Auto-engano, seleção natural e sobrevivência Victor J. M. Cardoso (*) Num filme chamado Confissões do Sr. Smith, o personagem principal – o Sr. Smith, interpretado por Jack Nicholson – visita um museu dedicado aos pioneiros de certa região dos EUA e lê numa placa: “os covardes não vieram, os fracos ficaram pelo caminho e os fortes venceram”. Pura seleção natural. O importante é vencer. Neste breve artigo, procuramos caracterizar o conceito de auto-engano e situá-lo, num contexto biológico, como mais uma ferramenta a auxiliar na sobrevivência do organismo e da espécie humana no seu ambiente. Neste momento, como descendente direto do primeiro casal da espécie humana, sinto-me como um troféu da vitória de meus ancestrais em linhagem direta, cujos genes estão representados em meu próprio genoma. Evidentemente, nem todos os descendentes da Primeira Mãe tiveram filhos. E se não tiveram filhos, significa que seus pais não tiveram netos, e os pais dos pais não tiveram bisnetos. Seria como um ramo ressecado de uma imensa árvore. Em geral o número de descendentes numa geração é maior do que aqueles que serão capazes de se reproduzir (1). Em outras palavras, apenas uma fração dos indivíduos humanos nascidos em determinado período deixará descendentes, e isso deve valer para qualquer espécie de planta ou animal que se reproduz. Mas afinal, por que alguns se reproduzem e outros não? Isso estaria inserido num “projeto” geral da mãe natureza ou seria apenas fruto do binômio acaso-necessidade, dentro do contínuo diálogo que o sistema vivo trava com o meio e que poderia ser traduzido numa única palavra: sobrevivência? Sobreviver deve ser uma lei básica do sistema vivo, mas sobreviver apenas não basta. Há o imperativo da perpetuação do ser vivo, ou seja, a transmissão de seu código genético para a geração seguinte, considerando-se a relativa brevidade do sistema enquanto indivíduo. Assim, como indivíduo, pergunto: - Minha prole transportará para o futuro uma parte de minhas características, que herdei de meus pais? Em caso afirmativo, restará algo de mim em algum ser humano vivendo, digamos, daqui a 100 mil anos? Por outro lado, posso pensar que se não deixar descendentes, alguém mais afortunado o fará, ou mesmo meus sobrinhos poderão assegurar a continuidade de meus genes. De qualquer modo, em geral temos como prioridade a proteção daqueles a quem estamos unidos por laços de parentesco, particularmente de nossos descendentes diretos. Em um ecossistema, indivíduos, populações e espécies interagem continuamente. Dentre as diversas formas de interação temos a competição, que pode ocorrer quando um mesmo recurso é utilizado por diferentes indivíduos. Para que haja competição, é necessário que o uso do recurso (por exemplo, o oxigênio) por um organismo reduza a disponibilidade desse recurso para outros organismos. Nesse sentido, a competição representaria um tipo de interação negativa acarretando, por exemplo, a redução das taxas de crescimento das populações afetadas. Darwin reconheceu a competição como um processo ecológico fundamental, baseando sua teoria da evolução por seleção natural na competição intra-específica entre indivíduos com diferentes genótipos (2). Como entidade biológica, a espécie Homo sapiens compete com diversas outras espécies, mas também compete com seus semelhantes (competição intra-específica). Isso evidentemente não significa que tal forma de interação tenha sido determinante na evolução da espécie humana, já que a sobrevivência repousa principalmente nas interações de natureza cooperativa, que trazem “vantagens” às partes. De qualquer modo, uma interação negativa não é necessariamente prejudicial à sobrevivência, podendo mesmo vir a aumentar a seleção natural, a adaptação e, consequentemente, a evolução a longo prazo de uma espécie (3). A competição intra-específica do Homem, embora não seja comumente tratada em experimentos científicos, pode assumir diferentes formas e escalas, envolvendo desde conflitos entre nações até disputas entre parceiros, apenas para citar dois exemplos. Nesse contexto, os competidores digladiam-se com um arsenal de recursos cognitivos equivalente, embora possam diferir na capacidade de tirar proveito de suas habilidades. Havendo diferenciação física e/ou comportamental entre competidores, qualquer característica que desse uma “vantagem” a seu portador poderia ser favorecida pela seleção natural, de modo que tal caractere estivesse representado no genótipo de futuras gerações. Assim, ainda que pequena, essa vantagem poderia fazer a balança pender em favor de seu portador e, por conseguinte, de sua prole, que teria mais chances e oportunidades de transmitir seus genes para adiante. Evidentemente, a reprodução pode estar relacionada a fatores que não envolvam necessariamente a habilidade competitiva do indivíduo, mas pressupõe que aquele que produz um descendente está de alguma maneira adaptado ao meio, ou seja, apresenta requisitos que lhe conferem a capacidade de sobreviver nesse meio. Em suma, consideremos que a reprodução do indivíduo exige, antes de tudo, aptidão deste nas suas relações com o meio. É possível também que a luta permanente entre nossos antepassados por um lugar ao sol, especialmente pelo sucesso dentro do próprio grupo social, tenha contribuído em muito para a evolução da inteligência entre os humanos. Portanto, pode-se assumir que indivíduos melhor preparados tenham mais chances de vencer na luta pela existência, ou seja, pela sobrevivência e pela continuidade da linhagem. Essa é uma prerrogativa dos fortes, dos vencedores, qualquer que seja o sentido que possamos dar a tais adjetivos. Mas qual seria a importância do indivíduo, no contexto biológico? Se, classicamente, a seleção natural é feita sobre organismos individuais, são populações – não indivíduos – que constituem basicamente a matéria prima da evolução, que só pode ser quantificada por intermédio de mudanças de freqüências gênicas na espécie. Em termos técnicos, diz-se que uma espécie evolui quando seu inventário (ou pool) genético muda, sendo essa mudança em geral associada a um grau mais elevado de adaptação da espécie/população a um determinado ambiente ou espaço geográfico. Nesse contexto, pode-se dizer que enquanto a espécie evolui, o indivíduo sobrevive. Assim, o organismo é a unidade ou o “pacote” de genes que é impelido a sobreviver, procriar e deixar sua marca, qualquer que seja ela. Provavelmente, o grau de “sucesso” de fenótipos individuais diferenciados em relação à média da população – traduzido em concretização da capacidade reprodutiva – implicará num determinado deslocamento ou desvio na distribuição de freqüências gênicas dentro da população e, por conseguinte, uma “evolução” da espécie. A evolução é o resultado biológico computável ao longo das eras, ao passo que os embates de indivíduos perdemse nas areias do tempo e na finitude de suas existências. É tentador pensar que, de qualquer modo, tanto organismos diferenciados como medianos estejam, sem o saber, a serviço de estruturas hierárquicas superiores, como é a espécie. Nesse sentido, não importa muito quem faz, mas sim o que se faz, e é isso o que vale para a comunidade, para a população. Muitos sabem que o Homem (entenda-se, aqui, a humanidade) já pisou na Lua, embora poucos se lembrem de quem particularmente caminhou na Lua. Enfim, o papel do indivíduo talvez possa ser exemplificado numa passagem de Ítalo Calvino: “A ponte não é sustentada por essa ou aquela pedra, e sim pelo arco; mas o arco não existiria se não fossem as pedras”. A evolução da inteligência – e do cérebro – provavelmente deve ter ocorrido junto com o aumento da complexidade das sociedades humanas. Freud dividiu a estrutura psíquica em id e ego. O id, representado pelos elementos hereditários e inconscientes, e o ego, fruto do aprendizado transmitido por outras pessoas ou resultado da própria experiência do indivíduo. O ego representaria o controle pela vontade, tendo como uma de suas principais tarefas a manutenção e defesa da integridade física do indivíduo, o que seria conseguido por intermédio de reações adequadas a estímulos externos (evitar predadores, por exemplo, ou procurar abrigo em um dia de chuva) e também por modificar o ambiente em seu próprio benefício. Numa outra “frente de batalha”, o ego controlaria as exigências dos instintos (representados pelo id), decidindo em favor ou não de sua satisfação, dependendo das condições ambientais. No contexto da evolução da espécie humana, dois aspectos devem ser destacados: de um lado, a capacidade de pensar, a autoconsciência, os sonhos e os desejos do indivíduo, do ego; do outro, a necessidade de consolidar as estruturas sociais emergentes, condição essa que exige certo grau de supressão ou submissão do indivíduo em prol do interesse e do bem comum. Diferentemente de outras espécies, a evolução do Homem culminou na autoconsciência, ou a visão reflexiva do eu. Considerando-se que autoconsciência implica – entre outras coisas – na ciência do fim ou da finitude do indivíduo, tal conhecimento poderia produzir elementos fortemente anti-sociais que devem ser devidamente controlados. Por exemplo, como entidade pensante, o eu é obrigado a conviver com a perspectiva de que vai morrer; não importa o que faça, seus filhos morrerão um dia e assim também seus amigos; enfim, todos! Essa extinção do eu, da mente pensante, do ego, embora possa fazer sentido de um ponto de vista biológico – sistemas vivos finitos e em constante renovação devem ser mais eficientes para a perpetuação da vida do que um sistema onisciente único – não deve ser algo que, em condições normais, organismos autoconscientes aceitem sem contestação ou um mínimo de luta. Afinal, todas as energias do sistema vivo estão voltadas para sua sobrevivência (uma das tarefas do ego), e não para a extinção. A idéia da finitude do eu contém um componente anti-social na medida em que nega ao indivíduo, por exemplo, o prêmio do bom comportamento a que ele – como bom cidadão – julga fazer jus, considerando-se que o comportamento correto é a base da ordem social. Todavia, como a história natural de nossa espécie perdura por muitos milhares de anos, pode-se supor que a seleção natural tenha forjado mecanismos capazes de resolver esse pequeno “problema”, digamos, mantendo os vulcões individuais em um estado de certa calmaria, com sua energia controlada e direcionada para outros fins, como o interesse coletivo. Mencionou-se acima que a sobrevivência do indivíduo e a transmissão de seus genes à geração seguinte podem estar associadas às suas habilidades para enfrentar os desafios do meio. No caso do Homem, a força e a resistência física são fundamentais para a sobrevivência num ambiente desfavorável, com escassez de recursos, mas em geral não representam mais fatores decisivos de imposição do individuo dentro de uma comunidade ou grupo. Como animal social, vivendo em agrupamentos cada vez mais estáveis e organizados, outras armas acabaram por prevalecer. A habilidade de enganar ou ludibriar os semelhantes, por exemplo. De acordo com David L. Smith (4), a pessoa que mente melhor leva vantagem sobre seus pares na luta pelo sucesso reprodutivo. A capacidade de transmitir mensagens ou sinais falsos não é exclusividade da espécie humana, sendo bastante comum entre os seres vivos. Dependendo da complexidade do organismo, tal capacidade pode tanto ser fruto de um fenótipo bem-sucedido favorecido pela seleção natural – como no caso da flor que “imita” a fêmea de um inseto a fim de atrair o macho que, ao tentar copular com o simulacro de fêmea, irá atuar como polinizador –, como de processos comportamentais flexíveis e complexos, altamente dependentes do contexto social. Esse é o caso, por exemplo, dos primatas. Nos seres vivos, a prática do “engano” é apenas mais um recurso para os desafios da sobrevivência e reprodução. Evidentemente, no caso do mundo natural não humano, os comportamentos a que nos referimos como “engano” não contemplam a premeditação consciente ou intencionalidade características do engano enquanto prática humana. Portanto, deve ficar claro que, até prova em contrário, o engano sensu strictu é uma prerrogativa exclusiva do ser humano, ou seja, é o homem que inventou o engano e passou vê-lo por toda parte (5). O auto-engano (isto é, a capacidade de iludir a si mesmo) seria uma ferramenta que permitiria o exercício do engodo, do falseamento, de uma maneira mais enfática, convincente, partindo-se do pressuposto de que enganar a si mesmo melhora a chance de enganar a terceiros. Porém, mais do que habilitar o indivíduo a mentir melhor e auferir disso algum tipo de benefício, o auto-engano também poderia constituir-se num mecanismo de auto-aceitação e aceitação da realidade social do agente, da qual ele não consegue (ou não pode) se omitir. Ademais, serviria como lenitivo para a idéia da própria morte enquanto possibilidade concreta. Vale lembrar que, na mitologia bíblica, Adão é alertado por Deus a não comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, “por que no dia em que dela comeres terás de morrer” (Genesis, cap. 2, v. 17). Em verdade, ao comer do fruto proibido Adão não morreu, mas provavelmente tomou pela primeira vez consciência da própria morte, da amarga condição de finitude do eu, que nos priva do convívio com os seres vivos (5). O auto-engano também poderia travestir-se em conformação (ou conformidade) e esperança. Conformar-se significa basicamente aceitar um fato ou conjunto de fatos ou situações particularmente desagradáveis; e a esperança nos permite aguardar pacientemente algo que se deseja e que, acreditamos, irá se concretizar em um futuro indeterminado. Assim, nas palavras de Eduardo Gianetti (5), se o homem expulso do paraíso foi punido com a consciência da morte e de sua imperfeição, em contrapartida recebeu o dom da esperança, a cegueira salvadora e iluminada que nos protege dos nossos erros e da certeza de nosso fim. Portanto, no contexto da sobrevivência do homem, mecanismos psíquicos altamente complexos parecem encarregar-se da manutenção da sanidade mental do indivíduo, bem como da sua capacidade de conviver e, na medida do possível, levar vantagem sobre competidores em potencial. O auto-engano envolveria, assim, um complexo diálogo entre as esferas consciente (ego) e inconsciente (id) da mente humana. Fundamentalmente, o organismo humano não deve suportar autoconhecimento em excesso, uma vez que isso implicaria numa menor capacidade de auto-engano, levando a um “estreitamento” da percepção, pelo indivíduo, do sentido da própria existência (ou mesmo da existência em si), o que comprometeria sua capacidade de sobrevivência e perpetuação. Como elemento de homeostase (equilíbrio) do eu, o auto-engano, digamos assim, “adoçaria a pílula” e tornaria o fardo menos pesado, impondo-se como importante mecanismo de defesa do ego. O ego é o senhor, e em seu nome o meio pode ser manipulado, criando-se uma “realidade virtual” ou um contexto adequado às suas necessidades. Nas palavras de Daniel Dennett, “o único significado que pode haver é aquele que você cria para si mesmo”, e “o significado é a criação do próprio indivíduo”. Como entidade inteligente e autoconsciente, o ser humano precisa de significados, de referências, de um amálgama que permita dar algum “sentido” às coisas que vivencia. Deus, por exemplo, é um excelente sentido ou, melhor dizendo, a origem do sentido. “Se Deus não existisse, tudo seria permitido”, disse Dostoievsky. E se Deus não existisse, o homem não teria sido concebido por Ele, e os desejos do homem não seriam os desejos de Deus, mas apenas e tão-somente os desejos do próprio homem (6). Mas poderia a mente humana suportar o peso de tamanha responsabilidade? A angústia do homem não seria tão grande a ponto de comprometer sua capacidade de sobreviver enquanto animal social ou mesmo enquanto espécie? Sem Deus – talvez a suprema manifestação de nossa capacidade de auto-engano – o homem não teria justificativas ou desculpas para seus atos, como diria Sartre; estaria apenas ao sabor da solidão de sua liberdade (e responsabilidade). Evidentemente, ao longo da evolução do homem, devem ter surgido mecanismos que não permitiriam que tal sensação de desamparo prosperasse. Os processos operacionais do cérebro humano são extremamente complexos, sendo que uma decisão ou escolha pode, antes de se manifestar como desejo consciente, já ter sido tomada em nível pré ou subconsciente. De acordo com Freud, na relação do ego com a consciência, mesmo operações intelectuais refinadas e complexas podem ser executadas em nível pré-consciente, antes de chegar à consciência. Seria o caso, por exemplo, de alguém que acorda com a solução de um problema que não conseguiu resolver no período de vigília. As próprias faculdades de autocrítica e consciência são, ao menos em alguns casos, inconscientes, e produzem seus efeitos no plano do inconsciente. Orstein (“A evolução da consciência”) relata que, na mente em estado de alerta, existe um atraso (delay) entre o estímulo e a percepção consciente desse estimulo por parte do sujeito, atraso esse que permitiria que a mente corrigisse ou mesmo censurasse percepções que “julgasse” inoportunas, excedentes ou indesejáveis, agindo como um editor de jornal que determina quais e como as notícias serão divulgadas ao público. A função desse mecanismo seria proteger a consciência de um excesso de informações “fúteis”, entendendo-se como tal toda e qualquer informação que não esteja diretamente relacionada à proteção e à preservação do bem estar do indivíduo. Por outro lado, em situações de emergência, que exigem reações extremamente rápidas do organismo, tais reações podem ocorrer antes mesmo que o estímulo atinja níveis conscientes. Assim, cada ação é disparada em nível subconsciente e, dependendo das circunstâncias, é liberada ou vetada para a consciência, mas em geral o ego não “precisa” saber disso. Ou seja, em nome do equilíbrio e da saúde mental, nosso sistema nervoso filtra e seleciona os milhões de estímulos físicos que atingem o organismo, priorizando apenas aqueles mais diretamente relacionados à sua sobrevivência e, provavelmente, à de sua linhagem. Nesse sentido, o cérebro talvez imponha restrições a um mergulho profundo na autoconsciência, assegurando dessa forma o bem estar do indivíduo dentro de sua comunidade. Assim, a “sábia” seleção natural talvez tenha nos ensinado que a viagem às nossas próprias profundezas pode reservar perigos insuspeitáveis e potencialmente mortais. Esse “filtro” de informações, situado no trajeto entre a decisão subconsciente e a consciência da decisão, poderia fazer parte do sistema de auto-engano? Considerando-se que o aparelho psíquico não suporta o desprazer, ele tem de desviá-lo a todo custo. E se os estímulos ambientais causam desprazer, a percepção desses estímulos deve ser sacrificada, ou seja, o indivíduo simplesmente não “percebe” determinado evento à sua volta (7). Quanto aos sinais vindos de dentro do próprio indivíduo – já que não é possível fugir de si mesmo – o ego (ou o id?) ativaria o sistema defensivo do auto-engano que falsifica a percepção e transmite à consciência apenas uma representação “maquiada” do próprio ego. Isso faz com que, em geral, cada indivíduo tenha a si próprio na mais alta conta, mesmo que cometa erros ou tome atitudes equivocadas. Segundo Orstein, as pessoas costumam recordar apenas os adjetivos positivos a seu respeito, simplesmente ignorando os demais. Do mesmo modo, tendem sempre a valorizar o positivo e a ocultar o negativo, ou então se lembrarem mais dos sucessos do que dos fracassos (8). O importante é manter a auto-estima elevada, o que repousa no sentimento e na crença de ser bom, de acreditar com sinceridade que somos aquilo que queremos (ou gostaríamos de) ser. Um exemplo de mecanismo de manutenção da homeostase mental pode ser ilustrado no caso do indivíduo que deixa passar a oportunidade de praticar um ato positivo que demonstraria, por exemplo, nobreza ou magnanimidade. Sentindo desconforto, busca retomar o equilíbrio mental por intermédio da autocensura ou autopunição, onde um pretenso lado “bom” reconhece a posteriori o ato falho e triunfa sobre o “mau”, sentindo-se o indivíduo redimido e confortado em razão do “castigo” auto-imposto, recuperando assim o equilíbrio interno. É curioso como, em tais casos, parecem existir duas personagens: aquela que praticou o ato numa determinada circunstância; e aquela que reflete sobre o ato praticado, penitencia-se, recupera o próprio referencial e volta a sentir-se “bom”. Portanto, o simples ato de admitir intimamente o próprio erro representa uma forma de estabelecer um contraponto ao mau ato, permitindo ao indivíduo continuar sua jornada sem maiores problemas de consciência. É claro que tais atributos valem apenas para os indivíduos considerados mentalmente sadios, bem adaptados ao seu meio. Um sentimento prolongado de culpa pode, por outro lado, comprometer o equilíbrio e a autoestima do indivíduo. Numa analogia dos mecanismos mentais de proteção do ego com o mundo dos computadores, o id poderia ser um processador operando em linguagem de máquina, em cujos códigos se ocultariam a natureza biológica do ser humano e o universo de seus desejos mais profundos (“desejos biológicos”). Um programa compilador seria encarregado de traduzir esse material para um conjunto de símbolos compreensíveis, que emergiriam sob a forma de pensamentos e desejos, ou seja, se tornariam conscientes. Mas tal compilador seria uma máquina diabólica que, de maneira autônoma, seleciona o material a ser traduzido de acordo com algum critério desconhecido, de tal modo que apenas certos trechos do inconsciente possam ser decodificados, criando de qualquer modo a ilusão do livre arbítrio, da capacidade de escolha, mesmo que a “decisão” já tenha sido tomada pelo próprio compilador em nível subconsciente. Seria como o advogado que, com esforço, colige provas em favor de seu cliente, num julgamento cujo veredicto já fora antecipadamente proferido e que ele ignorava. De acordo com Freud, um mecanismo de defesa do ego pode perdurar mesmo após o desaparecimento do estímulo que o evocou, vindo a incorporar-se ao repertório comportamental do indivíduo. Nesse caso, o mecanismo passa a produzir determinado padrão de reação toda vez que ocorra uma situação semelhante àquela que provocou a sua origem. Além disso, o ego pode chegar ao ponto de – na ausência de perigo “real” – criar ou simular situações substitutas aproximadas do perigo original, o que justificaria os procedimentos defensivos fixados no ego. E tudo isso ocorreria de um modo, digamos assim, “automático”, isto é, sem questionamento ou procedimento auto-crítico por parte do eu consciente. Essa “defesa” do eu pode assumir inúmeras formas. Oliver Sacks, em seu livro “O homem que confundiu sua mulher com um chapéu”, cita o caso de um sujeito que, tendo perdido irremediavelmente o sentido do olfato devido a uma lesão na cabeça, passou num dado momento a sentir os aromas de objetos queridos, como o café e o cachimbo. O córtex cerebral recuperara registros anteriores das sensações olfativas, de modo a evocar tais sensações quando o sujeito bebia café ou acendia seu cachimbo. Assim, o córtex, criava um tipo de alucinação que fazia com que o indivíduo praticamente se auto-enganasse – e como conseqüência enganasse os outros – acreditando e fazendo crer que realmente estava sentido cheiro (9). Empédocles já reconhecia a evolução gradual das criaturas vivas e a sobrevivência dos mais aptos. Mas, que homem é forte? Aquele que assume plena e conscientemente seus atos, ou aquele que busca refúgio nos referenciais externos? Em ambos os casos a consciência pode ser filtrada a ponto de, por exemplo, um algoz derramar sinceras lágrimas de piedade diante de sua vítima. Há resposta para isso? Do ponto de vista da seleção natural, o importante talvez seja chegar, não importando os meios utilizados para isso. Quando esse princípio amoral não se coaduna com os princípios éticos do ego, esse cria leis morais e divinas que disfarçam e justificam atos que, basicamente, apenas reforçam a lei do mais forte; daquele que chega e coloniza; daquele cujos genes estarão representados, em algum descendente, milhares de anos depois. Enfim, qualquer que seja a conotação que possamos dar ao auto-engano, provavelmente trata-se de um mecanismo psíquico inerente ao organismo humano que, além de melhorar seu desempenho em suas relações com os semelhantes, fornece-lhe uma perspectiva ante o absurdo que é a vida vista radicalmente de fora (5). De acordo com Eduardo Gianetti (5), uma visão totalmente impessoal, descentrada, da vida, poderia levar a uma sensação de perplexidade e niilismo, fazendo com que um organismo sensciente, ao contemplar sua real magnitude e proporção diante do Universo, perdesse o senso de orientação e sucumbisse ante sua insignificância. Um ser humano que perdesse a crença em si mesmo e no sentido de seu destino – ou, de certa forma, a capacidade de se auto-enganar – pereceria sob o peso esmagador da futilidade de qualquer esforço e da gratuidade do existir. Bibliografia (1). Dennet, D. 1998. A perigosa idéia de Darwin, Editora Rocco, (2). Ricklefs, E.R. e Miller, G.L. 1999. Ecology. W.H. Freeman, New York. (3). Odum, E.P. , 2001. Fundamentos de ecologia. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. (4) David L. Smith, 2005. Mentirosos inatos. Revista Mente & Cérebro No. 153. (5) Gianetti, E. 1997. Auto-Engano. Cia. das Letras, São Paulo. (6). Sartre, J.P., O existencialismo é um humanismo. Coleção Os Pensadores, (7) Freud, S. 1969. Análise terminável e interminável. Obras Completas, Vol. XXIII. Editora Imago, Rio de Janeiro. (8) Orstein, R. 1991. A evolução da consciência. Ed. Best Seller, São Paulo. (9) Sacks, O. 1985. O homem que confundiu sua mulher com um chapéu. Cia. das Letras, São Paulo.