O potencial terapeutico dos enteogenos

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Departamento de Psicologia
Trabalho de Conclusão de Curso
O POTENCIAL TERAPÊUTICO DOS ENTEÓGENOS
Rafael Berger Sacramento
Orientação da professora
Eliana Freire
Rio de Janeiro
Outubro, 2008.
Resumo
Este trabalho tem como objetivo discutir a possibilidade do uso terapêutico
das substâncias mais comumente chamadas de alucinógenos. Estigmatizados após os
problemas relacionados aos abusos nos anos 60, os enteógenos vêm demonstrando
eficácia em áreas complexas da psicoterapia e no tratamento de patologias que muitas
vezes não respondem bem a tratamentos convencionais. Nesta monografia são
analisadas e revisadas recentes publicações em periódicos científicos e matérias de
revistas conceituadas, assim como antigos estudos realizados antes das proibições
estabelecidas nos anos 60 e 70. Os possíveis riscos, assim como formas de controlálos também são analisados.
SUMÁRIO
1.
Introdução.....................................................................................................01
2.
O que são os enteógenos...............................................................................03
3.
4.
2.1
Definição e etimologia......................................................................03
2.2
Substâncias........................................................................................04
2.3
Química e farmacologia....................................................................09
2.4
Efeitos gerais.....................................................................................10
2.5
Enteógenos e a lei..............................................................................14
Áreas potenciais de utilização.......................................................................16
3.1
Dependência química........................................................................16
3.2
Ansiedade em doentes terminais.......................................................20
3.3
TOC e TDC.......................................................................................26
3.4
Insights terapêuticos..........................................................................28
3.5
Experiências espirituais.....................................................................31
3.6
Outros usos........................................................................................37
3.6.1
Depressão..............................................................................37
3.6.2
Terapia psicolítica e tratamento de neuroses.........................38
3.6.3
Síndrome do stress pós-traumático........................................39
Riscos............................................................................................................41
4.1
Toxicidade e perigos físicos..............................................................41
4.2
Dependência......................................................................................44
4.3
Flashbacks: TPPA.............................................................................44
4.4
Transtornos psicóticos.......................................................................46
4.5
Experiências emocionais negativas: Bad Trips.................................47
5.
Prática terapêutica: como maximizar benefícios e diminuir riscos...............50
6.
Conclusão......................................................................................................54
7.
Referências Bibliográficas.............................................................................56
1. Introdução
Quando o assunto de substâncias psicoativas ilegais é abordado em nossa
cultura, quase sempre é com uma conotação negativa, denunciado abusos, associando
o uso de drogas à criminalidade e outras expressões indesejáveis do ser humano. O
ideal ocidental de um ser humano “bom” está muito ligado à sua produtividade, à sua
funcionalidade social, ao acumulo de conhecimentos intelectuais e às habilidades
passíveis de serem medidas e/ou demonstradas. A evolução e o desenvolvimento do
homem nesta visão são, portanto, incompatíveis com o uso de determinados
psicoativos, que seriam vistos como sérios perturbadores do comportamento e da
saúde, ou no máximo como divertimentos superficiais.
Existem, porém, outras culturas com uma atitude diferenciada, onde certas
substâncias são cuidadosamente utilizadas para fins benéficos. Algumas tribos
indígenas como os Kaxinauá, por exemplo, utilizam a ayahuasca, bebida psicoativa
proveniente de plantas da Amazônia, tanto para curas psico-espirituais quanto para
resolver conflitos sociais. Isto não significa que este uso coletivo generalizado sendo
transposto da mesma forma para nosso contexto social seria necessariamente
benéfico, talvez até o contrário, mas nos mostra que existem sim maneiras alternativas
de se lidar com os enteógenos.
Uma visão positiva do uso dos mais comumente chamados alucinógenos não
é, entretanto, limitada aos povos indígenas. Mesmo em nossa própria cultura, como
iremos observar, tanto no passado quanto no presente estas substâncias foram e são
utilizadas de forma terapêutica e controlada. Recentemente a discussão sobre o
potencial terapêutico de enteógenos vem sido abordada por renomados cientistas e
revistas conceituadas como, por exemplo, a revista Scientific American, onde
figurava no início de 2008 uma matéria sobre usos medicinais e terapêuticos destas
substâncias, com o título “O retorno dos psicodélicos” (BROWN, 2008)1. Cada vez
mais surgem pesquisas na área, demonstrando talvez um renascimento do interesse
pelos enteógenos, que caíram no esquecimento algumas décadas atrás.
O fantasma dos abusos dos anos 60, entretanto, continua nos rondando,
trazendo um grande aviso sobre os possíveis perigos do uso indiscriminado. Será que
estamos preparados para tomar um novo passo? Será que, por trás de todos os riscos
1
Também disponível em inglês online em: http://www.sciam.com/article.cfm?id=psychedelic-healing
1
envolvidos, existe algo valioso para a psicologia e para a sociedade em geral? Será
que existe suficiente potencial terapêutico para abrirmos novamente esta porta? É o
que tentaremos responder nesta monografia.
Para tal, a primeira parte a seguir consistirá em uma visão geral dos
enteógenos. Analisaremos o significado desta definição e uma crítica a outros termos
mais utilizados, e também será feito um resumo das diferentes substâncias que podem
assim ser classificadas. Veremos, além disto, os aspectos químicos e farmacológicos,
o modo de ação dos enteógenos e um resumo dos efeitos subjetivos como descritos
utilizando a terminologia psiquiátrica, assim como a descrição de acordo com os
próprios usuários/voluntários de pesquisa. Fechando a primeira parte, questões
relacionadas ao controle pelos órgãos regulatórios e as leis vigentes serão analisadas.
A segunda parte será composta por sub-capítulos, cada um contendo
separadamente uma possível área da utilização terapêutica dos enteógenos. A menção
e análise de publicações antigas e recentes, assim como sugestões novas e
comentários serão feitos sobre áreas diversas como o tratamento de dependência
química, ansiedade em doentes terminais, transtorno obsessivo compulsivo, e também
a possibilidade de trazer insights terapêuticos gerais e possibilitar experiências
espirituais genuínas. Outras áreas onde menos dados estão disponíveis serão
mencionadas mais brevemente, como o tratamento de depressão, neuroses e síndrome
do estresse pós-traumático.
Seguindo, veremos os riscos inerentes ao uso de substâncias desta classe, tanto
em termos físicos quanto psicológicos. Discutiremos se existe a possibilidade destas
substâncias criarem dependência, o desencadeamento de transtornos perceptuais
persistentes, o aparecimento de sintomas psicóticos e as experiências negativas em
geral.
Finalizaremos o desenvolvimento do trabalho com uma discussão de como
uma possível atuação na área psicoterapêutica poderia ocorrer, utilizando como base
informações e publicações de estudos e tratamentos já realizados, assim como
trazendo sugestões novas. Nesta parte serão sugeridas medidas para diminuir os riscos
anteriormente mencionados e formas de aumentar os possíveis benefícios.
Por último concluiremos o trabalho medindo os prós e contras e dando um
parecer final sobre a existência ou não de um real potencial terapêutico nos
enteógenos.
2
2.
O que são enteógenos
Antes de analisarmos seus possíveis usos terapêuticos e os riscos inerentes,
devemos ver o que exatamente são os enteógenos, o significado deste nome, assim
como o motivo do termo comum alucinógenos ser evitado neste trabalho. Veremos
também um breve histórico e descrição das diferentes substâncias que podem assim
ser classificadas, a química e farmacologia envolvida, e também questões
relacionadas às leis.
2.1
Definições e Etimologia:
A palavra enteógeno é um neologismo sugerido por pesquisadores na década
de 70 (RUCK et al, 1979), e é derivado do grego antigo ἔνθεος (entheos) = deus
dentro, ou inspiração divina, e γεννώ (genno) = fazer nascer / gerar. Em outras
palavras, enteógeno pode ser definido como a substância que gera ou traz em
evidência a divindade interna ou inspiração divina. Esta etimologia está ligada em
grande parte ao uso ritualístico com propósitos espirituais, mas também podemos ver
simplesmente que esta denominação demonstra uma maneira mais respeitosa e
cuidadosa de lidar com estas substâncias, ou que elas são fontes de intensa inspiração.
Se ligarmos a palavra divindade ao conceito de Inconsciente Coletivo de Jung, ou da
Consciência Transpessoal de Grof, os enteógenos podem ser vistos como
instrumentos que, corretamente utilizados, permitem um contato seguro com os reinos
profundos da psique.
Um outro termo que poderia ser usado alternadamente, como sinônimo de
enteógenos, é a denominação de psicodélicos. No grego antigo, ψυχή (psyche) = Alma
e δήλος (delos) = Manifesta. Ou seja, os psicodélicos são substâncias capazes de fazer
manifesta a psique, a essência, ou os aspectos primários da mente humana. O
problema desta palavra é a sua associação com os anos 60, com o movimento da
contracultura e conseqüentemente com os abusos ali experienciados. Por isto neste
trabalho este termo será secundário, e o principal continuará sendo enteógenos.
A terceira denominação, que iremos descartar, é a mais usada tanto entre
leigos quanto no meio médico-científico: alucinógenos. O termo alucinógenos é aqui
considerado inapropriado, pois é baseado em premissas incorretas, incompletas e/ou
3
enganosas. De uma maneira geral, a idéia de alucinações com relação a estas
substâncias diz respeito às alucinações visuais. Levando isto em conta, a palavra em si
demonstra a sobrevalorização do aspecto visual da experiência, enquanto uma análise
fenomenológica nos mostra que a visão não é a única e nem necessariamente a
principal parte do efeito destas substâncias. Mesmo se estendermos o conceito para
englobar também as alucinações auditivas, por exemplo, ainda assim é uma definição
limitada. Aspectos como as formas alternativas de se relacionar com o corpo,
diferentes sentimentos, insights e sensações de transcendência e unidade, por
exemplo, são considerados tão ou até mais fundamentais.
Outro argumento contra esta definição é o fato de uma alucinação ser
considerada uma percepção sem base no real, o que não necessariamente corresponde
com o que ocorre ao ingerir um enteógeno. As experiências e visões são em muitos
casos fortes e trazem uma sensação de importância, mas em geral são percebidas
pelos usuários como qualitativamente diferentes das percepções da realidade
consensual, não podendo então ser chamadas de verdadeiras alucinações.
O termo alucinógenos traz também uma carga do modelo psiquiátrico
ocidental onde predomina uma distinção entre o normal e o patológico, baseada não
na capacidade do sujeito em lidar com sua experiência (e a possibilidade de fazer suas
visões serem incorporadas positivamente e de forma prática na realidade, ou em sua
realidade subjetiva), mas sim no que é usual, consensual, estatisticamente mais
comum. Lembremos, no entanto, que as grandes mudanças e transformações
paradigmáticas positivas na história humana ocorreram justamente por pessoas que
não se encaixavam na normalidade (Copérnico, Giordano Bruno, Einstein, Tesla,
todos os profetas iniciais das grandes religiões, etc.). O que devemos ressaltar e
considerar é o valor contextual da experiência, e a forma com que o sujeito lida com
ela, assim como as conseqüências para sua saúde e bem estar. O fato se é comum ou
não é menos importante, pois um sujeito pode ter experiências e idéias incomuns mas
conseguir agir no reino do consensual e transformar a sociedade positivamente.
2.2
Substâncias em destaque:
Neste trabalho iremos focar nas seguintes 5 principais substâncias, lembrando
que o nome entre parênteses corresponde ao principal princípio ativo: Peiote e São
Pedro (Mescalina), Ayahuasca (DMT e ß-Carbolinas), Cogumelos Psicoativos
4
(Psilocibina e Psilocina), Iboga (Ibogaína), e o LSD. Não existe aqui a pretensão de
exaurir a lista de todas as substâncias que podem ser consideradas enteógenas ou
psicodélicas, mas sim focar nas cinco acima, pois sobre elas existem mais indícios da
possibilidade de uso terapêutico, como trataremos adiante. Vejamos um pouco sobre
os enteógenos aqui descritos:
Peiote e São Pedro:
O peiote (Lophophora williamsii) proveniente da América do Norte, no
território desértico que abrange desde o México até o sul dos Estados Unidos, e o São
Pedro (Trichocereus pachanoi), nativo dos Andes Peruanos, são cactos que contém a
substância ativa mescalina. No caso do peiote, é utilizado em rituais por diferentes
povos indígenas no México, e também é a única substância enteógena autorizada nos
Estados Unidos para uso religioso nos rituais da Igreja Nativa Norte-Americana.
Estudos demonstram que já era utilizado ritualisticamente há pelo menos 6000 anos
(TERRY et al, 2006). O São Pedro também é utilizado há centenas ou milhares de
anos por diferentes etnias indígenas do Peru para fins religiosos.
Cogumelos Psicoativos:
Conhecidos popularmente como “cogumelos mágicos”, são compostos por
diversas espécies, sendo talvez Psilocybe cubensis a espécie mais conhecida. Estes
fungos contém o ingrediente psilocibina, que no corpo perde o grupo fosfórico e se
torna psilocina, substância farmacologicamente ativa. Dados indicam o uso de
cogumelos em rituais há 3.000 anos pela civilização Maia na Guatemala
(SCHULTES, 1976). Eram chamados pelos Astecas de teonanacatl, ou carne dos
deuses.
Quando os espanhóis chegaram ao Novo Mundo, ao se depararem com os
rituais dos cogumelos, passaram a persegui-los, pensando ser algo diabólico, o que
levou os índios a esconderem seu uso. De fato, o uso ritual de cogumelos se
considerou extinto, até que nos anos 50, o banqueiro e micólogo amador Robert
Gordon Wasson os redescobriu, participando de um ritual com a nativa Maria Sabina
em uma expedição ao território da tribo Mazateca no México e reacendendo
posteriormente a curiosidade do mundo ocidental sobre enteógenos (WASSON et al,
1978). Os cogumelos são ainda utilizados pelos índios Mazatecas no México, e
5
costumam crescer em áreas de pastagem, em geral em cima ou ao lado de esterco
bovino.
Ayahuasca:
A ayahuasca é uma bebida natural da Amazônia, conhecida pelos brasileiros
devido à crescente popularidade da religião do Santo Daime. É geralmente composta
por duas plantas que são fervidas no fogo de forma ritualística no chamado feitio. O
cipó Banisteriopsis caapi, mais conhecido como Jagube ou Mariri, é por si só
chamado de ayahuasca em algumas tribos. De uma maneira geral, porém, a ayahuasca
inclui outra planta chamada Psychotria viridis, ou rainha. Em algumas tribos ao invés
da rainha, pode ser utilizada a Diplopterys cabrerana, também conhecida como
chaliponga ou chacropanga.
Tanto a rainha quanto a chaliponga contém o alcalóide ativo DMT, que é
destruído no corpo humano por uma enzima chamada monoamina oxidase, ou MAO.
Para se tornar ativa, então, é necessário que a DMT seja ingerida juntamente com o
Jagube, que contém as beta-carbolinas (harmina, harmalina e tetrahidroharmina),
substâncias inibidoras da monoamina oxidase, ou IMAO. A necessidade da
combinação específica destas duas plantas é um fato curioso pois é difícil explicar
como, na diversidade biológica da Amazônia com mais de 80000 espécies de plantas
e uma chance de 1 em 3,2 bilhões, os índios conseguiram descobrir exatamente esta
combinação necessária para se ter efeito.
A ayahuasca, que significa “cipó das almas” na língua Quéchua, é também
chamada de yagé. É utilizada há centenas, se não milhares de anos por diferentes
tribos indígenas da bacia amazônica, e é parte integrante de suas culturas,
influenciando a arte e mitologia de forma singular (SAMORINI, 2001). Desde o
começo do século 20, o uso da ayahuasca tem se expandido e, saindo da floresta,
passou a ser incorporado em religiões ayahuasqueiras urbanas como o Santo Daime, a
União do Vegetal (UDV) e a Barquinha. Estas religiões, fenômeno exclusivamente
brasileiro, mostram influências não só da pajelança indígena, mas também do
catolicismo, do kardecismo, esoterismo europeu e também da umbanda, em um
peculiar sincretismo religioso. Estas religiões, em especial o Santo Daime e a UDV,
têm aberto centros também no exterior, como nos Estados Unidos e em países da
Europa, sendo aceitos pela legislação local em alguns casos e em outros enfrentando
problemas legais (LABATE, 2005). Em outros países da América Latina,
6
especialmente no Peru, além do uso por tribos indígenas, existe também o chamado
vegetalismo, praticado por populações mestiças. O trabalho dos curandeiros, como
também são chamados, é parte de uma medicina popular composta por uso de plantas
consideradas sagradas como a ayahuasca, cantos e dietas, sempre com o objetivo
principal de realizar a cura física, mental e espiritual.
Iboga:
Arbusto nativo da África ocidental, em especial na região de floresta
equatorial composta pelo Gabão e Congo, a Tabernanthe iboga contém a ibogaína,
um alcalóide psicoativo. A iboga é considerada a planta responsável por impedir o
cristianismo e islamismo de se espalhar pela área, pois ajudou a construir uma forte
identidade religiosa (SCHULTES, 1976). Utilizada pela tribo Buiti, é parte
fundamental de rituais de passagem, em especial quando um adolescente se torna
adulto, ou de uma maneira mais geral quando algum indivíduo decide se tornar
membro da comunidade religiosa.
O conhecimento original sobre esta planta foi transmitido pelos Pigmeus, que
até hoje praticam os “mistérios da iboga” de modo secreto e longe dos olhos dos
ocidentais (SAMORINI, 2005). Já os Buiti se tornaram mais abertos para a
curiosidade dos estrangeiros e alguns grupos consideram inclusive um grande
acontecimento quando ocorre a iniciação de um ocidental interessado (idem). A
ibogaína, tanto em seu perfil farmacológico quanto em seu perfil de riscos, representa
uma certa exceção e se difere de outros enteógenos, como veremos adiante no
capitulo 4, e por isto é necessário um maior cuidado específico com esta substância.
Para lidar com estes riscos, os buitistas desenvolveram técnicas complexas para
acompanhar o estado do iniciando, como por exemplo espetar agulhas em partes
específicas do corpo que se anestesiam com o efeito da substância, sabendo assim o
momento exato quando se torna necessário cessar a ingestão (idem).
LSD:
Substância semi-sintética, o LSD (Dietilamida do Ácido Lisérgico) é
produzido após um processo químico utilizando como base o tartrato de ergotamina,
retirado do fungo Claviceps purpurea, ou ergot, que ataca o centeio. Foi descoberto
por acaso por Albert Hofmann, que estava pesquisando derivados do ergot para
tratamento de hemorragias pós-parto, e foi intoxicado acidentalmente. Comunicando7
se com seus colegas sobre os profundos efeitos na consciência, atraiu interesse de
psiquiatras, que pensaram poder encontrar, através do LSD, insights sobre o
funcionamento do cérebro em geral, e também explicações sobre o funcionamento e
causas da esquizofrenia.
O ácido lisérgico foi investigado extensamente nos anos 50 e 60 sobre seu
possível uso em diversas aplicações da medicina por psiquiatras e terapeutas. Até a
CIA, agencia de inteligência americana, investigou o LSD como instrumento em
potencial para realizar lavagem cerebral e facilitar a obtenção de informações em
interrogatórios de inimigos, no agora conhecido projeto MKULTRA, abandonando as
pesquisas devido aos efeitos serem demasiadamente imprevisíveis (TENDLER e
MAY, 2007).
Durante a década de 60, o uso do ácido lisérgico ficou muito associado à
contracultura e ao movimento hippie. Um dos expoentes mais notáveis deste
movimento foi Ken Kesey, escritor do clássico Um Estranho no Ninho. Iniciando na
Califórnia junto com seu grupo de amigos, os sempre fantasiados Merry Pranksters,
viajaram pelos Estados Unidos em um ônibus reformado e totalmente pintado de
cores fluorescentes. Brincavam com todos que estivessem pelo caminho, gravando
sons vindos do lado de fora do ônibus, e tocando estes sons de volta para o exterior
misturado com musicas, em uma verdadeira cacofonia utilizando alto falantes presos
no teto. Tudo isto enquanto consumiam LSD e realizavam festas onde quer que
estivessem. Kesey e os Merry Pranksters utilizavam o ácido lisérgico primariamente
por seu suposto potencial criativo e recreativo, e deles surgiu toda uma estética
posteriormente muito famosa, do uso de cores fluorescentes e luzes coloridas, forma
de se vestir e estilo de criar musicas utilizando colagens de sons superpostos
(WOLFE, 1999).
Do outro lado dos Estados Unidos na costa leste estava Timothy Leary,
psicólogo PhD da universidade de Harvard. Iniciando suas pesquisas sobre psicologia
social, passou a estudar as possibilidades terapêuticas do LSD e da psilocibina.
Pesquisou sobre o uso destas substâncias na população carcerária, para diminuir a
reincidência de crimes após cumprirem suas penas e serem soltos, mas ficou mais
famoso por sua habilidade de comunicação, sempre aparecendo na mídia com seus
comentários sarcásticos ao criticar o governo e ressaltar talvez exageradamente as
qualidades do LSD. Tim, como também era chamado, acabou se tornando um ícone
8
controverso, venerado por alguns e duramente criticado por outros. Leary, Kesey e
seus grupos foram então em grande parte responsáveis pela popularização do LSD.
Apropriado pela contracultura em um momento de crise política, guerra do
Vietnam e protestos pela liberdade individual e também sexual, o uso e significado do
ácido lisérgico acabou eventualmente misturado com questões políticas, atrapalhando
a continuação e desenvolvimento de pesquisas sobre o potencial terapêutico. O LSD
foi proibido e seu uso controlado no final dos anos 60 e início dos anos 70,
parcialmente devido a dois grandes fatores: a veiculação de propaganda e informações
tendenciosas ou simplesmente mentirosas (como no caso dos supostos danos aos
cromossomos causados pelo LSD, que não era verdade) pelo governo americano de
Lyndon Johnson e posteriormente Richard Nixon, e também pelos reais problemas,
como o desencadeamento de transtornos psicológicos ou acidentes em geral que
aconteceram com a popularização e uso informal por pessoas em estados mentais e/ou
situações e contextos desfavoráveis. O LSD passou então a ter uma notoriedade
negativa que até hoje persiste (TENDLER e MAY, 2007).
2.3
Química e farmacologia:
Os enteógenos são quimicamente divididos em duas grandes famílias: as
triptaminas, ou derivados indólicos, e as fenetilaminas. Fazem parte do primeiro
grupo quase todos os enteógenos, como a psilocibina (4-hidroxi-dimetiltriptamina), a
DMT (N,N,-dimetiltriptamina), a ibogaína (12-metoxi-ibogamina) e o LSD
(dietilamida do ácido lisérgico). No segundo grupo o principal enteógeno é a
mescalina (3,4,5-trimetoxi-fenetilamina), e algumas substâncias sintéticas como o 2CB, sobre as quais não iremos nos estender.
É interessante notar que estas substâncias que produzem efeitos tão drásticos
sobre a mente não são necessariamente moléculas complexas e totalmente estranhas e
desconhecidas ao nosso corpo, mas pelo contrário, são muitas vezes extremamente
similares aos neurotransmissores encontrados em nossos cérebros. De fato, a
serotonina é também uma triptamina, e seu nome químico é 5-hidroxi-triptamina ou
5-HT. Vejamos a seguir as semelhanças químicas entre as diferentes substâncias e a
serotonina:
9
A DMT é um caso peculiar à parte, pois é um psicoativo endógeno, o que
significa que já é encontrada naturalmente em nossos corpos (FRANZEN, 1965). Isto
levou alguns cientistas a considerar uma possível ligação entre níveis desregulados de
DMT e a esquizofrenia (POMILIO, 1999), mas alguns estudos contrariam esta ligação
(MURRAY, 1976; JACOB e PRESTI 2005), sugerindo inclusive que a DMT tenha
um papel de ansiolítico natural endógeno ou que seja relacionado ao processo de
sonhos (CALLAWAY, 1988). Todas estas são até o momento somente hipóteses,
sendo necessárias mais pesquisas para descobrir qual é a verdadeira função da DMT
em nossos corpos no metabolismo normal.
Existem peculiaridades de cada substância, mas de maneira geral, os
enteógenos são agonistas serotoninérgicos, ou seja, agem nos neuroreceptores da
serotonina. Não agem, porém, em todos os neuroreceptores serotoninérgicos, mas em
especial no subtipo 5-HT 2a, e também parcialmente no subtipo 1a e 2c (SMITH,
1998; VOLLENWEIDER, 2003; NICHOLS 2004). A serotonina é conhecida por ser
um neuromodulador, não tendo uma função única, mas afetando diversos processos
do Sistema Nervoso Central, estando ligada à depressão, ansiedade, diferentes efeitos
comportamentais, etc. Este fato aponta para algumas das possíveis áreas onde os
psicodélicos podem ser utilizados. Como veremos adiante, o sistema serotoninérgico
não está ligado à funções vegetativas vitais, e por isso os efeitos dos enteógenos são
restritos a alterações na consciência e não provocam mudanças fisicamente perigosas.
10
A ibogaina é uma exceção, afetando não só diferentes neuroreceptores além
dos serotoninérgicos, como os dopaminérgicos, GABA-érgicos, acetilcolinérgicos,
entre outros, mas também o Sistema Nervoso Autônomo. Por isso, trataremos a
ibogaína separadamente no capítulo 4 onde os possíveis riscos serão analisados.
Em termos do fluxo sanguíneo e ativação cerebral, exames de neuroimagem
demonstraram sob o efeito dos enteógenos a ativação do córtex frontal, regiões
límbicas e outras áreas do cérebro, em especial no hemisfério direito, relacionadas ao
processamento das emoções, áreas de criatividade e interocepção (sensibilidade aos
estímulos originados no próprio corpo), entre outras (RIBA, 2006).
2.4
Efeito geral dos enteógenos:
Podemos analisar os efeitos de acordo com as definições do modelo médicopsiquiátrico, ou através de uma análise fenomenológica da experiência subjetiva
descrita em relatos de usuários, pacientes e voluntários. De qualquer forma, em ambas
as visões, é aceito que os efeitos dos enteógenos, ao contrário de outras drogas e
substâncias farmacêuticas, não são tão previsíveis, e que talvez tão importante quanto
a substância em si é o chamado set e setting, ou em outras palavras, o estado mental
do paciente/usuário e a situação e contexto onde é ingerida (WINKELMAN, 2001).
Todas estas substâncias, apesar de diferentes entre si em diversos aspectos
sutis, têm muitas qualidades em comum. Utilizando o modelo médico, podemos
dividir os efeitos em 3 grupos: sintomas somáticos, perceptuais e psíquicos
(HOLLISTER, 1984 apud NICHOLS, 2004, p.134):
·
Somáticos: tontura, fraqueza, tremores, náusea, parestesias, sudorese,
dilatação das pupilas.
·
Perceptuais: alteração de cores e formas, dificuldade em focar em objetos,
sentido aguçado de audição e mais raramente sinestesia (sentidos “cruzados”
como sentir gosto de cores, ver sons, etc.).
·
Psíquicos: alteração do humor, tensão e ansiedade, distorção na percepção do
tempo, dificuldade em se expressar, despersonalização.
É importante, porém, principalmente se o que nos interessa são os possíveis
usos em psicoterapia onde experiências psicológicas mais subjetivas são
11
fundamentais, que analisemos os efeitos como descritos pelos próprios usuários. É
importante lembrar que uma das características recorrentes nos relatos é a
inefabilidade, ou em outras palavras, a impossibilidade de descrever a experiência de
forma satisfatória, pois o que se passa está além do que pode ser descrito utilizando
palavras comuns. Os relatos são sempre vistos como pobres frente à riqueza da
experiência. De qualquer forma, para fins informativos, segue uma descrição
resumida e generalizada para esta classe de substâncias, retirada da base de dados de
relatos Erowid2, lembrando que cada experiência é única e esta descrição é uma visão
geral, e não se propõe ser final e tampouco incluir absolutamente todos efeitos
possíveis:
Os primeiros efeitos são sentidos entre 20 minutos e 1 hora, tendo seu ápice ao
redor de duas ou três horas após a ingestão. Inicialmente podem descrever “ondas de
energia”. O sujeito passa a ter sua percepção alterada. Por vezes os objetos parecem
muito mais nítidos, ou desfocados. Começam então a perceber padrões de textura em
objetos, como por exemplo formatos matemáticos e geométricos nas nuvens, ou faces
nas árvores. Ao fechar os olhos, os usuários podem descrever principalmente dois
tipos de imagens: figuras abstratas e padrões geométricos, e visões de cenas realistas,
podendo ou não estar ligadas à memória e experiência do paciente.
O sujeito, além das visões, pode a ter sua percepção corporal alterada. Seus
membros podem parecer gigantes ou pequenos, ou pode perder os limites entre as
diferentes partes do corpo ou entre a pessoa e objetos ao seu redor.
Um outro aspecto integral da experiência são os insights, ou epifanias,
momentos de entendimento e compreensão profunda sobre os hábitos, ações
anteriores e comportamentos do próprio sujeito, dos outros, sobre espiritualidade e
sobre o funcionamento do mundo e da existência de uma maneira geral. Os insights
podem vir acompanhados por visões que explicitam no campo visual a emoção ou
pensamento que o indivíduo experiencia. Os insights vêm sendo explorados como
catalisadores da psicoterapia, como veremos adiante.
As experiências por vezes são muito desagradáveis. As visões podem ser de
morte ou insetos asquerosos, as sensações podem ser dolorosas, podem haver
sentimentos de desespero, solidão, arrependimento, tristeza. Estas são popularmente
chamadas de bad trips, ou “viagens ruins”. Grande parte destas experiências negativas
2
Disponível em inglês online em: http://www.erowid.org/experiences/
12
está relacionada à situação ou contexto negativo onde a substância é ingerida (por
exemplo quando o enteógeno é consumido ao redor de pessoas que o sujeito não é
familiar ou não gosta, em lugares desconfortáveis ou em público), ou com o próprio
estado mental do experimentador (se ele está desequilibrado mentalmente, tem
assuntos pendentes para resolver, acaba de brigar com alguém próximo, ou se tem
propensões a distúrbios como esquizofrenia).
Outra possível reação negativa é a náusea e vômito, relatada em alguns casos.
Isto é mais comum principalmente no caso da ibogaína e da ayahuasca, onde no
contexto indígena, é interpretado de forma positiva, como uma “limpeza” tanto literal
quanto simbólica. Algumas vezes pode também ocorrer aumento moderado do
batimento cardíaco, tensão muscular e ataxia (falta de coordenação, podendo afetar
força muscular e equilíbrio), todas condições passageiras.
Os efeitos desaparecem gradativamente de 4 a 12 horas depois da ingestão,
dependendo da substância e da quantidade ingerida. Muitos usuários relatam ser
necessária uma noite de sono para voltar à normalidade.
Um dos grandes problemas da ilegalidade e do uso indiscriminado e
descontrolado é que as reações negativas mencionadas acima em geral não são
controladas, e o usuário não tem ajuda de um profissional treinado, resultando em um
maior numero de experiências negativas.
Os enteógenos são, portanto, substâncias vindas de fontes naturais, utilizadas
há milhares de anos em contexto ritual e controlado. Seus efeitos trazem uma
alteração da consciência, podendo ser tanto desagradáveis quanto agradáveis,
dependendo principalmente do contexto e do estado mental do paciente/usuário. Nas
ultimas duas décadas, cientistas conseguiram autorização para pesquisas com
resultados promissores. Isto gerou uma nova expectativa em relação a estas
substâncias, que possivelmente poderão, no futuro, ser utilizadas com fins
terapêuticos.
2.5
Enteógenos e a lei
A discussão sobre as questões legais dos psicodélicos não é o foco deste
trabalho, mas cabe aqui uma breve descrição do status legal destas substâncias, visto
que adiante são sugeridos usos práticos.
13
Existem peculiaridades nas leis de drogas dos diferentes países, porém de uma
maneira geral todos seguem as recomendações das Nações Unidas, em especial as 3
convenções sobre drogas realizadas em 1961, 1971 e 1988. Mesmo sem
fundamentação científica, em resposta ao pânico generalizado devido aos problemas
nos anos 60, a ONU, através da convenção de substâncias psicotrópicas de 1971,
classificou todos os grandes enteógenos mencionados acima (com exceção da
ibogaína, talvez por ser relativamente desconhecida na época) na mesma categoria da
heroína, proibindo qualquer uso e dificultando até pesquisas.
No caso do Brasil, a agência reguladora responsável por definir quais
substâncias são proibidas é a ANVISA, agência nacional de vigilância sanitária. Na
lista F2, onde estão substâncias proscritas, estão inclusos o LSD, a mescalina,
psilocibina (e psilocina) e a DMT em suas formas químicas purificadas. A situação
legal, porém se torna menos clara quando falamos das plantas e fungos que contém
estas substâncias em suas formas naturais. A única planta enteógena mencionada na
lista E de plantas das quais drogas psicotrópicas podem originar é o peiote. Nem o
cacto São Pedro, nem os cogumelos psicoativos, e nenhuma das plantas da ayahuasca
estão na lista. Só para exemplificar, tanto maconha quanto a papoula, por exemplo,
estão claramente situadas tanto na lista E que impede o uso na forma natural, quanto o
THC e a heroína figuram na lista F2, proibindo também o uso dos princípios ativos
purificado. O mesmo não acontece com os enteógenos, que, tirando o peiote como
dito, não fazem parte da lista E, deixando o uso na forma natural em um certo “limbo”
legal. A iboga e seu princípio ativo ibogaína não constam em nenhuma lista, o que
aparenta significar então que pode ser utilizada legalmente (ANVISA, 2007).
O caso da ayahuasca vale mencionar separadamente, pois faz parte de uma
legislação específica onde é liberada para uso ritual religioso no Brasil. Em 1985 a
divisão de medicamentos, DIMED, agora substituída pela ANVISA, incluiu a
ayahuasca na lista de produtos entorpecentes proscritos. O extinto Conselho Federal
de Entorpecentes, CONFEN, na época órgão superior ao DIMED, convocou a
formação de um grupo multidisciplinar para analisar a questão. Com o resultado
favorável dos estudos, a ayahuasca foi provisoriamente retirada da lista de proscritos.
Em 1992, após uma denuncia anônima relatando abusos nos rituais, novamente
pesquisadores foram convocados para estudar a questão, desta vez de diversos países,
em um extenso estudo agora conhecido como Projeto Hoasca. Os resultados
novamente favoráveis, sobre os quais discutiremos mais adiante, serviram para manter
14
a ayahuasca fora da lista de substâncias proscritas. Finalmente em 2006, o conselho
nacional anti-drogas legalizou em caráter definitivo o uso ritual e religioso da
ayahuasca, assim como abriu a possibilidade, mas somente caso venha a ser
comprovado a validade através de pesquisas científicas, o seu uso terapêutico
(CONAD, 2006). Ainda ligado à ayahuasca, outro evento relevante foi a recente
declaração do Peru sobre a ayahuasca como patrimônio cultural, fortalecendo a
aceitação tanto Sul-Americana quanto mundial da ayahuasca como instrumento válido
do desenvolvimento pessoal (MINC, 2008).
A utilização de qualquer substância em um setting terapêutico oficial implica
na aceitação das leis locais vigentes, assim como no seguimento de regras e diretrizes
institucionais. No caso do Brasil e no presente momento, vemos a possibilidade da
utilização ou ao menos pesquisas, dado que pré-requisitos sejam cumpridos, de
algumas destas substâncias mencionadas, em especial a ayahuasca, enquanto para
outros enteógenos não aparenta existir a possibilidade por agora. Independente disto,
o presente trabalho serve para ao menos abrir a discussão teórica e sugerir a utilização
prática tanto para o futuro no Brasil, quanto para outros países onde as possibilidades
aqui ausentes se abrirem. Se até nos Estados Unidos, criadores do modelo da
controversa Guerra Contra as Drogas, pesquisas com estas substâncias estão
recentemente sendo liberadas, talvez em um futuro próximo aqui também se torne
mais viável.
15
3
Possibilidades de tratamento
A seguir, veremos diferentes áreas da psicoterapia onde estudos e artigos
demonstram ser possível utilizar os enteógenos como instrumentos para auxiliar os
profissionais da saúde, em especial psicólogos e psiquiatras. As áreas estão divididas
em sub-capítulos para facilitar a visualização e leitura, mas estas divisões não são
absolutas e em caso de co-morbidades, por exemplo, os tratamentos podem ser
conjuntos. Existem outras áreas potenciais mencionadas na literatura e sugerida em
relatos, mas iremos focar nas que temos mais informações e dados científicos
confiáveis publicados.
3.1
Tratamento de dependência química
A dependência química e o abuso de drogas legais e ilegais é um dos grandes
problemas de nossa sociedade moderna. Segundo a OMS, 76 milhões de pessoas
sofrem de diversos problemas de saúde relacionados ao álcool, e mais 15 milhões
sofrem de síndromes diversas causadas por outras drogas, sem incluir nestes números
os danos do tabaco. A dependência e abuso de álcool, tabaco e outras drogas são
responsáveis por milhões de mortes todos os anos, causando muito sofrimento, além
de custos altíssimos para a sociedade e também para a economia. É de extrema valia,
portanto, que possamos criar novas formas efetivas de tratamento, ou aperfeiçoar as
existentes, salvando vidas e melhorando a qualidade geral da existência humana.
Existem indícios, como veremos, que os enteógenos podem ser instrumentos úteis
nesta área da saúde.
Em 1992, na cidade de Tarapoto, na Amazônia peruana, a clínica Takiwasi
iniciou seu trabalho com uma atitude diferenciada sobre o tratamento de dependência
química. No programa foi proposto o trabalho em três níveis: uso de plantas
enteógenas, psicoterapia e atividades comunais. As experiências guiadas com as
substâncias psicodélicas geram material psicológico que é posteriormente trabalhado
nas sessões psicoterápicas, e então direcionado para a prática na vida comunal. A
teoria é que, assim, o paciente não estaria simplesmente se escondendo do antigo
meio onde consumia drogas, mas lidando com a base de seus problemas e aplicando
seus novos ensinamentos na convivência do dia-a-dia. Após sete anos de
16
funcionamento, foi realizada uma pesquisa no centro, com ex-pacientes que já tinham
completado seu tratamento há no mínimo dois anos. Foi demonstrado que somente
23% dos pacientes tiveram recaída e voltaram para os hábitos antigos. Destes
pacientes, 55% retornaram ao centro e 26% procuraram outros centros que também
utilizavam medicina indígena, demonstrando a alta estima que estes pacientes tinham
do método, apesar de seus relapsos (MABIT, 2002).
Em uma antiga pesquisa controlada com 135 pacientes alcoólatras
hospitalizados aleatoriamente escolhidos em Maryland, EUA, metade receberam
doses altas de LSD (450 microgramas, enquanto 100 microgramas é a dose padrão), e
a outra metade dos pacientes receberam doses menores de LSD (50 microgramas),
ambos juntamente com psicoterapia. Após seis meses, um grupo independente avaliou
os pacientes e conclui que 53% do grupo de doses altas estavam “essencialmente
reabilitados”, enquanto 37% do grupo de doses baixas também foram considerados
reabilitados. Os números não diminuiram após dezoito meses (GROF, 1979, p.240).
Em 1955, o psiquiatra Colin Smith (1958) iniciou sua investigação sobre
alcoolismo e terapia com LSD. Vinte e quatro pacientes participaram do estudo, e, ao
final de três anos, doze pacientes não tiveram melhoras, seis tiveram algumas
melhoras e seis tiveram grandes melhoras. Na terminologia do estudo, “algumas
melhoras” significavam que o paciente havia realizado mudanças sociais positivas,
assim como diminuído significativamente o consumo de álcool. Grandes melhoras
significavam que o paciente estava totalmente se abstendo do uso.
Em resposta a dados publicados por estas e outras pesquisas, foi realizado na
universidade de Toronto um estudo sobre o efeito de LSD em alcoólatras, cuja
conclusão foi que não há beneficio considerável (SMART et al, 1967). Em réplica a
esta pesquisa, o psiquiatra canadense Abram Hoffer (1998) criticou a atitude dos
pesquisadores, não só pela falta de validade do experimento, mas também pela falta
de ética. Os pacientes haviam sido pré-medicados com barbitúricos para prevenir
contra convulsões, amarrados à cama, dosados com 800 microgramas de LSD (8
vezes a dose padrão) e o psicólogo presente não realizava psicoterapia nem ao menos
interagia com os pacientes, somente tomava nota. O que este estudo serviu para
demonstrar, porém, é que o LSD e outras substâncias psicodélicas por si só não tem
poder terapêutico, principalmente em um setting ruim, mas não se pode afirmar pelos
resultados se, em conjunto com um processo terapêutico e em um setting adequado,
podem ou não ser instrumentos efetivos.
17
Houveram outras pesquisas também com conclusões desfavoráveis. Em uma
outra investigação sobre LSD e alcoólatras, foram comparados os efeito em pacientes
alcoólatras de terapia comum, só LSD, terapia com LSD e terapia com LSD
juntamente com hipnose. Os resultados demonstraram que não houve mudanças
significativas entre os grupos (LUDWIG, 1970). Em uma crítica a este estudo, porém,
o psiquiatra Stanislav Grof (1979) apontou falhas como por exemplo a duração da
terapia, a orientação cética dos terapeutas como barreira para a relação terapêutica,
falta de acompanhamento pós-experiências e a preparação e experiência dos
psicólogos em relação a estas substâncias.
Ainda sobre alcoolismo, dados preliminares sobre outros enteógenos apontam
também para uma possível eficácia terapêutica. No caso do peiote, cacto utilizado por
índios Norte Americanos, o seu uso ritual aparenta ter alguma eficácia na diminuição
da incidência e tratamento de alcoolismo. John Halpern, do hospital McLean da
Universidade de Harvard, e também outros pesquisadores em ocasiões separadas,
perceberam que, apesar da incidência de alcoolismo entre os índios Navajo ser duas
vezes maior do que a média dos EUA, no caso destes índios pertencentes à Igreja
Nativa Norte-Americana, que utiliza o peiote, a quantidade de alcoólatras é bem
menor (HALPERN et al., 2005; HORGAN, 2005). É importante notar que não
necessariamente o peiote é o principal ou único responsável por este sucesso, mas
pode estar mais relacionado com a própria participação na Igreja Nativa. Como no
Alcoólatras Anonimos, existe toda uma influência e suporte do grupo essencial para o
tratamento, e na Igreja Nativa tanto este suporte quanto também o próprio código
moral e ético pode ser em grande parte responsável pela diminuição do alcoolismo.
De qualquer forma, ainda assim é uma área que merece uma maior investigação.
Outra das substâncias que está recentemente recebendo certa publicidade por
seu potencial no tratamento de dependência química é a ibogaína. Pesquisas
utilizando modelos animais demonstraram que a ibogaína diminui a autoadministração em ratos de cocaína e morfina por vários dias, assim como diminuindo
a síndrome de abstinência (SERSHEN, 1997; LEAL, 2003). Também foi
demonstrado que farmacologicamente a ibogaína bloqueia a liberação dopaminérgica
característica do efeito de opiáceos, assim como da nicotina (GLICK, 1998). Em
Miami, Deborah Mash (2000) realizou um estudo para determinar a segurança e
eficácia preliminar no uso da ibogaína com pacientes dependentes de heroína e
cocaína. Os resultados apontaram que após o uso da ibogaína, os pacientes
18
demonstraram valores significativamente reduzidos na escala HCQN-29, que mede o
nível de desejo para reutilizar a heroína, assim como na CCQN-45, para cocaína.
Além disso, os usuários demonstraram menores níveis de depressão em seus autorelatos.
Temos aqui então alguns exemplos de estudos controlados confiáveis, alguns
antigos, como os realizados por Smith, ou por Grof, nas décadas de 50 a 70, assim
como estudos novos como na clínica Takiwasi e por Deborah Mash. Vemos também
dados favoráveis na pesquisa utilizando modelos animais. É importante notar que
estes devem ser vistos como dados preliminares, e tanto a réplica de estudos, quanto
novos estudos devem ser feitos para conseguirmos dados mais confiáveis.
19
3.2
Ansiedade de doentes terminais
De todas as possíveis causas para a ansiedade, a morte é, talvez, a mais difícil
de lidar na psicologia. Como seres vivos, somos geneticamente programados para
evitá-la a todos os custos. A idéia de morte nos traz em encontro com o desconhecido,
para além do conhecimento intelectual e de nossas certezas mundanas. Logo, é
impossível, através de argumentos verbais, garantirmos tranqüilidade para outra
pessoa neste assunto. A facilidade de encarar a mortalidade sem medo só pode ser
atingida através do desenvolvimento e maturidade do próprio sujeito.
Alguns dizem não ter medo da morte, mas muitas vezes isto se deve mais a
estas pessoas evitarem confrontar verdadeiramente este destino do que a uma real
tranqüilidade. A inevitabilidade da morte é encoberta em nosso dia-a-dia com diversas
defesas psíquicas e bloqueios mentais. Pensamos sobre milhares de coisas, mas não
consideramos a possibilidade que podemos morrer em um futuro próximo.
Na terapia, a questão da morte acaba sendo lidada de forma indireta,
exatamente por sua certeza, em geral, não ser considerada conscientemente. Em
pacientes terminais, porém, a morte é a questão central, e muitas vezes a ansiedade
atinge níveis excessivamente elevados que devem ser trabalhados para garantir um
final de vida humano e tranqüilo para o paciente.
Terapias convencionais são, por definição, limitadas nestas questões, pois as
dúvidas centrais do paciente em relação ao desconhecido e à morte permanecem.
Qualquer contribuição do psicólogo virá de conhecimentos e opiniões oriundos de sua
vida, e não da morte, cujo mistério é o causador da ansiedade.
É neste contexto que talvez os enteógenos possam ser de grande utilidade, pois
aparentam possibilitar compreensões profundas sobre a existência. Estes insights
viriam da própria experiência transformadora interna do paciente, e não de sugestões
ou interpretações externas. Um dos grandes temas presentes nas experiências
enteógenas é a morte e espiritualidade. Uma grande parte das pessoas relata passar a
entender a morte como uma parte natural de um ciclo maior, e se sentir parte
integrante de um todo. Experiências como esta põe o sujeito em perspectiva com um
universo vivo, onde as partes estão conectadas, onde a morte é só um trecho da
história, e não mais se vêem como pessoas isoladas prestes a morrer e
conseqüentemente perder tudo. Desta forma, e com a ajuda de um psicólogo para dar
sentido aos insights e dar suporte à experiência, o sujeito potencialmente lidará com a
20
morte de forma mais pacífica e calma, não porque ele se esconde atrás de alguma
crença ou evita pensar sobre o assunto, mas sim pela tranqüilidade vinda de sua
própria experiência interna da questão.
A idéia de utilizar enteógenos em doentes terminais vem desde 1958 quando a
médica russa Valentina Wasson (1957) sugeriu que os cogumelos “mágicos”
poderiam ser utilizados no processo terapêutico, em especial no auxílio da terapia
com doentes terminais. Cinco anos depois, Aldous Huxley, famoso escritor de livros
como Admirável Mundo Novo, e Portas da Percepção, doente terminal de câncer, ao
perceber que havia chegado sua hora de morrer, pediu a sua mulher, Laura, que lhe
injetasse uma dose de 100 microgramas de LSD para facilitar sua incorporação com o
“Outro Lado” (GROF, 1977).
Seguindo estas sugestões, começando em 1969 um grupo de pesquisadores,
psicólogos e psiquiatras investigaram o efeito do LSD em mais de 100 pacientes com
câncer. Stanislav Grof (1979, p.253), criador da psicologia transpessoal e um dos
profissionais envolvidos nesta pesquisa, afirmou que “muitos pacientes mostraram um
alívio claro em diversos sintomas emocionais como a depressão, tensão geral,
distúrbios do sono”. Além disto, Grof (idem) escreveu que “as mudanças mais
notáveis nos pacientes foram observadas na atitude e nos conceitos sobre a morte”, e
que o entendimento dos pacientes sobre o assunto tendeu a mudar em direção à idéia
que “a consciência ou alguma forma de existência continua além do tempo da
aniquilação biológica”.
Mais recentemente, entre 1990 e 1995, o Dr. Rick Strassman (2001) realizou
nos Estados Unidos a primeira pesquisa oficial com enteógenos aprovada pelo FDA,
órgão regulador americano equivalente à ANVISA, em mais de 20 anos. Strassman
administrou DMT, o princípio ativo da ayahuasca, a sessenta voluntários sadios.
Examinemos descrições das experiências de três sujeitos diferentes que participaram,
relacionados a este tema:
Mais de uma vez, as sessões de DMT me presentearam com o
conhecimento da experiência descrita no Livro Tibetano dos
Mortos. Ainda maior é o presente de saber que eu pratiquei morrer
e retornei. (ELENA apud STRASSMAN, 2001 p.222, tradução
nossa)
Eu não tenho mais medo da morte. É como se você estivesse aqui,
e em um minuto você está totalmente em outro lugar, e é assim que
é. Então eu acho que teve esse efeito. [...] Eu sei o que é estar
totalmente livre. (ELI apud ibidem, p.223)
21
Eu acho que uma dose alta é como o trauma da morte. Ele derruba
você de seu corpo. Eu poderia ter tolerado a morte ou uma
experiência do tipo ´saltar-deste-plano´ sob influência da DMT.
Isso seria uma boa substância para pessoas internadas ou com
doenças terminais. (JOSEPH, apud idem)
Segue outro exemplo da descrição de parte da experiência de um sujeito com
iboga, não relacionada ao estudo anterior.
Eu reconheci que a reencarnação é um fato, e que eu havia nascido
incontáveis vezes, e portanto a percepção de tudo ao meu redor
tinha muito mais sentido. Nossas preocupações banais nesta vida
me pareceram efêmeras e sem sentido. Passei a me sentir
confortável e absorver o cenário ao meu redor. [...] Também
compreendi que com nossas emoções, nossas energias, nós criamos
Deus ou o Diabo. Eu visualizei então todo o universo girando em
um circulo gigante, e percebi que não há começo nem final. É tudo
um grande ciclo que passamos por, até chegarmos aos estágios
avançados da evolução. [...] A razão porque estava morrendo e
renascendo no próximo segundo é porque o que parece o tempo de
uma vida aqui na terra, lá fora o conceito de tempo é inexistente.
(EROWID EXP 41522, tradução nossa)
Estas descrições claramente demonstram uma intensa re-significação sobre a
morte, assim como novas formas de compreensão mais profundas, catalisadas pela
experiência enteógena. Céticos poderiam argumentar que não passam de delírios,
fantasias, resultados de ações farmacológicas e não de reais experiências com a
essência da vida e morte. Poderia até ser, porém a procura por explicações
reducionistas ou a tentativa de encaixar o que ocorre em modelos ou teorias atuais
deve ser de menos interesse do que a analise dos reais e tangíveis resultados no bem
estar e saúde psicológica do indivíduo, assim como na sua capacidade em lidar com a
experiência. Devemos nos perguntar se a tentativa de modelação e o julgamento de
valores devido ao aspecto não convencional da experiência são realmente desejáveis
nesta situação, ou se devem ser secundários em relação às conseqüências perceptíveis
como a redução de ansiedade e medos, e o aumento na apreciação pela vida do sujeito
com alguma doença em estado avançado. Isto não necessariamente ocorrerá com
todas as pessoas, é claro, mas os dados mostram que no contexto apropriado, são
alguns dos efeitos possíveis e relativamente comuns que podem ser utilizados por um
profissional preparado.
Desde 2004, Charles Grob, psiquiatra da Harbor-UCLA vem pesquisando
sobre o uso da psilocibina, ingrediente ativo dos cogumelos “mágicos”, com pacientes
22
terminais com câncer. O objetivo deste estudo é medir a eficácia da psilocibina em
diminuir principalmente a ansiedade comum neste tipo de pacientes à beira da morte,
mas também a depressão e até possivelmente a dor física. Sendo a primeira pesquisa
deste tipo em mais de 30 anos com a psilocibina, Grob, optando por confiabilidade
científica, decidiu por um experimento duplo-cego controlado com placebo. Este
estudo atraiu interesse de diversas agencias de notícias como a reportagem da BBC,
com o titulo de “Esperança medicinal para as drogas psicodélicas”3.
No estudo do Dr. Grob (2007), marcado para terminar no final de 2008, os
sujeitos primeiramente passam por um processo de seleção que exclui outras
patologias como transtornos psicóticos, doenças cardiovasculares, entre outros..
Depois de selecionados e de algumas sessões de conversas onde são informados dos
diferentes aspectos da experiência, os pacientes com câncer terminal recebem em dois
dias diferentes e sem saber qual, uma substância inativa placebo e uma dose de
0,2mg/kg de psilocibina. Durante as seis horas de experiência, os pacientes são
encorajados a deitar e relaxar, fechar os olhos e se abrirem para os conteúdos que
surgem em suas mentes. Em geral ouvem musica de uma lista apropriada préselecionada, enquanto o médico permanece ao lado para qualquer eventual
necessidade. A cada hora a pressão arterial é medida, e se o sujeito desejar, pode fazer
comentários, em geral curtos, sobre o que está se passando. No final da experiência,
em geral 5 horas depois da ingestão, se desejarem os pacientes podem descrever mais
a fundo o que se passou, conversando com o médico. Nos dias, semanas e meses
depois das sessões, os investigadores ficam em contato próximo com os sujeitos,
provendo ajuda para integrar as sessões, assim como fazendo entrevistas e aplicando
questionários sobre níveis de ansiedade, depressão, medidas gerais da personalidade,
e também questionários específicos sobre qualidade de vida e questões espirituais.
Este contato continua até pelo menos seis meses depois da experiência.
No final do ano passado foram publicados alguns resultados preliminares
promissores e exemplos de experiências (GROB, 2007). Em uma vinheta de caso, é
relatado brevemente sobre P., uma mulher americana com descendência japonesa,
com câncer de cólon em estagio IV. Em sua sessão com a psilocibina, passou por
momentos de felicidade, prazer e relaxamento, mas também por momentos de
introspecção muito difíceis, onde parecia abalada e chorou por 20 minutos. Ela
3
Disponível online em inglês no site: http://news.bbc.co.uk/1/hi/health/3528730.stm
23
afirmou que chorou pois sentiu uma empatia muito grande por seu marido, e ao
“tornar-se ele” durante a experiência, sentiu o sofrimento pelo qual ele
inevitavelmente iria passar devido a sua morte. Nos meses seguidos da sessão
presumidamente ativa, Grob (2007, tradução nossa) conta que a voluntária:
Demonstrou um duradouro humor positivo, menos ansiedade,
maior aceitação de sua situação. Em particular, descreveu o
fortalecimento da ligação com seu marido, assim como maior
motivação e interesse em passar mais tempo com os amigos
importantes de sua vida. A única critica que ela fez sobre a
participação no estudo é que o protocolo só admitia uma sessão
ativa por paciente. P expressou fortemente sua visão que uma ou
duas sessões adicionais poderiam amplificar os efeitos positivos
que ela atribui à sua experiência com o tratamento com a
psilocibina.
É muito importante notarmos que não estamos sugerindo aqui que o uso dos
enteógenos é o único caminho possível para se lidar com a idéia de morte e ter um fim
de vida digno. Crenças e filosofias diversas, assim como experiências de vida e o
tempo de uma forma geral podem ajudar as pessoas aceitarem suas condições
inevitáveis.
Diferentes psicólogos e psiquiatras também falam de outros pontos de vista
sobre a questão da morte e sentimentos ligados a grandes perdas. Elizabeth KüblerRoss, por exemplo, trouxe a idéia que existem cinco grandes estágios pelos quais a
maioria das pessoas passa ao ser confrontada com o luto ou perda iminente: negação,
raiva, barganha, depressão e aceitação. Desta forma, o processo poderia até
naturalmente levar à aceitação, dado que as condições não impeçam por algum
motivo. Kübler-Ross falava muito sobre indivíduos que sofrem perdas de pessoas
próximas (ou também de emprego ou liberdade própria), mas o conceito também pode
ser aplicado para os próprios indivíduos ao confrontarem com o fim de suas vidas,
como é o caso após o diagnóstico de doentes terminais. Além de Kübler-Ross,
podemos perceber que o próprio conceito de cuidados paliativos na medicina está
ligado à idéia de trazer um fim de vida mais pacífico e compassivo para os sujeitos
confrontados com doenças incuráveis, e tem muito sucesso, não estando ligado aos
enteógenos. Estando consciente da existência e valor destas diferentes formas de se
ajudar tais pacientes e deles aceitarem pacificamente e naturalmente a inevitabilidade
da morte, estamos aqui sugerindo que os enteógenos podem ser também utilizados
como mais um instrumento psicoterapêutico disponível e efetivo.
24
Lidar com a idéia da própria morte é de suma importância para dar-se mais
valor à vida, possibilitando a resolução de conflitos e medos, e melhorando a
qualidade de vida. No caso das doenças terminais onde a morte é uma certeza
próxima, não saber lidar com o que virá significa um fim de vida perturbado,
ansiedades extremas e sofrimento psíquico desnecessário além do inevitável já
causado pela própria doença. O psicólogo pode, então, ajudar profundamente o
indivíduo para que este tenha um fim de vida mais humano, consequentemente
tranqüilizando também os familiares. Como escreveu o psicólogo Ralph Metzner
(1998, p.145, tradução nossa):
Em situações envolvendo doença terminal, a pessoa aproxima a
transição final gradualmente e tem a oportunidade de resolver
conflitos antigos, completar negócios não-terminados e se soltar de
medos e vínculos da imagem de si mesmo e de outros. Este é o
vasto potencial de morrer devagar, mas a não ser que haja apoio
[...] é difícil para a pessoa manter esta atitude consciente.
25
3.3
Transtorno Obsessivo Compulsivo e Transtorno Dismórfico Corporal
Alguns de nós devem se lembrar das cenas do filme “Melhor é Impossível”,
onde Jack Nicholson lava suas mãos repetidamente, tranca a porta de sua casa sempre
um numero específico de vezes e na rua, não pisa nas marcas negras no chão. Motivo
de risada em Hollywood, o Transtorno Obsessivo Compulsivo, como é chamado, é
uma doença psíquica séria, responsável por grave sofrimento dos pacientes e também
de suas famílias. No CID-10, manual de classificação estatística de doenças, o TOC,
como é mais conhecido, é descrito como “caracterizado essencialmente por idéias
obsessivas ou por comportamentos compulsivos recorrentes. As idéias obsessivas são
pensamentos, representações ou impulsos, que se intrometem na consciência do
sujeito de modo repetitivo e estereotipado”. O TOC é frequentemente acompanhado
de outras comorbidades como a depressão, aumentando ainda mais o sofrimento da
pessoa.
Sendo outra área promissora da possível utilização dos instrumentos
enteógenos, evidências de relatos informais e estudos preliminares mostram uma
aparente eficácia no tratamento desta doença. O mecanismo pelo qual esta eficácia se
dá ainda é parcialmente desconhecido, mas está sendo pesquisado neste momento nos
Estados Unidos.
Francisco Moreno, psiquiatra da universidade do Arizona, realizou um estudo
preliminar com nove pacientes acometidos pelo TOC. Previamente ao estudo de
Moreno, todos estes sujeitos haviam demonstrado dificuldade em responder a outros
tratamentos convencionais, incluindo diferentes tipos de medicamentos. Sua pesquisa
visava principalmente medir a segurança na administração da psilocibina, componente
ativo dos cogumelos “mágicos”, em pacientes com esta doença. Moreno também se
propôs a analisar a eficácia preliminar deste tratamento. Resultados de quatro sessões
por paciente demonstraram ser segura a aplicação, somente com um caso transitório
de hipertensão leve sem relação à ansiedade ou manifestações somáticas. Não houve
nenhum outro efeito colateral pronunciado em nenhuma das aplicações. Além disto,
todos os pacientes demonstraram forte diminuição dos sintomas em ao menos uma
das administrações da psilocibina (diminuição de 23% a até 100% na escala YBOCS).
Estas mudanças perduraram na maioria das vezes por mais de 24 horas, em dois casos
por uma semana e em um caso o paciente relatou remissão dos sintomas por seis
26
meses (MORENO, 2006). Estes resultados são encorajadores, porém devem ser vistos
como preliminares e não definitivos. Seria de interesse geral que houvessem réplicas e
em especial, com número maior de participantes no estudo.
O Transtorno Dismórfico Corporal (TDC), similar ao TOC em alguns
aspectos, também aparenta responder bem com o uso da psilocibina. Este transtorno é
caracterizado pela preocupação excessiva e desproporcional com algum pequeno
defeito ou característica ou problema imaginado do corpo. Tanto o TDC quanto o
TOC estão ligados à serotonina, e tanto a psilocibina quanto outros enteógenos atuam
nos neuroreceptores da serotonina (MORENO, 2006; HANES, 1996). No caso do
transtorno dismórfico corporal, os dados ainda são muito escassos. Uma das poucas
informações que temos sobre esta relação entre a psilocibina e o TDC são relatos
isolados, e em especial um estudo de caso realizado com um jovem de 27 anos. Este
rapaz apresentava sintomas da doença, com uma preocupação exagerada com suas
bochechas. Evitava diversos tipos de situações sociais, e inclusive havia abandonado
os estudos por se considerar feio demais, apesar de sua aparência ser normal, segundo
outras pessoas, incluindo o médico que o acompanhava. Foi relatado que ele passava
4 horas por dia se olhando no espelho. Ao utilizar cogumelos com o principio ativo
psilocibina em três ocasiões separadas, o jovem, ao se olhar no espelho, disse ter
notado que não estava mais deformado, que tinha sua aparência normal, e passou a
questionar pela primeira vez se sua deformidade era real ou imaginada. O médico não
continuou o tratamento usando psilocibina, mas iniciou o uso de fluoxetina, inibidor
seletivo da recaptação da serotonina, o que eventualmente também teve algum efeito
sobre a sintomatologia. Ao analisar o caso, o psiquiatra responsável sugeriu a possível
utilidade da psilocibina, por agir no mesmo neuroreceptor do remédio, e também por
que o paciente só se disponibilizou para o tratamento após ter tido sua experiência
com a psilocibina e haver melhorado seus sintomas (HANES, 1996).
27
3.4
Insights terapêuticos
Uma das principais características dos enteógenos observadas em relatos e
estudos é a grande quantidade de insights, epifanias, ou momentos de entendimentos
profundos do sujeito sobre ele mesmo, suas defesas e defeitos e seus padrões de
expressão. Na terapia, estes fazem parte de um dos grandes objetivos: trazer o sujeito
em contato consigo mesmo. Não é sem fundamento então que poderíamos pensar na
possibilidade do uso destas substâncias na terapia do sujeito “comum”, não
necessariamente necessitando de uma patologia dominante para ser tratada.
Na Gestalt-Terapia, algumas das técnicas utilizadas tem uma função muito
parecida com os efeitos dos enteógenos descritos acima, de demonstrarem
experimentalmente os padrões mentais, emocionais e comportamentais do próprio
sujeito, de forma que ele se veja, passando a ter um conhecimento maior sobre si
mesmo. Uma das técnicas conhecidas é o exagero proposital. Se o psicólogo percebe
que o paciente está, por trás de sua fala, preso em um sentimento de raiva, por
exemplo, ele pode pedir ao paciente que fale a mesma coisa com mais raiva, de forma
exagerada. Assim, colocando o paciente no extremo de sua emoção inconsciente, isto
pode fazê-lo perceber como agia antes, a inadequação de seus sentimentos engessados
que ele não percebia. Como disse o poeta William Blake, “O caminho do excesso leva
ao palácio da sabedoria”.
Outra técnica utilizada na Gestalt é da cadeira vazia, onde o sujeito deve
imaginar que alguma pessoa importante para sua vida está sentada naquela cadeira, e
deve “conversar” com esta pessoa imaginária. Pode se pedir também, por exemplo,
que o sujeito se sente nesta cadeira e se imagine como a pessoa com quem ele estava
falando. Estas técnicas visam tirar o sujeito de seus discursos usuais e associações
comuns em seu pensamento, se vendo de outra posição. Esta idéia de “se ver de fora”
está presente e é de extrema importância também no xamanismo enteógeno. Mircea
Eliade utilizava o termo de técnicas arcaicas do êxtase, para denominar as técnicas,
entre elas os enteógenos, que diferentes culturas arcaicas utilizavam para entrar em
um estado alternativo de consciência. De fato, a própria palavra êxtase vem de ex,
fora, exterior, e stasis, estar, permanecer. Ou seja, o êxtase do xamanismo é a
habilidade de estar, e consequentemente poder se ver, de fora de sua consciência
usual, da mesma forma que na psicologia, como nas técnicas da Gestalt-Terapia, para
o sujeito crescer é importante que se veja de um ponto de vista diferente, externo.
28
Outra característica dos insights é a possibilidade de pensar de maneiras mais
abrangentes. Pesquisas demonstram que os enteógenos têm em sua ação a
característica natural de efetivar isto, ou seja, de aumentar a gama de associações do
sujeito. É o que demonstrou o estudo de Spitzer (1996), afirmando que a psilocibina
aumenta a ativação de associações semânticas indiretas. Nesta pesquisa, Spitzer
(1996, p.1056, tradução nossa) afirma que
Nossos dados sugerem que o agente (psilocibina) de fato leva ao
aumento da disponibilidade de associações remotas, e portanto
pode trazer conteúdos à mente que em circunstâncias normais
permaneceriam não ativados
Vale notar porém que o pesquisador afirma que os sujeitos sob efeito de
psilocibina tiveram pior performance em outras medidas objetivas semânticas, ou
seja, não é uma “super-droga” da mente, mas pode sim ser um instrumento em
situações específicas como na psicoterapia e no aumento de insights terapêuticos,
trazendo conteúdos novos que não surgiriam normalmente.
Um dos termos muito utilizados pela cultura enteógena para explicar um dos
efeitos específicos resultante de doses altas é a “morte (ou perda) do ego”, ou em
inglês ego loss/death. Este fenômeno diz respeito à experiência subjetiva que os
usuários têm de eliminar as camadas superficiais da psique, desaparecendo a
personalidade e defesas comuns do ego, enquanto o centro observador da consciência,
ou Self, permanece. Os sujeitos descrevem, por exemplo, reviver situações em que
agiram incorretamente mas seus egos não lhes permitiu ver, e com a experiência
enteógena, viram o que havia ocorrido de forma menos ´ilusória´. Vejamos um
exemplo da fala de um jovem que tomou ayahuasca em um ritual indígena:
Eu reexperienciei as situações de uma melhor forma, sem todos os
filtros, bloqueios mentais e defesas que eu crio para proteger o meu
ego na vida normal. Eu vi como, antes de sair, eu disse para minha
mãe que viria para este ritual, mas eu não me preocupei em
explicar para ela. Ela estava preocupada, mas eu não lhe dei a
tranqüilidade que deveria ter dado. Eu estava sofrendo com estas
visões. O espírito da ayahuasca estava me mostrando como ser uma
pessoa melhor. (EROWID EXP 56871, tradução nossa)
Experiências como esta demonstram que, da mesma forma que na psicologia
um dos objetivos é que o paciente possa re-significar suas experiências passadas com
um novo nível de entendimento proporcionado pela terapia, os enteógenos também
29
podem servir para auxiliar o sujeito a aumentar o seu entendimento, reformulando
como ele vê seus atos passados, e consequentemente suas ações no futuro.
30
3.5
Experiências espirituais
A existência do ser humano se dá em diversos níveis inseparáveis, que
funcionam em uma rede de relações interconectadas. Além de sermos seres bio-psicosociais, somos também seres espirituais. Isto não necessariamente implica na crença
em um Ser controlador, superior, antropomórfico, um humanóide gigante e barbudo
que está nas nuvens, mas sim no que na psicologia transpessoal poderíamos chamar
de instinto de autotranscendência. Isto está ligado à busca pelo entendimento de
níveis cada vez mais profundos da existência, à auto realização e superação de limites
externos e internos. A espiritualidade, nestes termos propostos, também está
relacionada ao reconhecimento que o modelo científico é importante, mas que a
existência é maior do que o modelo, do que a descrição, ou nas palavras de Alan
Watts, “o menu não é a comida”. A espiritualidade também diz respeito à tentativa de
compreensão da unidade por trás da multiplicidade do universo, e da aparente
necessidade do homem compreender e lidar com dimensões mais profundas para uma
felicidade duradoura. Jung bem disse que “o homem não suporta viver uma vida sem
sentido”. Na clínica, são inúmeros os casos de pessoas bem sucedidas no trabalho,
com boas relações sociais, saudáveis corporalmente, mas que ainda assim não se
sentem felizes e relatam um vazio interior. A Bélgica, a Finlândia, a França e a Suíça,
países com alto nível de desenvolvimento, por exemplo, são também países com alta
taxa de suicídio.
No livro “O homem e seus símbolos”, organizado por Carl Jung (1964), M. L.
Von Franz explicita isto muito bem, ao dizer que
Hoje em dia um número cada vez maior de pessoas, sobretudo as
que vivem nas grandes cidades, sofre de uma terrível sensação de
vazio e tédio, como se estivesse à espera de algo que nunca
acontece. Cinema e televisão, espetáculos esportivos, agitações
políticas podem distraí-las por algum tempo, mas, exaustas e
desencantadas, acabam sempre por voltar ao deserto de suas
próprias vidas.
O vazio do homem moderno só pode ser preenchido com novas significações
mais profundas sobre a sua existência neste universo. É necessário que a psicologia
moderna forneça suporte para possibilitar estas novas formas de entendimento do
paciente, e que não somente permaneça no nível físico, emocional e intelectual da
dimensão humana.
31
Não é incomum escutarmos na atualidade críticas a Descartes por sua
separação radical entre a mente e o corpo. Em nosso paradigma moderno ainda
existem, porém, algumas separações dicotômicas radicais similares. Da mesma forma
que não existe uma distinção clara entre corpo e mente, também não existe uma
distinção clara entre mente e espírito, e por isso a psicologia deve incorporar tanto o
nível corporal quanto espiritual. Algumas pesquisas e relatos de experiências, como
veremos, demonstram como os enteógenos também são possíveis aceleradores deste
contato com o nível espiritual.
No dia 20 de abril de 1962, sexta feira santa, dez estudantes da universidade
Harvard ingeriram psilocibina, o principio ativo dos cogumelos Psilocybe Cubensis,
outros dez do grupo controle ingeriram como placebo niacina (vitamina B3), e todos
foram participar de uma missa de sexta feira santa. Posteriormente os participantes
foram entrevistados sobre suas experiências, com o intuito de se descobrir se um
enteógeno poderia realmente facilitar uma experiência genuinamente espiritual. Esta
foi a pesquisa “Capela Marsh”, organizada por Walter Pahnke e orientada por
Timothy Leary. A resposta dos questionários mensuráveis desenvolvidos por Panhke
(1963) demonstraram que oito dos dez participantes que ingeriram a substância ativa
tiveram uma experiência mística, enquanto ninguém do grupo controle teve tal
experiência. Rick Doblin, em uma análise posterior sobre esta pesquisa, entrevistando
os sujeitos participantes dos estudos vinte e quatro anos depois, concluiu que “As
mudanças positivas descritas pelos sujeitos (...) haviam persistido pelo tempo e em
alguns casos até aprofundado” (DOBLIN, 1991, p.23, tradução nossa).
Uma característica interessante para analisarmos, comum tanto aos escritos
espirituais e místicos, quanto a alguns escritos da psicologia e também à experiências
enteógenas, é a busca por níveis mais elevados de consciência. Gurdjieff, místico
armênio, por exemplo, definia o estado de vigília usual do homem como um sono
hipnótico. Ele dizia que:
A psicologia européia e ocidental deixou passar desapercebido um
fato de tremenda importância, isto é, que nós não lembramos de
nós mesmos; que vivemos e agimos e pensamos em um sono
profundo, não metaforicamente mas como uma realidade absoluta.
Também que, ao mesmo tempo, nós podemos lembrar de nós
mesmos se fizermos os esforços suficientes, que nós podemos
acordar. (GURDJIEFF apud OUSPENSKI, 2001, p.128, tradução
nossa).
32
Para Gurdjieff, seu trabalho consistia em técnicas para tornar o sujeito mais
consciente de suas ações, ao invés de ser mero resultado de influências externas. Na
psicologia, vemos também alguns autores falando sobre esta distinção entre a vigília
comum e uma possível consciência maior de si. Fritz Perls (1977), criador da Gestalt
Terapia afirmou que
Frisamos a diferença entre o atuar deliberado e o não ter
consciência de estar vivendo de uma determinada forma. Este
último fato é viver parte do script da vida e fazê-lo
compulsivamente, sem saber que esta é uma forma patológica de
viver.
Até mesmo Freud (1920, p.561, tradução nossa), ao notar que os sintomas da
neurose não desapareciam simplesmente pelo conhecimento intelectual da causa, mas
que era necessário um tipo de conhecimento mais profundo, disse “Há o conhecer, e o
conhecer; eles não são sempre a mesma coisa. Existem diferentes tipos de
conhecimento, que psicologicamente não são de forma alguma do mesmo valor”.
Similarmente, vemos em diferentes experiências enteógenas a compreensão que o
estado de consciência usual é limitado, e que existem outros níveis e formas saudáveis
de se enxergar o mundo, como no exemplo abaixo:
Em menos de oito horas eu tive uma rara demonstração do poder
da mente na construção da realidade. Eu vi que minha consciência
‘neurotípica’ é somente um plano, nível ou aspecto e que existem
infinitas novas formas a serem descobertas. (HARDISON, 2007,
tradução nossa)
Em um olhar mais atento, podemos perceber que, por vezes, as descrições de
experiências religiosas por místicos e santos reconhecidos são extremamente similares
a relatos de pessoas comuns ingerindo enteógenos. Se olharmos para os diferentes
tipos de experiências religiosas como as analisadas por William James (1929), ou no
estudo do psicólogo Ralph Metzner (1998) sobre as metáforas da transformação em
diferentes religiões, culturas e mitos, por exemplo, podemos encontrar fortes paralelos
com experiências enteógenas. Estão presentes em todas mencionadas acima temas
como por exemplo a divisão do Eu e sua unificação, a percepção de mundos
invisíveis, contato com diferentes seres, a compreensão da alma doente e sua possível
cura, experiências do universo como um todo complexo e vivo, a experiência de
arquétipos diversos, morte e renascimento, volta à fonte original, liberação da prisão
33
da normalidade, integração do animal selvagem interno, acordar do sono da realidade
consensual e transformação da escuridão para a luz.
De fato, se olharmos historicamente, vemos que, não só existem similaridades,
mas inclusive diferentes substâncias foram fundamentais para a própria criação de
grandes religiões e movimentos místicos. Os mistérios de Elêusis, na Grécia antiga,
por exemplo, eram parte de um culto à Demeter, deusa da agricultura. Nos ritos uma
poção chamada Kykeon era ingerida e produzia visões extáticas. Uma teoria bem
fundamentada é que esta poção era composta por cereais que continham um fungo do
gênero Claviceps, o mesmo que serve de base para a produção do LSD (WASSON et
al, 1978). Outras religiões também se beneficiaram do uso de enteógenos, como o
Budismo e o Hinduismo, onde, segundo os textos sagrados Rig Veda, os altos
sacerdotes consumiam o Soma, uma substância que pesquisadores pensam ser um
certo cogumelo psicoativo (DOBBERSTEIN, 1995; WASSON, 1968). Também no
Zoroastrismo, uma bebida intoxicante chamada Haoma era parte fundamental da
crença, e existem suposições que até o judaísmo, o cristianismo e o islamismo foram
influenciados por substâncias psicoativas (SHANON, 2002; ALLEGRO, 1970).
A idéia que enteógenos podem possibilitar experiências místicas e religiosas
não é só tema de especulações, análises históricas e pesquisas antigas. Um recente
estudo sobre enteógenos e experiências espirituais atraiu atenção da mídia,
aparecendo em cadeias televisivas, jornais e revistas tão populares como a CNN, o
Los Angeles Times e a revista Newsweek, inclusive sendo veiculado no Brasil pela
Folha Online4. Realizado pelo Dr Roland Griffiths da universidade John Hopkins, este
experimento duplo-cego, controlado com placebo ativo testou a psilocibina em 36
voluntários, com objetivo de descobrir se é possível, através do uso do principio ativo
dos
“cogumelos
mágicos”, induzir experiências
transformadoras
espirituais
significativas e duradouras. Este experimento foi considerado um marco histórico
para a pesquisa com enteógenos, tendo sido financiado pela NIDA, instituto antidrogas dos Estados Unidos, e elogiado por diferentes cientistas e profissionais,
inclusive pelo ex-diretor do NIDA, pela impecabilidade no design do estudo.
O estudo de Griffiths (2006) analisou 36 voluntários com a idade média de 46
anos, que nunca haviam utilizado psicodélicos. Além da psilocibina, em outra ocasião
4
CNN: http://www.cnn.com/video/#/video/health/2008/07/02/costello.magic.mushroom.cnn
Los Angeles Times: http://latimesblogs.latimes.com/booster_shots/2008/07/a-medical-use-f.html
Newsweek: http://www.newsweek.com/id/144399/page/1
Folha Online: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u418292.shtml
34
os voluntários ingeriram metilfenidato, mais conhecido como Ritalina®, um tipo de
anfetamina, para comparar os resultados com um placebo ativo. Depois de quatorze
meses, Griffiths (2008) realizou um estudo follow up, para saber se os resultados
persistiam muito tempo após a experiência. Os resultados demonstraram que nenhum
voluntário classificou uma piora de seu bem-estar geral, enquanto 58% afirmaram a
sessão com psilocibina ter sido uma das cinco experiências mais significativas de suas
vidas, e outros 11% afirmaram ter sido a experiência mais significativa de suas vidas.
Também após estes quatorze meses, 64% afirmaram que a psilocibina melhorou de
moderadamente a muito o bem-estar geral ou satisfação de vida, enquanto 61%
afirmaram uma mudança de comportamento positiva moderada a extrema em suas
vidas. Além disto, 61% afirmaram de acordo com uma escala pré-estabelecida terem
tido uma experiência mística completa com a psilocibina e 67% responderam que esta
experiência foi uma das cinco experiências mais espirituais de suas vidas. Os testes e
respostas dos questionários também demonstraram melhoras na auto-estima e
otimismo geral dos voluntários, e ausência de efeitos negativos. Os resultados com
metilfenidato não acompanharam estes números e não mostraram resultados
estatisticamente significativos, demonstrando ser a psilocibina em específico
responsável pelos aspectos positivos, e não só uma experiência psicoativa. Três
pessoas próximas de cada candidato foram entrevistadas por um ajudante do Dr.
Griffiths que não havia tido contato com os voluntários, e nem sabia do resultado de
suas experiências. Eles preencheram de acordo com uma escala de diferentes
possíveis mudanças positivas e negativas, o que achavam sobre os voluntários após a
pesquisa. Os resultados demonstraram que também as pessoas próximas afirmaram de
uma maneira geral terem percebido mudanças leves mas significativas no
comportamento e bem estar dos voluntários.
Estes dados com implicações profundas nos mostram como os enteógenos
realmente têm pertinência como instrumentos de contato espiritual. Uma substância
que sistematicamente induz em um contexto controlado experiências profundas,
espirituais e significativas de forma segura merece ao menos uma maior atenção.
Devemos lembrar que os enteógenos não são de forma alguma o único caminho
possível, mas sim uma dentre outras escolhas possíveis. Se admitirmos uma
psicologia abrangente que incorpore estes níveis mais profundos da existência, é
preciso então que estudemos e consideremos a possibilidade destas substâncias terem
35
utilidade para o aprofundamento do contato existencial do paciente. Permanece aqui
mais uma área digna de ser pesquisada.
36
3.6
Outros usos
Indícios preliminares apontam para o possível uso de enteógenos em outras
áreas da psicoterapia cuja menção é relevante.
3.6.1
Depressão
Segundo a Organização Mundial da Saúde, 121 milhões de pessoas sofrem de
depressão no mundo, considerada uma das doenças mais incapacitantes. É uma
doença que se manifesta em diferentes níveis, incluindo bioquímicos, neurológicos,
comportamentais, emocionais e intelectuais. O tratamento mais difundido é, além da
psicoterapia, o uso de medicamentos antidepressivos, que são a grosso modo dividido
em 3 classes: tricíclicos, inibidores seletivos da recaptação da serotonina (ISRS), e os
inibidores da monoamina oxidase (IMAO). Os medicamentos anti-depressivos não
são, como se é de esperar da industria farmacêutica, medicamentos de uso único, mas
é requerido o uso continuado por longos períodos de tempo, e consequentemente
podemos ver desvantagens neste aspecto.
Possivelmente a ayahuasca seja de interesse neste campo de atuação pois pode
trabalhar em diversos níveis, auxiliando no tratamento da depressão. No nível
químico
e
farmacológico,
a
ayahuasca
contém
harmina,
harmalina
e
tetrahidroharmina, todas sendo substâncias IMAO, da mesma classe de alguns dos
anti-depressivos, e com a vantagem de serem reversíveis (e consequentemente
diminuindo problemas de interações alimentares e medicamentosas ligados aos
medicamentos IMAO irreversíveis). Além disto, a tetrahidroharmina também é uma
inibidora leve da recaptação da serotonina, aumentando a quantidade de serotonina na
fenda sináptica (MCKENNA et al, 1998, p.4), também potencialmente auxiliando na
depressão. Existem dados que demonstram que o desequilíbrio nos receptores 5-HT2
está ligado à depressão e comportamento auto-destrutivo (MEYER et al., 2003), o que
aponta ainda mais para a importância da investigação nesta área da neuropsiquiatria e
psicologia, e possivelmente dos enteógenos como instrumentos auxiliadores.
Um outro grande aspecto da ayahuasca e outras substâncias da mesma classe é
que não se limitaria a um tratamento farmacológico, e nem seria necessário seu uso
continuado por longos períodos para obter benefícios no tratamento da depressão. A
37
ayahuasca, como outros enteógenos, ao trazer à tona conteúdos inconscientes,
possibilita o sujeito a trabalhar a depressão em seus aspectos profundos, e não
somente em sua manifestação bioquímica e neurológica. Resta aos futuros
pesquisadores investigarem esta área para descobrirmos se realmente enteógenos
como a ayahuasca podem ser de utilidade contra doenças mentais tão difundidas e
incapacitantes.
3.6.2
Terapia psicolítica e tratamento de neuroses
Antes das convenções das Nações Unidas e da proibição do uso e pesquisa
com as substâncias enteógenas, numerosos estudos e formas de terapias estavam
sendo utilizadas ao redor do mundo. As terapias com estas substâncias se dividiam de
uma maneira geral em dois tipos, cujas influências vemos nas recentes pesquisas: a
terapia psicodélica e a terapia psicolítica.
A terapia psicodélica consiste em poucas sessões e doses altas. Nesta visão, a
hipótese é que o efeito das doses altas supera qualquer defesa do ego, estabelecendo
contato com os reinos profundos da psique, e possibilitando assim experiências
místicas transformadoras, que posteriormente são trabalhadas com o terapeuta.
Durante a sessão em si o terapeuta está presente e fornece qualquer suporte
necessário, mas o trabalho primário ocorre dentro do próprio paciente, e somente
depois do efeito haver terminado que a experiência é discutida e que o terapeuta age
ativamente. A terapia psicodélica serviu de modelo para algumas experiências citadas
acima como o trabalho de Grob com pacientes terminais de câncer, e a pesquisa de
Griffiths sobre experiências espirituais transformadoras.
Já a terapia psicolítica (literalmente “que dissolve a mente”) é baseada em um
maior número de sessões, utilizando doses baixas ou médias, onde durante a sessão o
conteúdo é trabalhado enquanto ele surge, através da conversa com o profissional. A
terapia psicolítica pode ser vista como uma espécie de análise acelerada, pois a
substância auxilia o surgimento de conteúdos inconscientes, facilitando o trabalho
terapêutico. Os modelos e conceitos já estabelecidos para a psicoterapia usual são
adequados para a terapia psicolítica, com pouquíssimas alterações, o que a torna mais
facilmente incorporável no paradigma terapêutico atual (GROF, 1979, p.123).
38
Na psicanálise, por exemplo, vemos que, para o tratamento de diversas
neuroses, é fundamental que se consiga atingir conteúdos inconscientes, memórias
antigas, possíveis traumas e desejos reprimidos. Como o próprio Freud (1920, p.560)
afirmou, “nossa terapia faz seu trabalho ao transformar algo inconsciente em algo
consciente, e só tem sucesso em seu trabalho quando consegue efetivar esta
transformação” . O uso de doses baixas ou médias de enteógenos pode facilitar o
processo, sem prejudicar ou “artificialmente” expor o paciente de alguma forma que
não possa ser trabalhada. Diferente da hipnose que foi abandonada por Freud, por
exemplo, o terapeuta não direciona, e quem decide o conteúdo a ser discutido ou
analisado é o próprio paciente. A associação livre ainda cabe, sendo mais efetiva
devido ao alcance maior da mente sob efeito dos enteógenos. Após muitos anos de
experiência com este tipo de terapia, Stanislav Grof (1979, p.123) criador da
psicologia transpessoal, afirmou que a riqueza do material obtido na psicoterapia
psicolítica traz insights inigualáveis sobre o funcionamento do enteógeno, assim como
da dinâmica das patologias emocionais e do funcionamento da mente de uma maneira
geral.
É interessante notar que medidos pelo inventário NEO-PI-R, o traço de
personalidade neuroticismo e também a vulnerabilidade, definida como a dificuldade
de um sujeito em lidar com stress, estão ambos estão correlacionados com níveis de
ligação frontolímbicos do neuroreceptor 5-HT2a, como mostram exames de
neuroimagem (FROKJAER et al, 2007). Como vimos anteriomente, os enteógenos
agem exatamente neste neuroreceptor, o que nos aponta que além do nível psicológico
discutido acima, talvez também no nível farmacológico possam nos ajudar a entender
o funcionamento e possivelmente o tratamento de diferentes tipos de neurose e
transtornos afetivos.
As neuroses e dificuldades psíquicas de uma maneira geral, portanto, podem
possivelmente ser tratadas com o auxílio da psicoterapia comum em conjunto com
substâncias enteógenas, no modelo da psicoterapia psicolítica.
3.6.3
Síndrome do stress pós traumático
Ocorrendo em diferentes níveis em pelo menos 10% das pessoas que passam
por experiências traumáticas, esta síndrome potencialmente incapacitante está muitas
vezes associada à comorbidades mentais e físicas, redução na qualidade de vida e
39
muitas vezes causando dificuldades monetárias (BRYANT, 2008). Uma recente
pesquisa demonstrou que a revivência controlada da memória do(s) evento(s)
traumático(s) auxilia na elaboração e possível cura desta patologia. Nas palavras do
próprio pesquisador, “descobertas sugerem que a ativação direta de memórias
traumáticas é útil na prevensão de sintomas da síndrome de stress pós traumático”
(idem, p.665, tradução nossa). É razoável então pensar que substâncias enteógenas
possam auxiliar no processo de cura, visto que estas substâncias auxiliam na ativação
de memórias importantes para o sujeito, facilitando a abreação. É importante notar
que o estudo mencionado pesquisava sobre técnicas cognitivo-comportamentais, e não
com o uso das substâncias aqui tratadas, mas o fator importante em comum é a
questão da revivência de memórias traumáticas. Esta é portanto mais uma das áreas
dignas de serem ao menos pesquisadas, para possivelmente auxiliar pessoas
acometidas por tal síndrome.
40
4.
Riscos
Até agora, foram discutidas as diferentes possíveis áreas onde psicólogos e
psiquiatras poderiam utilizar enteógenos no processo terapêutico. É importante,
porém, lembrarmos também dos efeitos negativos e dos perigos, apontando possíveis
formas de diminuir estes riscos, para que possamos medir se os possíveis benefícios
eventualmente superam os problemas associados, ou se o contrário é verdade e
devemos rejeitar os enteógenos na clínica. Vejamos algumas das preocupações
comuns sobre esta classe de substâncias, discriminando entre as afirmações e idéias
errôneas, e os verdadeiros perigos e problemas, assim como oferecendo adiante
recomendações sobre como prosseguir para diminuir os riscos.
4.1
Toxicidade e perigos físicos
Diversas pesquisas ao redor do mundo demonstraram a baixa toxicidade dos
enteógenos (STRASSMAN, 1984; NICHOLS, 2004; MCKENNA, 1998; GROB,
1996; RIBA, 2003; VOLLENWEIDER et al, 2004). Uma das medidas importantes
para determinar a segurança de uma substância é a LD-50, ou seja, quantidade
necessária para uma substância matar 50% dos animais testados. Estes números são
transpostos e recalculados para os humanos, e então correlacionados com a
quantidade necessária para uma dose efetiva ou dose terapêutica, resultando no
número do índice terapêutico (ou índice de segurança). Lembrando que quanto maior
o número, mais segura uma substância é, de acordo com o Registro de Efeitos
Tóxicos, o índice de segurança médio das triptaminas aqui discutidas é maior do que
600, enquanto, para fins comparativos, da aspirina é 199, da fluoxetina (prozac®) é
100, da nicotina é de 21 e do álcool é 10 (FRECSKA e LUNA, 2006, p.191; GABLE,
2004). Um índice de segurança de 600 significa que seria preciso ingerir 600 vezes a
dose efetiva de uma só vez para se chegar aos efeitos tóxicos possivelmente letais.
Com exceção da ibogaína que trataremos separadamente adiante, não existem
casos confirmados de mortes diretas por uso de enteógenos (LSD, DMT, Psilocibina,
mescalina), apesar das milhões de doses já ingeridas. Para fins de comparação, o
álcool é responsável por 2,3 milhões de mortes todos os anos (ou uma morte a cada 15
segundos) segundo a OMS. Mesmo descartando as mortes indiretas para a
41
comparação, ainda asssim podemos dizer que os enteógenos são relativamente
seguros.
Houve um caso onde oito indivíduos cheiraram cristal de LSD puro pensando
que era cocaína, ingerindo quantidades estimadas em até 100,000 µg, ou 1000 vezes a
dose padrão, e apesar das complicações e hospitalização temporária, todos se
recuperaram (FRECSKA e LUNA, 2006). As alterações somáticas resultantes do uso
de enteógenos, como por exemplo o ocasional aumento na freqüência cardíaca e
pressão arterial em alguns indivíduos, ocorrem somente em níveis leves a moderados,
não oferecendo risco a pacientes sadios (RIBA, 2003). Por precaução, pessoas a quem
qualquer tipo de stress emocional pode ser perigoso, como portadores de
arteriosclerose coronária avançada, devem evitar ingerir tais substâncias.
A ausência de perigos físicos diretos na ingestão de psicodélicos está ligada à
farmacologia peculiar. Como dito na primeira parte deste trabalho, estas substâncias
agem especialmente no neuroreceptor 5-HT2a, que não é responsável por funções
vegetativas vitais. Não causam alterações perigosas em funções cardiovasculares,
renais ou hepáticas, tornando seus efeitos restritos ao Sistema Nervoso Central (SNC),
em especial aspectos da consciência, não oferecendo risco de vida direto (NICHOLS,
2004, p.134).
No caso da ibogaína, porém, responsável por ao menos oito mortes
registradas, a farmacologia é diferente. A ibogaína age em diferentes neuroreceptores
como da dopamina, GABA, glutamato, sistemas opióides e também afetando a
acetilcolina. A ibogaína afeta não só o SNC como também o Sistema Nervoso
Autônomo, responsável por funções vitais do corpo. Há controvérsia sobre a causa
nas mortes registradas, mas uma hipótese bem fundamentada afirma terem sido morte
súbita cardíaca (MAAS, 2006). Se este é o caso, então é importante que, se a ibogaína
for utilizada de forma terapêutica, então o processo de seleção seja rigoroso, com
critérios de exclusão bem definidos, especialmente em relação a quaisquer anomalias
cardíacas. De qualquer forma, a ibogaína deve ser olhada com mais atenção por ter
estas particularidades em termos de riscos físicos reais, que, mesmo sendo pequenos
se olharmos a quantidade de vezes que foi administrada versus mortes e complicações
registradas, ainda assim é considerável.
Outra área que merece atenção é a de interações medicamentosas. Em especial
no caso da ayahuasca, as ß-carbolinas, componentes ativos da bebida, são inibidores
da MAO, enzima que, além de destruir o outro componente ativo DMT (e por isso a
42
necessidade dos inibidores para o efeito da ayahuasca), também quebram
metabolicamente o neurotransmissor serotonina. A temporária quantidade elevada de
serotonina não é por si só um problema, mas caso a IMAO seja utilizada em conjunto
com um anti-depressivo ISRS como a fluoxetina (Prozac®), pode ocorrer uma
síndrome serotoninérgica. Esta síndrome é caracterizada por níveis excessivos de
serotonina, causando náusea, tremores, vômito, convulsões e em casos mais extremos,
perda de consciência, coma e até morte. É importantíssimo, portanto, que todos que
forem utilizar a ayahuasca sejam informados e estejam absolutamente livres de ISRS
por pelo menos duas semanas.
Pesquisas também demonstraram não haver nenhum tipo de dano cerebral em
geral, e nem déficit cognitivo e psicológico, mesmo para adolescentes e para usuários
regulares, em um setting apropriado, como a pesquisa do psiquiatra John Halpern com
membros da Igreja Nativa Norte Americana que haviam utilizado o peiote ao menos
100 vezes, ou as diferentes pesquisas com membros jovens e adultos que utilizam
regularmente ayahuasca nas igrejas como o Santo Daime ou a UDV (HALPERN,
2005; DOERING-SILVEIRA, 2005; GROB, 1996). No Projeto Hoasca, investigação
multidisciplinar com pesquisadores de diversos países cujos resultados serviram de
embasamento científico para a liberação do uso ritual da ayahuasca no Brasil, os
investigadores notaram também que os usuários regulares eram altamente funcionais
em termos sociais (GROB, 1996). Mesmo com estes resultados favoráveis, ainda
assim novas pesquisas controladas nesta área são sempre bem-vindas, seja para
confirmarmos os dados existentes ou para trazermos novas informações de possíveis
problemas agora desconhecidos, e então descobrirmos como evitá-los.
Por último, é importante notar que, embora os enteógenos não ofereçam riscos
físicos diretos, podem ocorrer problemas indiretos relacionados ao efeito das
substâncias. Devido às mudanças na consciência e percepção, existe a possibilidade
de pessoas não conseguirem distinguir a melhor forma de agir na realidade
consensual, podendo cair e se machucar, por exemplo, ou se cortar com objetos
pontudos, ou se acidentarem se tentarem dirigir, ou outros problemas desta espécie.
Isto reforça a idéia da necessidade de um ambiente propício (não estar perto de um
precipício é um exemplo exagerado, mas ilustrativo de que tipo de local não é
adequado) e de uma preparação prévia deste ambiente. Isto também mostra a
necessidade da presença de um facilitador ou terapeuta experiente que possa lidar com
as situações e impedir acidentes.
43
4.2
Dependência química
De uma maneira geral, um dos grandes males associados com o uso de drogas
é a dependência química, fator correlacionado com diversos problemas de sofrimento
psíquico, criminalidade, entre outros. Os enteógenos, porém, não são conhecidos por
causar dependência química.
A maioria, se não todas as substâncias causadoras de dependência afetam as
transmissões dopaminérgicas, particularmente nas áreas mesolímbicas do cérebro
(NICHOLS, 2004, p.134). No nível comportamental, isto se traduz muitas vezes em
elevação do humor e por vezes sensação de euforia. Já os enteógenos em geral não
têm afinidade nem pelos receptores dopaminérgicos, e nem pelos transportadores de
captação da dopamina, e não ativam diretamente sistemas de recompensa, partes
fundamentais na construção de dependência (idem). Não há publicações onde se
conseguiu efetivamente treinar animais para auto-administrar alucinógenos, o que
indica que estas substâncias não possuem a farmacologia necessária para iniciar ou
manter a dependência química (idem). Os enteógenos também não causam síndrome
de abstinência, outro fator muito presente nas toxicomanias, e qualquer tolerância,
onde o usuário necessita de doses maiores para obter o mesmo efeito, desaparece
totalmente em 3 ou 4 dias (STRASSMAN, 1984, p.579).
Além disto, como vimos anteriormente, há indícios que, não só não causam
dependência, como os enteógenos podem inclusive ser úteis para tratar dependência
química de outras substâncias, eliminando preocupações ao menos nesta área.
4.3
Flashbacks (Transtorno Perceptual Persistente por Alucinógenos)
O Dr. John Halpern, do hospital Mclean da universidade de Harvard, realizou
uma grande revisão da literatura relacionada aos transtornos popularmente conhecidos
como flashbacks, e denominados segundo o DSM-IV, sob o numero 292.89, como
Transtorno Perceptual Persistente por Alucinógenos, ou TPPA (HPPD em inglês). Na
definição psiquiátrica, este transtorno consiste na reaparição de mudanças perceptuais
vivenciadas durante o efeito de alucinógenos como, por exemplo, visões de padrões
44
geométricos ou halos ao redor de objetos, muito tempo após o termino do uso das
substâncias.
Entre as diversas publicações pesquisadas por Halpern (2003), viu-se que,
primeiramente, o termo flashbacks teria sido definido de tantas formas diferentes que
se tornou essencialmente sem uso, impossibilitando informações mais precisas sobre a
prevalência deste problema. Concentrou-se então na categoria mais tangível de TPPA,
onde diferentes estudos citavam números muito conflitantes, com informações que
não há praticamente nenhum caso em milhares de usuários, até outro que afirmava
77% dos usuários apresentavam o problema. É importante notar que, segundo
Halpern, o estudo de Cohen que citava o numero 77% foi realizado em um hospital da
Noruega, entrevistando jovens hospitalizados e questionando sobre o uso de drogas e
se haviam problemas perceptuais persistentes. Neste estudo então não se incluíram as
pessoas saudáveis que não estavam no hospital, e nem houve um questionamento
aprofundado para saber se os jovens apresentavam patologias perceptuais ou uso
conjunto de outras drogas antes dos problemas mencionados. Isto invalidaria qualquer
possibilidade de generalização do numero indicado.
Em uma pesquisa realizada pela internet, Matthew Baggott e colegas da
universidade de Berkley publicaram que 4,1% dos usuários, (107 entre 2,679)
relataram ter TPPA. O numero pode ser superestimado pois usuários com TPPA
podem estar mais interessados em responder o questionário. Outras 16,192 pessoas
viram a informação do estudo mas não completaram o formulário. Se estas forem
pessoas que não apresentavam TPPA, a porcentagem total cairia para 0,66%. Além
disto, por ser um questionário feito pela internet e não um diagnóstico feito por um
médico treinado, pode haver diversos casos de pessoas que já apresentavam
patologias antes do uso e que não se encaixariam na classificação de TPPA mas
responderam a pesquisa, por exemplo.
O próprio Halpern realizou uma pesquisa com ao redor de 500 membros da
igreja de nativos americanos que haviam utilizado peiote ritualisticamente ao menos
100 vezes, sem encontrar nenhum caso de TPPA.
Outro fato interessante notado por Halpern é que a prevalência de TPPA em
usuários de LSD seria maior em usuários recreativos do que em usuários que
ingeriram em um setting terapêutico controlado, o que sugeriria que, como outros
problemas relacionados ao uso destas substâncias, com um setting adequado, a
maioria dos problemas desapareceria ou ao menos diminuiria.
45
Concluindo o estudo, Halpern (2003) afirmou ser difícil estimar um número de
prevalência de TPPA, mas parece ser muito baixa, inclusive pelo fato de milhões de
doses de alucinógenos terem sido consumidas enquanto relativamente poucos casos
confirmados de TPPA tenham aparecido.
Da mesma forma que os estudos sobre a prevalência são contraditórios e ainda
é preciso realizar mais pesquisas, também as formas de tratamento ainda são em
grande parte desconhecidas. Nenhum estudo controlado foi feito para o tratamento
deste transtorno com agentes farmacológicos, e as únicas formas de tratamento com
certa eficácia em um olhar preliminar seriam diferentes formas de psicoterapia (idem),
ou alguns estudos de caso não controlados que sugerem a possibilidade da utilização
de benzodiazepínicos como o Clonazepam para o tratamento (LERNER, 2001). De
qualquer forma, é preciso se investigar mais profundamente estas questões, mas não
nos parece ser uma conseqüência grave e comum. No caso destas substâncias serem
utilizadas em psicoterapia, porém, certamente estes dados e pesquisas já realizadas,
assim como as que serão futuramente realizadas, devem ser incluídas nos dados
informados ao paciente, para que ele possa decidir sabendo os riscos existentes.
4.4
Transtornos psicóticos
Um dos grandes medos difundidos sobre os enteógenos é certamente em
relação à idéia que estas substâncias podem causar transtornos psicóticos. Existem
casos relatados onde usuários demonstraram sintomas psicóticos após o uso destas
substâncias, mas algumas considerações são necessárias para se entender melhor
como isto pode ocorrer e como evitar estes problemas. Em uma revisão de diferentes
publicações sobre efeitos adversos no uso de psicodélicos, o psiquiatra Rick
Strassman nota que, primeiramente, há que se diferenciar os sintomas similares à
transtornos psicóticos enquanto a substância está farmacologicamente ativa, e
transtornos duradouros que persistem dias ou até meses após o término do uso da
substância
(STRASSMAN,
1984).
O
primeiro
caso
discutiremos
adiante
separadamente, pois não faz parte de transtornos psicóticos reais, mas sim de um tipo
possível de experiência negativa que cessa com o fim das ações farmacológicas dos
enteógenos.
A segunda categoria é chamada de psicose persistente ou residual induzida por
alucinógenos e é mais comum com o LSD do que com outros enteógenos (FRECSKA
46
e LUNA, 2006, p.194). Este transtorno é composto por sintomas que, como
mencionado, persistem por dias ou até meses depois da interrupção do uso. Entre os
sintomas estão mudanças de humor semelhantes ao transtorno bipolar, paranóia,
delírios e alucinações. Parte dos casos ocorrem em pessoas com predisposições à
transtornos mentais, mas alguns casos são com pessoas aparentemente sadias (embora
na maioria das vezes ocorrendo após uso em settings não adequados). Em termos de
prevalência, o que se vê é o número de ocorrências muito menor em usuários em
setting terapêutico ou experimental controlado, sendo estimado em 0.8 / 1000 sujeitos,
ou seja, 0,08%, um número muito baixo (idem). O tratamento em geral é o mesmo
com outras psicoses, incluindo psicoterapia e medicação. É de extrema importância
para eliminar ou diminuir ao máximo os riscos destes transtornos, então, que haja um
uso controlado, excluindo sujeitos com predisposições de transtornos psicóticos, e
sempre em setting adequado, como veremos mais adiante.
4.5
Experiências emocionais negativas em geral: Bad Trips.
É possível que durante o efeito de um enteógeno, ocorram experiências
difíceis, onde a pessoa é confrontada com sensações, emoções, pensamentos e/ou
visões negativas. Em alguns destes casos, os sintomas que se assemelham à psicose
(psicotomiméticos), mas são situações passageiras que desaparecem com o fim da
ação farmacológica. Entre estes sintomas estão ansiedade, paranóia, delírios, entre
outros. As chamadas bad trips, ou experiências ruins, fazem parte da fenomenologia
da experiência enteógena e são em grande parte causadas por set e settings ruins ou
mal-planejados. Vejamos alguns exemplos de trechos destas bad trips:
[ingerindo cogumelos psicoativos] Eu entrei em pânico. Eu pensei
que deveria sair de lá. Fui ao banheiro. Todas as pessoas ao meu
redor pareciam ficar me olhando e falando de mim. Eu finalmente
cheguei ao meu destino e cometi um grande erro: Olhei para o
espelho. Minha face me assustou e eu quase gritei. Estava pálida, e
haviam manchas de cores na minha cara. Eu não sabia se minha
cara realmente era assim na vida real ou se era somente minha
mente alterada. Tirei toda a maquiagem da minha bolsa e
atrapalhadamente tentei cobrir minha cara horrorosa. (EROWID
EXP 35133, tradução nossa)
Aqui vemos algumas características marcantes comuns a diferentes bad trips.
Primeiro, a pessoa acima ingeriu a substância em local público, com pessoas ao redor,
sem controle do setting. Isto influencia fortemente a sensação de descontrole,
47
podendo trazer sensações de pânico e paranóia. Talvez também, no caso da questão
do espelho e das ilusões de deformação na face, a pessoa esteja lidando sem
preparação com medos inconscientes sobre sua aparência, medos que são
exteriorizados sob a influência da substância. Analisemos outro trecho de experiência
negativa:
[após ingerir cogumelos psicoativos] O mundo estava diminuindo e
ficando cada vez mais escuro, e parecia que não havia mais
nenhum ser vivo em nenhum lugar. Em principio, eu sabia que as
coisas voltariam ao normal, mas meu corpo continuava me dizendo
o contrário, que eu devo ter feito algo errado. (EROWID EXP
17092, tradução nossa)
Temos aqui temas comum em bad trips, como do ambiente ao redor parecer
constritivo, idéias relacionadas à morte, dificuldades com o corpo, medo de danos
permanentes. Talvez tivesse auxiliado o sujeito acima se houvesse consumido em um
setting apropriado, com um profissional para assegurar que a dificuldade sendo vivida
é parte do processo (e também com a certeza da pureza da substância, eliminando
medos de intoxicação, por exemplo).
Algumas pessoas relatam passar por experiências onde tiveram grande medo
de enlouquecer. Este medo pode estar relacionado à prévia identificação do sujeito de
sua individualidade no sentido mais puro, com seu ego ou com a personalidade.
Durante a experiência enteógena, especialmente em doses altas, estas camadas mais
superficiais e defesas usuais podem ser eliminadas temporariamente, deixando o
sujeito, que em sua vida dedicava muito de sua energia psíquica nestes níveis da
psique, com uma sensação de perda, descontrole, vazio. É importantíssimo,
especialmente em pessoas muito ego-centradas, o trabalho do terapeuta auxiliando o
sujeito a passar pelo processo, ajudando-o a perceber que o efeito irá passar, e que a
dissolução de certas barreiras psicológicas pode ser fonte de aprendizado, não
oferecendo risco real ao paciente.
Outras experiências negativas podem se tornar positivas ao final, e as
dificuldades podem ser eventualmente vistas como parte necessária do processo. As
bad trips são descritas por alguns usuários como sendo fontes de aprendizagem, como
no relato a seguir, onde o usuário conclui também que a presença de alguém como um
terapeuta seria benéfica:
[Sob efeito de um análogo da ayahuasca, afirma ter chegado ao]
ponto de total desamparo, impotência e desespero – O ponto que
nada pode ficar pior. Fiquei tão humilde devido a esta experiência
48
que agora tenho uma profunda apreciação por amor e aceitação.
Amor incondicional é algo lindo. [...] Eu não recomendaria
ninguém experimentar ayahuasca (ou algo da mesma potência) sem
alguém experiente para facilitar a experiência. Eu aprendi uma
difícil lição. (EROWID EXP 58438, tradução nossa)
As bad trips também muitas vezes são compostas por visões e pensamentos
negativos, que podem ou não estar associados à experiência pessoal do sujeito e ao
setting onde se ingere. Erros cometidos no passados e experiências ruins podem vir à
tona, como nesta experiência:
[Sob o efeito de LSD] Pelas próximas horas, todos os pensamentos
ruins que eu poderia ter passaram pela minha cabeça, me
atormentando enquanto a musica batia em meus ouvidos. Eu pensei
em minha infância, e todos os erros que havia cometido. Pensei em
minha família e como eles haviam me desapontado e como eu os
havia desapontado. Pensei na escola e em tudo de ruim que havia
passado antes de eu sair e como eu não queria voltar. Pensei no
mundo e nas guerras e violências e em toda a poluição. Qual era o
sentido disto tudo? Eu estava perdendo o meu tempo não fazendo
nada enquanto o mundo estava sendo envenenado aos poucos por
seus habitantes. (EROWID EXP 32403, tradução nossa)
Os sintomas das bad trips são diversos, como dificuldades corpóreas, mentais,
vivências paranóicas, relembranças de traumas ou erros, visões negativas,
experiências de medo, entre outros. A seguir veremos como o terapeuta ou
pesquisador deve agir para diminuir a chance de ocorrer os problemas mencionados
anteriormente neste capítulo de riscos associados à ingestão de enteógenos. No caso
das bad trips, com as recomendações a seguir, elas também podem ser minimizadas,
ou ao menos melhor incorporadas pelo sujeito, levando à transformações positivas,
mesmo que momentaneamente sejam difíceis e dolorosas, como pudemos perceber.
49
5.
Prática terapêutica: como maximizar benefícios e diminuir
riscos
Analisamos acima alguns dos possíveis problemas associados à utilização dos
enteógenos. Existem riscos, mas de maneira geral podem ser evitados se certas regras
e recomendações forem seguidas. Muitas destas recomendações a seguir foram muito
bem explicitadas pelo psiquiatra Stanislav Grof, que com sua experiência como
facilitador/supervisor/terapeuta em centenas de sessões psicodélicas, pôde perceber
quais características são necessárias para minimizar os riscos e maximizar os
benefícios (GROF, 1979), assim como por outros pioneiros de terapias com
enteógenos e pesquisadores recentes (BLEWETT, 1959; GROB, 2007):
Devido à natureza dos enteógenos, causadores de experiências fortemente
emocionais, estas substâncias são contra-indicadas para pessoas com condições para
quais emoções fortes ofereçam riscos, como diferentes tipos de problemas
cardiovasculares (arteriosclerose, aneurismas vasculares, trombose, etc.) e também
condições psíquicas frágeis (histórico pessoal ou familiar de esquizofrenia e psicose,
transtorno borderline ou hospitalizações psiquiátricas em geral, etc.). Como
mencionado anteriormente, é fundamental que haja um controle das medicações que o
sujeito tenha e esteja utilizando, e em especial que não esteja utilizando ISRS no caso
do trabalho com ayahuasca. Uma anamnese completa é de extrema utilidade, e a
motivação do sujeito, por exemplo, é um dado muito significativo para todo o
processo.
Após o processo de seleção, é importante disponibilizar todo o tipo de
informação existente para o paciente/voluntário sobre os efeitos e riscos inerentes.
Um termo de consentimento informado bem redigido deve ser assinado.
Como em toda a terapia, a figura do terapeuta é essencial. É importante que o
terapeuta tenha treinamento adequado e esteja relativamente preparado para as
diferentes possibilidades que possam ocorrer durante a terapia, e que tenha também
habilidade criativa para lidar com as situações inesperadas. Lembrando que mais
ainda do que em uma terapia comum, o paciente está vulnerável, aberto, com a
consciência exposta, e a influência da presença e das intervenções do profissional é
50
tremenda. Falta de interesse e atitude distante imediatamente transparecem e afetam a
experiência.
Antes da experiência, é necessário um tempo de preparação mínimo onde
ocorra uma interação entre o terapeuta e o sujeito, que pode variar de algumas horas,
até alguns dias. Não existe fórmula pronta para a preparação pois depende das
peculiaridades da situação, mas o princípio é estabelecer uma conexão entre o
paciente e o profissional, informar sobre as peculiaridades da experiência e criar uma
boa atmosfera. A refeição antes de ingerir o enteógeno deve ser leve, e ao menos duas
horas de jejum é recomendável.
O ambiente em si também é parte fundamental do processo. Em casos de
pesquisas realizadas em campo (como por exemplo pesquisas com participantes de
rituais com ayahuasca), não há escolha de local e o profissional deve fazer seu
trabalho onde estiver ocorrendo a ingestão. Já na hipótese de uma pesquisa ou real
trabalho terapêutico em um ambiente controlado, como na clínica psicoterapêutica ou
em um quarto de hospital, o local deve ser ajustado para criar uma atmosfera
confortável e adequada. No caso da pesquisa do psiquiatra Charles Grob (2007) com
psilocibina, por exemplo, as agencias regulatórias somente autorizaram realizá-la em
um quarto de hospital específico. Grob e seus assistentes tiveram que improvisar para
transformar o ambiente estéril típico de hospital. Panos com cores suaves foram
penduradas nas paredes e equipamentos desnecessários retirados. Uma boa idéia
utilizada por Grob foi pedir para os sujeitos trazerem fotos ou objetos significativos,
customizando o ambiente e adicionando um componente de conforto emocional. No
quarto utilizado por Grob havia um banheiro, algo bom já que pode ser necessário
durante a sessão.
Dependendo do tipo de terapia realizada, existem diferenças claras nas
recomendações do procedimento. No caso da terapia psicodélica, como na pesquisa
de Grob, é recomendável que o sujeito feche os olhos durante a experiência, se
mantendo atento para os seus próprios processos internos. O terapeuta permanece
atento e presente, mas sem interferir se não for chamado, deixando que o próprio
paciente passe por sua experiência. Alguns pesquisadores e terapeutas recomendam o
uso de música instrumental, servindo como um veículo abstrato para ajudar o paciente
tanto a se aprofundar em seu inconsciente, quanto também a não se perder e manter
uma conexão com o mundo externo através do padrão musical. No caso da cultura
indígena ayahuasqueira, por exemplo, os ícaros, ou cantos indígenas, são
51
considerados cruciais para auxiliar na exploração da “paisagem” enteógena, e talvez
seja um dos fatores responsáveis pela baixa incidência de problemas nos rituais
indígenas. Perto do final da terapia psicodélica é que ocorre uma conversa maior,
onde o sujeito comenta sobre sua experiência e os processos passados, e o terapeuta o
ajuda a incorporar harmoniosamente a sua vivência. Já na terapia psicolítica, o
modelo é mais similar à terapia comum, com o paciente de olhos abertos, e mantendo
a conversa significativa com o terapeuta durante todo o processo. A recomendação do
ambiente confortável e agradável, porém, permanece.
As diretrizes da meditação budista são de muito uso na terapia com
enteógenos, em especial na terapia psicodélica: é sugerido ao sujeito que esteja aberto
para qualquer conteúdo que possa surgir, sem impedir pensamentos ou imagens, por
mais difíceis que sejam, e sem tentar mantê-los, por mais agradáveis que sejam. Como
na associação livre da psicanálise, desta forma mais conteúdos fundamentais e
significativos surgem e são trabalhados.
O terapeuta deve estar preparado para lidar com experiências difíceis. Pode
ajudar se o paciente for lembrado que outras pessoas já passaram por situações
semelhantes, que não há risco físico real, que isto irá passar e que os efeitos irão
eventualmente acabar. Não se deve contrariar o paciente, dizendo que o que ele está
sentindo não é real. Isto somente piora a situação, podendo quebrar a relação positiva
entre paciente e terapeuta ao negar uma experiência que certamente é significativa
para o sujeito, mesmo que em termos da realidade consensual não seja verdade (a
integração mais tangível com a realidade consensual deve ocorrer ao final da
experiência, e não durante, quando os conteúdos inconscientes estão surgindo). Se
existe algum aspecto específico que está incomodando o paciente, como por exemplo
se ele pede para desligar ou ligar a luz ou a música, ou mudar algum objeto de lugar,
se possível o seu desejo deve ser atendido, mesmo que racionalmente para o terapeuta
isto não faça sentido. Em caso de vômito, é importante que o paciente mantenha sua
cabeça elevada para não aspirar o vômito.
Tão importante quanto a própria experiência é o pós-experiência, onde todos
os conteúdos são integrados. Esta parte pode ocorrer diretamente após, mas também
no dia seguinte, depois de uma noite de sono, pois insights podem surgir também
posteriormente. Lembrando que a experiência com enteógenos pode durar de 4 a 12
horas, então consequentemente, na terapia com enteógenos, o terapeuta deve estar
disponível durante todo o dia para o paciente. Alguns terapeutas e pesquisadores
52
recomendam que o sujeito durma no local, garantindo assim sua segurança pois pode
ainda estar sob o efeito e não perceber, potencialmente se colocando em risco se sair e
dirigir, por exemplo. No dia seguinte pode haver uma conversa pela manhã, e o
sujeito então volta para casa. Existem terapias e pesquisas de várias sessões, ou de
uma só sessão, mas de qualquer forma, é importante manter contato com o sujeito nas
semanas que seguem, para que em alguma necessidade eventual, ele tenha suporte do
profissional.
Seguindo estas e outras recomendações mais extensamente expressas na
literatura específica, os riscos se tornam mínimos e os benefícios são maximizados.
53
6.
Conclusão
Quando se trata de substâncias psicoativas, qualquer conclusão não pode ser
unilateral, e se deve levar em conta os diferentes lados coexistentes. No caso das
substâncias enteógenas, isto não é diferente, pois estão presentes tanto problemas
quanto aspectos positivos.
É muito importante frisar que os enteógenos não são, por si só, panacéias
universais. Pelo contrário, vimos que diversos casos de efeitos negativos são presentes
na análise das experiências enteógenas. Para que os enteógenos tenham efeito
positivo, é necessário um contexto apropriado e controlado, pureza conhecida das
substâncias, consentimento informado dos pacientes e, principalmente, a presença de
alguém experiente realizando juntamente um processo terapêutico profundo,
fornecendo todo o apoio necessário.
O uso de enteógenos apresenta riscos que devem ser considerados,
demonstrados e estudados mais profundamente. Os perigos, entretanto, não são
exclusividade dos enteógenos, mas estão presentes em muitas substâncias e
instrumentos amplamente utilizados em nossa sociedade. Os remédios, por exemplo,
sempre são acompanhados de bulas que descrevem seus efeitos colaterais, muitas
vezes graves. Não precisamos nem ir tão longe, pois se olharmos para a própria
clínica, vemos casos de pioras de sintomas se as intervenções do psicólogo ou
psiquiatra forem inadequadas.
Cada fenômeno humano está sempre ligado a lados positivos e negativos, e
para lidarmos da melhor forma, não devemos nem exaltar somente os lados positivos,
e nem condenar cegamente usando como exemplo os lados negativos. Os enteógenos
são instrumentos que, como os carros, podem ser tanto perigosos quanto ajudar-nos
profundamente.
Como as pesquisas científicas apontam, existe um potencial terapêutico
considerável nos enteógenos. Os riscos são reais, mas o que se percebe é que, em um
contexto controlado, terapêutico, grande parte dos riscos são eliminados. Lidando
desta forma correta, concluímos que os enteógenos são ferramentas que poderiam sim
serem usadas na clínica, auxiliando os pacientes, acelerando e aprofundando o
processo terapêutico. Devemos lembrar novamente que o trabalho terapêutico
54
conjunto por parte do psicólogo é extremamente necessário, e que o enteógeno por si
só não necessariamente trará benefícios.
Os profissionais da área de saúde em geral, e em especial psicólogos e
psiquiatras, devem estar atentos às novas descobertas sobre estas substâncias, para
que, num futuro não muito distante, possamos incorporá-las de forma positiva na
clínica.
Por último, vemos que os enteógenos podem proporcionar, além de possíveis
benefícios na clínica para os pacientes, também contribuições para a psicologia em
geral e para próprio paradigma capitalista ocidental em que estamos inseridos. Em
tempos de catástrofes naturais, aquecimento global, guerras, novas patologias
psíquicas, consumismo desenfreado e individualismo egoísta, há uma necessidade
extrema de uma mudança global de atitude. As visões enteógenas podem fornecer um
novo ponto de vista onde o indivíduo e suas ações não estão isolados do meio, mas
sim em um todo unificado. Nesta nova visão, cada sujeito é ainda mais responsável
por suas ações pois percebe que tudo que faz reflete nos outros seres vivos. Já não
basta mais olhar e culpabilizar os outros, pois cada um de nós deve, como Ghandi
disse, ser “a mudança que quer ver no mundo”.
55
7.
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