PROEMINÊNCIA À ESQUERDA NA DIACRONIA DO PORTUGUÊS: INOVAÇÃO E CONTINUIDADE Maria Clara Paixão de Sousa Universidade de São Paulo, Brasil I. Objetivos: O trabalho propõe que a gramática do Português Clássico (tal como representada em textos portugueses escritos nos anos 1500-1600) organiza-se em torno da proeminência à esquerda, e apresenta carcterísticas de orientação para o tópico. Essas propriedades teriam se desenvolvido por caminhos divergentes nas variantes modernas da língua. Comparam-se aqui particularmente o Português Clássico (PC) ao Português Brasileiro (PB), sugerindo que a mudança entre eles incide primordialmente sobre as propriedades de sujeito nulo, enquanto a propriedade de saliência à esquerda permanece constante. II. Hipótese: (i) O ponto de partida para uma hipótese estrutural para o PC devem ser a as construções “XVS”, com tópicos pré-verbais e sujeitos pósverbais, que parecem indicar que no PC há uma posição pré-verbal imediata para constituintes proeminentes que não se confunde com a posição de sujeitos. Assim, a codificação de “Proeminência discursiva” nesta gramática pode ser formalizada como a projeção de uma posição mais alta que Tempo e mais baixa que Complementação (cf. 1). (ii) O núcleo funcional nessa posição deve ter três propriedades essenciais no PC: (a) Está incluido em todas as orações, e abriga um constituinte proeminente (tópico ou foco) das projeções mais baixas: se esse constituinte é um complemento de VP, resulta a ordem “Complemento-V”; se esse constituinte é o especificador de TP, resulta a ordem “Sujeito-V”; (b) Esse núcleo compartilha traços abstratos com os núcleos T e V, de modo que T (contendo V) irá combinar-se a ele. Quando não-especificado, o núcleo de Proeminência (contendo V e T) combina-se ao próximo núcleo não-lexical (C de orações matrizes), o que corresponde à ordem superficial verbo-inicial e à interpretação de “juízo tético” (sentenças sem tópicos); a especificação do núcleo, em contraste, encerra o ciclo “Proeminência”, e o núcleo não se combina com C; (c) Á esquerda deste núcleo se adjungem os clíticos pronominais. (iii) O trabalho irá explorar diferentes formalizações para a hipótese, em particular considerando a proposta de RAPOSO E URIAGEREKA (2005) para um núcleo F com o traço forte [citativo] (cf. (2) abaixo), e a de CARDINALETTI (2004) para uma projeção Sujeito da Predicação. III. Desenvolvimento diacrônico: (i) Quanto ao Português Brasileiro (PB): Tendo em vista recentes estudos sobre o PB (cf. entre outros KATO & NEGRÃO, 2000), em particular quanto à “orientação para o tópico”, irei discutir a hipótese de que o PB manteve a propriedade de proeminência à esquerda do PC, representada por uma projeção sempre presente, e que abriga tópicos e focos. Os dados do PC e do PB serão comparados quanto a dois aspectos fundamentais: construções de tópico e flexibilidade de diáteses - ou seja, as possíveis combinações verbo-argumento(s) (em especial, à luz das propostas de NEGRÃO & VIOTTI, 2008 para o PB), revelando alguns contrastes e algumas semelhanças intrigantes. O exame dos dados permite sugerir que a diferença central entre o PB e o PC reside na propriedade de “sujeito nulo”, que é mais limitada no PB tanto em termos de probabilidade de ocorrência como em termos de contextos de licenciamento. Os textos do PC apresentam alta incidência de sujeitos nulos (de 60% a 80% em sentenças principais), incluindo-se sujeitos nulos referenciais e definidos em contextos nãoanafóricos, ao contrário do que mostram os estudos sobre o PB (op. cit). Irei propor que a mudança gramatical do PC ao PB poderia ser modelada como uma reanálise da categoria vazia aceitável como especificador de T(empo) (de um pronome a uma outra categoria, provavelmente anafórica), enquanto a propriedade de proeminência à esquerda teria permanecido constante. Essa reanálise teria sido favorecida por dois fatores: (a) As construções S-V do PC, em que o constutinte sujeito de TP é o constituinte proeminente (o especificador de Proeminência), representado uma instância de um sujeito de TP com propriedade anafórica; (b) As construções Complemento-V-(S nulo) do PC, onde um complemento de VP é o constituinte proeminente (especificando o núcleo de Proeminência, que contém o verbo lexical) e o sujeito de TP é nulo (cf. (3)-(4)); essas construções seriam relacionadas às construções do PB nas quais complementos de VP aparecem como sujeitos de TP e sujeitos da predicação. Outros contrastes empíricos entre PC e PB remetem à questão da posição do verbo lexical (mais baixo no PB que no PC, de modo que no PB a proeminência de um constituinte não-sujeito não resulta na ordem XVS, como no PC), e à natureza dos clíticos pronominais, que no PB seriam verdadeiros clíticos verbais, portanto mais baixos que no PC (sugerindo um processo de enfraquecimento funcional dos clíticos, no sentido das propostas de Roberts, 2007, para a diacronia dos clíticos no Romance em geral). (ii) Quanto ao Português Europeu (PE): no PC, o núcleo de Proeminência abrigaria tópicos e focos; para RAPOSO & URIAGEREKA (2005), F no no PE hospeda exclusivamente constituintes afetivos. Nesse sentido, minha análise para o PC nas linhas de uma projeção FP ofereceria evidências diacrônicas para a previsão dos autores sobre a evolução de F no romance em geral. IV. Fundamentação Empírica: (i) Os dados provém de duas fontes: um estudo sobre um corpus de 142 textos escritos entre 1500-1699 (PAIXÃO DE SOUSA em curso), e um trabalho anterior (PAIXÃO DE SOUSA, 2004) de textos escritos entre 1500-1800 (927.706 palavras, 13.841 sentenças finitas), que mostrou uma mudança nos padrões de freqüência de colocação de clíticos e posição de sujeitos nas primeiras décadas dos anos 1700, revelando o fim da gramática do Português Clássico. (ii) A hipótese (2) cobre adequadamente os padrões de ordem de constituintes atestados nos textos, bem como seus padrões de freqüência. Em particular, explica as diferenças nas proporções e interpretações de sujeitos préverbais e pós-verbais nesses textos (cf. 5); e os padrões superficiais de colocação de clíticos (cf. 6). Os clíticos pronominais não seriam clíticos verbais, mas clíticos a F; suas diferentes posições superficias em relação ao verbo lexical corresponderiam às diferentes situações finais de F (especificado, ou em C), de forma que “ênclise ou próclise” ao verbo lexical correspondentem, ambas, à próclise estrutural a F. Isto cobre os fatos categóricos da colocação de clíticos no PC: (a) não se atesta a “ênclise” após operadores ou constituintes fronteados de VP (ex., *Complemento-Vcl); (b) não se atesta a “ênclise” em domínios encaixados; (c) não se atesta a “próclise” em posição superficial absoluta nas matrizes. Quanto aos assim chamados “ambientes de variação”, todas as ordens X-cl-V correspondem a X especificador de F (incluindo X = Sujeito); e as ordens XVcl são sub-casos de V-cl em posição inicial absoluta, nos quais X é um adjunto de CP. Para esta reformulação de uma idéia tradicional (cf. SALVI, 1993), trago justificativas independentes observando que a adjunção restringe-se a constituintes que não fazem parte da frase argumental: não-argumentos, e argumentos duplicados como tópico de discurso (incluindo sujeitos, cf. GALVES, BRITTO & PAIXÃO DE SOUSA, 2006). (1) [COMPLEMENTAÇÃO [PROEMINÊNCIA [TEMPO [PREDICADO LEXICAL ]]]] (2) (a) [CP C [FP YP (cl)-F-T-v-V [TP XP T-v-V [vP XP v-V [VP V YP ZP ]]]]] (b) [CP C [FP XP (cl)-F-T-v-V [TP XP T-v-V [vP XP v-V [VP V YP ZP ]]]]] (c) [CP C-F-v-V [FP (cl)-F-T-v-V [TP XP T-v-V [vP XP v-V [VP V YP ZP (3) (4) (5) (6) ]]]]] “Este Macao he muito formoso: he todo preto espargido de verde, que lhe dá muita graça, e quando lhe dá o sol fica tão resplandecente que he para folgar de ver; os pés tem amarellos, e o bico e os olhos vermelhos” (1585) ... [FP Os pés-i tem [TP pro [vP ... t-i amarellos... ('The feet has-3S yellow'): “Por me parecer que a podia cobrar, mandei dar o traquete da gávea, metendo a nao até o meo do convés por debaxo do mar. Em dando, o traquete me quebrou em dois pedaços” (1530): ('The foremast broke me in two pieces') ... [FP O traquete-i me quebrou [TP pro / t-i [vP ... t-i em dois pedaços ... (a) [CP [FP Isso deram [TP eles/pro [vP... a mim ... 'This gave (they) to me' (b) [CP [FP Eles deram [TP t-i [vP... isso a mim ... 'They gave this to me' (c) [CP Deram [FP [TP eles/pro [vP... isso a mim... 'Gave (they) this to me' (a) [CP [FP Isso me deram [TP eles/pro ... 'This me gave (they)' (b) [CP [FP Eles me deram [TP t-i [vP... isso .. 'They me gave this' (c) [CP Deram [FP me [TP eles/pro [vP... isso ... 'Gave me (they) this' (d) [CP que [FP me deram [TP eles ... '...that me gave they'