Discurso o Ministro Cezar Peluso

Propaganda
ABERTURA – ASSEMBLÉIA GERAL DO COMITÊ PERMANENTE
DA AMÉRICA LATINA PARA REVISÃO DAS REGRAS MÍNIMAS DA ONU PARA
O TRATAMENTO DE PRESOS – 21 E 22 DE OUTUBRO DE 2009
Ministro Cezar Peluso
Tendo em vista que estamos a abrir a Assembléia Geral final deste
Comitê, não seria demasia proceder a breve retrospecto do histórico e do contexto
em que nos foi confiada a grave tarefa de elaborar projeto de revisão das regras
mínimas de tratamento de presos adotadas pela ONU, tarefa que não se conclui
nesta oportunidade, mas aqui que se transforma em nova e decerto mais importante
etapa do processo, que é a de sua efetivação.
A Fundação Internacional Penal e Penitenciária, constituída, em 1951,
pela Assembléia Geral da ONU, foi responsável pela formulação das regras
mínimas, agora objeto de nosso trabalho. Em 2005, a propósito dessas regras, a
Fundação submeteu à Secretaria Geral da ONU proposta de revisão, que culminou
com a criação deste Comitê, no ano de 2007.
Assim, o Comitê Permanente da América Latina para revisão das regras
mínimas da ONU para tratamento de presos, adotada pela Resolução nº 663-C, de
30 de agosto de 1955, foi instituído pelas Resoluções nº 1, 2 e 3, de 2007, já com a
eleição de seus membros.
No desempenho desse mister, foram realizados diversos encontros e
debates, todos sobremaneira profícuos, sobre o tema, os quais se pautaram na
consideração das particularidades dos sistemas prisionais e das políticas criminais
adotados nas diferentes regiões, com os olhos postos permanentemente na
necessidade de observância de determinados padrões de punição civilizada.
1
E também se inspiraram na não menos fundamental exigência de busca
de equilíbrio entre a propositura de novos mecanismos de prevenção ao crime e os
princípios superiores que governaram a celebração do Pacto Internacional de
Direitos Civis e Políticos, da recuperação e reabilitação social do delinqüente, bem
como da promoção e resguardo dos direitos humanos, enquanto objetivos
estruturantes de um sistema penitenciário civilizado.
Assim, foram e têm sido travadas discussões e sugeridas soluções
capazes de contornar as eventuais dificuldades oriundas das diferenças regionais,
potencializadas pela globalização e pela crescente relação entre os Estados em
termos de política criminal.
É que, na medida em que os Estados têm empreendido esforços
conjuntos para a repressão e a prevenção de delitos, mediante intensa atividade
normativa e cooperação técnica em níveis multilateral e bilateral, surgem outras
relevantes necessidades quanto ao tratamento dos presos, à luz de nova forma de
reinserção social que transcende o âmbito e os limites territoriais, pois a pessoa
humana é agora posta em situação por tudo diversa de sua própria realidade.
Mas, para além das discussões acerca dos impactos que a globalização
representou sobre a matéria original, também outras temáticas foram levadas em
consideração pelo Comitê.
A título exemplificativo, pode citar-se o papel da tecnologia, a função de
um ombusdman e de organizações não-governamentais nessa área, a execução de
medidas não privativas de liberdade e, tema palpitante, enquanto reflexo de cada
sistema administrativo e judicial, a possibilidade de administração privada de
penitenciárias. Nem se devem esquecer, no quadro, as cogitações acerca dos
2
investimentos financeiros em cotejo com os de outros setores fundamentais, como
os da saúde e da educação.
Merece lembrado, ainda, que a tarefa do Comitê se fundou nos objetivos
oriundos da Declaração do Milênio, aprovada, em outubro de 2000, pela Assembléia
Geral das Nações Unidas, e do Projeto do Milênio dela decorrente, constituído em
Julho de 2002, a partir da iniciativa do Doutor Kofi Annan, à época Secretário Geral
da ONU.
O Projeto deu origem a um Plano de Ação, que se desenvolve em oito
metas, com a finalidade de serem apresentadas, até 2015, estratégias de soluções
duradouras ao quadro de miséria que atinge bilhões de pessoas em várias partes do
mundo, nas várias dimensões por considerar, como alimentação, educação, saúde,
mortalidade infantil, moradia, dano ambiental, segurança, imigração desordenada e
exclusão social, pontos que compõem um compromisso universal dos Estados.
Entre as Metas da ONU para o Novo Milênio, sobressai a necessidade de
se estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento sem sacrifício dos
direitos humanos, parceria, aliás, que não se limita a evitar-lhes o sacrifício, mas que
se predestina sobretudo a garantir-lhes efetividade e que, nisso, guarda estreita
sintonia com o espírito de nosso trabalho.
O Conselho Econômico e Social da ONU (ECOSOC) vem reiterando aos
Países Membros a vital importância do comprometimento com os Programas do
Projeto do Milênio de modo a atender aos indicadores sociais, entre os quais releva
o apelo à prevenção e ao controle do crime, em consonância com os modernos
rumos da ciência e da tecnologia.
Nessa linha de uma justiça penal que também leva em consideração os
princípios inscritos nas vertentes dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, os
3
problemas que se manifestam nos múltiplos aspectos dos sistemas penitenciários,
em todos os continentes, postulam iniciativas bem articuladas que envolvam todos
os países. Isso pressupõe cooperação internacional capaz de facilitar a absorção de
experiências portadoras de mudanças e de implantação de modelos que possam ser
operacionalizados de acordo com a singularidade cultural em cada região.
E esta cooperação entre os Estados não pode ser inibida pela barreira da
alegação de ofensa à idéia de soberania, já agora desvestida de contornos
absolutos e radicais, principalmente diante da sentida necessidade de resguardar a
identidade dos direitos humanos, que, embora manifestada de diversas formas,
assume hoje o caráter de um atributo universal que, caracterizando nova ordem
internacional, transpõe as fronteiras geográficas da cidadania e lhe reconstrói o
próprio conceito como signo comum da humanidade.
Ressalto, também, a oportuna realização simultânea deste evento com a
do 71º Curso Internacional de Criminologia, organizado pela Société Internationale
de Criminologie, pois todo o trabalho de revisão das regras mínimas em nenhum
passo se afastou da observância dos critérios criminológicos, que não podemos
deixar de referir.
Após muitos anos de isolamento teórico, o direito penal e a criminologia
voltam a ser compreendidos como dimensões de um mesmo fenômeno social, o do
controle social penal.
Escapa
ao
modesto
propósito
deste
discurso
de
abertura
o
aprofundamento sobre as etapas históricas do pensamento criminológico como
disciplina teórica autônoma. De todo o modo, David GARLAND define a criminologia
moderna como a síntese de dois projetos científicos distintos: um “governamental”,
4
destinado à colheita de dados para a administração racional das polícias e das
penitenciárias, e um “lombrosiano”, empírico, destinado a explicar o crime a partir da
premissa de que se podem distinguir, cientificamente, os criminosos dos nãocriminosos.
Se é verdade que o pressuposto lombrosiano do homem criminoso foi
rapidamente desacreditado pela própria criminologia, a escola positiva deitou raízes
duradouras no direito penal latino-americano, cristalizadas nas legislações de
inspiração italiana que, em grande medida, permanecem vigentes até hoje. Nesse
sentido, a propalada independência teórica do direito penal em relação às ciências
penais auxiliares não representou mais do que um escudo ordenado a preservar os
pressupostos positivistas do intenso debate que se instalou no âmbito da
criminologia contemporânea.
O desenvolvimento paralelo da criminologia, como ciência empírica que se
propôs a orientar a formulação e a avaliação de políticas públicas de combate à
criminalidade, conduziu-a ao reencontro com o direito penal – já não como ponto de
partida, mas como objeto de estudo. Nesse aspecto, os escritos de FOUCAULT
deram relevo e transparência a uma das principais questões criminológicas da
contemporaneidade: a pena privativa de liberdade, como expressão predominante
do poder de punir do Estado.
“Vigiar e Punir” tornou-se marco simbólico. Antes dele, vários estudos
criminológicos já tinham a prisão e seus efeitos como algo digno de nota. Mas
Foucault chama a atenção para a permanente reciclagem do discurso político - o
isoformismo reformista -, que, há duzentos anos, reapresenta a prisão como solução
para o seu próprio fracasso:
5
“[O] movimento para reformar as prisões, para controlar seu
funcionamento, não é um fenômeno tardio. Não parece sequer
ter nascido de um atestado de fracasso devidamente lavrado. A
‘reforma’ da prisão é mais ou menos contemporânea da própria
prisão. Ela é como que seu programa. A prisão se encontrou,
desde o início, engajada numa série de mecanismos de
acompanhamento, que aparentemente devem corrigi-la, mas
que parecem fazer parte de seu próprio funcionamento, de tal
modo têm estado ligados a sua existência em todo o decorrer de
sua história”
E o impasse atual, mais uma vez, reforça a necessidade de compreensão
conjunta da criminologia e do direito penal. É lugar comum o diagnóstico de
ineficiência das prisões para os fins preventivos e ressocializadores a que se
destinam: a experiência tem demonstrado que o cárcere, de regra, produz pessoas
incapazes de reintegrar-se à sociedade, ou, o que é pior, delinqüentes ainda mais
ferozes. John LEA e Jock YOUNG notam que “qualquer hospital que fizesse com
que os pacientes adoecessem mais do que antes, em que cada internação de um
paciente tornasse mais provável a internação seguinte, já teria sido fechado há
anos”.
Temos, aqui, que enfrentar o desafio de inovar em relação ao velho
movimento reformista denunciado por Foucault. A criminologia, a partir da
emergência de um discurso fortemente crítico, deve agora buscar novas propostas,
e o direito penal há de estar preparado para se reinventar no que diz respeito às
teorias da pena. A premissa das reformas penais e penitenciárias não pode
6
continuar sendo a justa mas irracional comoção social que orientou a política
criminal das últimas três décadas, reforçando não só a exclusão física e social dos
condenados, mas, também, a sua alienação ética. A ruptura do vínculo moral do
detento com a sociedade é tão lamentável quão previsível: já nada se pode esperar
de um sistema penitenciário que, ao apresentar-se como método de controle e
preservação social, nega à pessoa sob custódia do Estado o resguardo dos direitos
fundamentais inerentes à condição humana.
Por isso, a revisão das regras mínimas constitui, aqui, um pequeno mas
significativo passo para a humanização do sistema penitenciário. Mas a proposta,
conquanto importante, fracassará inapelavelmente, se o cárcere se mantiver como
idéia e instituição central do subsistema de controle penal. É preciso propor-se ir
além. Penso que o fizemos, segundo os critérios orientadores de nosso trabalho.
Pois bem. Finda esta primeira etapa de elaboração do relatório, há novos
passos por percorrer. O relatório final será submetido ao XII Congresso das Nações
Unidas sobre Prevenção do Crime e Justiça Criminal: “Estratégias amplas para
desafios globais: prevenção ao crime e justiça criminal e seu desenvolvimento em
um mundo em transformação”, que se realizara em Salvador, Bahia, em abril de
2010, e do qual um dos grupos de trabalho, por instância brasileira e decisivo apoio
do Itamarati, será dedicado à temática dos estabelecimentos penitenciários e do
tratamento de presos. Nesse Congresso, durante o workshop intitulado “Survey of
United Nations and other Best practices in the treatment of prisoners within the
criminal justice system”, nosso Comitê apresentará o relatório á comunidade
internacional, antes de seu encaminhamento ao ECOSOC (Conselho Econômico e
Social das Nações Unidas).
7
E será oportunidade ímpar, pois ali estarão reunidos os chefes de Estado
e diversas outras autoridades dos países membros da ONU, para definir o plano de
investimentos para ser adotado pela UNODC nos anos de 2010 a 2015, na área de
controle da criminalidade e de segurança pública.
Gostaria, neste ponto, de adiantar uma reflexão, seguida de uma proposta.
Passados mais de 50 anos, estou em que o tema merece maior relevo e
consideração por parte dos países integrantes da ONU. Creio estar maduro o tempo
de ultrapassar o plano das recomendações acerca do tratamento de presos, pois o
consenso de uniformização mínima pede agora, como conseqüência sensata, a
adoção de regras mínimas específicas de caráter mandatório, cuja implementação
seja assumida pela comunidade internacional. A respeito, estou convencido da
necessidade da celebração de uma convenção sobre o tratamento de presos,
dotada de todos os instrumentos indispensáveis à sua execução, tais como previsão
da realização de cursos, de formação de comissão internacional que auxilie na
elaboração das legislações internas e no cumprimento das medidas propostas, de
mecanismos de avaliação da implementação e de criação de um fundo internacional.
É o que deixo à elevada consideração dos membros do Comitê,
aproveitando a realização do XII Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do
Crime e Justiça Criminal, em termos de disseminação da idéia e sensibilização dos
Estados.
Afinal, e valho-me das palavras de BOBBIO1 para encerrar: “o importante
não é fundamentar os direitos do homem, mas protegê-los. Não preciso aduzir aqui
que, para protegê-los, não basta proclamá-los... O problema real que temos de
1
Norberto BOBBIO, A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992,
p.37.
8
enfrentar, contudo, é o das medidas imaginadas e imagináveis para a efetiva
proteção desses direitos”.
9
Download