que julgara a pintura como cópia, imitação. 23 A pintura, desde A Dúvida de Cézanne até o seu último ensaio escrito em vida, O Olho e o Espírito, perde a dimensão de simples reprodução do real, ela deixa de ser representação. Para Merleau-Ponty, a pintura moderna não mais pretende reproduzir o visível, como se se tratasse de duplicá-lo, mas a pintura se torna ela mesma “o visível”, no sentido em que ela “desvela” e faz ver o visível, não como mera imagem reconstruída de um fragmento de mundo, mas como o próprio mundo na espessura que lhe é própria. . Posto isto, admitimos então que Merleau-Ponty nos oferece um caminho a ser seguido: se a pintura não é vista por ele como uma cópia, se o pintor não é um “copiador” do real, então, é a experiência do pintor a partir de sua inerência ao mundo que devemos pensar. Seus estudos sobre a pintura nos colocam não somente em contato com o artista (e por isso o recurso para compreender a arte não é unicamente a história da arte), mas com a dimensão do ser bruto que a arte é capaz de tocar. Merleau-Ponty reconhece que o trabalho do pintor possui uma “outra urgência”.O que Cézanne busca? Não apenas as coisas (montanha, pessoas, maçãs e lagos), mas o movimento da percepção em relação às coisas. É isso que, para Merleau-Ponty, o pintor pinta. As coisas passam por um olhar e, por meio de uma “loucura” particular, vão se transformando em algo de pictórico e novo. O modo de perceber as coisas que Merleau-Ponty observa no trabalho de Cézanne não é o da percepção cotidiana, em que tudo nos é familiar e onde o comércio que estabelecemos com as coisas nos impede propriamente de experimentá-las de maneira “desinteressada”. Em O Visível e o Invisível, as primeiras palavras de Merleau-Ponty já indicam esta espécie de “esquecimento” característico da experiência cotidiana: “Vemos as coisas mesmas, o mundo é aquilo que vemos”. Mas como ele continua no terceiro parágrafo: “Assim é, e nada se pode fazer em contrário. Ao mesmo tempo em que é verdade que o mundo é o que vemos e que, contudo precisamos aprender a vê-lo”. 24 Esta percepção originária que Cézanne busca e pinta é a que nos possibilita olharmos as coisas como que pela primeira vez. Por isso mesmo a sua fúria em realizar “cem sessões de trabalho para uma natureza-morta e cento e cinqüenta de pose para um retrato.”25 Antes de olhar o quadro, o pintor terá que perceber a mundo pela raiz, recusando, como o próprio Cézanne muitas vezes fazia, a sua própria pintura. É um ofício de desaprender a ver as coisas como prontas, como “simplesmente dadas”, é uma postura de “experimentar” o mundo, estando nele. Este talvez deva ser o motivo mais ingênuo que a pintura e o pintor oferecem a Merleau-Ponty - que foi ao seu encontro não com o domínio da erudição, mas pensando a pintura em palavras, fazendo ecoar o caráter enigmático da própria visualidade. E, sendo assim, nosso filósofo olhou para a pintura como quem nada soubesse a respeito dela, oferecendo nos seus ensaios a revelação de que o trabalho de Cézanne traz exatamente um dos temas famosos da fenomenologia, em outras palavras, o pintor da Montanha de Santa Vitória faz o “retorno às coisas mesmas” (ver Ilustração I a seguir).O pintor moderno não se limita a circunscrever com um traço o contorno dos objetos, pois se assim fizesse, não pintaria o mundo visível. No ensaio A Dúvida de Cézanne, Merleau-Ponty exemplifica esta diferença pensando no desenho de uma maçã. Ora, traçando um contorno, esta deixa de ser o que é, e se torna um objeto na tela do quadro. Esta descrição é surpreendente para admirarmos o trabalho do pintor moderno, como fez o poeta contemporâneo de Cézanne, Rainer Maria Rilke ao descrever a estranheza da pintura e a diferença dos seus desenhos para a época. Nele, ele via essa dimensão de não fazer “das coisas do mundo um objeto”. “Iniciava-se nele uma existência nova, sem lembranças anteriores. É esta objetividade ilimitada, rejeitando toda a mistura em unidade estranha, que faz os retratos de Cézanne tão escan23 Na relação que o filósofo de Atenas estabelece entre a Arte e a Realidade, o caráter imitativo da pintura e da escultura não somente a situa muito abaixo do Belo que o indivíduo necessita conhecer, como também proclama que em comparação com o objetivo da ciência (epistéme), a pintura é supérflua e em nada contribui para a implantação da Cidade Justa. Ver o livro X da obra A República. 24 MERLEAU-PONTY, M. O Visível e Invisível op.cit., p. 15-16. 25 MERLEAU-PONTY, M. O Olho e o Espírito, op.cit., p. 128.