TRAUMA, CAUSALIDADE E TEMPO: ALGUMAS REFLEXÕES Grupo de estudos de epistemologia psicanalítica da SPPA: Viviane Mondrzak, Alice Lewkowicz, Aldo Luiz Duarte, Anna Luiza Kauffmann, Eneida Iankilevich, Gisha Brodacz, Gustavo P. Soares, Luiz Ernesto Pellanda. INTRODUÇÃO O pensamento e a técnica psicanalítica evoluem constantemente, apesar de ainda se encontrar a idéia de que nada realmente mudou a partir de Freud e que continuamos basicamente com seus ensinamentos. A compreensão do funcionamento da mente, dos quadros regressivos, e a visão do processo psicanalítico têm marchado em direção a uma perspectiva da complexidade (Morin, 1991, Prigogine, 1996), tentando evitar simplificações que buscariam apenas nos tranqüilizar, assegurando que temos as explicações, à custa de amputar a riqueza dos processos psíquicos. Essa tem sido a tendência em todos os ramos da ciência: não evitar contradições e paradoxos, mesmo que para isto tenhamos que conter nossa eterna ânsia por segurança que as certezas parecem proporcionar. O conceito de determinismo psíquico foi essencial para a psicanálise em seus primórdios. Através dele Freud buscava, entre outros objetivos, afastá-la de misticismos e aproximá-la do campo das ciências, dentro de um modelo causa-efeito determinado. No entanto, mesmo quando justificava o determinismo dos processos psíquicos, não escapava a Freud (1917) a impossibilidade de que uma causa determinasse um efeito numa forma linear, direta. Em seu trabalho, A Interpretação de Sonhos, considerava que tudo o que ocorre no aparelho psíquico está totalmente determinado por elementos que a investigação psicanalítica poderia localizar, nada sendo arbitrário. Ao mesmo tempo, e em contradição a esta posição, reconhecia que não se pode estar totalmente seguro da apreensão de tudo o que está presente nos sonhos (Freud, 1900). Podemos encontrar, ao longo de toda obra de Freud, outros exemplos destas posições divergentes. A teoria da sobredeterminação constitui uma tentativa de Freud de sair das contradições que encontrava, mas mantendo o modelo determinista. Esta tentativa não vai solucionar o problema, já que a multideterminação não abrange, de maneira finita, todos os fatores causais presentes, trazendo complicações adicionais: se várias causas são responsáveis por determinado efeito, não temos como saber se detectamos todas as possíveis de estarem interferindo, chegando a uma inespecificidade total e paralisadora (Issaharoff, 1992). A equação etiológica, que apresenta a idéia de série complementar, também mantém a posição de uma causalidade essencialmente determinista. É difícil encontrar atualmente sustentação para a idéia de uma causalidade linear dos fenômenos psíquicos, mas vemos que esta ainda não é uma questão consensual, o que fica evidente na experiência clínica e quando nos deparamos com as discussões entre uma visão determinista e outra hermenêutica do trabalho psicanalítico. Nestas discussões estão implícitas divergências acerca de qual conceito de causalidade está sendo utilizado. Podemos considerar que o trabalho psicanalítico tem se alterado em função de uma perspectiva diferente das relações causa-efeito? Na prática, avançamos além da equação etiológica de Freud? Se não avançamos, isto seria necessário? Se concordarmos que a noção de causalidade não é mais a mesma, como fica o conceito de determinismo psíquico na psicanálise atual? E quanto ao trauma, tema que se relaciona diretamente com causalidade e determinismo, como situar este conceito e seu papel no corpo da psicanálise atual? E, intimamente ligado ao trauma, como pensar a noção do après-coup e temporalidade? São questões que obviamente não pretendemos responder, mas sim trazer o que temos refletido em nossos estudos e discussões. ALGUMAS NOÇÕES SOBRE CAUSALIDADE E DETERMINISMO O determinismo apresentou-se como uma reação ao pensamento religioso e influenciou todos os campos da ciência. Parte da idéia de que tudo o que acontece tem uma causa, os eventos sendo determinados por outros anteriores. As leis de Newton podem ser consideradas o ápice desta visão. Prever tornou-se sinônimo de ciência e determinar, garantia contra a insegurança. 2 Hume (1791) denunciou as falhas no raciocínio determinista, mostrando como as relações causa- efeito que estabelecemos correspondem a uma mera sucessão temporal de fenômenos e são fruto de um hábito psicológico que confundimos com uma relação causal. Essa relação provém inteiramente da experiência, quando descobrimos que certos objetos particulares acham-se constantemente conjugados uns aos outros. Assim, nenhum objeto revela jamais, pelas qualidades que aparecem aos sentidos, nem as causas que o produziram, nem os efeitos que dele provirão. Kant (1781) apresenta uma outra perspectiva, ao tirar do centro das discussões a realidade objetiva e colocar nesta posição o sujeito do conhecimento e as formas como conhecemos alguma coisa. Para ele, a percepção recebe dados da experiência que são organizados no espaço e no tempo, única maneira de conhecermos algo. Assim, a noção de causalidade seria um dos instrumentos racionais com o qual o sujeito do conhecimento organiza a realidade e a conhece. Kant não diz que a realidade, em si mesma, é espacial, temporal, causal. O que afirma é que a causalidade seria uma categoria a priori, necessária para tornar a experiência possível, pois só a concebemos em termos de causa e efeito. As palavras “causa” e “determinismo” podem ter vários significados, nem sempre definidos quando presentes em um texto ou discussão. A física moderna dá ao conceito de causalidade dois significados distintos e cientificamente precisos, um “forte” e outro “fraco”, reservando o termo “determinismo” ao sentido “forte”. Quando o sentido forte é usado, causalidade e determinismo tornam-se sinônimos; porém quando se adota a interpretação fraca, todo sistema determinista é causal, mas nem todo sistema causal é determinista. As leis da mecânica newtoniana se encaixam no tipo de causalidade forte, enquanto a mecânica quântica implica um conceito fraco de causalidade, incluindo a questão da probabilidade no cálculo do estado de um sistema e é, portanto, não determinista. PSICANÁLISE E DETERMINISMO – A POSIÇÃO DO TRAUMA A idéia de determinismo causal fez com que a mente humana também fosse entendida como um mecanismo de relógio e o inconsciente como o depósito de causas escondidas: todas estão ali, esperando para serem desvendadas e toda a aparência de probabilidade é fruto da nossa ignorância. 3 A teoria traumática das neuroses de Freud é exemplo de raciocínio causal e o início da psicanálise é marcado, através do determinismo psíquico, por uma causalidade forte. Vários desenvolvimentos foram feitos a respeito da noção de trauma desde então, inclusive por Freud, mas não é nosso objetivo focar esta trajetória. Mesmo havendo consenso de que determinados eventos externos representam sobrecarga para o psiquismo, a noção atual de trauma, na psicanálise, mostra-se centrada nas complexas relações entre eventos externos e internos e na capacidade da mente de processar os diversos estímulos (Tutté, 2004). Assim, o conceito perde em especificidade por um lado, já que qualquer fato pode ser traumático, dependendo de fatores individuais e circunstanciais; mas adquire especificidade na medida em que o trauma, para a psicanálise, passa a se referir muito mais ao funcionamento da mente e suas condições de processamento de estímulos. Dentro da visão da mente como um sistema complexo, funcionando de acordo com a teoria do caos, onde a ordem e a organização se dão a partir da desordem, eventos desorganizadores significativos contribuem para a complexificação do sistema, produzindo propriedades emergentes como a criatividade. (Mondrzak et all, 2003). “Trauma” corresponderia a um estímulo “desarranjador” que ultrapassa a capacidade da mente de avançar, levando a repetições estereotipadas (Galatzer-Levy, 2001). Este “desarranjo”, em termos de funcionamento do sistema psíquico, se traduziria por uma diminuição da instabilidade, levando o sistema para o equilíbrio, com um enrijecimento defensivo e perda de plasticidade e de condições de encontrar novas soluções. Assim, dentro desta linha de raciocínio, “trauma” seria qualquer evento, interno ou externo, que leve o sistema ao equilíbrio. Vemos que o sentido econômico de trauma permanece presente e atual, mas traz algumas implicações que relativizam o conceito. Ao considerar a idéia de uma mente afetada pela exposição a eventos excessivamente intensos, como poderíamos medir esta intensidade? A psicanálise disporia de instrumentos para a sua aferição? Apresentariam características, por si só, suficientes para legitimá-los como fatos traumáticos indiscutíveis? Como definir quais os tipos de perdas que consideraríamos significativas o suficiente para serem consideradas traumáticas em si mesmas, com toda gama de variações possíveis? A perda de pais na infância, sem dúvida um evento de extenso significado na vida de qualquer um, poderia ser considerada traumática a priori. Mas o que dizer de inúmeras situações de indivíduos expostos a perdas deste tipo e que se 4 desenvolvem tão bem, ou melhor, do que outros em quem não localizamos nenhum evento deste porte? Talvez a variabilidade das condições individuais tenha algo a nos dizer a este respeito. E o traumático nas perdas, consistiria nas perdas em si ou “no entorno” destas perdas? Considerando o caso da morte da mãe de uma criança pequena, por exemplo, o fato traumático corresponderia à perda precoce da mãe ou às condições mentais do adulto que ocupará seu lugar no cuidado da criança? Estas são algumas questões que relativizam a consideração de perda em si como trauma. Teríamos, portanto, que considerar a diferenciação entre significativo e traumático. Com qual destes sentidos, de fato, lidamos? Como a psicanálise pode, efetivamente, acessar ao traumático da vida mental do paciente? Através da consideração apriorística do fato traumático ou através do que foi ou é emocionalmente significativo e que só pode ser percebido através da transferência/contratransferência? A história da psicanálise evoluiu de modo a englobar, progressiva e irreversivelmente, os afetos, significados e representações ao seu corpo teórico e clínico, alijando a factualidade de sua condição central. Causalidade e determinismo tendem a ser considerados dentro do contexto que privilegia o significado ao invés do fato. Sendo assim, cabe questionar qual a especificidade do conceito de trauma no pensamento psicanalítico atual e qual sua utilidade clínica, principalmente se trabalhamos com um modelo de funcionamento mental que enfatiza as formas como cada um processa experiências emocionais. Em última instância procuraríamos conhecer este funcionamento e, portanto, o que pode ser considerado traumático nesse sentido, o que só seria possível através do que o método psicanalítico centraliza, a experiência emocional percebida na transferência/contratransferência. EQUAÇÃO ETIOLÓGICA E CAUSALIDADE De alguma forma, a equação etiológica de Freud contempla os elementos que ainda poderiam ser considerados essenciais: o constitucional, as experiências infantis e as várias experiências ao longo da vida do indivíduo. No entanto, a forma como ela é apresentada não destaca as complexas relações entre estes fatores, como um interage e pode modificar o 5 outro, dando a impressão de que poderíamos estar diante de uma adição simples cujo resultado poderia ser determinado com precisão. Dentro da psicanálise atual, poderíamos pensar em acrescentar complexidade à nossa tão cara equação? Mantê-la em sua essência, que permanece atual, mas pensando nela de uma forma menos cartesiana? Tomando a forma geral, (neurose = constituição + vivencias infantis + situação atual) para facilitar, façamos a notação como segue: N=C+I+A. Sabemos que hereditariedade não é expressão automática do conjunto dos genes, mas depende de como eles interagem entre si e com as circunstâncias locais (presença ou ausência de determinados elementos, etc.), num interjogo que só pode ser classificado como “complexo”. Vivências infantis dependem não apenas das circunstâncias pessoais (condições iniciais) como também da maior ou menor suscetibilidade do sistema psíquico aos estímulos vividos pelo sujeito, logo, algo também extremamente “complexo”. Idem para situação atual ou desencadeante, evento significativo igualmente complexo, especialmente por força de seus componentes inconscientes. Em matemática diz-se que um número é complexo quando pode ser representado pelo binômio “z=a+bi” onde “i” é a unidade imaginaria (!), raiz quadrada de menos um (√-1), ou seja, não existe nenhum numero que multiplicado por ele mesmo resulte em “menos um”, de onde é necessário “imaginar” um para permitir certo tipo de cálculos. Poderíamos então representar nossa fórmula do seguinte modo: SPi= Ci+Ii+Ai onde “SP” é o sistema psíquico, aberto aos estímulos vividos pelo sujeito e o “i” representa essa porção de imaginário, de inconsciente, que complexifica o entendimento do enunciado e abre o espaço para admitir a possibilidade da incompletude do saber. Além disso, o resultado desta complexa equação seria o surgimento de propriedades emergentes, com características que vão muito adiante do somatório de cada elemento constituinte. 6 Seria também importante que pudéssemos avaliar como a psicanálise tem pensado a causalidade psíquica, desvinculada da noção de trauma. Bion, que nunca usou a palavra “trauma”, mesmo ao relatar experiências de guerra, preocupou-se com este tema, principalmente no período em que esteve mais voltado para as questões epistemológicas. Usou o conceito de conjunção constante de Hume para referir-se a uma experiência emocional que relaciona o material do paciente dentro de uma perspectiva temporal; e o de fato selecionado de Poincaré para a experiência emocional de sentido entre elementos dispersos que pode resultar numa hipótese generalizadora, excluindo o fator temporal. Independente desta diferenciação, Bion (1959) destaca que este momento de união entre elementos antes dispersos origina um sentimento de se ter encontrado uma causa. Na linha de Kant, isto não significa que exista uma relação causal entre objetos em si mesmo, mas sim que são sentidos e pensados como relacionados. Bion chama atenção para a diferença entre relação de causa e efeito como característica intrínseca aos fenômenos e a experiência de pensarmos estes fenômenos como tendo relação de causa e efeito. Quando dizemos que ataques destrutivos levam a uma fragmentação do objeto não estamos dizendo que causam fragmentação, mas que se o indivíduo faz ataques destrutivos na sua fantasia, isto não se dá sem que esteja associada a idéia do objeto fragmentado. Remete, portanto, para o modo como a mente pode conhecer alguma coisa, estabelecendo vínculos ou, como dizia MatteBlanco (1975), formando proposições que estabelecem tríades: um objeto, outro objeto e a relação entre eles. Ao referir-se ao conceito de fato selecionado, Bion cita diretamente Poincaré: “precisamos unir elementos conhecidos mas até então dispersos e aparentemente estranhos uns aos outros e introduzir ordem onde reinava a aparência de desordem ; este novo fato confere um valor aos velhos fatos que ele une. Nossa mente é tão frágil quanto nossos sentidos e se perderia na complexidade do mundo se tal complexidade não fosse harmoniosa, enxergaria apenas os detalhes e seria obrigada a esquecer cada um deles antes de examinar o seguinte. São dignos de atenção estes fatos que introduzem ordem dentro dessa complexidade, tornando-a acessível para nós.” (Bion, 1959, p.16). Dessa perspectiva podemos considerar uma determinada seqüência: o analista observa uma massa de elementos dispersos procurando o fato 7 selecionado, um fato unificador, esperando-se que o analista esteja capacitado a selecionar o fato digno de atenção, usando, para isto, sua intuição da experiência emocional. Este momento de união origina um sentimento de se ter encontrado uma causa. Este é um processo ideacional, simbólico, que depende da seleção do observador e o observador psicanalista deve poder fazer uma determinada seleção diferente de um amigo, ou de um religioso, por exemplo, baseando-se em sua capacidade de perceber intuitivamente a experiência emocional da sessão. No entanto, isto não o autoriza a supor que exista uma relação causal entre os elementos em si, mas sim que só podemos conhecê-los através do estabelecimento de relações entre eles. Para Poincaré (1995), “uma sensação é bela não porque possui determinada qualidade, mas porque ocupa determinado lugar na trama de nossas associações de idéias”. (p.166) Portanto, é fundamental a maneira como o analista vai lidar com a experiência de encontrar uma causa: se isto é vivido de forma onipotente, temos uma postura determinista, que se acompanha da crença de ter descoberto a verdade e a busca de causas correspondendo a uma investigação criminal que procura achar culpados e estabelecer punições; se, junto com a experiência de encontrar em sentido, se mantiver a noção de que encontramos um sistema coerente, mas que não precisa corresponder a nenhuma realidade objetiva, trabalhamos com uma causalidade “humilde”. O que não significa nenhum julgamento de valor, este conhecimento parcial e limitado pela natureza humana não pode ser desqualificado por não ser absoluto e ser o possível de conhecer. O TRAUMA, O APRÈS-COUP E A TEMPORALIDADE Ao discutirmos trauma e causalidade, vemos que a introdução de Freud da noção de aprés-coup, do trauma em dois tempos, nos coloca diante de uma questão diretamente ligada ao tema e importante na psicanálise, não só na teoria, mas principalmente no processo psicanalítico: o tempo. O pensamento complexo pressupõe a irreversibilidade do tempo: um sistema natural é aberto e irreversível, tudo está em contínua modificação e a linha do tempo só tem um sentido, do presente para o futuro. Esta noção de irreversibilidade do tempo em sistemas longe do equilíbrio foi desenvolvida por Prigogine (1996), que mostrou como estes sistemas têm a capacidade de 8 se auto-organizar a partir da desordem, sem interferência externa, e necessariamente de uma maneira nova, nunca retornando ao estado anterior. Para a psicanálise, esta idéia do tempo irreversível é essencial. Grande parte do nosso trabalho com os pacientes procura possibilitar o abandono das fantasias narcísicas, o que implica a aceitação da passagem do tempo, das diferenças geracionais, da impossibilidade de se voltar ao passado ou prever o futuro, da inevitabilidade da morte. No entanto, a necessidade de considerarmos um tempo retroativo costuma ser destacada para justificar as possibilidades de ação terapêutica da psicanálise. Através da noção clássica de après-coup, fica implícita a idéia de que podemos, do presente, agir sobre o passado, dando-lhe significado ou ressignificando-o. Este movimento pressuporia um tempo reversível, o que só poderia ser concebido em termos metafóricos. Só temos acesso ao que é presente, mesmo quando sob a forma de lembranças que parecem passadas, mas que correspondem à forma como as vivemos no momento atual. Esta parece ser a via que torna possível a ação terapêutica da psicanálise, o fato de podermos, através da experiência emocional da sessão, perceber como toda história do indivíduo se sintetiza na transferência que, a cada momento, é diferente e atual, mesmo que com padrões repetitivos. Além disso, apesar das inúmeras discussões sobre o conceito de après-coup (Green, 2001, Breen, 2003), a noção de conteúdos que permanecem inalterados no sistema psíquico, esperando um novo significado (ou um primeiro significado), está presente. Mas podemos considerar que algo permaneça estático na mente, sem interferência da passagem do tempo? Se considerarmos a mente como um sistema complexo, podemos identificar a presença de padrões (fractais) que se repetem em sua essência, mas nunca exatamente iguais. O conceito de transformações e invariância de Bion corresponde a esta visão de sistema complexo, na medida em que entende os fenômenos psíquicos como algo em constante evolução, nunca reproduzíveis - uma transformação caleidoscópica – cujo limite último, infinito, é “O”, mas com características que se mantêm, como os fractais. A noção de Winnicott do medo do colapso que, de fato, já ocorreu, descreve a maneira como a experiência analítica “se torna” o trauma e possibilita termos o passado presentificado e acessível através da transferência (Breen, 2003). Mas, mesmo aqui, é importante ficar claro que não temos acesso ao passado. A organização temporal é um recurso do pensamento lógico. Numa sessão só podemos apreender o objeto do momento, que traz embutido todo passado traumático compreendido aqui no 9 sentido de tudo que chegou ao presente sem a possibilidade de acompanhar o desenvolvimento do indivíduo, o que não quer dizer sem nenhuma modificação. É importante salientar ainda que, nesta visão da mente como um sistema complexo, longe do equilíbrio, a idéia implícita no conceito de aprés-coup, de que poderíamos reconstituir os elementos passados que deram origem à condição atual do paciente, não se sustenta. A linha irreversível do tempo, não é linear, há inúmeros momentos de bifurcação que não podem ser reconstituídos retrospectivamente. Precisamos, no entanto, ter presente que o paciente chega com uma visão determinista acerca dos motivos de seus problemas, e sua estrutura defensiva luta contra a irreversibilidade, fixando modelos e padrões, evitando a percepção e o reconhecimento da passagem do tempo e das modificações. Nosso trabalho procura de alguma forma, recuperar a possibilidade de que o curso das transformações criativas possa ser retomado. PARA TERMINAR A linha que procuramos seguir, neste trabalho, parte do pressuposto de que é importante o processo de revisão dos conceitos da teoria psicanalítica, inserido na rede de discussões e controvérsias do pensamento científico atual. Este processo é necessário não apenas formalmente, mas por atender à complexidade da clínica. Assim, procuramos rever alguns desses conceitos interrelacionados: trauma, causalidade e tempo. Reconhecemos ter podido apenas tangenciar estas relações, sempre tendo presente uma visão da mente como um sistema complexo. Talvez não seja possível (e nem necessário), pela própria estrutura da mente humana, que a psicanálise possa trabalhar sem a noção de causalidade. No entanto, o objeto de observação do psicanalista é a realidade psíquica, tornando necessário que possamos usar uma percepção intuitiva, que percebe sem a intermediação da razão. Na proposta de Bion da observação sem memória e sem desejo e na de Matte-Blanco do afrouxamento das cadeias lógicas, está implícita esta visão. Mas, no momento de formular uma interpretação, nossa mente necessita das noções lógicas. Parece importante é que esta noção corresponda à busca de um sentido e de alguma relação entre os fatos psíquicos, objeto de nosso 10 trabalho, e que se afaste da crença de que corresponda a uma relação causal determinista. A diferença nesta perspectiva define desde que posição o analista vai formular sua interpretação: se como quem anuncia uma verdade ou como quem estabelece conexões dentro de um sistema que consideramos complexo, formado por uma teia infinita de relações. Nesta perspectiva, procuramos questionar a importância do conceito de trauma para o corpo teórico atual da psicanálise, principalmente por sua conotação determinista implícita. A questão da temporalidade, ligada ao trauma e à própria ação terapêutica da psicanálise, foi abordada apenas na revisão do conceito de aprés-coup, dentro da visão do tempo irreversível, característico dos sistemas complexos, fora do equilíbrio, forma como pensamos o funcionamento psíquico. O psicanalista, a nosso ver, há que se contentar com a tentativa de apreensão e compreensão da experiência psíquica presente, a da sessão, buscando, ao fazer parte deste momento presente, participar dos infinitos elementos que constituem os também infinitos eventos psíquicos do paciente e, quem sabe, influenciar o imprevisível futuro do psiquismo alheio. Referências bibliográficas BERNARDI, R. Sobre el determinismo psíquico. Revista uruguaya de Psicoanálisis, n.81. 1995. BION, W. R. (1959) Método científico. Cogitações. Rio de Janeiro, Imago editora, 2000, p. 16-36. BIRKSTED-BREEN, D. Time and the après-coup. Int J Psychoanal, v.84, n.6, p.1501-1515, 2003. FREUD, S. (1917) Os caminhos da formação de sintomas. In: Edição Standard Brasileira das Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago Editora Ltda., 1976. -------------- (1930) O Mal-Estar na civilização. In: Edição Standard Brasileira das Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago Editora Ltda., 1974. GALATZER-LEVY, R. M. Chaotic possibilities. Int J Psychoanal, v.85, n.2, 2004. 11 GREEN, A. El tiempo fragmentado. Buenos Aires, Amorrurtu editores, 2001. HUME, D. (1751) Investigação sobre o entendimento humano. Lisboa, edições 70, 1998. ISSAHAROFF, E. La creencia em el determinismo y la causalidad em causalidad em psicoanalisis. Psicoanalisis APdeBA. V. XIV, n.3, 1992. KANT, I. (1781) Crítica da razão Pura. São Paulo, Martin Claret, 2002. MATTE-BLANCO, I. The Unconscious as Infinite Sets. Londres, Duckworth, 1975. MONDRZAK et allii. O inconsciente na perspectiva da complexidade e do caos: uma abordagem inicial. Revista de psicanálise, v.X, n.3, dezembro de 2003. MORIN, E. (1991) Introdução ao Pensamento Complexo. Lisboa: Instituto Piaget POINCARÉ, H. O valor da ciência. Rio de Janeiro, Contraponto Editora Ltda., 1995. PRIGOGINE, I. O fim das certezas. São Paulo, editora UNESP, 1996. TUTTÉ, J.C. The concept of psychical trauma: A bridge in interdisciplinary space. Int. J. Psychoanal., 85(4) 897-921, 2004. WINNICOTT, D. W.W. O medo do colapso. Explorações psicanalíticas D. W. Winnicott. Porto Alegre, Artes Médicas, 1994. ABSTRACT Partindo do estudo e discussões do grupo de Epistemologia da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, o trabalho propõe-se a correlacionar as noções de determinismo psíquico com a concepção de trauma e temporalidade, a partir de uma perspectiva da mente como um sistema complexo. Parte de breves considerações sobre o conceito de determinismo psíquico, procurando expandir a discussão sobre causalidade, destacando principalmente as idéias de Kant sobre as formas da mente humana conhecer algo e as contribuições de Bion que utiliza o conceito de fato selecionado de Poincaré para indicar o 12 momento de união entre elementos antes dispersos. Este movimento origina um sentimento de ter se encontrado uma causa mas, na linha de Kant, isto não significa que exista uma relação causal entre objetos em si mesmo, mas sim, que são sentidos e pensados como relacionados. Assim pode-se pensar que o analista observa uma massa de elementos dispersos procurando o fato selecionado, que introduz ordem dentro dessa complexidade, esperando-se que o analista esteja capacitado a selecionar o fato digno de atenção, usando para isto, sua intuição da experiência emocional. Este momento de união origina um sentimento de ter se encontrado uma causa. Este é um processo ideacional, simbólico, que depende da seleção do observador e o observador psicanalista deve poder fazer uma seleção diferente de um amigo, ou de um religioso, baseando-se na experiência emocional da sessão. No entanto, isto não o autoriza a supor que exista uma relação causal entre os elementos em si, mas sim, que só podemos conhecê-los através do estabelecimento de relações entre eles. Portanto, é fundamental a maneira como o analista vai lidar com a experiência de encontrar uma causa: se isto é vivido de forma onipotente, temos uma postura determinista, que se acompanha da crença de ter descoberto a verdade; se mantiver a noção de ter encontrado um sentido que não precisa corresponder a nenhuma realidade objetiva, trabalhamos com uma causalidade “humilde”. O trabalho busca, a seguir, situar o trauma, historicamente relacionado a determinismo, no corpo da psicanálise atual. Esta, ao privilegiar a experiência emocional, em detrimento de eventos factuais, leva à necessidade de repensar-se a utilidade e o conceito de trauma. Da mesma forma, à luz dos desenvolvimentos atuais, a equação etiológica freudiana é revisitada, propondo que se inclua um fator “i” (a partir de imaginativo), correspondendo a um elemento de complexidade. A questão da temporalidade, ligada ao trauma e à própria ação terapêutica da psicanálise é abordada dentro da visão de tempo irreversível, característico dos sistemas complexos, fora do equilíbrio, forma como pensamos o funcionamento psíquico. RESUMO 13 Partindo do estudo e discussões do grupo de Epistemologia da SPPA, o trabalho propõe-se a correlacionar as noções de determinismo psíquico com a concepção de trauma e temporalidade, a partir de uma perspectiva da mente como um sistema complexo. Parte de breves considerações sobre o conceito de determinismo psíquico, procurando expandir a discussão sobre a noção de causalidade. Busca, a seguir, situar o trauma no corpo da psicanálise atual. Esta, ao privilegiar a experiência emocional, em detrimento de eventos factuais, leva à necessidade de repensar-se a utilidade e o conceito de trauma. Da mesma forma, à luz dos desenvolvimentos atuais, a equação etiológica freudiana é revisitada, propondo que se inclua um fator “i” (a partir de imaginativo), correspondendo a um elemento de complexidade. A questão da temporalidade, ligada ao trauma e à própria ação terapêutica da psicanálise é abordada dentro da visão de tempo irreversível, característico dos sistemas complexos, fora do equilíbrio, forma como pensamos o funcionamento psíquico. English Abstract and Summary TRAUMA, CAUSALITY AND TIME: SOME REFLECTIONS Epistemology Study Group of the Porto Alegre Psychoanalytical Society: Viviane Mondrzak, Alice Lewkowicz, Aldo Luiz Duarte, Anna Luiza Kauffmann, Eneida Iankilevich, Gisha Brodacz, Gustavo P. Soares, Luiz Ernesto Pellanda. ABSTRACT Based on the studies and discussions of the Epistemology Study Group of the Porto Alegre Psychoanalytical Society, the proposal of this work is to correlate the notions of psychic determinism with the concept of trauma and temporality, from a perspective of the mind as a complex system. Beginning with brief considerations of the concept of psychic determinism, aiming to expand the discussion on causality, principally 14 highlighting Kant’s ideas of the ways of the human mind to know about something, and with the contributions of Bion that uses the concept of fact selected from Poincaré to indicate the moment of union between elements previously dispersed. This movement initiates a feeling of having found a cause, however, according to Kant, this does not mean that a causal relation exists between objects themselves, but they are felt and thought of as related. Thus it can be thought that the analyst observes a mass of dispersed elements looking for the selected fact, hoping that the analyst is able to select the proper fact of attention, using his intuition of emotional experience. This moment of union initiates a feeling of having found a cause. This is a rational symbolic process that depends on the selection of the observer, and the psychoanalyst observer must make a different selection from that of a friend or of a religious person, based on the emotional experience of the session. However, this does not authorize him to suppose that there is a causal relation between the elements themselves, but that we can only recognize them by establishing relations among them. Therefore, the way in which the analyst deals with the experience of finding a cause is fundamental: if this is experienced as an omnipotent form we have a determinist posture that is accompanied by the belief of having discovered the truth; if the notion of having found a meaning that does not need to correspond to any objective reality is maintained, then we are working with a “humble” causality. The work then aims to situate trauma, historically related with determinism, in the body of contemporary psychoanalysis. This, to privilege the emotional experience to the detriment of factual events, brings the need to rethink the usefulness and the concept of trauma. In the same way, in the light of recent developments, the Freudian etiologic equation is revisited, proposing that an “i” factor be included (from imaginative), corresponding to an element of complexity. The question of temporality, connected with trauma and the therapeutic actions of psychoanalysis, is approached within a vision of irreversible time, characteristic of complex systems, out of balance, the way that we think the psychic functioning. SUMMARY Based on the studies and discussions of the Epistemology Study Group of the Porto Alegre Psychoanalytical Society, the proposal of this work is to correlate the notions of psychic determinism with the concept of 15 trauma and temporality, from a perspective of the mind as a complex system. The work begins with brief considerations of the concept of psychic determinism and aims to expand the discussion on causality. The work then aims to situate trauma in the body of contemporary psychoanalysis. This, to privilege the emotional experience to the detriment of factual events, brings the need to rethink the usefulness and the concept of trauma. In the same way, in the light of recent developments, the Freudian etiologic equation is revisited, proposing that an “i” factor be included (from imaginative), corresponding to an element of complexity. The question of temporality, connected with trauma and the therapeutic actions of psychoanalysis, is approached within a vision of irreversible time, characteristic of complex systems, out of balance, the way that we think the psychic functioning. 16