CMYK Editora: Ana Paula Macedo [email protected] 3214-1195 • 3214-1172 / fax: 3214-1155 22 • CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, domingo, 1º de abril de 2012 Freud no escâner Novas técnicas de exame, como a ressonância magnética, permitem um estudo cada vez mais minucioso dos processos inconscientes do cérebro. É hora de a teoria do pai da psicanálise passar por seu maior teste Palavra de especialista Método eficiente “Em 1982, num artigo que passou a ser um clássico da psiquiatria, Parloff chamou a atenção para o equívoco em se definir um método de psicoterapia como válido somente quando aprovado por rigorosos ensaios científicos. Um dos maiores propulsores nos Estados Unidos para o crescimento dessa Psicoterapia Baseada em Evidências é a pressão por parte do sistema de saúde de apenas reembolsar procedimentos terapêuticos que passaram por comprovação científica. A psicanálise é frequentemente questionada sobre sua real eficácia, especialmente por ter sido construída por meio da experiência clínica, apoiada por um corpo teórico invejável, mas não acompanhada, desde sua origem, pelo clássico método científico que define tantas intervenções terapêuticas como ‘cientificamente corretas’. Três décadas depois do artigo de Parloff, a psicanálise tem suas forças revitalizadas, e sua proximidade com a ciência, apesar de imperfeita, é cada vez maior. Uma meta-análise recentemente publicada pelo periódico Jama (da Associação Americana de Medicina), envolvendo 23 estudos, demonstrou que a psicanálise foi mais eficaz que métodos terapêuticos de curto prazo em diversas situações, como transtornos de personalidade, múltiplos transtornos mentais e transtornos mentais crônicos. Freud deve estar gostando disso.” » NANA QUEIROZ o fim do século 19, quando esboçou os primeiros traços da psicanálise, Sigmund Freud talvez tivesse dado tudo por um equipamento de ressonância magnética para observar o cérebro em funcionamento. Depois de escutar dezenas de pacientes em seu divã, o médico percebeu que eles agiam em desacordo com a própria vontade em uma série de ocasiões. Queriam ser mais pacientes, mas não eram. Tentavam ser fiéis, sem sucesso. Desejavam fazer (ou não fazer) uma série de coisas que não conseguiam. Ele concluiu, então, que havia uma outra fonte de vontade dentro da mente humana, profunda, que enviava mensagens cruzadas e confundia as pessoas. Ele batizou-a de inconsciente dinâmico. Mas, como a ciência rejeita os dogmas, não faltou quem exigisse provas concretas. Provas que, com as limitações técnicas da época, Freud não pôde dar. Srinivasan Pillay, professor de psiquiatria na Faculdade de Medicina de Harvard, nos Estados Unidos, acredita que a ressonância magnética deu ao mundo essa garantia tão almejada. “Se Freud estivesse vivo hoje, na era da neurociência, uma série de coisas teriam sido diferentes. Para começar, ele não teria enfrentado tanto ceticismo. As pessoas dariam mais crédito à sua teoria porque veriam evidências de que o inconsciente existe, e nos move silenciosamente”, argumenta o psicoterapeuta. Pillay faz parte de um movimento científico amplo que tem encontrado nas novas tecnologias e na neurociência formas de decifrar o inconsciente. Fotografando e analisando esses processos cerebrais, esses pesquisadores esperam aperfeiçoar as terapias e a maneira como as pessoas lidam com suas emoções e problemas. Mas pesquisa vai, análise química vem, ninguém encontrou ainda os célebres id, ego e superego, tríade fundamental do inconsciente freudiano. Isso tem levado muitos especialistas a questionar: será que Freud explica mesmo? Não importa quem participe da discussão, Freud começa com um ponto a favor de sua teoria: o inconsciente existe — e como existe. Em 2002, o neurocientista cognitivo V. S. Ramachandran afirmava: “A mais valiosa contribuição de Freud foi a descoberta de que a mente consciente é simplesmente uma fachada. Você é completamente inconsciente de 90% do que realmente passa em sua mente”. Quase todas as áreas do cérebro estão envolvidas no processamento inconsciente. A ciência ainda não decifrou o papel de cada uma delas, mas há algumas N Ricardo Teixeira, doutor em neurologia pela Unicamp e diretor do Instituto do Cérebro de Brasília (ICB) Uma imagem que pode ajudar na compreensão do que é o inconsciente é a do iceberg. A maior parte dessa grande calota fica escondida sob a água. É ela, entretanto, que sustenta e movimenta todo o bloco de gelo. O mesmo acontece com o cérebro. Para se ter uma medida, o inconsciente processa 200 mil vezes mais bits que a parte racional da mente humana. Ou seja, se uma pessoa tentasse viver de maneira completamente consciente, provavelmente morreria em questão de minutos. regiões que compreende melhor, como a amígdala, principal responsável pela formação daqueles medos profundos, difíceis de explicar. É importante frisar que não dá para separar o inconsciente em caixinhas. Nos anos 1980 e 1990, os pesquisadores pareciam bastante convencidos de que encontrariam essa ou aquela área que desempenhava tal função. Na teoria moderna, a figura parece muito mais complexa. Concentra-se na descoberta de conexões entre regiões cerebrais em detrimento da ideia de áreas especializadas. “Esse novo inconsciente é diferente daquele de que falava Freud? Provavelmente de todas as maneiras possíveis”, defende Ran Hassin, um dos autores de The new unconscious, uma das obras recentes mais marcantes que relacionam a psicologia à neurociência. “Nos últimos 30 anos, aconteceram milhares de pesquisas sobre o inconsciente. Podemos ver coisas sem saber que as estamos vendo? Podemos agir motivados por razões desconhecidas? A maioria dessas respostas é sim, mas a mecânica de tudo isso é completamente distinta da sugerida por Freud. Temos hoje um modelo mecanicista muito simples: nada de ego oculto, dramas, nenhum estímulo sexual distorcido em sua alma.” Em que ele errou? “Num balanço honesto da psicanálise, temos que admitir que a neurociência confirma alguns aspectos da teoria. Mas dizer que Freud defendeu conhecimentos totalmente atuais seria desonesto. Muitos pesquisadores o consideram, até hoje, como um herói. Para mim, Freud é um vilão”, atesta o neurocientista brasileiro Marco Callegaro, presidente do Instituto Brasileiro de Terapias Cognitivas e autor do livro O novo inconsciente (Editora Artmed). Callegaro baseia seu argumento em algumas revelações do polêmico Livro negro da psicanálise (Civilização Brasileira), em que 23 autores apontam inverdades na teoria do pai da psicanálise e o acusam de mentir na apresentação de resultados clínicos. Mesmo sem tocar em aspectos tão controversos quanto o método e a personalidade de Freud, as duas principais críticas que a neurociência coloca, hoje, diante da psicanálise são: o tratamento está incompleto e a divisão da psiquê em três personas é pouco » LEIA AMANHÃ sobre o medo inconsciente. CMYK Iceberg plausível. “Eu nunca soube de nenhuma evidência concreta da existência do id, do superego e do ego. Não faltou quem procurasse por eles, mas ninguém achou nada que fosse ao menos parecido. Os seres humanos não têm três ‘pessoas’ dentro de si, competindo para controlar suas ações. O quadro hoje estaria muito mais para 20, 30, 40 agentes influenciando o comportamento. E eles não são personalidades organizadas como Freud pensou que seriam”, critica Hassin. Com relação ao tratamento, aponta Pillay, Freud errou ao apostar na repetição. “Quanto mais aprendemos sobre o funcionamento do cérebro, mais entendemos que o método de Freud (que é mergulhar no passado para entender o que nos motiva) é importante, mas não suficiente. Às vezes, se você revirar o passado por tempo demais, tudo o que fará é dar voltas e ficar paralisado. Isso acontece porque o circuito do cérebro fica ainda mais fechado na maneira como vem funcionando”, esclarece o psicoterapeuta. Como seria a terapia se Freud a tivesse desenvolvido depois da neurociência? “Ele também estimularia as pessoas a pensar em soluções para sair dos problemas”, alega Pillay. “Enquanto se pensa em um futuro melhor, ativa-se as partes do cérebro que controlam as ações. Aquecidas, essas regiões ganham mais poder para agir.” Os partidários do novo inconscientetêmganhadoterrenomundialmente, deixando Brasil e França como os últimos redutos absolutos da psicanálise. Mas não se trata de uma briga de dois lados. “Se a psicanálise se isolar, ignorar as descobertas da ciência, ela correrá o risco de virar religião. Mas há no Brasil, hoje, grupos interdisciplinares que buscam fazer com que as duas áreas dialoguem e alcancem terapias mais eficientes, como o Instituto Brasileiro de Neuropsicologia e Comportamento (IBNeC)”, opina Callegaro. Abraçar as colaborações desses grupos pode ser a melhor maneira de provar que, afinal, Freud não tem lá muito medo de ciência. www.correiobraziliense.com.br Leia mais declarações dos pesquisadores sobre o novo inconsciente.