas verdades, de modo a deixarmos de ser o que somos para ser outra coisa, diferentes do que vimos sendo. (LARROSA & KOHAN, 2002, p. 5). As elucubrações mencionadas anteriormente podem ser percebidas se lançarmos olhares acerca do pensamento científico à luz dos estudos de Georges Canguilhem, que foi um dos mentores de Foucault e que esteve presente na banca de defesa de doutorado em que o autor defendeu a tese que resultaria na obra História da loucura. Antes de assinalar as contribuições de Canguilhem, cabe então ressaltar: Por estar situado no mundo, o homem não pode ir até ele para interpretá-lo munido de conceitos já prontos, pois isso seria desconsiderar que os objetos têm sua própria natureza e estaríamos nos esquecendo dos limites de nossa razão na apreensão do mundo que nos cerca. Se com Nietzsche, aprendemos que não há fatos, mas interpretações, com Canguilhem, mestre de Foucault, aprendemos que a história é terreno de descontinuidades e as teorias não se reduzem a conceitos e que os próprios conceitos estão passíveis de reformulação a todo instante. Vivências. Vol. 11, N.21: p.121-124, Outubro/2015 122 Vivências: Revista Eletrônica de Extensão da URI ISSN 1809-1636 Também cabe acentuar que, inspirados na epistemologia canguilheana, podemos apreender que a natureza do pensamento filosófico está sempre em movimento, apontando como uma necessidade, se não de toda pesquisa, pelo menos dos desdobramentos reflexivos a que se propõem é preciso perceber que “a filosofia questiona aquilo que, em seu próprio pensamento, pode ser mudado através do exercício com outros saberes” (PORTOCARRERO, 2009, p. 9). Dessa forma, a ciência não pode ser percebida como sendo natural, mas como algo dado, porque, para Machado (1982, P.20), trata-se de um objeto construído, produzido e “naturalizar a ciência é confundi-la com seus resultados e, pior ainda, com os cientistas” e, por isso, não pode haver a redução da ciência à “naturalização” do aspecto institucional. Assim, o autor assinala a ciência como sendo um tipo específico de discurso, já que se trata de um conglomerado de proposições articuladas em forma de sistema, que tem a pretensão da verdade. Neste contexto, cabe destacar: “a ciência não reproduz uma verdade; cada ciência produz a sua verdade. Não existem critérios universais ou exteriores para julgar a verdade de uma ciência” (MACHADO, 1982, p. 21). Dessa forma, o conceito deixa de ser percebido como uma palavra para abarcar o sentido inerente a algo continuamente deslocado enquanto objeto reconstruído historicamente a história das ciências, já que permite “interpretar as observações e as experiências. É uma interpretação; não existe propriamente falando a não ser onde existe, pelo menos um esboço, uma relação entre um definens e um definierum” (PORTOCARRERO, 2002, p. 2). A descontinuidade histórica emerge no contexto dos estudos da história das ciências e, a partir de Canguilhem temos outro apontamento: não se pode reduzir a ciência aos conceitos. O conceito é o que garante o valor cognitivo ou o êxito científico devido ao fato de que toda ciência se organiza a partir de um emaranhado de conceitos sistematizados. Neste contexto, entra a noção de descontinuidade, já que os estudos da história da ciência não podem ser reduzidos à questão conceitual. Ao não reduzir a história das ciências a questão do conceito, a epistemologia passa a explicitar inter-relações entre os conceitos. A descontinuidade também aí está, já que podem ser apreendidos, de acordo com Canguilhem (1977) diversos feixes de relações que os conceitos estabelecem entre si no interior de uma mesma teoria ou em teorias diferentes, podendo ser encontrados até mesmo em saberes não notadamente científicos. Aí tem-se outra consideração importante nos estudos canguilheanos: o conceito pode existir mesmo antes de se tornar científico. Assim, inspirado em Bachelard, Canguilhem percebe a história das ciências como a “determinação dos sucessivos valores de progresso do pensamento científico” (MACHADO, 1982, p. 32). Ao invés de pensar na ciência a partir de uma linearidade progressiva, Canguilhem vai alertar que essa visão cerra os olhos para as descontinuidades inerentes a toda ciência e isso se dá porque a história das ciências é uma profusão de relações que intercala sujeitos, objetos e rupturas, o que não permite pensar em um saber que vai se constituindo progressivamente e anulando o que veio antes: não há garantia alguma de que o saber que venha depois seja superior que a conceptualização que veio antes. Assim, a história epistemológica passa a se opor ao mito do precursor e ao argumento da aproximação histórica dos discursos heterogêneos (CANGUILHEM, 1977). A história do pensamento científico “se desenrola como um processo de reorganização incessante de suas bases” (MACHADO, 1982, p. 37). Dessa forma, inscrevendo-se sob a égide do pensamento de Bachelard, para quem o progresso, nesta perspectiva, dialético ao invés de gradualmente evolutivo, já que a história de uma ciência ocorre por meio de rupturas sucessivas e “o progresso não é o germe desde o mais longínquo passado, a mais distante origem e evolui linearmente até a atualidade; não é tampouco um aumento de volume por justaposição” (MACHADO, 1982, p. 34-35). Diante disso, somada ao estudo das descontinuidades, podemos inferir que os olhares canguilheanos podem lançar luzes, então, para outros modos de perceber a constituição das ciências em geral a partir dos deslocamentos, problematizações e reformulações inerentes a toda construção do saber científico. Vivências. Vol. 11, N.21: p.121-124, Outubro/2015 123 Vivências: Revista Eletrônica de Extensão da URI ISSN 1809-1636 REFERÊNCIAS: CANGUILHEM, Georges. Ideologia e Racionalidade nas Ciências da Vida. Trad. Emília Piedade. Lisboa: Edições 70, 1977. EWAKLD, F. O cuidado com a verdade. In: ESCOBAR, C.H. (org.) Michel Foucault (19261984). O dossier. / Últimas entrevistas. Rio de Janeiro: Taurus, 1984, pp. 74-85. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collége de France. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 1996. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura (Prefácio da primeira edição, 1781). Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. LARROSA, Jorge; KOHAN, Walter. Apresentação da coleção. In: RANCIÈRE, Jaques. O mestre ignorante - Cinco lições sobre a Emancipação Intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2002, p. 138. MACHADO, Roberto. “A história epistemológica de Georges Canguilhem”. In: ______. 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