XIII Congresso Brasileiro de Sociologia 29 de maio a 1 de junho de 2007, UFPE, Recife (PE) GT: Emancipação, Cidadania e Reconhecimento: elaborações teóricas Narcisismo e Laço Social: a experiência da ambigüidade nas relações de trabalho Simone Aparecida Lisniowski Universidade de Brasília [email protected] [email protected] Resumo Este trabalho se propõem a analisar o narcisismo nos vínculos sociais, buscando apontar as ambigüidades experienciadas no amálgama subjetividade e laço social, na intersecção da psicanálise com a sociologia. O tema do narcisismo tem um forte caráter subjetivo, sendo considerado por FREUD o único fenômeno que pode, em casos raros, ser desvinculado do social1, e o laço social um forte caráter sociológico pois envolve os fenômenos sociais que produzem estímulos subjetivos2. A dinâmica que se estabelece nas relações sociais pode ser analisada tanto enfatizando os fenômenos sociais quanto a dinâmica psíquica de cada sujeito. A proposta é desenvolver o conceito de narcisismo e o individualismo na modernidade, abordando o estudo de ENRIQUEZ do laço social nas organizações, e apresentar alguns apontamentos das ambigüidades experienciadas no processo de identificação subjetiva e socialização. A identificação estruturante da criança com a mãe só foi possível em um contexto social e histórico experienciado pelos pais. A dinâmica sujeito-sociedade se dá pelo laço estabelecido pelos processos identificatórios que, ao ser quebrado, leva ao narcisismo e à negação do outro, à loucura e ao abandono. O laço social ao mesmo tempo que exige do sujeito deparar-se com a alteridade e reconhecer seus limites e impossibilidades, também é a possibilidade de criação e de desejo. Mas neste movimento em direção ao outro, por um desejo de reconhecimento, pode perder-se em processos de adaptação e transformar o outro em objeto narcísico, tornar o outro ideal e mergulhar em uma paixão narcísica, ou voltar-se para si mesmo, impossibilitando o contato com o outro. Portanto, o narcisismo freudiano também é relacional, não existe fora da relação social, mesmo que se manifeste como a negação da alteridade. 1 FREUD. Psicologia das Massas e Análise do Ego, 1921. 2 WEBER. A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo, pg.138-139, 2004. 1 Narcisismo e Laço Social: a experiência da ambigüidade nas relações de trabalho Este trabalho se propõem a analisar o narcisismo nos vínculos sociais, buscando apontar as ambigüidades experienciadas no amálgama subjetividade e laço social, na intersecção da psicanálise com a sociologia. O tema do narcisismo tem um forte caráter subjetivo, sendo considerado por FREUD o único fenômeno que pode, em casos raros, ser desvinculado do social3, e o laço social um forte caráter sociológico pois envolve os fenômenos sociais que produzem estímulos subjetivos4. A dinâmica que se estabelece nas relações sociais pode ser analisada tanto enfatizando os fenômenos sociais quanto a dinâmica psíquica de cada sujeito. A proposta é desenvolver o conceito de narcisismo e o individualismo na modernidade, abordando o estudo de ENRIQUEZ do laço social nas organizações, e apresentar alguns apontamentos das ambigüidades experienciadas no processo de identificação subjetiva e socialização. A identificação estruturante da criança com a mãe só foi possível em um contexto social e histórico experienciado pelos pais. A dinâmica sujeito-sociedade se dá pelo laço estabelecido pelos processos identificatórios que, ao ser quebrado, leva ao narcisismo e à negação do outro, à loucura e ao abandono. O laço social ao mesmo tempo que exige do sujeito deparar-se com a alteridade e reconhecer seus limites e impossibilidades, também é a possibilidade de criação e de desejo. Mas neste movimento em direção ao outro, por um desejo de reconhecimento, pode perder-se em processos de adaptação e transformar o outro em objeto narcísico, tornar o outro ideal e mergulhar em uma paixão narcísica, ou voltar-se para si mesmo, impossibilitando o contato com o outro. Portanto, o narcisismo freudiano também é relacional, não existe fora da relação social, mesmo que se manifeste como a negação da alteridade. Narcisismo: o mergulho na aparência da imagem O enfoque neste trabalho não se refere à psicopatologia narcisista, dos sujeitos que se retiraram completamente da relação com o mundo externo, mas de um fenômeno que se propaga na sociedade moderna, no qual o indivíduo não se relaciona com o outro, mas com seu próprio imaginário projetado no mundo, que FREUD chamará de ‘introversão da libido’, quando a libido é investida nas fantasias de valorização egóica. A descrição de FREUD (1914, p. 83) do narcisismo é semelhante ao que posteriormente ele irá descrever sobre o grupo como massa, pois nos grupos homogêneos “encontramos características que, se 3 FREUD. Psicologia das Massas e Análise do Ego, 1921. 4 WEBER. A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo, pg.138-139, 2004. 2 ocorressem isoladamente, poderiam ser atribuídas à megalomania: uma superestima do poder de seus desejos e atos mentais, a ‘onipotência de pensamentos’, uma crença na força taumatúrgica das palavras, e uma técnica para lidar com o mundo externo — ‘mágica’ — que parece ser uma aplicação lógica dessas premissas grandiosas.” Quanto mais o grupo está idealizado, menos ele se relaciona com o mundo no sentido de se sentir pertencendo a um elo de uma corrente maior do que si mesmo. Os indivíduos se desligam daqueles que são percebidos como diferentes, e vivem em um vazio indiferenciado dentro de si mesmo e de suas verdades. O desligamento do outro reforça ainda mais o narcisismo e a possibilidade de relação só se dá se o outro é transformado em objeto narcísico, e como tal, também idealizado. COSTA (1989, p. 109) afirma a primeira tese de FREUD, de que “o narcisismo é o estado psíquico resultante da localização no Ego dos investimentos libidinais”. Toda energia dos indivíduos está voltada para si mesmo e com isto o aparelho psíquico terá uma força motriz no sentido de permanecer no mesmo estado psíquico, evitando o desprazer que o contato com a realidade pode acarretar para o ego. A “pretensão narcisista da coincidência absoluta com o ideal implica a morte do sujeito desejante” (FUKS, 2003, p. 26), o indivíduo não tem um ideal a alcançar, não precisa se auto-avaliar ou questionar suas verdade, ele está completo no grupo idealizado. Mas nem por isso os indivíduos deixam de sofrer, eles se organizam para se defender e frequentemente se deparam com sentimentos de impotência, dúvidas, vazio e com sua própria violência psíquica. Nesta dinâmica defensiva existem várias tensões sociais que colocam o indivíduo em uma situação de ansiedade. O processo de totalização e unificação do ego não acontece sem conflito psíquico, e ao conflito o ego reage com ansiedade, com uma autodefesa narcísica. Em momentos de conflito, o indivíduo pode reafirmar a verdade do grupo e assim reforçar a ligação e o investimento libidinal no imaginário grupal, ou se desligar do grupo, ficando a mercê de sua perda narcísica, para fazer o luto e refletir no processo de identificação malogrado, na verdade do grupo e de sua idealização. A experiência de uma ansiedade egóica que o levar o sujeito a tentar reintegrar seu ego, na angústia de despedaçamento pode se defender buscando outras verdades tão absolutas quanto do grupo anterior. Existe uma variedade de posições sociais contraditórias, tensas e que tentam captar dos indivíduos sua energia e disponibilidade e convencê-lo de outras verdades. STEIN (1996) considera a substituição de objetos a repetição do mecanismo de idealização, e consequentemente, do narcisismo, levando o sujeito a se empobrecer psiquicamente e a estar cada vez mais impassível diante da idealização ‘coletiva’. Para ele, insistir no ideal antigo e nas identificações totais, sem renovação e reflexão, é a compulsão à repetição, o sujeito vai trocando de objeto mas sempre querendo a mesma coisa, ou seja, 3 seu prazer está mais na repetição, na tentativa de completude, do que na realização do desejo e na sua criação/descoberta. Além disso, na sociedade atual o sujeito recebe promessas de satisfação narcísica, de identificação do ego com o ego ideal cotidianamente, ou seja, a modernidade fez e faz promessas de realização das fantasias megalomaníacas do sujeito. Para COSTA (1989, p. 120) o ego ideal “é a única maneira não-conflitiva que o Ego tem de lidar com a alteridade e fazer face às exigências narcísicas de outros Egos. O Ego narcísico só aceita um ‘outro’ que seja reedição inflacionada de um traço de sua forma passada ou presente, isto é, um outro idêntico”. O Ego Ideal no grupo, por exemplo, seria representado pelo líder, ele ‘gira em torno da economia narcísica’5, é a idealização6 que age no grupo e na formação de um imaginário enganador7. O sistema imaginário oferece ao grupo tanto a possibilidade de criação quanto o risco da repetição e da mesmidade. Por isso ENRIQUEZ (1997) dividiu o sistema imaginário em duas formas: o imaginário enganador e o imaginário motor. O imaginário motor possibilita a imaginação criativa, a liberdade no trabalho, possibilita a criação de vias de realização do desejo. Mas na tentativa de estabilizar a organização, o imaginário-enganador pretende substituir o imaginário individual pelo imaginário coletivo. A substituição tenta prender os sujeitos em seu desejo de afirmação narcisista, de onipotência e de ‘carência de amor’. Ela promete ao sujeitos uma realização que não alcançariam fora da organização, assim como garante uma identidade da organização que os proteja “da quebra de sua identidade, da angústia de desmembramento despertado e alimentado por toda vida em sociedade” (ENRIQUEZ, 1997, p. 35). Atualmente, as organizações têm buscado, conscientes ou inconscientemente, construir estes sistemas “a fim de modelar os pensamentos, induzir os comportamentos indispensáveis à sua dinâmica [...] buscam converter-se em verdadeiras microssociedades [...tornando-se] o único sagrado transcendente ao qual é possível se referir e se crer” (ENRIQUEZ, 1997, p. 37). O autor mostra a dependência em relação ao outro, do reconhecimento do outro, a adaptação e a ausência de relação com o diferente. A organização promete aos sujeitos uma realização que não alcançariam fora da organização, assim como garante uma identidade da organização que os proteja “da quebra de 5 6 COSTA. Narcisismo em Tempos Sombrios, 1989, p. 123. Idem. COSTA (1989:123) descreve a diferença de idealização e sublimação, neste processo “o Ego é neutralizado em seu automatismo totalizante e a libido pode investir objetos que contradizem os interesses do narcisismo”. Ou seja, a idealização é a ilusão em um engano de completude, de ausência de conflito (comum nos grupos homogêneos), e a sublimação não nega a falta e os questionamentos. 7 ENRIQUEZ. A Organização em Análise, 2003. 4 sua identidade, da angústia de desmembramento despertado e alimentado por toda vida em sociedade” (ENRIQUEZ, 1997, p. 35). Atualmente, as organizações têm buscado, conscientes ou inconscientemente, construir estes sistemas “a fim de modelar os pensamentos, induzir os comportamentos indispensáveis à sua dinâmica [...] buscam converter-se em verdadeiras microssociedades [...tornando-se] o único sagrado transcendente ao qual é possível se referir e se crer” (ENRIQUEZ, 1997, p. 37). Somente o Ideal que se lança para o futuro, que não se ilude com a tentativa de completude, é capaz de exigir deste sujeito a incorporação de novos traços, representa o sujeito da falta, é um vir-a-ser que exige do sujeito o adiamento do prazer imediato e o mergulho final no gozo do narcisismo, a permanência do Ideal no futuro mantém o sujeito desejante. Ele tem uma dinâmica própria, diferente da satisfação imediata com o objeto e a satisfação narcísica. Na cultura moderna/científica o lugar da autonomia e da certeza é idealizado, a perda progressiva de um ideal social e a propaganda da satisfação imediata colocam o indivíduo predisposto a consumir e se desvincular de um projeto reflexivo e coletivo. Quando procura um projeto coletivo de sociedade não o encontra, o que existem são projetos individuais, e cabe a ele a responsabilidade de construir-se, como se fosse possível existir sem o outro. A cultura individualista tem como conseqüência a perda do Ideal coletivo que poderia “oferecer ao sujeito a ilusão estruturante de um futuro passível de ser libidinalmente investido” (COSTA, 1989, p. 129). Ao contrário, a dinâmica de luta pela sobrevivência em um mundo extremamente desigual e em conflito, coloca o sujeito diante de um sentimento de impotência e desamparo levando a prática da solidariedade a se tornar uma tarefa “conflitante e extremamente difícil” (COSTA, 1989, p. 127). Nessa dinâmica o sujeito vive uma ambigüidade ao igualar seu Ideal de eu ao Ego, por um lado a promessa de satisfação narcísica imediata, por outro as conseqüências nefastas desta ‘escolha’, como a ausência de um projeto futuro onde investir seus ideais, o medo diante da perda iminente das leis sociais e do sentimento de solidão e esvaziamento. O desamparo diante da brutalidade do narcisismo do outro, que não pode ser impedida pois não existe uma lei suficientemente capaz de regulamentar as relações e limitar o ego de suas defesas narcísicas leva o sujeito a sentir as relações sociais como hostis para seu equilíbrio psíquico. Diante da hostilidade sua defesa é o embotamento e a introjeção de uma resposta igualmente hostil ao outro. Ao mesmo tempo que o sujeito não encontra satisfação nas relações, ele sente a nostalgia de um passado idealizado onde o reconhecimento do desejo era possível. Procura novas identificações narcísicas na tentativa de restaurar a perda. O ideal de ego construído nas experiências familiares, na primeira experiência de um ethos, se depara com relações sociais de poder que têm impacto simbólico e material: ou eu ou o outro. “A violência é vivenciada como tal por quem a padece, ao ser negado como 5 sujeito, seja como desejante ou como existente. O que nos provoca violência é o sentimento de não existir, de não ter sido levado em conta como sujeito e ser tratado como objeto no sentido comum da expressão” (FUKS, 2003, p. 29). A ambigüidade desta violência está na sua dinâmica de reparação e destruição pois a negação da alteridade é a negação de si mesmo, a busca de completude é uma tentativa de reparar a falta, negando a impossibilidade de se tornar o Ideal. O sujeito padece de uma violência contra sua própria subjetividade pois “a violência é sempre uma tentativa de se recuperar o domínio sobre algo que se tem a sensação de padecer” (FUKS, 2003, p. 30). O sujeito recusa a relação com o outro, não aceita a relação de diferença, pois padece diante de seu próprio superego (Ideal de Eu, Eu Ideal), exigente e intolerante, que quer igualar-se ao Ego. O sujeito pode querer encontrar-se com aqueles que, iguais no seu desejo de totalidade, negam as dúvidas e criam uma comunidade idealizada. Esta comunidade vive o risco da desintegração no contato com os diferentes, portanto torna-se defensiva e violenta. Por outro lado, o sujeito pode optar por construir a partir deste conflito um futuro destinado à reflexão. É preciso entretanto advertir sobre as possibilidades do sujeito enganar-se com sua crença na conscientização, afinal “não admira que o ego tome uma percepção por real, se a realidade dela é corroborada pela instancia mental que ordinariamente desempenha o dever de testar a realidade das coisas” (FREUD, 1921, p. 145). A reflexão acontece na relação social, na relação com o outro, na relação com a diferença, com suas ambigüidades, dúvidas e desamparos. Porém, os sujeitos encontram este espaço para refletir, para falar sobre seu sofrimento? Em uma sociedade extremamente individualista a reflexão parece carecer de espaço relacional para se apoiar como fundamento de um ideal social para o ego, no qual seria possível a expressão da subjetividade ‘faltante’. A diferença: aproximações e recuos nas relações de trabalho Há muito tempo se reconhece a importância dos ideais na formação coletiva, na manutenção dos grupos e na constituição de práticas coletivas. Estes ideais são reedições de ideais internalizados pelos indivíduos na sua história de vida. A subjetividade se coloca nas relações sociais e envolve os sujeitos, seja construindo um ideal a ser seguido, procurando em alguém uma identificação narcísica para satisfazer sua busca de completude, ou reconhecendo a diferença, nas relações de solidariedade e/ou oposição. A psicanálise coloca a questão da alteridade como ponto nodal, ou seja, não basta analisar as condições materiais da vida dos sujeitos, é preciso aceitar o indivíduo em sua singularidade, não basta igualar um grupo com características semelhantes, é preciso vê-los em sua diferença, como dinâmicas subjetivas em grupos reais. A reflexão exige o 6 reconhecimento da singularidade de cada sujeito, para que possa questionar as idéias, as práticas e o seu papel para o grupo. Porém, a sociedade moderna, centrada na produtividade, não oferece espaços de reflexão, antes fortalece as teias construídas no social, que afirmam verdades absolutas, amarradas pela crença na racionalidade individual. O individualismo é cada vez mais exacerbado e onde podia-se esperar que o indivíduo fosse finalmente mestre do seu destino ele se torna autômato, o indivíduo nunca esteve tão preso nas organizações, e sua subjetividade passível de ser engolfada pelo ideal organizacional. Nesta dinâmica o sujeito fica preso às ilusões grupais, sem possibilidade de reflexão, de dúvida e criticidade. Ou, como adverte BAUMAN (2005, p. 41), talvez as pessoas prefiram “um hoje diferente para cada um a pensarem seriamente num futuro melhor para todos”. Na promessa de satisfação imediata a empresa capta os desejos narcísicos de consumidores e trabalhadores. E esvazia o projeto coletivo de sociedade, baseado nos vínculos, nas relações de afeto e no reconhecimento mútuo. Ninguém aceita perder sua liberdade por uma causa que não lhe faça sentido. A identificação vai depender “do valor intrínseco que os grupos oferecem” (ROUCHY, 20001, p. 135). A empresa oferece este sentido para que todos possam identificá-la como objeto idealizado. O sujeito que perdeu seus ideais em relações sociais desagregadoras, pode não encontrar na sociedade projetos que façam sentido e nos quais possa investir. A migração, as desarticulações dos vínculos comunitários, a socialização nos espaços urbanos oferecem um laço social no qual os indivíduos possam construir um projeto coletivo? No qual possam construir e compartilhar sentidos existenciais? A perda de um ideal coletivo pode levar o sujeito a identificar seu ego com o objeto perdido, buscando continuamente objetos substitutivos que lhe prometam a mesma satisfação narcísica. O consumismo, através do fetiche do objeto, proporciona ao sujeito esta substituição e a possibilidade de se colocar imaginariamente na mesma posição que antes era idealizada pelo ego ideal. Este movimento de realização imediata do ideal é oferecida pela empresa, que se apresenta como um ideal passível de ser internalizado e que promete saciar o desejo de completude. ENRIQUEZ (1997), ao estudar o laço social e a formação de vínculos no trabalho, analisa a pulsão de morte neste processo de institucionalização das organizações. A pulsão de morte atua na demanda organizacional para que o sujeito se adapte às condições exigidas sem fazer reivindicações e sem espaço para colocar seu ponto de vista. Nos discursos são propagados referenciais que portam uma exigência de adaptação em massa. Não se pode reivindicar nada se não estiver de acordo com os padrões pré-estabelecidos pelos grupos do poder, e de todos que legitimam este ideal comum. O medo do descontrole faz com que se gere um pânico e condutas de repressão a toda manifestação de revolta, como se somente esta fosse uma manifestação do conflito. A 7 violência foi domesticada e destilada nas relações de trabalho em condutas aparentemente sóbrias e desprovidas de emoção. Ela se dá pela supressão da subjetividade, e quando esta subjetividade reivindica reconhecimento, pode ser acusada de violenta, ‘difícil’, ‘louca’, ‘problemática’, ineficaz, etc. Porém, este ideal massificante impõe práticas de assujeitamento, que consequentemente levam a uma perversidade social que tem como conseqüência diversas doenças decorrentes do sofrimento psíquicos geradas pela banalização de práticas de assédio moral nas relações de trabalho. O culto da aparência, de normalidade, de controle, de assertividade, é ‘materializado’ em um sentimento de grupo incentivado pelas empresas, para manter sob controle o ideal coletivo e punir aqueles que duvidarem de sua totalidade. Quem quiser fazer seu trabalho precisa ser membro desta cultura, com a empresa são estabelecidos ‘contratos de identidade’, para que o indivíduo possa participar da cultura massificada, da aparência de consolidação do todo, e reafirmar o ideal do grupo, a verdade da organização. As regras estabelecidas na convivência atingem a forma de vestir, a forma de falar, determinando condutas genericamente estáveis, no compartilhamento de hábitos de pensamento e de ações, e em última instância, no compartilhamento de sentimentos e emoções em torno de si mesmos, em uma identificação grupal a serviço do ideal da organização. A tendência à homogeneidade aliena os indivíduos de suas diferenças levando a estabelecer com o diferente uma relação de expurgação. O sacrifício subjetivo para a homogeneidade não permite a aceitação da diferença do outro. Os indivíduos que se adequam ao imaginário comum passam a supervalorizar e se devotar para a afirmação do grupo, para suas crenças, suas práticas, suas rotinas e sua visão de mundo. A diferença é vista com desconfiança e toda agressividade, que foi necessária para negar a individualidade a serviço do grupo, será usada para negar aquele que não investe ali sua libido. Quando o indivíduo escolhe o grupo para fazer seu investimento narcísico, ele vislumbra uma possibilidade de satisfação, e esta satisfação está associada a busca de certezas, amenização das culpas persecutórias, repressão das fantasias de castração, pois o grupo reforça seu comportamento narcísico ao se manifestar como um fenômeno de massa, no sentido da homogeneidade e do compartilhamento de um ego comum. A organização, ao se tornar um objeto de identificação, torna-se a fonte de realização de desejos e contenção das angústias de fragmentação e despedaçamento, assim o sujeito torna-se dependente dela, não somente para sua existência material, mas também como garantidora de sua própria identidade (PAGÈS, 1987). Para assegurar esta identidade, os indivíduos devem negar as particularidades, que são reprimidas e reinvestidas no grupo como busca de reconhecimento como membro. Somente são toleradas as diferenças que se manifestarem contra o sentimento de grupo. A força do grupo está na sua lógica que faz 8 calar as interrogações acerca de suas certezas, ideais, conformidade e normalidade passiva. A saída à regra é punida, em uma eterna culpabilização dos indivíduos que não se adaptam, que jamais atendem aos anseios de homogeneidade e completude do grupo. O processo de identificação é permanente e a organização passa a ter um importante papel nos vínculos sociais da atualidade. Ela promete ser a restauradora do ego e de suas fantasias de idealização, a organização atualiza o narcisismo e reforça os vínculos objetificantes. A organização torna-se o todo que o indivíduo quer ser, ela é completa e portanto deve ser vista como intransponível, inquestionável, qualquer regra ou demanda dos líderes da organização são interpretados como lei, e aqueles que questionam as rotinas, hábitos e práticas são alvo de desconfianças. Ao mesmo tempo que a organização se apresenta como realizadora do ideal, ela só permite projeções que façam parte do seu ideal de certeza e autonomia. A construção de uma identidade coletiva idealizada limita a subjetividade individual e empodera a organização. Este processo de ideologização é descrita por Marx como alienação.A autonomização da organização é a alienação dos indivíduos, ela o convoca à uma identificação que elimina sua identidade prévia e o individuo fica a mercê das flutuações do mercado, das exigências de comportamentos adequados, moldando-se às identidades construídas e fluídas. Cada vez mais frágil, o indivíduo se sente incapaz de abrir mão da organização nutridora e devoradora que o dominou, por sua ânsia de completude e realização narcísica. Esta característica de adaptabilidade e de busca de realização narcísica é reforçada pelo avanço da sociedade individualista. A descrença na estabilidade e a desconfiança nas antigas estruturas de referência coloca as relações em constante perigo de desintegração. E a empresa busca assegurar esta integridade à custa da subjetividade de cada um. A experiência viva do sujeito desejante é produtiva para as organizações, para seus objetivos? Para a psicanálise, a identidade não é completada em nenhum momento pois o sujeito vive um processo de identificação, que assimila e diferencia constantemente, entretanto, o aniquilamento da identidade individual por uma identidade coletiva pode levar à morte do sujeito tal como ele se constituía. Sua subjetividade se constrói nas relações sociais e depende dos vínculos de suporte que garantem sua unidade e continuidade, sua história e seu futuro. O indivíduo perde sua autonomia relativa e sua dependência relativa, tornando-se homogêneo e indiferenciado, vivenciando o vazio em uma sociedade sem suporte para sua experiência. Esta experiência de esvaziamento pode levar o sujeito a abrir mão de sua subjetividade, mas ao contrário de outras sociedades homogêneas, não encontra o suporte necessário para o pertencimento grupal, encontra somente um ideal narcísico ‘ilusório’. Posteriormente, a perda deste ideal acarreta um sofrimento psíquico que pode levar à depressão, ao suicídio, síndromes de pânico, desapego afetivo e tantos outros sintomas 9 decorrentes do sofrimento psíquico causado por esta dinâmica da pulsão de morte. A violência é uma “luta defensiva contra o sofrimento” e DEJOURS (1999, p. 36) pergunta se esta violência teria “alguma influencia sobre as posturas morais particulares e mesmo sobre as condutas coletivas no campo político”. A sociedade não garante mais ao indivíduo redes de vínculo nos quais possa suportar sua própria existência social. “O deslocamento das responsabilidades de escolha para os ombros do indivíduo, a destruição dos sinalizadores e a remoção dos marcos históricos, rematadas pela crescente indiferença dos poderes superiores em relação à natureza das escolhas feitas e à sua viabilidade, foram duas tendências presentes desde o início no ‘desafio da auto-identificação’” (BAUMAN, 2005, p. 57). Este desenvolvimento mostrou-se patológico, pois a flexibilização das estruturas sociais e institucionais não oferecem mais as garantias de uma vida social segura e tornaram o homem livre de vínculos e de compromisso social e político. Mas por outro lado precisamos de vínculos, para manter nossa própria unidade e continuidade. Nesta ausência de ideal social, as organizações exercem este papel, atendem a uma necessidade subjetiva e tornam-se indispensáveis aos sujeitos, submetendo-os ao mesmo tempo a uma homogeneização, afirmando a identidade de (re)produtor (trabalhador8) e de consumidor9 como proeminente na sociedade atual. Entretanto, para BAUMAN (2005, p. 41) “as estruturas das empresas capitalistas e as rotinas da mão-de-obra empregada, cada vez mais fragmentadas e voláteis, não parecem mais oferecer uma estrutura comum dentro da qual uma variedade de privações e injustiças sociais possa (muito menos tenda a) fundir-se, consolidar-se e solidificar-se num projeto de mudança”. Porém, onde o sujeito encontra vínculos sociais que acolhem sua demanda de reconhecimento já que o trabalho se tornou uma identidade fundante10 na sociedade individualista? Existem outros grupos que ofereçam “proteção contra a naturalização das práticas e o engessamento institucional” (ALEVATO, 1999, p. 58) capaz de relativizar a influência das organizações capitalistas na subjetividade de seus membros? Como desapareceram na sociedade os grupos de referencia e de identificação, as organizações exportam para outras instituições seus valores de competitividade e sucesso econômico, ou seja, empresta à sociedade um imaginário baseado na performance, em valores competitivos essencialmente econômico, uma visão pragmática do mundo que é assimilada como verdade e os sujeitos que lutam sozinhos por sua sobrevivência material e psíquica. Para WEBER (2004) este processo de racionalização da vida acontece em todos 8 9 10 CASTEL, R. As Metamorfoses da Questão Social. Petrópolis: Vozes, 1998 CASTORIADIS, C. A Ascensão da Insignificância. Editora Bizâncio, 1998, Lisboa. CASTEL (1998:12) coloca o trabalho como tema central no eixo das relações sociais, que gera configurações culturais, simbólicas e identitárias. 10 os lugares, mas é na organização que este processo é mais intenso. A desarticulação entre a busca de riqueza e seu sentido espiritual, tornando a busca de sucesso e de riqueza um esporte (WEBER, 2004). Porém, BAUMAN (2005, p. 80) nos alerta sobre o caráter transitório e frágil dos ideais sociais pois atualmente “tudo que não seja sobrevivência do indivíduo parece um mau investimento. Seu gozo e satisfação potenciais são mais bem saboreados e consumidos imediatamente”. Segundo o autor, paramos de nos preocupar com aquilo que não temos controle e concentramos nossa atenção e energias naquilo que parece ao nosso alcance, são as coisas que precisam nos explicar porque merecem nossa atenção, não buscamos nada além daquilo que corresponde aos limites de nossa vida. Talvez por isso, quando a organização se apresenta com uma promessa de realização de um ideal narcísico ganhe tantos adeptos e cause tanto sofrimento psíquico, sem que a situação se configure de outra forma. A empresa faz de seu discurso uma máscara, escamoteando sua prática efetiva no mercado, de exploração e utilitarismo. As conseqüências são percebidas tardiamente pela maioria dos trabalhadores que atuam nela e acreditam nas suas promessas. Ambigüidade: a busca de identificação e o medo da indiferenciação Para FREUD existe uma ambivalência na própria relação com a autoridade, por um lado o ódio por aquele que ocupa o lugar de poder e de ideal por outro o amor que une os iguais em busca de um pouco deste poder, representado pelo ideal. ENRIQUEZ (1998, p. 37), apoiado em FREUD, afirma que “a concentração exclusiva sobre um pequeno grupo, desconectado do mundo pode, também, ser terrivelmente fascinante; entretanto, todas as sociedades tentam descartá-lo, por exprimir e mascarar simultaneamente, o sonho do assassinato do rival abominado e adorado, daquele que ocupa a função paterna”. A relação da organização com o ideal social é igualmente ambígua, por um lado afirma-se como uma totalidade capaz de atender a todas as necessidades do sujeito, por outro, se reconhece como incapaz de dar suporte à própria socialização, dependendo de uma moral superior a si mesma. As organizações e a sociedade podem conquistar esta autoridade moral quando conseguem, em situação de rivalidade, transformar o ciúme dos indivíduos em solidariedade, quando é possível ao indivíduo que detém o poder renunciar à dominação sobre os outros, e assim impedir que qualquer um seja capaz de aspirar a dominação e aniquilação do outro (ANZIEU, 1993). Assim o indivíduo pode renunciar às suas defesas egóicas em favor de um projeto coletivo que dê suporte à sua angústia e ao seu desejo. Ou seja, ao mesmo tempo que a organização “vai tentar destruir as instituições”, ela precisa garantir para este grupo uma “ordem fraterna e igualitária” (ENRIQUEZ, 2001, p. 65). 11 Mas em um contexto social de crise global, onde o fator econômico torna-se o único referencial social, dando um sentido de urgência, a segurança individual em um projeto coletivo se torna cada vez mais percebido como um investimento ‘arriscado’. Por outro lado, esta amplidão adquirida pelo imaginário organizacional é geradora de angústia. Quanto mais ela ganha adesão social, quanto mais ela busca a identificação e a adesão de todos aos valores e normas estabelecidas pela organização, mais estarão presentes as angústias fundamentais. Angústias presentes em todos os vínculos sociais que buscam se institucionalizar, se universalizar. As relações sociais estão marcadas pela transitoriedade do mundo, que leva a maioria de nós, segundo BAUMAN (2005, p. 68), a buscar participar de uma ‘comunidade’, que é um fenômeno ambíguo pois “amado ou odiado, amado e odiado, atraente ou repulsivo, atraente e repulsivo. [O desejo de participar de uma comunidade é] uma das mais apavorantes, perturbadoras e enervantes das muitas escolhas ambivalentes com que nós, habitantes do líquido mundo moderno, diariamente nos defrontamos”. Ao mesmo tempo que é um sofrimento participar de uma comunidade, que exige que o indivíduo abra mão de seu desejo e de suas diferenças, sentimos necessidades de estabelecer vínculos estáveis e duradouros. A maioria de nós não quer mais a comunidade homogênea e nem a ausência de vínculos sociais significativos. Vivemos na ambigüidade, entre a hierarquia e a fraternidade, o reconhecimento e o ato de evitar o outro, percepção e negação da realidade, busca de unidade e sofrimento no desamparo, medo da quebra, do despedaçamento e da morte, o reconhecimento do desejo e da diferença e o medo da palavra livre (ENRIQUEZ, 2002). A psicanálise acredita que o desamparo humano é um fato e que aprender a ser sujeito no mundo não corresponde a uma afirmação identitária, as identificações são processuais, nunca totais e nem por isso os vínculos são ilusórios pois pode se apoiar no reconhecimento de nossas dores, nossas experiências e na busca de construir um modo de agir mais perceptivo às necessidades do outro. Entretanto, BAUMAN (2005, p. 98) considera que há uma ambigüidade em todos os relacionamentos pois “o preço da companhia que todos nós aparentemente desejamos é invariavelmente o abandono, pelo menos parcial, da independência, não importa o quanto possamos desejar aquela sem este...” Por um lado, o sujeito se vê a mercê de seus impulsos agressivos e exigentes, por outro um social igualmente agressivo e exigente. A escolha parece ser a que tipo de desamparo cada um é capaz de suportar. Porém o sujeito é obrigado a se deparar com ambos. A escolha entre a autoridade do Ideal de eu e a autoridade do Ideal social, ambos dispostos a se perceber integrados a um Ego idealizado pela cultura individualista. 12 Referências Bibliográficas ALEVATO, H. Trabalho e Neurose: enfrentando a tortura de um ambiente em crise. Rio de Janeiro: Quartet, 1999. ANZIEU, D. O Grupo e o Inconsciente: o imaginário grupal. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1993. ARAÚJO, J. Função Paterna e Constituição dos Grupos Sociais. IN Figura Paterna e Ordem Social, Belo Horizonte: a Autentica Editora PUC Minas, 2001. BAUMAN, Z. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. CASTEL, R. As Metamorfoses da Questão Social. Petrópolis: Vozes, 1998. CASTORIADIS, Cornelius. A Ascensão da Insignificância. Editora Bizâncio, 1998, Lisboa. COSTA, J. F. Narcisismo em Tempos Sombrios. IN Tempo do Desejo: sociologia e psicanálise. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1989. DEJOURS, C. A Banalização da Injustiça Social. 2 ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1999. ENRIQUEZ, E. 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