131 6 Assistentes sociais da última turma do currículo velho: compartilhando experiências e reflexões Maria de Lourdes Ferreira de Oliveira Santos∗ Simone Eliza do Carmo Lessa∗∗ As mãos da memória sempre trabalham por encontros assim. Eduardo Galeano Introdução Este é um texto acadêmico onde o afeto é um elemento fundamental. Foi escrito a partir da memória de assistentes sociais formadas na “última turma” do “Currículo Velho” da Faculdade de Serviço Social da UERJ, tendo como pano de fundo as mudanças no Brasil e as transformações em curso na profissão no período. Falamos, portanto, do nosso aprendizado profissional e das nossas vidas. Falando da nossa formação, falamos de nós mesmos e do mundo em que vivíamos. Falamos das nossas alegrias, * Assistente Social. Cursou disciplinas do Currículo Velho e do Novo (1985/1990). Assistente Social do Instituto Nacional do Seguro Social. INSS, APS Maracanã. Especialista em Gerência de Projetos. [email protected]. ** Assistente Social formada na Última Turma do Currículo Velho/UERJ (1985/1988) e doutora em Serviço Social. Docente no Departamento de Política Social da FSS/UERJ. Assistente Social do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira, (CAp/UERJ). [email protected]. miolo_Livro_servico_social.indd 131 4/11/2014 18:00:07 Trajetória da Faculdade de Serviço Social da UERJ: 70 anos de história 132 descobertas, aprendizados, dificuldades, em momentos muito especiais que compartilhamos, tendo como ponto em comum a graduação em Serviço Social. Estávamos nos anos 1980, momento de redemocratização brasileira, de reconstrução dos processos de participação, de novo sindicalismo, de reconfiguração da chamada “censura”, de retomada do termo “cidadão” e da reconquista de direitos civis e políticos. Estes eram também os anos 80 da submissão às políticas heterodoxas propostas por organismos internacionais de financiamento, de revelação dos alarmantes níveis de desigualdades, aprofundados pela ditadura militar, de crescente dívida pública e dos níveis inflacionários, de arrocho salarial (SKIDMORE, 1988). Sem dúvida, vivíamos tempos de aprendizado para uma juventude que ansiava pela vida e pela liberdade. Fizemos nossos estudos iniciais, no que hoje é denominado Ensino Básico, durante a ditadura militar-empresarial em momento de censura, repressão e de ufanismo diante de um país que – diziam-nos − iria pra frente . A entrada em uma universidade pública, que também experimentava a retomada da vida democrática –onde os homens não podiam usar bermudas, por exemplo, o que foi revogado graças à mobilização estudantil − impactou na nossa percepção de mundo. Além disso, ingressávamos em um curso político e politizante que havia organizado uma greve contra a demissão de alguns docentes no início da década tratada. Este movimento vitorioso terminou por mobilizar toda a universidade. Era, então, o ano de 1985. O Brasil teria o primeiro presidente civil (depois de intensa e frustrada mobilização nacional por Diretas Já e eleição indireta de Neves e Sarney), e a juventude urbana reconstruía espaços de expressão na vida política por meio de movimentos sociais e da cultura (ressaltamos a música brasileira e o rock nacional como fonte histórica deste cenário). Estávamos em um curso eminentemente noturno, formado por mulheres jovens, solteiras, a maioria trabalhadora (recepcionistas, vendedoras, bancárias, professoras das séries iniciais, funcionárias públicas, secretárias). No curso, buscávamos novas e melhores oportunidades de trabalho, em uma profissão que identificávamos com a vontade ajudar. Nem imaginávamos a complexidade contida em nossa escolha profissional. Tampouco imaginávamos como a formação em Serviço Social impactaria em nossa compreensão miolo_Livro_servico_social.indd 132 4/11/2014 18:00:07 6 Assistentes sociais da última turma do currículo velho: compartilhando experiências e reflexões e inserção na vida social (lembramos que já em nosso “trote”, colegas do Centro Acadêmico nos advertiam, desconfiem de tudo, pois quase nada é o que parece ser). No presente artigo apresentamos nossa experiência como estudantes da Última Turma do Currículo Velho da Faculdade de Serviço Social da UERJ. A partir desta vivência particular, vinculada à dinâmica de transformações ocorridas na profissão, construiremos nossa reflexão. 133 O Serviço Social e a última turma do currículo velho: mudança e maturação O Serviço Social é uma profissão requisitada socialmente a partir do desenvolvimento da divisão social e técnica do trabalho, no capitalismo em sua fase monopolista (NETTO, 2001). Sua ascensão, originalmente, está relacionada à progressiva intervenção do Estado na organização e normatização da vida social e coincide com a de outras profissões que atuam tecnicamente sobre a vida do trabalhador, orientando e prescrevendo condutas – pedagogos, enfermeiros e psicólogos, por exemplo. A profissão é uma especialização do trabalho coletivo e sua emergência está vinculada à crescente intervenção do Estado na vida social, em se tratando do Brasil, especialmente, a partir da década de 30 do século passado. Somos alguns dos trabalhadores chamados a atuar sobre as sequelas decorrentes da apropriação desigual dos bens gerados pelo trabalho, muitas vezes precarizado e degradante. No Brasil, a organização da profissão de Serviço Social está relacionada aos fenômenos da ascensão da industrialização, urbanização, crescimento dos movimentos sociais de trabalhadores e da necessidade de serem oferecidas respostas mais organizadas, pelo do Estado, pela mediação das políticas sociais, às diversas expressões da questão social, em um contexto de capitalismo monopolista em aprofundamento (BEHRING; BOSCHETTI, 2006). As políticas sociais são nosso campo de intervenção profissional e a questão social, em suas variadas expressões, nosso objeto de trabalho. Como afirma Montaño (2003, p. 244). “O assistente social é o agente de implementação da política pública”, [...] “nossa base de sustentação funcional ocupacional.” Atuamos, portanto, sobre as consequências de um modelo de acumulação explorador e degradante da força de trabalho e da natu- miolo_Livro_servico_social.indd 133 4/11/2014 18:00:07 Trajetória da Faculdade de Serviço Social da UERJ: 70 anos de história 134 reza, que se materializa na desigualdade em suas diferentes faces: pobreza, destituição, adoecimento, violência, abandono, desinformação, alienação, sofrimento mental, entre tantos outros. No Serviço Social dos anos 1980, o processo denominado “Reconceituação” 1, desenvolvido em plena autocracia burguesa, estava concluído (NETTO, 2005) e se traduzia no amadurecimento intelectual da profissão, materializado por meio de elementos diversos. Neste campo merece destaque o Congresso da Virada/III CBAS, realizado em 1979 em São Paulo, que representa um marco na politização crítica da profissão (BRAVO, 2009). Outros elementos deste processo são a revisão curricular de 1982, os debates em torno da construção de um novo Código de Ética (que se materializaria em 1986), a superação politizada da intervenção fundamentalmente cartorial dos Conselho Regional de Assistentes Sociais (CRAS) e do Conselho Federal de Assistentes Sociais (CFAS), além da expressão do amadurecimento teórico da profissão em produções como o livro “Relações sociais e Serviço Social no Brasil”, de Marilda Vilela Iamamoto e Raul de Carvalho, e o “Política social do Estado capitalista”, de Vicente Faleiros, ambos em diálogo com a teoria marxista e dotados de efetiva aceitação no seio da categoria. As duas produções foram utilizadas em nossa formação profissional e expressam a tentativa de atualizar o chamado Currículo Velho e os novos conteúdos e categorias com as quais o Serviço Social renovado dialogava. Em nossa reflexão, interessa-nos destacar a reforma curricular de 1982, visto que este quadro nos ajudará a pensar na experiência de formação da última turma do Currículo Velho. Antes, porém, queremos definir o que entendemos por formação. Comecemos nossa análise com o pensamento de Marx e Engels (1992) em sua reflexão sobre a sociedade capitalista. Eles discutem que o trabalho, em seu caráter ontológico, é fundante do ser social. Marx e Engels afirmam que o homem, como ser histórico e social, cria e recria processos de compreensão, interação e transformação do mundo. 1 No caso do Brasil, iniciado em 1965, com duração de cerca uma década, o Movimento de Reconceituação representa a erosão do Serviço Social tradicional. Dentro deste processo destacam-se as vertentes modernizadora, a de reatualização do conservadorismo e a de intenção de ruptura. (NETTO, 2005). miolo_Livro_servico_social.indd 134 4/11/2014 18:00:07 6 Assistentes sociais da última turma do currículo velho: compartilhando experiências e reflexões Dentre estes os processos, está a formação. Para Marx e Engels (1992, p. 28), o desenvolvimento humano demanda condições para se realizar e expandir: 135 Se as circunstâncias em que este indivíduo evolui só lhe permitem um desenvolvimento unilateral de uma qualidade específica, em detrimento de outras, se estas circunstâncias apenas lhe fornecem os elementos materiais e o tempo propício ao desenvolvimento desta única qualidade, este indivíduo só conseguirá alcançar o desenvolvimento unilateral e mutilado. Em uma sociedade marcada pela apropriação desigual dos bens socialmente produzidos, podemos afirmar que a formação (nos seus níveis mais diversos, inclusive a educação superior) é organizada escalonadamente: quanto mais perto da execução do trabalho simplificado, mais simples será a formação. A formação é, portanto, desigualmente organizada e disponibilizada para os trabalhadores e as elites econômicas de forma distinta. A formação é uma relação social, resultado da configuração histórica, da organização da base produtiva, das formas de gestão da mão de obra, da ação das políticas educacionais, da organização dos trabalhadores, tendo o Estado como mediador das tensões entre capital e trabalho e das condições de produção de reprodução social, objetivadas nas vidas humanas. Formar supõe o desenvolvimento do indivíduo como subjetividade e como ser coletivo. Traçando um paralelo com a profissão, podemos dizer que o Serviço Social, na sua origem, tinha como proposta formar assistentes sociais que contribuiriam com o ajustamento à moral burguesa, dotados de uma prática doutrinária, que individualiza a questão social e se volta para o controle dos pobres, em um contexto de aprofundamento do capitalismo monopolista. Tratava-se de uma formação alienada das determinações econômicas e sociais da existência da profissão, constituindo-se, portanto, em um projeto de aprendizagem de um executor terminal − para usar o termo de Netto (2007) − de tarefas no campo das políticas sociais, o que se traduzia em um fazer profissional limitado e limitador, que naturalizava e desistoricizava o modo capital. Em sintonia com as mudanças no país e no campo das Ciências Sociais, por meio do processo de reconceituação, de autoquestionamento, de poli- miolo_Livro_servico_social.indd 135 4/11/2014 18:00:07 Trajetória da Faculdade de Serviço Social da UERJ: 70 anos de história 136 tização, de aprofundamento teórico, de participação e valorização nas lutas por justiça social e de conquista de uma maturidade intelectual − nos termos de Iamamoto (2001) – pelos quais passou a categoria dos assistentes sociais, a intenção da formação será transformada. A separação entre quem executa as políticas sociais e quem as pensa será enfrentada. Será uma formação de rigoroso tratamento histórico, metodológico e teórico da realidade, que valoriza a dimensão interventiva crítica, em prol da justiça, sem abrir mão de sua dimensão investigativa (ABEPSS, 1996). A profissão assumia o desafio de não se deixar convencer sobre seu papel secundário e nada propositivo nas políticas sociais. Mais do que executar as políticas sociais, queríamos pensá-las, construí-las, avaliá-las. Parafraseando a poesia “Louvor ao Estudo de Bretch”, o Serviço Social se questiona e se afirma: confere a conta [...] aponta o dedo a cada coisa e pergunta: que é isto? e como é? estás chamado a ser um dirigente. As mudanças de currículo se farão presentes na profissão ao longo de sua história, mas em dois momentos estas merecem destaque especial: no início dos anos 1980 como expressão da renovação profissional, e no início dos anos 90, em resposta à maturação da profissão e das exigências econômicas, sociais e culturais da realidade. Nesta reflexão, interessa-nos a revisão curricular de 1982, pois esta se refletirá intensamente em nossa experiência estudantil. Os marcos deste processo serão a Convenção da Associação Brasileira de Escolas de Serviço Social (ABESS), em 1979, que aprova a proposta de novo currículo mínimo, e a materialização deste debate, por meio da revisão do Currículo do Serviço Social em 1982, fundamentado no parecer CFE nº 412, de.8.1982, e na Resolução n.º 6 de 23/9/82 (ABEPSS, 1996). Este será também um marco de ruptura com aquela formação que intencionava o ajustamento e que desconsiderava a existência da questão social. O novo currículo buscará formar profissionais críticos, que compreendem o significado social da profissão, como especialização do trabalho coletivo. Nesta proposta, destacava-se uma nova compreensão sobre a história da profissão, superando enfaticamente qualquer interpretação de que esta seria uma especialização da caridade. Neste sentido, a profissão é inscrita nas relações sociais, na dinâmica de classes e nas relações do Estado com a sociedade civil. No currículo devem estar contemplados, portanto, conteúdos que incorporem esta discussão. miolo_Livro_servico_social.indd 136 4/11/2014 18:00:07 6 Assistentes sociais da última turma do currículo velho: compartilhando experiências e reflexões Vale, aqui, um breve destaque de um elemento agregado à mudança curricular: efetivação de um novo Código de Ética para os assistentes sociais. Este documento não será simplesmente uma disposição de direitos e deveres profissionais, mas expressará as mudanças em curso na sociedade brasileira – em momento de fortalecimento das lutas populares – e da profissão – muito além de um código genérico, a-histórico, dirigido a sujeitos sociais abstratos. O Código de 1986 começou a ser gestado em 1983 por meio de seminários e encontros com a categoria – na esteira do Congresso da Virada – e deixará explícito o compromisso da profissão com a classe trabalhadora (CFESS, Código de Ética 1986). Será sob este Código que a Última Turma do Currículo Velho fará seu juramento profissional. Nosso ingresso na Faculdade de Serviço Social acontece em 1985, em duas turmas, com 30 estudantes em cada uma delas. Este era o ano da Nova República, quando ocorre a retirada oficial dos militares da cena política na condição de ditadores e, especialmente, da Presidência da República . Para compreendermos os anos iniciais de 1980, faremos breve destaque aos anos 1970 (bem próximo historicamente a nossa formação). Neste contexto, na profissão, ressaltaremos a experiência com o Método BH, que se constitui em proposta de intervenção crítica, baseada no método dialético, que influenciará setores jovens da profissão, principalmente docentes. Nas palavras de Santos (2007, p. 167), BH se desenvolveu em um período de radicalização e de alinhamento à teoria da dependência aos centros de poder mundial, sobretudo os Estados Unidos e aos postulados humanistas marxistas. A identidade e o apoio aos interesses dos explorados estão colocados na proposta de BH, o que influenciará a profissão de modo significativo. Sobre BH, Netto (1991) afirmará, ainda, que se trata de experiência que realiza o questionamento epistemológico, bem como a recusa das práticas tradicionais da profissão. Complementando este quadro, a profissão realizará, nos anos 1970, seus diálogos iniciais com a teoria marxista, ainda que o próprio Marx tenha sido o mais ausente desta experiência, como nos diz Netto (2007). Na década de 1970, destacamos o crescente movimento de trabalhadores organizados. Também os assistentes sociais estarão mobilizados em torno de suas entidades sindicais: a Comissão Executiva Nacional de Entidades Sindicais de Assistentes Sociais (CENEAS) foi fundada em 1979 e, posteriormente, a Associação Nacional de Assistentes Sociais (ANAS), em 1983. miolo_Livro_servico_social.indd 137 137 4/11/2014 18:00:07 Trajetória da Faculdade de Serviço Social da UERJ: 70 anos de história 138 Esta militância contribui com a consciência e com a materialização do pertencimento de classe dos assistentes sociais (ABRAMIDES; CABRAL, 1995), que ainda contavam com uma Lei de Regulamentação de 1957, que os classificava como profissionais liberais. Esta organização política da categoria rebaterá no interior da Faculdade de Serviço Social e terá como importante expressão a realização de eleições diretas para a Direção do curso (conduta que perdura até hoje e que continua sendo inovadora na universidade, em pleno século XXI), em um contexto universitário de voto paritário. No início dos anos 1980 ingressam ou retomam a vida política, ainda, os movimentos de bairros, as associações contra a carestia, grupos feministas, grupos em defesa por direitos de crianças e adolescentes. Faz parte deste contexto, também, o movimento por diretas já em 1984. Este mobilizou milhões de brasileiros e diversos movimentos sociais populares e democráticos, em prol de eleições diretas e pelo ocaso institucional da ditadura militar (SILVA, 2002). No campo da cultura, merece ser ressaltado o rock nacional, em sua capacidade de agregar a juventude em torno de conteúdos que faziam a crítica à ordem . Logo no início do curso, em uma realidade que bebe do caldo cultural da redemocratização e da reentrada dos movimentos sociais de oposição no cenário nacional, acima sucintamente descritos, tomamos conhecimento de que um novo currículo seria implementado, respondendo às necessidades de mudanças que se aprofundavam na profissão. Assim, soubemos que estaríamos na Última Turma do Currículo Velho. O momento era, portanto, de transição, de finalização de um ciclo. A intenção era transformar a formação, a partir da introdução de conteúdos identificados com o Serviço Social, que rompeu com o tradicionalismo histórico na profissão. Este seria um currículo que, em tese, nos ajudaria na superação da imediaticidade de uma prática burocratizada, frágil e, em última instância, contribuiria por meio dos debates em sala de aula, de estudos, pesquisa e extensão, com desenvolvimento teórico e prático de assistentes sociais renovados. De fato, o processo de revisão de referências teóricas e metodológicas, a releitura crítica da sua história e do papel assumido pelo assistente social neste contexto, além da busca por uma ação profissional identificada com os anseios da classe trabalhadora (como o Código de Ética de 1986), que marcavam a profissão no final dos anos 1970 e nos anos 1980, frente à hege- miolo_Livro_servico_social.indd 138 4/11/2014 18:00:07 6 Assistentes sociais da última turma do currículo velho: compartilhando experiências e reflexões monia, na formação profissional do pensamento do grupo denominado “intenção de ruptura”2, eram incompatíveis com a proposta curricular praticada na Faculdade de Serviço Social da UERJ (e, é preciso dizer, em outras instituições de formação naquele período). Para exemplificar este processo, citamos os nomes de algumas disciplinas que cursávamos: “Serviço Social de Caso, de Grupo e de Comunidade”, “Saúde e higiene”, “Psicologia do normal e patológico”, por exemplo. Fomos informados e verificamos, na prática, que em nossa trajetória acadêmica haveria uma “adaptação” do currículo velho ao currículo novo (que contemplava disciplinas como Política Social, Movimentos Sociais, História do Serviço Social). Assim, apesar de constarem em nosso histórico as citadas disciplinas de caso, grupo e comunidade, os conteúdos que nos eram oferecidos estavam identificados com o Serviço Social que realizara sua revisão curricular. Em outras palavras, a Última Turma do Currículo Velho teve os conteúdos oferecidos em sua grade, adaptados aos tempos renovados do Serviço Social, sem que os nomes das disciplinas fossem mudados. A intenção era a de minimizar eventuais lacunas entre a antiga e a nova formação. Como jovens estudantes que experimentavam diversas mudanças importantes em suas vidas, que davam seus primeiros passos em direção à militância política e à independência, que eram estimulados a pensar criticamente, questionávamos o processo de mudança em curso. Havia preocupação quanto à transição em curso. Por algumas vezes, sentíamos que estávamos perdendo alguma coisa e que existiam lacunas em nossa formação por não estarmos inseridos no Currículo Novo. Em outras vezes, percebíamos certa preocupação da academia em relação à formação que conquistávamos, se comparada a que viria. Hoje, passados 25 anos, olhando para trás, com maturidade e experiência profissional, percebemos que estávamos todos construindo uma formação nova, conhecendo e analisando a história e as relações sociais em que se inseria a profissão, sob perspectiva crítica, e que nós, do Currículo Velho, ao expressarmos nossas dúvidas, preocupações e questionamentos, dávamos 139 2 Esta vertente, também presente na reconceituação da profissão, realiza uma crítica radicalizada ao tradicionalismo imperante historicamente no Serviço Social, propondo revisão crítica de suas bases teóricas, metodológicas e ideológicas. Sua presença pode ser observada junto a estudantes e jovens docentes que faziam a crítica à autocracia burguesa a partir do final dos anos 1960 (NETTO, 1994). miolo_Livro_servico_social.indd 139 4/11/2014 18:00:07 Trajetória da Faculdade de Serviço Social da UERJ: 70 anos de história 140 nossa contribuição ao rico processo de maturação em construção. Por meio daquela condição em que o novo ainda não havia nascido e o velho não fora superado totalmente, fomos um pouco o laboratório dos debates que seriam travados no Currículo Novo. Novo e velho estavam imbricados e se influenciavam mutuamente. Era preciso oferecer o melhor possível aos que concluíam a experiência no velho, assim como era necessário efetivar o novo, a partir do experimentado na adaptação do velho, como nos faziam entender alguns professores. Hoje, na presente reflexão, nos lançamos ao desafio de apreender e elaborar este rico processo pessoal e coletivo. É preciso reconhecer, porém, que, na época, por nossa condição de juventude e de aprendizado, bem como pelo nosso total envolvimento no processo em curso, era impossível que vislumbrássemos a riqueza da mudança da qual éramos sujeitos e ao mesmo tempo, objeto. O aprendizado no currículo velho Na adaptação feita em nosso currículo, travávamos diálogo com temas sobre os quais a profissão estava refletindo criticamente. Um destes temas centrais era o Estado capitalista e periférico, já não mais compreendido como um agente neutro de promoção de bem-estar, mas como instância contraditória, em que os interesses da sociedade civil estão em disputa, que naquele momento reconstruía a democracia, retomava processos participativos e que, portanto, não poderia conter em si monoliticamente, somente, as manifestações dos interesses do capital. As leituras de Gramsci que a profissão realizava chegavam até nós por meio de Maquiavel e o Estado moderno e em Intelectuais e a produção da cultura e enriqueciam este debate. Simionatto (2011) nos dirá que o Serviço Social trará do pensamento gramsciano as categorias da práxis, bloco histórico, hegemonia, classes sociais, subalternidade, vontade coletiva, intelectual orgânico, revolução passiva, transformismo, nacional e popular, cultura, sociedade política e civil. Em nossa formação, naqueles anos 80, estavam muito presentes, principalmente, os debates sobre o bloco histórico, sociedade civil e política, subalternidade. Desenvolvendo o debate sobre o Estado, discutíamos também as instituições onde atuavam os assistentes sociais. Vinculadas ao Estado capitalista, miolo_Livro_servico_social.indd 140 4/11/2014 18:00:07 6 Assistentes sociais da última turma do currículo velho: compartilhando experiências e reflexões as instituições passaram a ser reconhecidas como espaços de tensões, em que interesses antagônicos − democráticos, que valorizavam a qualidade do serviço prestado, bem como os direitos e os conservadores, que recolocavam a lógica dos benefícios e do clientelismo − estavam em disputa. A reflexão de Serra (1983), em a Prática institucionalizada do Serviço Social, expressa muito bem este momento ao discutir o trabalho institucional do assistente social, tendo o Estado, a participação e a democracia como elementos deste processo. Faleiros (1991) em sua produção Saber profissional e poder institucional, por sua vez, enriquecerá esta discussão, tratando das relações de poder, articuladas à luta de classes. Expressões deste debate em nova vida estudantil são nossos relatórios de estágio, em que se discutiam as instituições como elementos de destaque. Novamente Faleiros (1987), autor muito presente na formação em Serviço Social, de modo ainda mais especial naqueles anos 80, em A política social do Estado capitalista nos apresentará ao debate sobre o Welfare State as políticas sociais e suas funções no Estado capitalista. Este seria um debate novo e inovador na profissão, que foi apresentado para nós associadamente à reflexão de Iamamoto e Carvalho (1985), no livro Relações sociais e Serviço Social no Brasil. Em Iamamoto e Carvalho travamos nosso primeiro diálogo com a teoria marxista, pelo estudo sobre as relações sociais de produção. Além disso, conhecemos a história do Serviço Social no capitalismo tardio, como uma proposta da burguesia, fundamentada pelo pensamento social burguês e pela moral burguesa, muito além da perspectiva de especialização da caridade e da autoconsciência de seus agentes. Neste sentido, tanto as políticas sociais estudadas por Faleiros quanto o lugar da profissão nos foram apresentados nas relações sociais capitalistas, em suas determinações históricas. Consideramos que estas duas produções são materializações de primeira hora do pensamento crítico na formação em Serviço Social e terão impacto importante em nossa aprendizagem. Vale lembrar que fomos a geração que foi à escola naqueles tristes e reprimidos anos formativos da ditadura militar empresarial, quando estudávamos disciplinas como Moral e Cívica – em versão conservadoríssima. Este conteúdo crítico, esta revisão histórica, este estímulo à crítica, eram para nós, mulheres jovens e trabalhadoras, uma experiência nova e desveladora. miolo_Livro_servico_social.indd 141 141 4/11/2014 18:00:07 Trajetória da Faculdade de Serviço Social da UERJ: 70 anos de história 142 Da mesma forma, observávamos que nossos professores também passavam por processo de reatualização de seus conhecimentos. Alguns cursavam mestrados e outros haviam acabado de concluí-los, confirmando o que Silva e Silva (2009) e Iamamoto (1995) nos falam sobre a expansão da pós-graduação em Serviço Social. Por outro lado, alguns professores de outros cursos que nos ministravam aulas e que estiveram alheios às mudanças por que passava do Serviço Social, encontravam-se bastante à margem deste processo e continuavam reproduzindo uma visão de um profissional de Serviço Social tradicional. Esta situação gerava questionamentos no interior da Última Turma do Currículo Velho, o que, algumas vezes, culminou em mobilização por parte dos estudantes, no sentido de denunciar o que ocorria e de buscar superar o problema. A propósito dos desenvolvidos em nossa formação, ressaltamos o tema do Planejamento em Serviço Social. Líamos Leila Lima Santos (1982) que, em seu livro Textos em Serviço Social, enfatizava a importância da racionalidade, do planejamento, da participação e da democracia. A profissão buscava aprofundar sua dimensão reflexiva, investigativa, organizativa, política, em oposição ao emergencialismo que marca sua história. O planejamento aparecerá renovado e politizado como uma estratégia neste campo. Com as novas referências teóricas com as quais a profissão dialogava, ocorre sua indagação sobre temas como objeto, método, metodologia. A literatura do Serviço Social da época será marcada por autores que questionam a metodologia tradicional da profissão e propõem novas formas de intervir sobre o real. Sobre o tema em nossa formação estiveram presentes as reflexões de Boris Alexis Lima, em Contribuições à metodologia do Serviço Social (1978), e Faleiros, em Trabajo Social, ideologia e método (1972), já em uma perspectiva mais crítica da metodologia. Sobre o objeto de intervenção da profissão, vivemos intensos debates. Este tema sobre o qual a categoria se debruçou e avançou teoricamente, nos permitindo hoje a afirmação de que o objeto do Serviço Social é a questão social, que se constitui em matéria-prima e justificativa da existência da profissão (GUERRA, 2000), para a Última Turma do Currículo Velho, ainda era nebuloso. O debate sobre a metodologia, por sua vez, também presente em nossa formação, apesar de nos conduzir a algumas armadilhas – como a do metodologismo e da prática prescritiva, como recursos equivocados para enfrentar miolo_Livro_servico_social.indd 142 4/11/2014 18:00:07 6 Assistentes sociais da última turma do currículo velho: compartilhando experiências e reflexões uma sociedade de classes − também expressa o diálogo – por vezes fragmentado e equivocado (QUIROGA, 1991) que a profissão vinha realizando com o pensamento marxista, de modo especial com a obra Para a crítica da economia política (MARX, 1987), então bastante trabalhado na formação em Serviço Social (na nossa, inclusive). Esta produção foi estudada, desde os primeiros períodos e em mais de uma disciplina, pela Última Turma do Currículo Velho, com ênfase especial na compreensão da complexidade do real em suas múltiplas determinações. Esta importante, sistemática e singular obra marxista nos trará a oportunidade de conhecermos a realidade como concreto pensado, buscando superar visões simplificadoras e fragmentadas, o que ia de encontro com a reconceituação realizada na profissão. A historicidade, por sua vez, como categoria trabalhada na obra marxista, estará além da linearidade cronológica e será compreendida a partir das relações de produção. Queremos, ainda, destacar nossas experiências de estágio, realizadas, em sua maioria, no campo da saúde, política que empregava número significativo de assistentes sociais naquele final da década de 80, alguns destes, nossos professores e supervisores. Este é um momento bastante enriquecedor do ponto de vista do aprendizado e da inovação nesta área, pois estávamos imediatamente após a realização da Oitava Conferência de Saúde, marco de debates e de proposições que conformariam as bases do SUS (ocorrida em 1986). Algumas de nós, além disso, estagiávamos em campos próprios, como o Hospital Universitário Pedro Ernesto e o Posto de Saúde de Bicuíba, ambos referências em saúde e em práticas inovadoras. Este contato imediato com o cotidiano de trabalho do assistente social, fundamentado e em diálogo com a formação na universidade, confirmou, na maior parte dos estudantes da nossa turma, a intenção de trabalhar na área. Os desafios profissionais eram visíveis, mas o otimismo da vontade – nos termos de Gramsci – em tempos de elaboração de uma nova Constituição, de valorização de princípios da Reforma Sanitária, de direitos das mulheres, crianças e adolescentes, não nos permitia antever a década neoliberal que se avizinhava. Eram tempos de esperança e de sonho. A propósito deste debate, Silva (1991) enumera avanços importantes na profissão naqueles anos 80, que contribuíam para as expectativas positivas da profissão: debate crítico sobre a assistência e assistencialismo, criação do miolo_Livro_servico_social.indd 143 143 4/11/2014 18:00:07 Trajetória da Faculdade de Serviço Social da UERJ: 70 anos de história 144 CEDEPSS (Centro de Documentação e Pesquisa em Política Social e Serviço Social), avanços na organização da categoria, melhor articulação com o Serviço Social latino-americano. Ao mesmo tempo, este contato com o cotidiano de trabalho do assistente social acontecia marcado pelos dilemas de uma profissão que atua sobre graves expressões da questão social, em um contexto em que os pilares da proteção social são extremamente frágeis. Além disso, Silva (op. Cit.) menciona questões que repercutiam negativamente sobre o Serviço Social no período: crise no ensino superior, precarização do mercado de trabalho pela redução de vagas e fragilização dos vínculos, terceirização de políticas sociais. Este quadro nos colocava diante do pessimismo da razão – utilizando novamente os termos de Gramsci. Breves considerações finais caminhos da Última Turma do Currículo Velho A UERJ passaria a praticar, efetivamente, um currículo novo em 1989. Neste estavam contidos conteúdos identificados com o perfil de profissional crítico, propositivo e generalista que se pretendia preparar. Nós do Currículo Velho compartilhávamos os debates que marcavam a profissão naquele momento, como buscamos descrever até aqui. Na conclusão da nossa graduação (que não significou o fim da nossa formação), muitas mudanças ainda estavam em curso na profissão. Na verdade, o Serviço Social estava materializando as transformações desejadas pela categoria e reclamadas pela realidade. Falamos da Lei de Regulamentação (Lei nº 8662/93), do Código de Ética de 1993, da assunção do Projeto Ético e Político Profissional, da consolidação da ação política e estratégica do conjunto CFAS e CRAS, que passariam a ser denominados CFESS/CRESS. Tais mudanças exigiram nossa atenção e cuidado, comprometidas que estávamos com nosso trabalho profissional, bem como por exigência da própria realidade cotidiana. Nossa formatura ocorreu no início de 1989: sem beca, com mural de fotos com nossa trajetória estudantil, com música ao vivo cantada pela turma em coral que organizamos para o evento. O nome escolhido pela Última Turma do Currículo Velho para este evento festivo (E agora, José?), tal qual a poesia de Drummond, expressava aquele momento de entrada na vida profissional: muitas possibilidades, muitos desafios. Nossa inicial caminhada como assistentes sociais acontece a partir daí, em uma miolo_Livro_servico_social.indd 144 4/11/2014 18:00:08 6 Assistentes sociais da última turma do currículo velho: compartilhando experiências e reflexões estrada bastante acidentada, nos primeiros anos de 90, momento em que se efetivavam políticas de ajuste neoliberal, com evidentes impactos no mercado de trabalho do Serviço Social – retração e fragilização de vínculos empregatícios formais − e nas políticas sociais onde atuaríamos – subfinanciamento, sucateamento, terceirizações de ações. Muitos desafios estavam colocados, de fato. Nós, profissionais que experimentamos o processo de criação e recriação simultâneos – currículos Novo e Velho associados, aproximados, culminando em uma formação nem nova e nem velha, mas inédita −, somos “crias” dessa metamorfose. Temos sido capazes de enfrentar os desafios cotidianos do trabalho, nos tempos neoliberais, pós-modernos, de suposto neodesenvolvimentismo, buscando formação permanente, articulação coletiva, proximidade e trocas com nossos pares. Estamos em diversos espaços, na cidade do Rio de Janeiro e fora dela, como assistentes sociais e supervisores de estágio. Estamos no campo sócio-jurídico, na saúde, na educação, na assistência social, na saúde mental, na previdência social e na docência em Serviço Social. Passamos pela pós-graduação e por cursos diversos ao longo da nossa caminhada, por desejo pessoal, compromisso profissional e entendimento político da importância destes aprendizados. Outros de nós, ainda, deixaram a profissão, mas reconhecem que a formação em Serviço Social deixou marcas inegáveis em sua compreensão sobre a vida e sua inserção no mundo. A realidade continua a nos desafiar e a exigir de nós mais e mais capacidade de apreendê-la e decifrá-la. Lidamos com eventuais lacunas da nossa formação. Estas foram sendo enfrentadas ao longo do tempo, não como um reflexo específico do Currículo Velho, mas como resultado de qualquer formação, pois todas são inacabadas diante de uma realidade sempre dinâmica. A profissão tem amadurecido e vivido avanços e limitações ao longo destes 25 anos, e lidar com elas somente é possível, com a busca constante por aprendizado e por participação nos espaços coletivos da categoria. Como expressão da dinamicidade do real, outras mudanças curriculares foram realizadas na FSS/UERJ (e no Serviço Social brasileiro) como resultado de um processo de permanente aperfeiçoamento, afinado com a direção social materializada no Projeto Ético Político da profissão. Outro currículo será efetivado em 2015 na FSS/UERJ, o que significa que, neste miolo_Livro_servico_social.indd 145 145 4/11/2014 18:00:08 Trajetória da Faculdade de Serviço Social da UERJ: 70 anos de história 146 momento, há outra Turma do Currículo Velho em formação. Isso nos instigou a contar essa história. Diante de tudo que vivemos, fica a certeza de que a Última Turma do Currículo Velho foi também uma semente da materialização do Currículo Novo. Contraditoriamente, fomos desconstrução e construção. Referências ABEPSS. Diretrizes gerais para o curso de Serviço Social. Rio de Janeiro, 1996. Disponível em <http://www.cressrs.org.br/docs/Lei_de_Diretrizes_Curriculares. pdf> Acessado em 1/7/2014. ALBIN, Ricardo Cravo. Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira. Disponível em <http://www.dicionariompb.com.br/> Acessado em 1/7/2014. ABRAMIDES, Maria Beatriz e CABRAL, Maria do Socorro. O novo sindicalismo e o Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1995. BRASIL, IPEA. 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