trauma e causalidade

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TRAUMA, CAUSALIDADE E TEMPO: ALGUMAS REFLEXÕES
Grupo de estudos de epistemologia psicanalítica da SPPA: Viviane
Mondrzak, Alice Lewkowicz, Aldo Luiz Duarte, Anna Luiza Kauffmann,
Eneida Iankilevich, Gisha Brodacz, Gustavo P. Soares, Luiz Ernesto
Pellanda.
INTRODUÇÃO
O pensamento e a técnica psicanalítica evoluem constantemente,
apesar de ainda se encontrar a idéia de que nada realmente mudou a partir de
Freud e que continuamos basicamente com seus ensinamentos. A
compreensão do funcionamento da mente, dos quadros regressivos, e a visão
do processo psicanalítico têm marchado em direção a uma perspectiva da
complexidade (Morin, 1991, Prigogine, 1996), tentando evitar
simplificações que buscariam apenas nos tranqüilizar, assegurando que
temos as explicações, à custa de amputar a riqueza dos processos psíquicos.
Essa tem sido a tendência em todos os ramos da ciência: não evitar
contradições e paradoxos, mesmo que para isto tenhamos que conter nossa
eterna ânsia por segurança que as certezas parecem proporcionar.
O conceito de determinismo psíquico foi essencial para a
psicanálise em seus primórdios. Através dele Freud buscava, entre outros
objetivos, afastá-la de misticismos e aproximá-la do campo das ciências,
dentro de um modelo causa-efeito determinado. No entanto, mesmo quando
justificava o determinismo dos processos psíquicos, não escapava a Freud
(1917) a impossibilidade de que uma causa determinasse um efeito numa
forma linear, direta. Em seu trabalho, A Interpretação de Sonhos,
considerava que tudo o que ocorre no aparelho psíquico está totalmente
determinado por elementos que a investigação psicanalítica poderia
localizar, nada sendo arbitrário. Ao mesmo tempo, e em contradição a esta
posição, reconhecia que não se pode estar totalmente seguro da apreensão de
tudo o que está presente nos sonhos (Freud, 1900). Podemos encontrar, ao
longo de toda obra de Freud, outros exemplos destas posições divergentes.
A teoria da sobredeterminação constitui uma tentativa de Freud de sair
das contradições que encontrava, mas mantendo o modelo determinista. Esta
tentativa não vai solucionar o problema, já que a multideterminação não
abrange, de maneira finita, todos os fatores causais presentes, trazendo
complicações adicionais: se várias causas são responsáveis por determinado
efeito, não temos como saber se detectamos todas as possíveis de estarem
interferindo, chegando a uma inespecificidade total e paralisadora
(Issaharoff, 1992). A equação etiológica, que apresenta a idéia de série
complementar, também mantém a posição de uma causalidade
essencialmente determinista.
É difícil encontrar atualmente sustentação para a idéia de uma
causalidade linear dos fenômenos psíquicos, mas vemos que esta ainda não é
uma questão consensual, o que fica evidente na experiência clínica e quando
nos deparamos com as discussões entre uma visão determinista e outra
hermenêutica do trabalho psicanalítico. Nestas discussões estão implícitas
divergências acerca de qual conceito de causalidade está sendo utilizado.
Podemos considerar que o trabalho psicanalítico tem se alterado em
função de uma perspectiva diferente das relações causa-efeito? Na prática,
avançamos além da equação etiológica de Freud? Se não avançamos, isto
seria necessário? Se concordarmos que a noção de causalidade não é mais
a mesma, como fica o conceito de determinismo psíquico na psicanálise
atual?
E quanto ao trauma, tema que se relaciona diretamente com
causalidade e determinismo, como situar este conceito e seu papel no corpo
da psicanálise atual? E, intimamente ligado ao trauma, como pensar a noção
do après-coup e temporalidade? São questões que obviamente não
pretendemos responder, mas sim trazer o que temos refletido em nossos
estudos e discussões.
ALGUMAS NOÇÕES SOBRE CAUSALIDADE E DETERMINISMO
O determinismo apresentou-se como uma reação ao pensamento
religioso e influenciou todos os campos da ciência. Parte da idéia de que
tudo o que acontece tem uma causa, os eventos sendo determinados por
outros anteriores. As leis de Newton podem ser consideradas o ápice desta
visão. Prever tornou-se sinônimo de ciência e determinar, garantia contra a
insegurança.
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Hume (1791) denunciou as falhas no raciocínio determinista,
mostrando como as relações causa- efeito que estabelecemos correspondem
a uma mera sucessão temporal de fenômenos e são fruto de um hábito
psicológico que confundimos com uma relação causal. Essa relação provém
inteiramente da experiência, quando descobrimos que certos objetos
particulares acham-se constantemente conjugados uns aos outros. Assim,
nenhum objeto revela jamais, pelas qualidades que aparecem aos sentidos,
nem as causas que o produziram, nem os efeitos que dele provirão.
Kant (1781) apresenta uma outra perspectiva, ao tirar do centro das
discussões a realidade objetiva e colocar nesta posição o sujeito do
conhecimento e as formas como conhecemos alguma coisa. Para ele, a
percepção recebe dados da experiência que são organizados no espaço e no
tempo, única maneira de conhecermos algo. Assim, a noção de causalidade
seria um dos instrumentos racionais com o qual o sujeito do conhecimento
organiza a realidade e a conhece. Kant não diz que a realidade, em si mesma,
é espacial, temporal, causal. O que afirma é que a causalidade seria uma
categoria a priori, necessária para tornar a experiência possível, pois só a
concebemos em termos de causa e efeito.
As palavras “causa” e “determinismo” podem ter vários significados,
nem sempre definidos quando presentes em um texto ou discussão. A física
moderna dá ao conceito de causalidade dois significados distintos e
cientificamente precisos, um “forte” e outro “fraco”, reservando o termo
“determinismo” ao sentido “forte”. Quando o sentido forte é usado,
causalidade e determinismo tornam-se sinônimos; porém quando se adota a
interpretação fraca, todo sistema determinista é causal, mas nem todo
sistema causal é determinista. As leis da mecânica newtoniana se encaixam
no tipo de causalidade forte, enquanto a mecânica quântica implica um
conceito fraco de causalidade, incluindo a questão da probabilidade no
cálculo do estado de um sistema e é, portanto, não determinista.
PSICANÁLISE E DETERMINISMO – A POSIÇÃO DO TRAUMA
A idéia de determinismo causal fez com que a mente humana também
fosse entendida como um mecanismo de relógio e o inconsciente como o
depósito de causas escondidas: todas estão ali, esperando para serem
desvendadas e toda a aparência de probabilidade é fruto da nossa ignorância.
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A teoria traumática das neuroses de Freud é exemplo de raciocínio causal e o
início da psicanálise é marcado, através do determinismo psíquico, por uma
causalidade forte. Vários desenvolvimentos foram feitos a respeito da noção
de trauma desde então, inclusive por Freud, mas não é nosso objetivo focar
esta trajetória.
Mesmo havendo consenso de que determinados eventos externos
representam sobrecarga para o psiquismo, a noção atual de trauma, na
psicanálise, mostra-se centrada nas complexas relações entre eventos
externos e internos e na capacidade da mente de processar os diversos
estímulos (Tutté, 2004). Assim, o conceito perde em especificidade por um
lado, já que qualquer fato pode ser traumático, dependendo de fatores
individuais e circunstanciais; mas adquire especificidade na medida em que
o trauma, para a psicanálise, passa a se referir muito mais ao funcionamento
da mente e suas condições de processamento de estímulos. Dentro da visão
da mente como um sistema complexo, funcionando de acordo com a teoria
do caos, onde a ordem e a organização se dão a partir da desordem, eventos
desorganizadores significativos contribuem para a complexificação do
sistema, produzindo propriedades emergentes como a criatividade.
(Mondrzak et all, 2003). “Trauma” corresponderia a um estímulo
“desarranjador” que ultrapassa a capacidade da mente de avançar, levando a
repetições estereotipadas (Galatzer-Levy, 2001). Este “desarranjo”, em
termos de funcionamento do sistema psíquico, se traduziria por uma
diminuição da instabilidade, levando o sistema para o equilíbrio, com um
enrijecimento defensivo e perda de plasticidade e de condições de encontrar
novas soluções. Assim, dentro desta linha de raciocínio, “trauma” seria
qualquer evento, interno ou externo, que leve o sistema ao equilíbrio.
Vemos que o sentido econômico de trauma permanece presente e
atual, mas traz algumas implicações que relativizam o conceito. Ao
considerar a idéia de uma mente afetada pela exposição a eventos
excessivamente intensos, como poderíamos medir esta intensidade? A
psicanálise disporia de instrumentos para a sua aferição? Apresentariam
características, por si só, suficientes para legitimá-los como fatos
traumáticos indiscutíveis? Como definir quais os tipos de perdas que
consideraríamos significativas o suficiente para serem consideradas
traumáticas em si mesmas, com toda gama de variações possíveis? A perda
de pais na infância, sem dúvida um evento de extenso significado na vida de
qualquer um, poderia ser considerada traumática a priori. Mas o que dizer de
inúmeras situações de indivíduos expostos a perdas deste tipo e que se
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desenvolvem tão bem, ou melhor, do que outros em quem não localizamos
nenhum evento deste porte? Talvez a variabilidade das condições individuais
tenha algo a nos dizer a este respeito. E o traumático nas perdas, consistiria
nas perdas em si ou “no entorno” destas perdas? Considerando o caso da
morte da mãe de uma criança pequena, por exemplo, o fato traumático
corresponderia à perda precoce da mãe ou às condições mentais do adulto
que ocupará seu lugar no cuidado da criança? Estas são algumas questões
que relativizam a consideração de perda em si como trauma.
Teríamos, portanto, que considerar a diferenciação entre significativo
e traumático. Com qual destes sentidos, de fato, lidamos? Como a
psicanálise pode, efetivamente, acessar ao traumático da vida mental do
paciente? Através da consideração apriorística do fato traumático ou através
do que foi ou é emocionalmente significativo e que só pode ser percebido
através da transferência/contratransferência? A história da psicanálise
evoluiu de modo a englobar, progressiva e irreversivelmente, os afetos,
significados e representações ao seu corpo teórico e clínico, alijando a
factualidade de sua condição central. Causalidade e determinismo tendem a
ser considerados dentro do contexto que privilegia o significado ao invés do
fato.
Sendo assim, cabe questionar qual a especificidade do conceito de
trauma no pensamento psicanalítico atual e qual sua utilidade clínica,
principalmente se trabalhamos com um modelo de funcionamento mental
que enfatiza as formas como cada um processa experiências emocionais. Em
última instância procuraríamos conhecer este funcionamento e, portanto, o
que pode ser considerado traumático nesse sentido, o que só seria possível
através do que o método psicanalítico centraliza, a experiência emocional
percebida na transferência/contratransferência.
EQUAÇÃO ETIOLÓGICA E CAUSALIDADE
De alguma forma, a equação etiológica de Freud contempla os
elementos que ainda poderiam ser considerados essenciais: o constitucional,
as experiências infantis e as várias experiências ao longo da vida do
indivíduo. No entanto, a forma como ela é apresentada não destaca as
complexas relações entre estes fatores, como um interage e pode modificar o
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outro, dando a impressão de que poderíamos estar diante de uma adição
simples cujo resultado poderia ser determinado com precisão.
Dentro da psicanálise atual, poderíamos pensar em acrescentar
complexidade à nossa tão cara equação? Mantê-la em sua essência, que
permanece atual, mas pensando nela de uma forma menos cartesiana?
Tomando a forma geral, (neurose = constituição + vivencias infantis +
situação atual) para facilitar, façamos a notação como segue:
N=C+I+A.
Sabemos que hereditariedade não é expressão automática do conjunto
dos genes, mas depende de como eles interagem entre si e com as
circunstâncias locais (presença ou ausência de determinados elementos,
etc.), num interjogo que só pode ser classificado como “complexo”.
Vivências infantis dependem não apenas das circunstâncias pessoais
(condições iniciais) como também da maior ou menor suscetibilidade do
sistema psíquico aos estímulos vividos pelo sujeito, logo, algo também
extremamente “complexo”. Idem para situação atual ou desencadeante,
evento significativo igualmente complexo, especialmente por força de seus
componentes inconscientes.
Em matemática diz-se que um número é complexo quando pode ser
representado pelo binômio “z=a+bi” onde “i” é a unidade imaginaria (!), raiz
quadrada de menos um (√-1), ou seja, não existe nenhum numero que
multiplicado por ele mesmo resulte em “menos um”, de onde é necessário
“imaginar” um para permitir certo tipo de cálculos.
Poderíamos então representar nossa fórmula do seguinte modo:
SPi= Ci+Ii+Ai
onde “SP” é o sistema psíquico, aberto aos estímulos vividos pelo sujeito e o
“i” representa essa porção de imaginário, de inconsciente, que complexifica
o entendimento do enunciado e abre o espaço para admitir a possibilidade da
incompletude do saber. Além disso, o resultado desta complexa equação
seria o surgimento de propriedades emergentes, com características que vão
muito adiante do somatório de cada elemento constituinte.
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Seria também importante que pudéssemos avaliar como a psicanálise
tem pensado a causalidade psíquica, desvinculada da noção de trauma.
Bion, que nunca usou a palavra “trauma”, mesmo ao relatar
experiências de guerra, preocupou-se com este tema, principalmente no
período em que esteve mais voltado para as questões epistemológicas. Usou
o conceito de conjunção constante de Hume para referir-se a uma
experiência emocional que relaciona o material do paciente dentro de uma
perspectiva temporal; e o de fato selecionado de Poincaré para a experiência
emocional de sentido entre elementos dispersos que pode resultar numa
hipótese generalizadora, excluindo o fator temporal. Independente desta
diferenciação, Bion (1959) destaca que este momento de união entre
elementos antes dispersos origina um sentimento de se ter encontrado uma
causa. Na linha de Kant, isto não significa que exista uma relação causal
entre objetos em si mesmo, mas sim que são sentidos e pensados como
relacionados. Bion chama atenção para a diferença entre relação de causa e
efeito como característica intrínseca aos fenômenos e a experiência de
pensarmos estes fenômenos como tendo relação de causa e efeito. Quando
dizemos que ataques destrutivos levam a uma fragmentação do objeto não
estamos dizendo que causam fragmentação, mas que se o indivíduo faz
ataques destrutivos na sua fantasia, isto não se dá sem que esteja associada a
idéia do objeto fragmentado. Remete, portanto, para o modo como a mente
pode conhecer alguma coisa, estabelecendo vínculos ou, como dizia MatteBlanco (1975), formando proposições que estabelecem tríades: um objeto,
outro objeto e a relação entre eles. Ao referir-se ao conceito de fato
selecionado, Bion cita diretamente Poincaré:
“precisamos unir elementos conhecidos mas até então dispersos
e aparentemente estranhos uns aos outros e introduzir ordem onde
reinava a aparência de desordem ; este novo fato confere um valor
aos velhos fatos que ele une. Nossa mente é tão frágil quanto
nossos sentidos e se perderia na complexidade do mundo se tal
complexidade não fosse harmoniosa, enxergaria apenas os detalhes
e seria obrigada a esquecer cada um deles antes de examinar o
seguinte. São dignos de atenção estes fatos que introduzem ordem
dentro dessa complexidade, tornando-a acessível para nós.” (Bion,
1959, p.16).
Dessa perspectiva podemos considerar uma determinada seqüência: o
analista observa uma massa de elementos dispersos procurando o fato
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selecionado, um fato unificador, esperando-se que o analista esteja
capacitado a selecionar o fato digno de atenção, usando, para isto, sua
intuição da experiência emocional. Este momento de união origina um
sentimento de se ter encontrado uma causa. Este é um processo ideacional,
simbólico, que depende da seleção do observador e o observador psicanalista
deve poder fazer uma determinada seleção diferente de um amigo, ou de um
religioso, por exemplo, baseando-se em sua capacidade de perceber
intuitivamente a experiência emocional da sessão. No entanto, isto não o
autoriza a supor que exista uma relação causal entre os elementos em si, mas
sim que só podemos conhecê-los através do estabelecimento de relações
entre eles. Para Poincaré (1995), “uma sensação é bela não porque possui
determinada qualidade, mas porque ocupa determinado lugar na trama de
nossas associações de idéias”. (p.166)
Portanto, é fundamental a maneira como o analista vai lidar com a
experiência de encontrar uma causa: se isto é vivido de forma onipotente,
temos uma postura determinista, que se acompanha da crença de ter
descoberto a verdade e a busca de causas correspondendo a uma
investigação criminal que procura achar culpados e estabelecer punições; se,
junto com a experiência de encontrar em sentido, se mantiver a noção de que
encontramos um sistema coerente, mas que não precisa corresponder a
nenhuma realidade objetiva, trabalhamos com uma causalidade “humilde”.
O que não significa nenhum julgamento de valor, este conhecimento parcial
e limitado pela natureza humana não pode ser desqualificado por não ser
absoluto e ser o possível de conhecer.
O TRAUMA, O APRÈS-COUP E A TEMPORALIDADE
Ao discutirmos trauma e causalidade, vemos que a introdução de
Freud da noção de aprés-coup, do trauma em dois tempos, nos coloca diante
de uma questão diretamente ligada ao tema e importante na psicanálise, não
só na teoria, mas principalmente no processo psicanalítico: o tempo.
O pensamento complexo pressupõe a irreversibilidade do tempo: um
sistema natural é aberto e irreversível, tudo está em contínua modificação e a
linha do tempo só tem um sentido, do presente para o futuro. Esta noção de
irreversibilidade do tempo em sistemas longe do equilíbrio foi desenvolvida
por Prigogine (1996), que mostrou como estes sistemas têm a capacidade de
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se auto-organizar a partir da desordem, sem interferência externa, e
necessariamente de uma maneira nova, nunca retornando ao estado anterior.
Para a psicanálise, esta idéia do tempo irreversível é essencial. Grande
parte do nosso trabalho com os pacientes procura possibilitar o abandono das
fantasias narcísicas, o que implica a aceitação da passagem do tempo, das
diferenças geracionais, da impossibilidade de se voltar ao passado ou prever
o futuro, da inevitabilidade da morte.
No entanto, a necessidade de considerarmos um tempo retroativo
costuma ser destacada para justificar as possibilidades de ação terapêutica da
psicanálise. Através da noção clássica de après-coup, fica implícita a idéia
de que podemos, do presente, agir sobre o passado, dando-lhe significado ou
ressignificando-o. Este movimento pressuporia um tempo reversível, o que
só poderia ser concebido em termos metafóricos. Só temos acesso ao que é
presente, mesmo quando sob a forma de lembranças que parecem passadas,
mas que correspondem à forma como as vivemos no momento atual. Esta
parece ser a via que torna possível a ação terapêutica da psicanálise, o fato
de podermos, através da experiência emocional da sessão, perceber como
toda história do indivíduo se sintetiza na transferência que, a cada momento,
é diferente e atual, mesmo que com padrões repetitivos. Além disso, apesar
das inúmeras discussões sobre o conceito de après-coup (Green, 2001,
Breen, 2003), a noção de conteúdos que permanecem inalterados no sistema
psíquico, esperando um novo significado (ou um primeiro significado), está
presente. Mas podemos considerar que algo permaneça estático na mente,
sem interferência da passagem do tempo? Se considerarmos a mente como
um sistema complexo, podemos identificar a presença de padrões (fractais)
que se repetem em sua essência, mas nunca exatamente iguais. O conceito
de transformações e invariância de Bion corresponde a esta visão de sistema
complexo, na medida em que entende os fenômenos psíquicos como algo em
constante evolução, nunca reproduzíveis - uma transformação
caleidoscópica – cujo limite último, infinito, é “O”, mas com características
que se mantêm, como os fractais.
A noção de Winnicott do medo do colapso que, de fato, já ocorreu,
descreve a maneira como a experiência analítica “se torna” o trauma e
possibilita termos o passado presentificado e acessível através da
transferência (Breen, 2003). Mas, mesmo aqui, é importante ficar claro que
não temos acesso ao passado. A organização temporal é um recurso do
pensamento lógico. Numa sessão só podemos apreender o objeto do
momento, que traz embutido todo passado traumático compreendido aqui no
9
sentido de tudo que chegou ao presente sem a possibilidade de acompanhar
o desenvolvimento do indivíduo, o que não quer dizer sem nenhuma
modificação.
É importante salientar ainda que, nesta visão da mente como um
sistema complexo, longe do equilíbrio, a idéia implícita no conceito de
aprés-coup, de que poderíamos reconstituir os elementos passados que
deram origem à condição atual do paciente, não se sustenta. A linha
irreversível do tempo, não é linear, há inúmeros momentos de bifurcação
que não podem ser reconstituídos retrospectivamente.
Precisamos, no entanto, ter presente que o paciente chega com uma
visão determinista acerca dos motivos de seus problemas, e sua estrutura
defensiva luta contra a irreversibilidade, fixando modelos e padrões,
evitando a percepção e o reconhecimento da passagem do tempo e das
modificações. Nosso trabalho procura de alguma forma, recuperar a
possibilidade de que o curso das transformações criativas possa ser
retomado.
PARA TERMINAR
A linha que procuramos seguir, neste trabalho, parte do pressuposto
de que é importante o processo de revisão dos conceitos da teoria
psicanalítica, inserido na rede de discussões e controvérsias do pensamento
científico atual. Este processo é necessário não apenas formalmente, mas por
atender à complexidade da clínica.
Assim, procuramos rever alguns
desses conceitos interrelacionados: trauma, causalidade e tempo.
Reconhecemos ter podido apenas tangenciar estas relações, sempre tendo
presente uma visão da mente como um sistema complexo.
Talvez não seja possível (e nem necessário), pela própria estrutura da
mente humana, que a psicanálise possa trabalhar sem a noção de
causalidade. No entanto, o objeto de observação do psicanalista é a realidade
psíquica, tornando necessário que possamos usar uma percepção intuitiva,
que percebe sem a intermediação da razão. Na proposta de Bion da
observação sem memória e sem desejo e na de Matte-Blanco do
afrouxamento das cadeias lógicas, está implícita esta visão. Mas, no
momento de formular uma interpretação, nossa mente necessita das noções
lógicas. Parece importante é que esta noção corresponda à busca de um
sentido e de alguma relação entre os fatos psíquicos, objeto de nosso
10
trabalho, e que se afaste da crença de que corresponda a uma relação causal
determinista. A diferença nesta perspectiva define desde que posição o
analista vai formular sua interpretação: se como quem anuncia uma verdade
ou como quem estabelece conexões dentro de um sistema que consideramos
complexo, formado por uma teia infinita de relações. Nesta perspectiva,
procuramos questionar a importância do conceito de trauma para o corpo
teórico atual da psicanálise, principalmente por sua conotação determinista
implícita. A questão da temporalidade, ligada ao trauma e à própria ação
terapêutica da psicanálise, foi abordada apenas na revisão do conceito de
aprés-coup, dentro da visão do tempo irreversível, característico dos
sistemas complexos, fora do equilíbrio, forma como pensamos o
funcionamento psíquico. O psicanalista, a nosso ver, há que se contentar
com a tentativa de apreensão e compreensão da experiência psíquica
presente, a da sessão, buscando, ao fazer parte deste momento presente,
participar dos infinitos elementos que constituem os também infinitos
eventos psíquicos do paciente e, quem sabe, influenciar o imprevisível
futuro do psiquismo alheio.
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ABSTRACT
Partindo do estudo e discussões do grupo de Epistemologia da
Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, o trabalho propõe-se a
correlacionar as noções de determinismo psíquico com a concepção de
trauma e temporalidade, a partir de uma perspectiva da mente como
um sistema complexo. Parte de breves considerações sobre o conceito
de determinismo psíquico, procurando expandir a discussão sobre
causalidade, destacando principalmente as idéias de Kant sobre as
formas da mente humana conhecer algo e as contribuições de Bion que
utiliza o conceito de fato selecionado de Poincaré para indicar o
12
momento de união entre elementos antes dispersos. Este movimento
origina um sentimento de ter se encontrado uma causa mas, na linha
de Kant, isto não significa que exista uma relação causal entre objetos
em si mesmo, mas sim, que são sentidos e pensados como
relacionados. Assim pode-se pensar que o analista observa uma
massa de elementos dispersos procurando o fato selecionado, que
introduz ordem dentro dessa complexidade, esperando-se que o
analista esteja capacitado a selecionar o fato digno de atenção, usando
para isto, sua intuição da experiência emocional. Este momento de
união origina um sentimento de ter se encontrado uma causa. Este é
um processo ideacional, simbólico, que depende da seleção do
observador e o observador psicanalista deve poder fazer uma seleção
diferente de um amigo, ou de um religioso, baseando-se na
experiência emocional da sessão. No entanto, isto não o autoriza a
supor que exista uma relação causal entre os elementos em si, mas
sim, que só podemos conhecê-los através do estabelecimento de
relações entre eles.
Portanto, é fundamental a maneira como o analista vai lidar com
a experiência de encontrar uma causa: se isto é vivido de forma
onipotente, temos uma postura determinista, que se acompanha da
crença de ter descoberto a verdade; se mantiver a noção de ter
encontrado um sentido que não precisa corresponder a nenhuma
realidade objetiva, trabalhamos com uma causalidade “humilde”. O
trabalho busca, a seguir, situar o trauma, historicamente relacionado a
determinismo, no corpo da psicanálise atual. Esta, ao privilegiar a
experiência emocional, em detrimento de eventos factuais, leva à
necessidade de repensar-se a utilidade e o conceito de trauma. Da
mesma forma, à luz dos desenvolvimentos atuais, a equação etiológica
freudiana é revisitada, propondo que se inclua um fator “i” (a partir de
imaginativo), correspondendo a um elemento de complexidade. A
questão da temporalidade, ligada ao trauma e à própria ação
terapêutica da psicanálise é abordada dentro da visão de tempo
irreversível, característico dos sistemas complexos, fora do equilíbrio,
forma como pensamos o funcionamento psíquico.
RESUMO
13
Partindo do estudo e discussões do grupo de Epistemologia da SPPA,
o trabalho propõe-se a correlacionar as noções de determinismo
psíquico com a concepção de trauma e temporalidade, a partir de uma
perspectiva da mente como um sistema complexo. Parte de breves
considerações sobre o conceito de determinismo psíquico, procurando
expandir a discussão sobre a noção de causalidade. Busca, a seguir,
situar o trauma no corpo da psicanálise atual. Esta, ao privilegiar a
experiência emocional, em detrimento de eventos factuais, leva à
necessidade de repensar-se a utilidade e o conceito de trauma. Da
mesma forma, à luz dos desenvolvimentos atuais, a equação etiológica
freudiana é revisitada, propondo que se inclua um fator “i” (a partir de
imaginativo), correspondendo a um elemento de complexidade. A
questão da temporalidade, ligada ao trauma e à própria ação
terapêutica da psicanálise é abordada dentro da visão de tempo
irreversível, característico dos sistemas complexos, fora do equilíbrio,
forma como pensamos o funcionamento psíquico.
English Abstract and Summary
TRAUMA, CAUSALITY AND TIME: SOME REFLECTIONS
Epistemology Study Group of the Porto Alegre Psychoanalytical Society: Viviane
Mondrzak, Alice Lewkowicz, Aldo Luiz Duarte, Anna Luiza Kauffmann, Eneida
Iankilevich, Gisha Brodacz, Gustavo P. Soares, Luiz Ernesto Pellanda.
ABSTRACT
Based on the studies and discussions of the Epistemology Study
Group of the Porto Alegre Psychoanalytical Society, the proposal of this
work is to correlate the notions of psychic determinism with the concept
of trauma and temporality, from a perspective of the mind as a complex
system. Beginning with brief considerations of the concept of psychic
determinism, aiming to expand the discussion on causality, principally
14
highlighting Kant’s ideas of the ways of the human mind to know about
something, and with the contributions of Bion that uses the concept of
fact selected from Poincaré to indicate the moment of union between
elements previously dispersed. This movement initiates a feeling of
having found a cause, however, according to Kant, this does not mean
that a causal relation exists between objects themselves, but they are
felt and thought of as related. Thus it can be thought that the analyst
observes a mass of dispersed elements looking for the selected fact,
hoping that the analyst is able to select the proper fact of attention,
using his intuition of emotional experience. This moment of union
initiates a feeling of having found a cause. This is a rational symbolic
process that depends on the selection of the observer, and the
psychoanalyst observer must make a different selection from that of a
friend or of a religious person, based on the emotional experience of the
session. However, this does not authorize him to suppose that there is
a causal relation between the elements themselves, but that we can
only recognize them by establishing relations among them.
Therefore, the way in which the analyst deals with the
experience of finding a cause is fundamental: if this is experienced as
an omnipotent form we have a determinist posture that is accompanied
by the belief of having discovered the truth; if the notion of having found
a meaning that does not need to correspond to any objective reality is
maintained, then we are working with a “humble” causality. The work
then aims to situate trauma, historically related with determinism, in the
body of contemporary psychoanalysis. This, to privilege the emotional
experience to the detriment of factual events, brings the need to rethink
the usefulness and the concept of trauma. In the same way, in the light
of recent developments, the Freudian etiologic equation is revisited,
proposing that an “i” factor be included (from imaginative),
corresponding to an element of complexity. The question of temporality,
connected with trauma and the therapeutic actions of psychoanalysis, is
approached within a vision of irreversible time, characteristic of complex
systems, out of balance, the way that we think the psychic functioning.
SUMMARY
Based on the studies and discussions of the Epistemology Study Group
of the Porto Alegre Psychoanalytical Society, the proposal of this work
is to correlate the notions of psychic determinism with the concept of
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trauma and temporality, from a perspective of the mind as a complex
system. The work begins with brief considerations of the concept of
psychic determinism and aims to expand the discussion on causality.
The work then aims to situate trauma in the body of contemporary
psychoanalysis. This, to privilege the emotional experience to the
detriment of factual events, brings the need to rethink the usefulness
and the concept of trauma. In the same way, in the light of recent
developments, the Freudian etiologic equation is revisited, proposing
that an “i” factor be included (from imaginative), corresponding to an
element of complexity. The question of temporality, connected with
trauma and the therapeutic actions of psychoanalysis, is approached
within a vision of irreversible time, characteristic of complex systems,
out of balance, the way that we think the psychic functioning.
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