Revista da Olimpíada Brasileira de Linguística

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REVISTA DA
OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA
NÚMERO 1 - SETEMBRO/15
A Língua diminuindo distâncias
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NÚMERO 1 - SETEMBRO/15
EDITORIAL
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“REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA”.
Linguística?! O que é isso?!
Há a grande possibilidade de você, leitor, franzir as sobrancelhas com um curioso estranhamento
como, muitas vezes, já ocorreu no decorrer de nossas atividades. Vamos, portanto, explicar as
motivações para nossa experiência, embora saibamos que dela outras aventuras surgirão causando
mais estranhamento ainda.
Primeiro, a linguística é uma ciência e tem por seu objeto a língua, a linguagem em suas
várias facetas, desde a sonora até a conceitual.
Segundo,
a linguística é perfeitamente aplicável nos processos educativos de ensino
fundamental e médio e, uma das formas de incentivar tal procedimento, é através da olimpíada,
competição entre os alunos, que, por meio de um pequeno corpus, apresentado em cada questão,
deduzem regras e conceitos, numa
desde 2011).
deliciosa decifração (que já vem ocorrendo
Terceiro, a revista (nosso primeiro número) dispõe de fatos diversos relacionados com nossa
temática, desafios, enfim, um espaço de confraternização linguística e olímpica, janela aos devaneios
e ousadias que os alunos e professores muitas vezes possuem e não encontram lugares para
experimentarem sua expressão.
Eis o desafio! Seria uma revista também com o propósito de diminuir um pouco o hiato abissal que
existe entre o ensino universitário e o ensino médio no nosso país. Dessa forma, fomos sentindo o
que cada autor se propôs e encontramos o seguinte eixo temático:
“A LÍNGUA DIMINUINDO DISTÂNCIAS”
Robson Carapeto Conceição fez um histórico da olimpíada, proposta de unir alunos brasileiros entre
si e com os de outras nacionalidades, através de exercícios lógicos, conceituais e experiências de
vida diversas, que nos possibilitará um processo contínuo ao encontro do OUTRO.
Rogério de Almeida tratou da leitura como elemento transitivo, um exercício de percepção da
ESTÉTICA em nós, as distâncias que temos conosco diminuindo-se pelo simples e difícil, às vezes,
processo de fruição do texto.
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Vítor França Galvão lidou com o preconceito na estrutura mais profunda do plano narrativo através de
um octógono semiótico, demonstrando quais tipos de distanciamentos existem entre pessoas com
valores morais e conceituais diferentes.
Antônio Roberto Giraldes escreveu sobre a visão simbólica que diversas culturas possuem da língua:
encontro com o divino, com a natureza e, às vezes, distanciamentos entre os homens quando
profanada, por exemplo, na Torre de Babel.
Samea Ghandour escreveu sobre o migrante e a língua, encontros e desencontros, quando nos
tornamos crianças diante da nova língua que nos recebe e afeta nossos afetos, problematizando até
que ponto o aprendizado profundo de uma língua toca em nossas essências e articulando os
princípios de língua e linguagem.
Mário Martinez trabalhou com a canção e sua porosidade, ou seja, elemento de aproximação tanto de
outras estéticas quanto da língua falada, cotidiana.
José Pedro Antunes tratou da problemática da tradução. Como traduzir não o texto em si, mas o algo
mais que esse texto propõe no momento em que foi feito? O que devemos traduzir? As palavras? Os
sons? A ideia? A intenção? O autor ousou o encontro com o ousado, permitiu-se sentir o outro.
Para não dizer que não falamos de forma, há também os textos que analisam a estrutura da língua
em seu aspecto mais lógico/estrutural: Pedro Neves aproximou a sintaxe da língua portuguesa da
computacional, Robson Carapeto conta-nos da estrutura do alemão, Tomislav Correia-Deur trouxe-
nos o caráter histórico do Latim como elemento articulador e Eloy Gustavo de Souza proporcionou--
nos um estudo gramatical mais aprofundado sobre pronomes relativos, lembremo-nos de que o
princípio da recursividade presente no pronome relativo é uma das máximas também da gramática
gerativa de Chomsky, quiçá de nossa língua “quase” biológica (língua I).
Caro leitor, se você achou isso tudo muito complicado, não se preocupe, não viemos aqui para
explicar, viemos aqui para experimentar estruturas e conceitos e não cobrá-los fixos e memorizados
numa prova, mesmo porque as questões da olimpíada desconcertam principalmente aqueles
preocupados somente com a fixação de conteúdos fechados. Muitos alunos já disseram que para
fazê-las é preciso ser um pouco
DOIDO! Há algumas delas na revista, divirta-se...
Pedimos, obviamente, retornos do leitor (alunos e professores): e-mails com comentários, sugestões
de questões, algum texto para publicação, curiosidades, enfim, tudo que um leitor deste tipo de
revista tem direito. Enviem-nos, por gentileza, para o e-mail: [email protected]
É isso aí: Alea
jacta est!!!
OS EDITORES
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ARTIGOS
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1. A LINGUÍSTICA E AS OLIMPÍADAS DE ENSINO MÉDIO
por Robson Carapeto........................................................................................................................5
2. O QUE É UM LEITOR?
por Rogério de Almeida ................................................................................................................. 10
3. SOBRE UM TEMA DE REDAÇÃO DO ENEM
por Vítor França Galvão ................................................................................................................ 13
4. LÍNGUA E LINGA
por Antônio Roberto Giraldes ....................................................................................................... 16
5. PARA TRADUZIR UM GESTO POÉTICO DO PASSADO
por José Pedro Antunes ................................................................................................................ 19
6. A LINGUAGEM DA CANÇÃO
por Mário Martinez ......................................................................................................................... 22
7. 12 FATOS SOBRE A LÍNGUA ALEMÃ
por Robson Carapeto..................................................................................................................... 24
8. GERANDO ÁRVORES
por Pedro Neves ............................................................................................................................. 30
9. UM TIPO DE CONSTRUÇÃO COM PRONOME RELATIVO
por Eloy Gustavo de Souza .......................................................................................................... 37
10. A IMPORTÂNCIA HISTÓRICA E LINGUÍSTICA DO ESTUDO DE LATIM
por Tomislav Correia-Deur ............................................................................................................ 41
11. A LÍNGUA E A LINGUAGEM NOS AFETOS DO MIGRANTE
por Samea Ghandour .................................................................................................................... 44
PROBLEMAS E DESAFIOS ..................................................................................... 47
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1. A LINGUÍSTICA E AS OLIMPÍADAS DE ENSINO MÉDIO
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por Robson Carapeto
As Olimpíadas de Conhecimento têm se popularizado no Brasil como um excelente instrumento para
motivar estudantes em idade escolar para a pesquisa científica, além de fomentar uma cultura
intelectual de alto nível entre jovens talentosos, com consequências claras para sua vida profissional.
Ao passo que a maior parte das olimpíadas científicas espera dos alunos domínio sobre ideias e
conteúdos previamente estudados, as olimpíadas de linguística, por sua vez, introduzem problemas
inteiramente novos e não-familiares, exigindo dos estudantes um intenso trabalho lógico para montar
estruturas implícitas. Esses padrões podem envolver diferentes sons, estruturas sintáticas, sistemas
conceituais, ligações culturais e históricas entre diferentes línguas. Com isso, esperamos atingir
estudantes com essa inclinação.
A linguística é o estudo científico da linguagem humana como fenômeno natural em sua totalidade,
em sua realidade multiforme e em suas múltiplas relações. Ela se fundamenta na observação direta e
se abstém de toda e qualquer prescrição. Trata de compreender e descrever a linguagem em uso,
sem interferir no seu funcionamento e sem estabelecer regras, modelos ou padrões normativos,
ocupando-se das línguas em todos os seus níveis e modalidades.
Dessa forma, olimpíadas de linguística fomentam o plurilinguismo, o interesse por outras culturas,
o raciocínio lógico e metalinguístico. No mundo profissional, essas competências são valorizadas
para o intercâmbio de ideias e contato com diferentes grupos de pessoas. Na pesquisa acadêmica
em Ciências Humanas, desempenham um papel decisivo na área de Relações Públicas, em diversos
ramos da computação, tecnologias de linguagem e de tradução, assim como qualquer carreira que
envolve habilidades analíticas, de resolução de problemas e a habilidade de desenvolver modelos e
argumentos lógicos a partir de um corpus de dados.
Por essas razões, olimpíadas de linguística têm crescido em diversos países ao redor do mundo. A
Olimpíada Internacional de Linguística (IOL – www.ioling.org) acontece anualmente desde 2003,
e vem crescendo, atualmente com a participação de cerca de 30 países. Nesse contexto fundamos,
em 2011, a Olimpíada Brasileira de Linguística (OBL – www.obling.org).
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O trabalho anual da OBL acontece em três fases:
Fase 1 – Prova Nacional. Essa prova é realizada em outubro ou novembro, em âmbito nacional, com
a participação de estudantes do ensino médio de escolas do todo o país e aplicada de forma
descentralizada, em cada escola participante. A inscrição dos alunos interessados em participar
dessa fase se dá por e-mail e é feita por um professor da instituição, que se responsabiliza pela
aplicação, pré-correção e envio das provas para a Comissão Organizadora.
Fase 2 – Escola de Linguística. Realizada em abril ou maio, presencialmente e durante cinco dias,
com os cerca de 60 estudantes mais bem classificados na Prova Nacional. Segue os moldes das
Semanas Olímpicas da Olimpíada Brasileira de Matemática (OBM) e da edição para escolas públicas
(OBMEP) bem como da Escola de Astronomia da Olimpíada Brasileira de Astronomia e Astronáutica
(OBA). Com a Escola de Linguística, visamos (i) apresentar aos estudantes um panorama da
pesquisa atual em Linguística, (ii) permitir a integração e troca de experiências entre estudantes de
diferentes partes do país e que compartilham um interesse acadêmicos em comum, (iii) selecionar a
equipe participante da IOL.
Olimpíada Internacional (IOL). Acontece no mês de julho de cada ano. Dela podem participar, por
país, até duas equipes de quatro estudantes cada. Consiste em prova individual e de equipes, com
uma programação de palestras e atividades de intercâmbio linguístico e cultural.
EDIÇÕES
A primeira edição da OBL, Kytã, aconteceu de forma experimental em 2011, primariamente com
recursos pessoais dos envolvidos na organização, bem como de algumas escolas.
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Para a edição de 2012, Noke Vana, firmamos parceria com a Fundação Carlos Chagas, que nos
permitiu realizar diversas novas ações incluindo a ampla divulgação, resultando no aumento
significativo do número de inscrições.
Para a edição de 2013, participaram da primeira fase da terceira edição, Paraplü, 758 alunos, de 45
escolas, de 15 dos 27 estados da federação, incluindo escolas particulares, públicas federais e
públicas estaduais. Todos os alunos participantes receberam um certificado de participação, assim
como os professores que aplicaram e corrigiram as provas nos respectivos colégios participantes.
Além disso, os 130 estudantes que fizeram mais de 300 pontos (de um máximo de 600) receberam
um certificado especial de Menção Honrosa. Os 60 alunos com os melhores resultados foram
convidados para a Segunda Fase (“Escola de Linguística”), realizada entre 21 e 26 de maio. Os
estudantes convidados fizeram as provas individuais e em equipe da segunda fase e puderam assistir
a palestras de línguas e Linguística com professores da própria organização da olimpíada e
professores convidados da Universidade de São Paulo (USP) e a um mini-curso presidido pelo Prof.
Dr. Boris Iomdin (Universidade Estatal Russa para Humanidades), membro do comitê de problemas e
do júri da Olimpíada Internacional de Linguística.
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A correção das provas foi empreendida pela Comissão Organizadora e aberta à participação dos
professores acompanhantes dos alunos, integrando-os ao projeto e permitindo uma troca de ideias
entre docentes, que visou o incentivo e aprimoramento de oficinas de Linguística feitas em cada
escola com o intuito de preparar alunos para as próximas edições.
Ao fim da Segunda Fase, 8 estudantes receberam medalha de ouro, 17 receberam medalha de prata
e 25, medalha de bronze.
Com relação à competição de equipes, os integrantes da equipe
vencedora receberam também livros de Linguística. Por fim, os quatro alunos com melhor
desempenho foram selecionados para representar o Brasil na XI International Linguistics Olympiad
(IOL).
A maior parte do treinamento das equipes ocorreu via internet. O estudante de fora do Estado de São
Paulo foi trazido para São Paulo uma semana antes do embarque internacional, para um treinamento
intensivo.
A XI IOL aconteceu em Manchester, no Reino Unido, entre 22 e 27 de julho de 2013 e teve a
participação de 27 países. A equipe brasileira foi acompanhada pelo team leader Robson Carapeto,
membro da Comissão Organizadora e professor da Escola Alemã Corcovado (Rio de Janeiro).
Na terceira participação da equipe brasileira, o país teve um resultado excepcional: uma medalha de
ouro, duas menções honrosas. Além disso, um dos estudantes brasileiros recebeu o prêmio de
Melhor Solução para uma das questões (sobre a análise dos dados de um experimento
neurolinguístico).
A edição de 2014, Vina, levou também uma equipe para Pequim (China), na qual tivemos outra
menção honrosa.
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E agora, junto com a primeira edição da REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA,
chegamos a Òkun.
Òkun é oceano em Iorubá. Subiremos, então, em nossa imensa canoa/jangada/navio e iremos ao
oceano, junto com os orixás e toda a contribuição linguística negra para a cultura brasileira. Os
oceanos separam e unem as pessoas, como as línguas, como se os deuses quisessem que a terra
toda fosse uma.
O Brasil é o único país da América do Sul a participar da Olimpíada Internacional de Linguística, é o
primeiro também a trazer menções honrosas, uma medalha de bronze, uma de prata e uma medalha
de ouro, enfrentando países que possuem por tradição a aprendizagem de linguística mais intensa no
ensino médio (Rússia, Leste Europeu e Estados Unidos).
Isso tudo nos demonstra a demanda de alunos no ensino médio sedenta por conteúdos e estruturas
de aprendizagem diversas e o olimpismo como elemento de educação e interação, elementos
perceptíveis também através do grande crescimento das olimpíadas científicas nas áreas até menos
esperadas e conhecidas, como a línguística.
Robson Carapeto é Professor de Alemão da Escola Alemã Corcovado (Deutsche Schule Rio de
Janeiro) e doutorando em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal Fluminense. Levou o
time brasileiro como team leader para as edições da IOL em Liubliana (2012) e Manchester (2013).
Fã de ritmos caribenhos, teatro do absurdo, jogos de tabuleiro e viagens de trem. Peixes com câncer.
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2. O QUE É UM LEITOR?
10
por Rogério de Almeida
Não há fatos, apenas interpretações.
Nietzsche
É muito comum ouvirmos que é importante ler, que todos devem ler, que ler é fundamental em
nossas sociedades contemporâneas. E as razões para se ler são muitas e muitas delas utilitaristas.
Por exemplo, uma vez um estudante me disse que ler ajuda a ampliar o vocabulário e que isso é útil
numa entrevista de emprego. Perguntei a ele se gostava de ler e ele me respondeu que infelizmente
não. Havia no tom de sua voz um certo amargor, como se o destino o tivesse privado de um gosto
demasiadamente útil. Mas acho que as coisas não são bem assim.
Primeiro porque ler não é um verbo intransitivo. Que isso quer dizer? Que não se lê qualquer coisa do
mesmo jeito e nem com o mesmo gosto. Por exemplo, quem gosta de comer não gosta de comer
qualquer coisa, mas certamente provou de muitos pratos antes de escolher seus favoritos. Com a
leitura acontece o mesmo. Há quem goste de romances, mas não suporta poemas. Há os que se
dedicam aos tratados filosóficos e esnoba os romances. Entre os que leem romances, há os que
preferem os clássicos enquanto outros se contentam com os eróticos. Enfim, são gostos. Eu mesmo,
que sou um leitor faminto, não suporto os livros jurídicos e, juro, nunca li um regulamento até o fim.
Então, ler não é simplesmente ler, mas ler alguma coisa. Nesse sentido, somos todos leitores. Porque
lemos livros, jornais, mensagens de whatsapp, receitas de bolo, legendas de filme... Bom, mas e os
analfabetos? Estes, privados dos códigos linguísticos, leem o mundo. Aliás, Paulo Freire, o nosso
educador maior, disse que ler é um ato importante porque a leitura da palavra escrita nos ajuda na
leitura do mundo. E de fato lemos o mundo. Penso, por exemplo, em nossos ancestrais que não
conheceram a palavra escrita porque ainda não tinha sido inventada. O que pensavam eles do
mundo? O que faziam no tempo livre? Não sabemos exatamente, mas é certo que contavam
histórias, quase sempre em volta de uma fogueira, de preferência quando a noite caía e o mundo se
tornava mais misterioso, mais escuro e mais assustador.
Somos, portanto, leitores do mundo. Aprendemos a lê-lo. Assim como aprendemos a ler a palavra
escrita. Mas não estou interessado em qualquer tipo de leitor, me interessa agora o leitor de histórias
de ficção, essas que são narradas com arte. Qualquer um escreve um bilhete, uma mensagem no
twitter e, se conhecer a estrutura, uma redação escolar. Mas é preciso arte para um poema, para um
conto, para um romance. E é preciso ser leitor para gozar dos prazeres de uma boa literatura.
De fato, o leitor é aquele que joga com o texto, que inventa perguntas, constrói hipóteses, faz
inferências, dá opinião, tece tramas paralelas, mergulha na história, imagina-se no lugar do herói,
torce por ele, contra ele, vive enfim outras vidas. Se você perguntar ao leitor por que ele lê, sua
resposta variará em torno da ideia de prazer. Há um gosto que se prova na leitura que não é igual a
nenhum outro. Quem descobriu esse prazer, quer sempre mais.
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O leitor é um jogador. Ele aprendeu que todo texto é uma construção de sentidos. O escritor, fingindo
que não quer nada além de contar uma história, inventa situações que poderiam ser reais, que
poderiam acontecer com ele, com você ou comigo. E o leitor, entrando no jogo, faz de conta que essa
história de fato aconteceu, que as personagens são pessoas como eu ou você. E então o jogo se
desenrola: o escritor inventa um evento e o leitor o interpreta, isto é, constrói um sentido. O escritor
faz aparecer uma personagem e o leitor logo adivinha quem ela é o que irá fazer. Por exemplo, se eu
escrever que o João está num namoro monótono com a Maria porque tem medo de ficar sozinho, o
que você, leitor ou leitora, imaginará se a Beatriz entrar na história e na relação dos dois? E se eu
disser que essa Beatriz é uma sedutora, mas que, diferente do João, ela só quer saber de viver
sozinha?
Meu caro leitor, minha cara leitora, não sei o que você imaginou, mas eu mesmo que inventei isso, e
que não sei o que acontecerá depois, estou curioso para saber como se resolve esse jogo que
parece insolúvel. Terminará o João sozinho? Ou finalmente Beatriz quererá viver com alguém? Ou
ainda: terminarão os dois infelizes? Ou você é do tipo que gosta dos jogos com finais felizes?
Há muitas possibilidades. O leitor sabe que o prazer do jogo é que um desafio puxa outro, um
problema se conecta ao outro e, às vezes, com sorte, as coisas se resolvem. Mas quem as resolve, o
escritor ou o leitor? Creio que ambos, pois um não existe sem o outro. Porque é o leitor que dá vida a
uma obra por meio de sua leitura. E não me refiro ao trabalho de decodificar palavras e sentenças,
mas ao ato de criar uma história à medida que se mergulha na narrativa. Esse ato de criar, de
imaginar, de vislumbrar um sentido no que está sendo lido é chamado de interpretação.
O leitor é, desse modo, um intérprete. Na filosofia, a arte de interpretar textos é chamada de
hermenêutica, em homenagem ao deus grego Hermes. E é uma arte porque um texto literário jamais
se esgota em um único sentido, em uma única interpretação; ao contrário, é uma obra aberta, como
chamou Umberto Eco. Uma obra aberta às múltiplas leituras, de acordo com os diferentes leitores
que se lançam à aventura da navegação livresca.
É por isto que os livros fazem bem: porque nos compreendemos melhor no exercício de compreender
os outros, mesmo que esses outros sejam personagens literários que vivem uma vida de ficção, mas
que por vezes desejamos que fosse a nossa. E esse jogo de viver de mentirinha é gostoso, pois as
alegrias e tristezas estão sempre num lugar seguro, que são as páginas de papel.
O leitor, por fim, é alguém em busca de mais vida, que quer com a leitura intensificar sua própria vida,
torná-la mais intensa, mais repleta, mais plena. E o bom leitor sabe que o mundo não é muito
diferente de um livro. Em ambos, as interpretações contam mais que os fatos.
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Mas e quem não gosta de ler? Estes terão de se alimentar de ficções e narrativas de outro modo e
terão, cada um a seu modo, que aprender a ler o mundo. Porque é muito difícil ensinar alguém a
gostar de ler. Penso que a leitura é um veneno e um remédio a um só tempo. Um veneno que mata o
enfermo e um remédio que salva os que já estão curados. De fato, para quem não gosta dos livros,
ler é uma tortura, um veneno que causa mais e mais angústia. Mas os adoradores de livros não se
fartam de ler, estão sempre desejosos de mais uma dose.
Rogério de Almeida é professor e pesquisador da USP, autor de livros acadêmicos e de ficção e um
incurável adorador de livros.
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3. SOBRE UM TEMA DE REDAÇÃO DO ENEM
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por Vítor França Galvão
Apesar de ter caído há algum tempo no Enem - Exame Nacional de Ensino Médio -, o tema "O
desafio de se conviver com as diferenças" (2007) provoca uma discussão extremamente atual, pois,
nas sociedades modernas, frequentemente, os indivíduos se encontram lado a lado com outros de
crenças, costumes, educação e culturas diferentes. O desafio de que fala o próprio tema passa,
necessariamente, pela questão da estruturação de uma sociedade minimamente civilizada.
Tal sociedade deverá contar com alguns elementos fundamentais para que seus cidadãos possam
gozar de liberdade e, ao mesmo tempo, segurança, a fim de que se possa alcançar o perfeito
cumprimento dos direitos e dos deveres estabelecidos por sua constituição. Dessa forma, caberia
aqui uma reflexão baseada no seguinte octógono semiótico:
PAZ
PRECONCEITO
RESPEITO
TOLERÂNCIA
TENSÃO
DISTANCIAMENTO
HIPOCRISIA
NÃOTOLERÂNCIA
NÃO
RESPEITO
CONFLITO
Quando os cidadãos vivem no perfeito equilíbrio entre RESPEITO e TOLERÂNCIA ("tolerância", aqui,
não em seu sentido mais pejorativo daquele que "tolera porque não tem opção", mas em seu sentido
mais positivo, daquele que "sabe que o outro tem o direito de ser diferente"), esses mesmos cidadãos
vivem no estado de PAZ, do que se entende que não pode haver PAZ sem RESPEITO ou sem
TOLERÂNCIA. Quando um dos dois falta, a PAZ está comprometida. RESPEITO e TOLERÂNCIA
seriam, então, as palavras-chave para uma redação em um exame que exige dos candidatos o
chamado "respeito aos direitos humanos". Faz-se necessário lembrar que o Enem é extremamente
rigoroso nesse quesito.
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Por outro lado, ainda que haja RESPEITO, mas não haja TOLERÂNCIA (ou NÃO-TOLERÂNCIA), a
sociedade
estará
baseada
em
princípios
como PRECONCEITO, DISTANCIAMENTO
OU
HIPOCRISIA: esse é um dos aspectos mais evidentes da sociedade brasileira. Comumente, o
PRECONCEITO se esconde sob um véu de RESPEITO que requer DISTANCIAMENTO do objeto
vítima dessa HIPOCRISIA. Trata-se da situação frequente de "Eu respeito, desde que...", desde que
não se aproxime de mim, desde que eu não tenha que conviver com isso, desde que isso não interfira
em minha vida. A questão da união homoafetiva, por exemplo, exemplifica perfeitamente esse
comportamento. "Não tenho nada contra os homossexuais, desde que... meu filho não o seja".
E, assim, caminha o brasileiro em seu papel de "respeitador", mas distanciado do problema num
comportamento muitas vezes qualificado de "atitude de avestruz": a ave que enfia a cabeça no
buraco para não tomar conhecimento do que ocorre ao seu redor.
Da combinação NÃO-TOLERÂNCIA/NÃO-RESPEITO, nasce o CONFLITO. Quando isso se passa
entre nações, constata-se a GUERRA; dentro de um país, tem-se a GUERRILHA URBANA. Em tal
situação (ou na combinação desses termos), não há qualquer razão para que eu leve o outro em
consideração e tente respeitá-lo com suas diferenças. Qualquer motivo é suficiente para que eu
agrida, interpele, ofenda ou mesmo expulse o outro de minha presença (de minha terra), pois estou
coberto de certezas, incluindo a certeza de que sou melhor do que ele. No caso do Brasil, é óbvio: a
GUERRILHA URBANA se instalou principalmente devido à má distribuição de renda e das
desigualdades a que estamos acostumados aqui - desde os CONFLITOS mais simples do dia a dia
até os crimes mais chocantes sempre presentes na mídia.
Por fim, do casamento da TOLERÂNCIA com NÃO-RESPEITO, nasce o que se chama de TENSÃO.
A TENSÃO é aquele estado em que a TOLERÂNCIA é sinônimo de "eu aguento você porque não
tem jeito", mas "não tenho RESPEITO por você". Assim, entre nós haverá um clima de hostilidade,
um "barril de pólvora" prestes a explodir por um motivo sério ou fútil, não importa: sempre encontrarei
uma razão para ser hostil ao outro, para deixar claro que não me simpatizo com ele, para destacar
minha antipatia e reprovação por tudo o que ele representa. O estado de TENSÃO poderá "evoluir"
para um acordo, isto é, para o estado de PAZ, ou poderá atingir o estado de CONFLITO ou GUERRA.
O estado de TENSÃO (a TOLERÂNCIA com a FALTA DE RESPEITO) é sempre aquele período que
antecede conflitos terríveis ou retomadas de paz memoráveis. Façamos uma viagem aos anos que
vieram depois da II Guerra Mundial. O planeta ficou dividido entre duas superpotências, entre dois
grandes líderes, cada um representando um sistema de governo e um sistema econômico - Estados
Unidos e União Soviética. A chamada Guerra Fria foi o período mais tenso da contemporaneidade. O
mundo esteve à beira de um CONFLITO mundial (agora com bombas atômicas) em várias ocasiões.
Se hoje o mundo não está mais dividido entre americanos e soviéticos, a TENSÃO é facilmente
notada entre nações do Oriente Médio e mesmo na Europa por diversos motivos. No cenário
nacional, a TENSÃO se faz notar na iminência diária de conflitos sociais e na violência diária dos
grandes centros do País. A TENSÃO gera medo, ansiedade, intolerância e preconceito.
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Seja na "vida real", seja na "vida virtual", uma pessoa pode encontrar, a todo momento, aqueles que
pensam de maneira diferente: o religioso que se depara com o ateu; o vegetariano que tem de
conviver com o apreciador de carne; o capitalista que sofre a reprovação do socialista, ou vice-versa;
o nacionalista cujo amigo não vê esperanças para seu país e por aí vai. Estou no "Facebook" e, ao
postar uma foto, um comentário ou mesmo uma opinião, um sem-número de outros internautas
opinam - alguns me apoiando, outros me criticando... e muitas vezes críticas ofensivas,
desrespeitosas, intolerantes porque eu simplesmente não penso como eles.
Frequentemente, os líderes políticos (que deveriam dar o exemplo de conduta civilizada) são os
primeiros a faltarem com o RESPEITO diante de seus adversários em debates pela TV ou mesmo na
Câmara ou no Senado nacional. O espetáculo de selvageria que protagonizam oscila entre a
TENSÃO (TOLERÂNCIA/NÃO-RESPEITO) e o CONFLITO (NÃO-TOLERÂNCIA/NÃO-RESPEITO).
Além disso, há os contornos que o debate político tomou com a divisão do Brasil em "nós e eles",
como se as decisões de nossos líderes não afetassem a todos, independentemente da região em que
vivam.
No rastro desse raciocínio, não se pode deixar de citar as recentes manifestações de NÃO-
TOLERÂNCIA e NÃO-RESPEITO ocorridas no cenário brasileiro por parte dos eleitores nos últimos
anos, principalmente perto das eleições presidenciais. Em nome da democracia, muitas pessoas se
acham no direito de expressar suas opiniões, mas sufocando o direito do outro, não admitindo que o
vizinho pense de maneira adversa. Em nome da democracia, eu me torno um pequeno ditador intolerante, totalitário e desrespeitoso.
Vítor França Galvão é Graduado em Letras (Português e Inglês) pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie, Mestre e Doutor pela Universidade de São Paulo (USP) na Área de Semiótica e
Linguística Geral, Professor de Redação de Curso Preparatório Pré-Vestibular, trabalhou também na
redação do jornal O Estado de São Paulo.
FONTES:
GREIMAS, A. J. et FONTANILLE, J. - Semiótica das Paixões, pp.22-25. São Paulo, Ática, 1993.
PAIS, C. T. - Semiótica, uma ciência em construção. In: Anais do Segundo Colóquio de Semiótica,
pp.43-60. São Paulo, Loyola, 1983.
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4. LÍNGUA E LINGA
16
por Antônio Roberto Giraldes
A intensidade da língua no nosso cotidiano é tanta que acabamos, muitas vezes, por não percebê-la,
desvalorizando-a, como algum ente querido próximo que só sentimos a estima na ausência.
Experimente você, caro leitor, permanecer um dia inteiro sem qualquer tipo de contato linguístico com
ninguém: não falar e nada escutar, nada de leitura e de escrita.
Creio que, se você fizer isso, acabará se surpreendendo a falar sozinho, ou seja, a utilização da
língua é parte integrante e essencial de nós, precisamos falar e escutar para SERMOS alguém.
Por ela, concebemos pensamentos e sentimentos; nos formatos dela, estão conceitos construídos por
nós e pelos grupos com quem conversamos, refletindo tanto sobre a vida quanto sobre nossas
questões cotidianas. A língua é enciclopédia viva, como nós compreendemos o mundo e vivemos
essa compreensão propriamente dita.
Há, dessa forma, uma materialidade sonora e gráfica que, praticamente orgânica, penetra e
movimenta todos nós. Por um lado, pode aprisionar-nos a modelos “pré-conceituados” (quando não
existem as palavras que desejamos, do fundo do coração, dizer); por outro lado, liberta-nos (quando
nos permitimos brincar com ela e reinventá-la, “POIÉSIS”).
Trabalhar com a língua, aceitá-la, requer não somente um labor neurológico e químico intenso como
uma constante pré-disposição de compreendermos a nós e aos outros. Aí se encontra o processo de
criação, procriação que há nela.
Sim, com a língua, podemos fazer do encontro com o outro, efetivamente, uma procriação e, como
ela nos permite esse lado do trocadilhar lúdico, brincaremos aqui num processo heurístico
(descoberta a partir da livre associação) com suas variantes e permitiremos que o devaneio nos
conduza ensaisticamente.
A língua, pensando-a na sua natureza orgânico-fisiológica, é representada simbolicamente por muitas
culturas como sendo a chama (possui formato semelhante ao fogo e move-se como ele). Há na
língua, dessa forma, o poder de purificação e destruição.
Na santíssima trindade, articulando-se com a noção de Pai e o Filho, vem o Espírito Santo em línguas
de fogo cair sobre as cabeças dos apóstolos, dando-lhes o poder de exprimirem-se nos idiomas mais
diversos do planeta e universalizarem a palavra/língua de Deus.
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Da mesma forma que recebemos o Espírito Santo por línguas, evocamos nossos pedidos ao céu
também por elas. Em João (1,1), “no princípio era o verbo”, temos o verbo como o λογος, o
instrumento da inteligência e da vontade de vida primordial na criação.
“No começo era Brama” dizem os textos védicos, Vak, a palavra. No Islã, temos Kalimat Allah (a
palavra de Deus) também como início. Como a raiz semítica é consonantal, segue “klmh”, a
manifestação quaternária da unidade primeira.
A Torre de Babel representa, nesse constructo, um distanciamento da língua original e única
motivadora de todos. A diversidade das línguas (seus conteúdos) é nosso traço humano
(distanciamento do sagrado), enquanto a natureza simbólica do fogo divino, nosso início comum,
nossa chama metafísica presente a todos na essência mais profunda, é um encontro contínuo com
novas possibilidades de vida e motivações existenciais.
Do lado xamânico, a proximidade espiritual encontra-se na linguagem dos animais e vegetais,
símbolo de retorno ao estado primeiro de conjunção completa com a natureza (estado edênico,
adâmico na cultura cristão-hebraica). Segundo uma tradição oral Guarani, a criação do universo, da
terra e do homem veio de um primeiro (Tenondé) som (Tupã) e de sua reverberação surgimos todos
nós. Notamos que a sonoridade parece ser o divino e imponderável em nós porque não podemos vêla, apenas captá-la com os ouvidos.
No entanto, a língua reinventa os sons e nos reinventa: somos capazes de nos aproximar da vibração
divina da natureza e dos animais através da língua. Com ela, também conseguimos o trânsito nos
agrupamentos humanos, a forma com a qual nos organizamos. Atacar uma língua, dessa forma, é
atacar um ser, um povo, a essência divina encontrada na fé mais profunda desse povo, o encontro
desse povo com o universo em que vive.
Embora, aparentemente, não haja ligação etimológica direta entre as palavras língua e linga;
semanticamente, podemos encontrar proximidades através da noção de signo, de sinal, bem como
também na palavra linguagem.
Linga é um amuleto, emblema. A raiz de linga, em sânscrito, é langalā (arado), designa a besta ou o
falo. Eis aqui o falar como elemento da procriação/criação do signo linguístico, signo, do grego,
σήµέίον, sinal, indicação.
A linga, em seu conjunto, é o símbolo de Shiva, é o próprio Shiva. Contudo, Shiva é a causa, o
imanifestado, Para que se manifeste, necessitamos do princípio feminino Yoni, o receptáculo
(significante saussureano?). Daí o arado como fertilizador da terra (notem que grande parte das
palavras ligadas à terra, em português, por exemplo, são femininas: árvore, folha, pedra).
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No Japão, costumam ser enterradas pequenas representações fálicas de pedra no barro para trazer a
prosperidade dos campos. Os gregos chegavam a fazer o próprio ato sexual na terra para prenunciar
a colheita sadia. Na China, uma peça de jade na forma de um triângulo alargado, equivalente à linga
hindu, encontra-se no centro dos templos e nas encruzilhadas para entendermos o mistério da vida e
a sacralidade da procriação a se reverberar como se reverbera a onda sonora advinda das nossas
línguas ressonada pelas nossas bocas.
De novo, chegamos à ideia de criação, fertilização, formação de algo novo. No entanto, esse algo
novo é, em sua anterioridade, algo divino deixado a nós, imanente, que se materializa através da
terra, de receptáculos concretos a fazerem com que percebamos sua existência abstrata.
Efetivamente, tal abstração passa a existir quando nos integramos com o outro, quando recebemos
esse presente do coletivo ao indivíduo.
Isso faz com que nos mantenhamos vivos, pois nossa carne, com o tempo, desaparece na terra, mas
as palavras voam e, por voarem, permanecem no tempo, no vento, ressonantes como mantras a nos
deixarem vivos nos sons das bocas dos outros homens que virão, dissolvidas no tempo, no espaço,
na diversidade, nos outros e, justamente por isso, vivas, e, talvez, eternas na terra, no vento e nos
pássaros.
Antônio Roberto Giraldes é Bacharel em Letras com Habilitação em Português e Linguística,
Licenciado em Língua e Literatura Portuguesas, Mestre e Doutorando em Educação na área de
Mitohermenêutica e estudos do Imaginário (USP). Leciona há 22 anos no ensino médio e
fundamental. Participou do júri da Olimpíada Brasileira de Linguística de Ensino Médio. Foi um dos
responsáveis da Equipe Brasileira na International Linguistics Olympiad (2013), em Manchester, na
qual a Equipe recebeu a premiação de duas menções honrosas e uma medalha de ouro. É
apreciador de poesia e teatro. Blog: <http://professorantonior.blogspot.com.br>.
FONTES:
CHEVALIER, Jean et GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Tradução Vera da Costa e
Silva et alli. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982. 995p.
JECUPE, Kaka Wera, Tupã Tenondé: A Criação da Terra, do Universo e do Homem segundo a
tradição oral guarani. São Paulo, Peirópolis, 2001. 45p.
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5. PARA TRADUZIR UM GESTO POÉTICO DO PASSADO
por José Pedro Antunes
Na Alemanha, idos de 1968, revolução estudantil nas ruas, a geração dos “filhos da guerra” dava as
caras, em confronto aberto com a geração dos “pais da pátria”. No âmbito da literatura, quem dava as
cartas eram os autores do Grupo 47. Criado dois anos depois de terminado o conflito, num país
material e espiritualmente arrasado, era uma espécie de agremiação de ex-combatentes. Seus
encontros se davam, estrategicamente, em cidades e países diferentes de cada vez, como forma de
alcançar a necessária projeção para sua missão humanista e regeneradora.
Do ponto de vista literário, para tecer relatos sobre o “passado recente”, formulação eufemística para
o período nazista e sua derrocada, o grupo adotou como modelo o realismo do século XIX. Havia que
combater o nazismo, reprovar a carnificina e o holocausto, mas também apregoar a necessidade de
uma retomada.
Convidado a participar da reunião que se deu em Princeton, nos EUA, em 1966, um representante da
novíssima geração de autores, o austríaco Peter Handke, ousou erguer a voz contra a produção de
seus anfitriões. Para ele, não se podia combater o nazismo com a mesma linguagem que o produzira;
e a adoção de um modelo literário único era indefensável. Aos 23 anos, Handke saltou para as capas
das revistas de grande circulação, tornando-se uma celebridade pop como a literatura em nenhum
quadrante ainda conhecia. Em 1967, com a explosão da peça-falada Insulto ao Público na
Documenta de Kassel, ele se tornaria, como Otto Maria Carpeaux talvez tenha sido o primeiro a
reconhecer, o mais importante representante da geração de 68 na literatura alemã.
Em O mundo interior do mundo exterior do mundo interior, também de 1967, seus petardos tinham a
forma de poemas nada convencionais, como a parada de sucessos das emissoras japonesas ou a
ficha técnica do filme “Bonnie and Clyde”. Mas foi a escalação do FC Nürnberg, campeão da Liga
Alemã de Futebol naquele ano, o artefato mais explosivo, tendo gerado intensa e duradoura recepção
crítica. Vale dizer: furibundamente crítica. No modo de apresentação das escalações dos times na
época, que mimetiza a posição dos jogadores em campo, Handke percebe a semelhança com alguns
procedimentos da poesia concreta, que ele bem conhecia. O resultado foi um impactante e
provocatório poema visual.
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Die Aufstellung des 1. FC Nürnberg vom 27. 1. 1968
WABRA
LEUPOLD POPP
LUDWIG MÜLLER WENAUER BLANKENBURG
STAREK STREHL BRUNGS HEINZ MÜLLER VOLKERT
Spielbeginn: 15 Uhr
Há tempos imaginei uma tradução para esse poema-provocação, que fui deixando sempre para mais
adiante. Ela também pretendia ser uma provocação às teorias da tradução, em especial às vertentes
que defendem o procedimento da “adaptação”, com o ocultamento dos vestígios da procedência
estrangeira e do fazer tradutório. No caso, falando de onde falo, eu faria a transcrição da escalação
da Ferroviária de Araraquara, que, no mesmo ano de 1968, vivia o seu apogeu como “locomotiva do
futebol” no interior do Estado de São Paulo. No caso, fico com aquela que me pareceu ter sido a
formação mais representativa, num ano em que a equipe grená venceu todos os grandes – inclusive
o Santos, de Pelé, em Araraquara e na Vila Belmiro –, tendo conquistado o terceiro lugar no
Campeonato Paulista e se sagrado campeã do interior. Diede Lameiro foi o técnico até o mês de
junho, tendo, portanto, conduzido o time a esse apogeu.
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A escalação da AFE de Araraquara em junho de 1968
CARLOS ALBERTO
BAIANO FERNANDO FOGUEIRA
BEBETO ROSSI
VALDIR ZÉ LUIS TÉIA BAZANI PIO
Horário: 16 horas
Num ensaio chamado “O mundo na bola de futebol”, anterior ao poema, Handke afirmava que, para
certos povos do terceiro mundo, a única fruição estética possível eram as partidas de futebol. O
carinhoso apelido com que o time araraquarense é tratado, “Ferrinha”, diz bastante dos intensos
momentos de emoção e beleza que ela já proporcionou a seus torcedores.
Foi essa a maneira que encontrei para traduzir um desafio poético no passado. É preciso imaginar
que alguém tivesse ousado, na época, introduzir um ready made como esse num livro de poemas.
Que, com isso, ousasse enfrentar o caudal discursivo engajado, que tomava conta de tudo naquele
momento, num ano que viu tanto o surgimento da eclosão do Tropicalismo como um seu antídoto, o
Ato Institucional n° 5 (AI-5).
Zé Pedro Antunes é professor de língua e literatura alemã (Unesp/Araraquara) e doutor em Teoria
Literária (IEL/UNICAMP). Traduziu, entre outros, Ensaio sobre a puberdade, de Hubert Fichte, O
medo do goleiro diante do pênalti, de Peter Handke, e O Ajudante, de Robert Walser. Do teórico
alemão Peter Bürger, traduziu e comentou O Surrealismo Francês (Tese de Doutorado – Unicamp,
2001) e Teoria da Vanguarda (Cosac Naify, 2008). Assina a coluna semanal oxouZINE no jornal
Tribuna Impressa de Araraquara e publica seus textos em: <http://zepedradas.blogspot.com.br>.
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6. A LINGUAGEM DA CANÇÃO
22
por Mário Martinez
Ouvir uma canção é entrar em contato com um amálgama de elementos que transcende, em muito,
os aspectos de letra e melodia, a essência do gênero. Para além do texto (que pode ou não
contemplar densidade poética) há os componentes musicais, como harmonia e ritmo, e para além
destes, há ainda o arranjo e aquilo que delineou o processo de produção da gravação daquela
canção, resultando no fonograma (a música gravada). Em um belo ensaio sobre a história do disco, o
filósofo Lorenzo Mammi comenta a riqueza de Sgt. Pepper’s, o álbum mais radical dos Beatles, e
ressalta que ali as sobreposições de elementos intrínsecos e extrínsecos às músicas fazem desse
disco uma obra-prima, única. Ou, em suas palavras, “a mercadoria no seu maior esplendor, e no mais
alto grau de reflexão e autoconsciência”. Num disco como esse, o ouvinte curioso não se deterá
apenas na palavra cantada, mas penetrará em outras camadas de sentido, que são praticamente
infinitas, indo da escolha dos instrumentos que compõem os arranjos a cada detalhe da capa.
Luiz Tatit, um dos principais estudiosos da canção entre nós, assinala que o cancionista é aquele que
“equilibra” elementos de sua entonação natural (decorrentes de sua fala cotidiana) com recursos
musicais que estabilizam tal entonação. As peculiaridades de cada compositor formam o que o
teórico denomina “dicção”. Teríamos então a dicção de Noel de Rosa, a de Chico Buarque, a de
Lupicínio Rodrigues e assim por diante.
No que concerne à recepção da forma por parte dos ouvintes, os componentes próprios da letra são
os que primeiro dizem ao nosso intelecto, pois, feitos do tecido verbal com o qual nos expressamos e
comunicamos, nos permitem a compreensão imediata do que se está ouvindo. Mas uma canção
também pode nos tocar mesmo sendo feita apenas de sons guturais, ou com associações aleatórias
de palavras. Ou pode ainda nos chegar em uma língua desconhecida. “Pata pata”, na voz de Miriam
Makeba, é um bom exemplo. Composta em dialeto xhosa, falado na África do Sul, a letra, ininteligível
para além dos limites dessa fala dialetal, não impediu seu estrondoso sucesso mundial na década de
1970. Em muitos outros casos, o acabamento poético da letra (que lhe reveste de melopeia, a
sonoridade agradável aos ouvidos) aproxima-a da densidade dos grandes “poemas de livro”. É o que
ocorre no Brasil com algumas das obras de Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Arnaldo
Antunes, entre outros, e nos EUA com as letras de autores como Cole Porter, Ira Gershwin e Bob
Dylan, entre outros também.
A recepção dos elementos musicais é mais subjetiva, sensorial. Ter domínio da linguagem musical
facilita o entendimento dos elementos implícitos numa dada composição, como sua sintaxe e
estrutura. Mas a maioria dos ouvintes, mesmo não possuindo esse entendimento, é capaz de
absorver alguns aspectos importantes do tecido musical a partir de analogias e metáforas, frutos da
sensação de ouvir.
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Quanto aos elementos extrínsecos, estes não podem ser de todo mensurados. Estão, por exemplo,
na tipografia utilizada para compor a letra do encarte do Cd (quando ainda se gravava neste formato),
na foto utilizada para a divulgação, no clipe postado no You Tube, no songbook com a partitura, na
letra e cifragem harmônica da música etc. São complementos que adensam o sentido da canção.
Para estes elementos, uma boa fonte de pesquisa também podem ser os estudos de viés sociológico
e antropológico (muito em voga hoje em dia nas universidades), bem como biografias e críticas
jornalísticas. São trabalhos que se prestam a contextualizar, comparar, interpretar e fornecer detalhes
sobre a produção de determinada obra ou artista...
“O Leãozinho”, de Caetano Veloso, pode ser ouvida como uma canção simples, quase cantiga de
ninar, singela, com sua temática de liberdade, de vida “ao léu”, e melodia doce. Penúltima faixa de
Bicho, disco do artista lançado em 1977, a canção (em tonalidade maior, “solar”) se integra
plenamente ao conceito do álbum e interage com outras faixas com a mesma temática, tais como “A
grande borboleta” e “Tigresa”, sendo que outras canções também transitam nesse campo de sentido,
como “Um índio” e “Alguém cantando”.
Na letra, em puro artesanato poético, Caetano brinca com as palavras léu, homófono de leo (leão em
latim) e numa, que lembra o nome do leão de Tarzã*. Na forma como concebeu o arranjo, arpejando
nas cordas mais graves do violão as notas que compõem o acorde de dó maior, o músico simula um
procedimento recorrente no modo como tocam os contrabaixistas (e talvez, numa tentativa de
metáfora, o ritmo com que um leão se desloca livre na selva). Em um outro ponto da harmonia, as
inversões de acordes a partir de lá menor também resultam no mesmo efeito.
Um dado de bastidor, do qual a canção independe para ter sua grandeza, dá a ela mais vigor: feita
em homenagem ao baixista Dadi Carvalho (integrante de bandas como Novos Baianos, A Cor do
Som e Tribalistas), a música devota o arrebatamento do compositor ao conhecê-lo, leonino, na
exuberância de seus 17 anos. Ouvi-la no álbum Circuladô Vivo (faixa três, do disco dois), que contém
a gravação do show homônimo realizado em 1992, é apreciá-la plena de sentidos: Caetano a
interpreta acompanhado somente pelo baixo de Dadi.
Eis aí um exemplo de quão vasta é a linguagem da canção.
Mário Martinez é músico, poeta e professor de literatura.
FONTE:
* Paulo Franchetti e Alcir Pécora em “Literatura Comentada – Caetano Veloso”, Ed. Abril, 1991, pág.
59.
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7. 12 FATOS SOBRE A LÍNGUA ALEMÃ
24
por Robson Carapeto
1.
Alemão é língua oficial de seis países: Alemanha, Áustria, Liechtenstein, Bélgica, Suíça, Luxemburgo,
sendo o idioma mais falado como língua materna na União Europeia (por 90 milhões de pessoas) e o
segundo mais falado como língua estrangeira. Além disso, também é reconhecido regionalmente
como língua oficial na Dinamarca, Polônia, Itália, Eslováquia e no Brasil. No continente americano, é
falado como língua materna por dezenas de comunidades descendentes de imigrantes radicadas do
Chile à Jamaica, do Canadá ao Paraguai. Foi língua oficial da Namíbia até 1990, e a partir de então
língua oficial regional, e é a língua oficial da Guarda Suíça no Vaticano.
2.
“Alemão”, “German”, “niemiecki”, “tedesco”, “Deutsch”... A maioria dos radicais usados por outras
línguas para denominar a Alemanha, o povo e a língua alemã são derivados dos nomes dos povos
germânicos ancestrais dos alemães de hoje em dia.
Os alamanos eram o povo geograficamente mais próximo e que teve mais contato com os galoromanos antes do surgimento do Reino dos Francos. Ocupavam a área que se estende da Alsácia
até o Vorarlberg, no ocidente da Áustria atual. Dessa forma, o termo que os designava derivou
“allemand” e “Allemagne” e, no século 12, já tinha praticamente se estabelecido na língua francesa e
até mesmo em inglês e em italiano eram os termos mais utilizados. Através do francês, o radical foi
levado à península Ibérica, tendo sido aí incorporado pelo castelhano, o catalão, o português e o
árabe. O significado original do termo em germânico antigo parece ser “todos os homens” ou “homens
em geral” e corrobora a teoria de que o povo alamano tenha se constituído e se desenvolvido, na
realidade, pela comunhão de diferentes grupos e famílias de origens diversas.
“Deutsch” é como os alemães denominam a si próprios e deriva do adjetivo germânico que
caracterizava tudo que era relativo ao povo. Assim denominou Martinho Lutero a língua na qual
redigiu a sua versão do Novo Testamento, no século 16, combinando elementos de dialetos
germânicos diferentes de forma que sua linguagem pudesse ser compreendida por mais gente
possível. Finalmente, o falar “do povo” – germânico, vulgar, oral – ganhava uma obra de referência
estabilizante e unificadora através da escrita.
Em boa parte das línguas eslavas, a língua dos alemães é denominada a partir do radical “nemet”,
que tem origem no eslavo antigo e significa “estrangeiro”, além de apresentar similaridade com o
adjetivo que, naquela língua, significava “mudo”.
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Figura 1: Arnold Platon, Wikipedia
3.
Alemão não é tão complicado quanto dizem.
Apesar de não ser como em inglês, em que a desinência verbal é quase sempre substituída pela
explicitação obrigatória do sujeito, a conjugação verbal em alemão é bastante simples e raramente
irregular. Além disso, só há dois tempos verbais sintéticos em alemão. Com exceção do presente e
do pretérito imperfeito (Präteritum), todos os demais tempos são formados pela combinação de um
verbo auxiliar e o infinitivo ou particípio passado do verbo principal. No presente dos condicionais,
somente verbos modais e auxiliares possuem paradigma conjugacional próprio.
4.
É muito fácil grafar uma palavra alemã pela primeira vez sem cometer desvios ortográficos. A grafia
corresponde, quase sempre, ao que se pronuncia e, com pouquíssimas exceções, cada som possui
sempre uma única forma de ser representado.
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5.
A estrutura oracional do alemão é muito clara, simples e praticamente universal. Num primeiro
momento, você pode pensar que o alemão possui uma sintaxe bem engessada, mas a verdade é que
somente os verbos é que têm uma posição fixa na frase (a posição seguinte ao primeiro termo,
mesmo que não seja o sujeito) e isso aumenta muito a mobilidade dos outros termos da oração.
Se houver uma locução verbal, a parte que traz a marca de conjugação fica na segunda posição,
marcando o início do predicado, e o verbo principal encerra a oração, formando um lindo sanduíche
oracional:
Wir haben gestern den armen Kindern unsere alten Comic-Hefte geschenkt.
*Nós temos (aux. de perfeito) ontem às pobres crianças nossos velhos gibis dado.
(Nós demos ontem nossos gibis velhos para as crianças pobres.)
Mein Sohn darf abends ihre Freunde nicht anrufen.
*Meu filho pode à noite seus amigos não ligar.
(Meu filho não pode ligar para seus amigos à noite.)
Alguns verbos plenos, mesmo quando não vêm acompanhados de modal ou auxiliar, ajudam a
organizar a oração nesse sanduíche ao se desprenderem de uma sílaba inicial que acompanha o
radical e que se desloca para o final para marcar o fim da oração.
Trotzdem ruft mein Sohn abends ihre Freunde an.
*Mesmo assim /liga meu filho à noite seus amigos liga/.
Orações subordinadas são construídas também por esse princípio – a conjunção abre e o verbo
conjugado encerra. Os próprios termos delimitam os limites sintagmáticos e o uso de vírgula é muito
mais pontual do que em português. Elas somente são usadas para enumerar itens e para separar
uma oração subordinada da principal.
Trotzdem ruft er abends ihre Freunde an, wenn ich vor dem Fernseher einschlafe.
*Mesmo assim ele liga para seus amigos à noite, quando eu em frente à TV adormeço.
6.
Tem gente que corre de declinação como o diabo do arco-íris e não calcula a montanha de
ambiguidades que são evitadas quando ela existe. Em alemão, a flexão de caso não chega a reduzir
drasticamente o número de preposições. Alemão até que tem bastante delas. Mas isso porque o seu
sistema de declinação consiste em apenas quatro casos (nominativo, acusativo, dativo e genitivo) e
somente é aplicado em artigos e pronomes. Adjetivos e substantivos sofrem leves ajustes em alguns
casos.
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[Der erste Mann] stellt [dem lieben Mann] [des zweiten Mannes] [den vierten Mann] vor.
[nominativo, sujeito] verbo [dativo, objeto indireto] [genitivo, adj. adnominal] [acusativo, objeto
direto]
*O 1º homem apresenta (stellt... vor) ao amável homem (marido) do 2º homem o 4º homem.
(O primeiro apresenta o quarto ao marido do segundo.)
7.
Sabe aquela bonequinha tradicional russa, a matrioshka? Pois é, os sintagmas nominais em alemão
são construídos da mesma maneira. Se você compreendeu o esquema do sanduíche oracional, fica
fácil de imaginar como isso também se aplica no cenário nominal.
Como em outras línguas, o artigo acumula várias funções gramaticais, funcionando praticamente
como a carteira de identidade do substantivo que é núcleo do sintagma nominal a que ele pertence. O
artigo pode ser definido, indefinido, negativo, demonstrativo e possessivo e informa o gênero/número
e o caso do substantivo. Para, além disso, em alemão, é importante salientar que o artigo marca o
início do sintagma nominal. O artigo é o início e o substantivo marca o fim. Lembra que é o verbo
principal que também encerra a oração? Pois essa é uma tônica da sintaxe alemã: sanduíches em
que uma fatia do pão é temperada com traços mais gramaticais e a outra, que encerra, possui a
maior carga semântica.
Portanto, quando existe um ou mais atributos (adjetivos) no sintagma nominal, ele ou eles aparecem
entre o artigo e o substantivo a que se referem.
Como em várias outras línguas, os verbos alemães também possuem particípios, que são usados em
tempos compostos, mas também como adjetivos. Isso significa que, nessa forma, eles podem
aparecer entre um artigo e um substantivo compondo o sujeito ou o objeto direto, por exemplo, numa
oração. A particularidade nesse caso, porém, é que, enquanto particípio-adjetivo, o radical verbal não
perde nada de sua regência e isso permite que ele traga para dentro do sintagma nominal todos os
seus próprios atributos, ou seja, seus complementos e adjuntos. Olha isso:
Das Mädchen fährt
jeden Tag
mit dem roten Fahrrad
nach Hause.
*A garota
todo dia
com a vermelha bicicleta
para casa.
vai
Ich sehe immer das Mädchen, das jeden Tag mit dem roten Fahrrad nach Hause fährt.
Eu vejo sempre a garota,
que... [oração relativa com o verbo conjugado no final]
Ich sehe immer das jeden Tag mit dem roten Fahrrad nach Hause fahrende Mädchen.
Eu vejo sempre a...
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8.
Outro mito é o de que a língua alemã tem três gêneros. Mentira, tem quatro: masculino (der), feminino
(die), neutro (das) e plural (die também). Tudo bem, eu sei que plural é número e não gênero, mas
morfologicamente, em alemão, essa categorização faz sentido, já que, em seu paradigma nominal o
gênero, não é marcado no plural. Individualmente se faz distinção entre três gêneros, mas, no meio
da multidão, ninguém é de ninguém.
Os gêneros do singular são distribuídos bem arbitrariamente e não têm relação direta com o sexo ou
ausência de sexo dos entes. Tanto que galinha é de gênero neutro (das Huhn) e menina também
(das Mädchen). No entanto, estrela e árvore são masculinos (der Stern, der Baum), nariz e tempo são
femininos (die Nase, die Zeit). Toda e qualquer coisa ou ser vivo, de qualquer gênero, no diminutivo
passa a ser de gênero neutro.
9.
Alemão tem umas letrinhas marotas, além das 26 do alfabeto. São os chamados Umlaute (sons
arredondados) e o es-zet (esse-zê). Os Umlaute são três variações arredondadas das vogais a (ä), e
(ö) e i (ü). O ä se tornou, com o tempo, um e bem aberto, assim como em “canela”. Não há mais nada
que você precise saber sobre ele. Já o ö e o ü demandam uma certa experimentação articulatória
para nós brasileiros. O truque é dizer e e i arredondando os lábios, como se fosse pronunciar o e u.
O es-zet (ß) se chama assim porque surgiu mesmo da combinação gráfica de s com z. Isso que você
deve achar mais parecido com um beta grego não passa da estilização de um s gótico (que era
representado como um palitinho, tipo um t sem corte) grudado num z cursivo. O som que isso tem
hoje é o s. O s simples em alemão é pronunciado como z e por essa razão o ß é também chamado
de “s afiado”. Pra digitar o es-zet num teclado brasileiro, segure a tecla Alt do lado esquerdo enquanto
digita 0225 no teclado numérico.
10.
Todos os substantivos (todos!) são escritos com inicial maiúscula em qualquer posição da frase
(qualquer!).
11.
Não lembra como se chama ou não encontra uma palavra para designar um conceito qualquer?
Invente! A justaposição de substantivos, adjetivos e até de radicais verbais é livre. Não tem patrulha
de neologismo e perguntar pela maior palavra da língua alemã não faz nenhum sentido, uma vez que
sempre vai ser possível construir uma maior:
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Donau dampf schiff fahrts gesellschafts kapitän
= capitão da sociedade de viagens de navio a vapor do Danúbio
(tradução ao pé da letra, mas já seguindo o princípio de posicionamento do item de maior importância
à direita – portanto, ao pé da letra, mas ao contrário)
(e é claro que não se escreve assim, mas sim sem os espaços:
Donaudampfschifffahrtsgesellschaftskapitän)
12.
Os números também exigem uma certa mudança de hábito, mas não é nada complicado. É só fazer
tudo ao contrário. Em alemão, diga primeiro a unidade e depois a dezena: 82 se diz zweiundachtzig,
ao pé da letra, dois (zwei) e (und) oitenta (achtzig). Se temos a casa da centena, então adota-se a
lógica a que você já está acostumado, ou seja, primeiro a centena. Mas a dezena com a unidade é
tratada como um bloco indissociável, de forma que 382 (dreihundertzweiundachtzig) consiste na
justaposição de trezentos (dreihundert) e oitenta e dois (zweiundachtzig).
Pra dizer as horas, o alemão possui dois sistemas diferentes para expressar os minutos passados ou
que faltam em relação à hora cheia. O uso de um ou de outro sistema depende da região em que a
língua é falada e é muito controverso afirmar que uma ou outra maneira de se dizer seja a forma mais
usada ou de uma maioria.
A maneira mais simples de entendermos não é a mais simples de construir. A gente percebe logo
como ocorre porque é similar ao funcionamento de outras línguas: um quarto passado da última hora
cheia para dizer que é tantas horas e quinze minutos (XX:15); um quarto faltando para a próxima hora
cheia quando se trata de XX:45:
8:15 = Viertel (¹ ₄) nach acht (pós 8)
8:45 = Viertel (¹ ₄) vor neun (antes de 9)
Agora, olha só com que facilidade a outra metade dos alemães e dos austríacos dizem que horas
são:
8:15 = Viertel neun
8:45 = drei Viertel (³ ₄) neun
Estes adotam simplesmente a hora vindoura como referência universal e assim dispensam até
mesmo o uso da preposição. Essa lógica é a empregada por todos os falantes (inclusive os que
utilizam o primeiro sistema) para expressar a meia hora:
8:30 = halb (¹ ₂) neun
Robson Carapeto é Professor de Alemão da Escola Alemã Corcovado (Deutsche Schule Rio de
Janeiro) e doutorando em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal Fluminense. Levou o
time brasileiro como team leader para as edições da IOL em Liubliana (2012) e Manchester (2013).
Fã de ritmos caribenhos, teatro do absurdo, jogos de tabuleiro e viagens de trem. Peixes com câncer.
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NÚMERO 1 - SETEMBRO/15
8. GERANDO ÁRVORES
30
por Pedro Neves
Apesar de ser uma característica bem humana, o uso de linguagens também pode ser implementado
em máquinas, como nos computadores. Mesmo com suas limitações de funcionamento, ainda é
possível criar línguas que um computador “entenda” e, de fato, todo o funcionamento dos programas
e aplicativos que utilizamos é criado a partir de diversas linguagens de programação.
Mas, mesmo que um computador consiga funcionar muito bem com suas linguagens específicas,
ainda há diversas dificuldades para o entendimento de linguagens humanas e, para ajudar em uma
dessas tarefas, mostraremos como utilizar uma ferramenta de reconhecimento de linguagem, o
ANTLR[1], para que seu computador possa, na medida do possível, “entender” alguma língua, como o
nosso português.
O ANTLR (ANother Tool for Language Recognition, “mais uma ferramenta de reconhecimento de
linguagem”, tradução livre) é uma poderosa ferramenta capaz de gerar códigos que implementam
reconhecedores de linguagem a partir de uma dada gramática.
Os reconhecedores gerados funcionam como um LL Parser, isso significa que as sentenças são
analisadas da esquerda para a direita, sendo que o elemento mais à esquerda é encaixado na regra
gramatical.
O ANTLR em si apenas compila um arquivo que define a gramática e gera o código dos
reconhecedores em alguma linguagem de programação (atualmente disponíveis em Java, C# e
Python), mas, para uma implementação mais intuitiva e uma visualização mais direta da gramática,
utilizaremos o ANTLRWorks[2], programa gratuito, com a geração de código do ANTLR já incorporada
nele e ainda mostrando as árvores gramaticais para testes.
Definindo uma gramática
Para podermos implementar regras gramaticais utilizando o ANTLR, partimos de uma definição formal
de gramática, que possui os seguintes elementos:




símbolos terminais, utilizados para formação das sentenças;
símbolos não-terminais, utilizados para descrever a língua;
produções, as regras gramaticais da língua;
símbolo inicial, não-terminal, a partir do qual iniciamos uma sentença.
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Por exemplo, para classificar um pequeno pedaço da gramática do português, que compreende
apenas a seguinte sentença:
sentença
o menino leu o livro velho
Podemos definir, pela sintaxe, os seguintes elementos:
sujeito
verbo
o menino
sentença
objeto
leu
o livro velho
E a partir disso definir, pela morfologia:
sujeito
artigo
o
verbo
subs.
verbo
menino
leu
sentença
artigo
o
objeto
subs.
livro
adj.
velho
Se escolhermos parar nossa definição neste ponto, chegamos aos seguintes elementos:
Símbolos terminais
“o”, “menino”, “leu”, “livro”, “velho”
Produções
as regras sintáticas e morfológicas utilizadas na classificação
Símbolos não-terminais
artigo, substantivo, verbo, adjetivo, sujeito, objeto, sentença
sentença
Símbolo inicial
É importante notar que poderíamos definir nossa gramática com mais detalhes, como separar o
substantivo em radical e desinências, e construir regras cada vez mais precisas.
Escrevendo a gramática
Para iniciar a definição da gramática no
ANTLRWorks, basta ir em File > New File;
deixar
a
opção
“ANTLR
4
Combined
Grammar” selecionada; clicar em Next; dar
um nome; escolher um local para salvar o
arquivo e finalmente clicar em Finish.
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Isso criará um arquivo de extensão g4, em que será escrita a definição da gramática. O arquivo já
começa com o nome da gramática.
Iniciaremos definindo o elemento de ordem mais elevada, “sentença”, composto por “sujeito”, “verbo”
e “objeto”.
No ANTLRWorks, escrevemos como:
sentenca : sujeito verbo objeto ;
Neste momento, o programa dá sinais de erro porque ainda não definimos o que significa “sujeito”,
“verbo” e “objeto”, o que faremos nas próximas linhas:
sujeito : artigo substantivo ;
objeto: artigo substantivo adjetivo ;
Para finalizar a gramática, precisamos definir os últimos elementos com os símbolos terminais.
Aqui, o símbolo | indica “ou” e é usado para listar as possibilidades dos terminais, ou seja, tanto
“menino” quanto “livro” serão identificados como “substantivo”.
artigo : 'o' ;
verbo : 'leu' ;
substantivo : 'menino' | 'livro' ;
adjetivo : 'velho' ;
Nossa gramática finalizada deve ter mais ou
menos a seguinte forma:
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Testando a gramática
Para testar o reconhecimento das regras, primeiro criamos um arquivo no bloco de notas com a
nossa frase.
Depois voltamos ao ANTLRWorks,
salvamos nossa gramática para que
nada se perca e selecionamos Test >
Run in TextRig.
Aqui selecionamos o arquivo com
nossa frase e na seção “Start rule”,
selecionamos o símbolo inicial, no
nosso caso, “sentenca”, e deixamos
selecionada a opção “Show tree in
GUI” para visualizar nossa árvore
gramatical.
Se tudo ocorrer corretamente, o programa apresentará uma árvore com todos os nossos elementos
reconhecidos.
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Aprimorando a gramática
Como já criamos uma primeira gramática simples, podemos melhorar e adicionar mais elementos
para reconhecer frases cada vez mais gerais.
Primeiro, como definimos que tanto “livro” como “menino” são “substantivo”, a seguinte frase também
é reconhecida pelo programa:
“o livro leu o livro velho”
Mesmo que a frase não faça muito sentido, ela está gramaticalmente correta. Para reconhecer ainda
mais palavras, podemos adicionar mais termos nas definições dos símbolos terminais:
artigo : 'o' | 'a' ;
verbo : 'leu' | 'lê' | 'comprou' | 'olhou' ;
substantivo : 'menino' | 'livro' | 'revista' ;
adjetivo : 'velho' | 'famoso' | 'caro' | 'azul' ;
Então mais frases serão reconhecidas.
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Também podemos alterar algumas regras, como deixar o artigo opcional, escrevendo:
sujeito : artigo? substantivo ;
objeto: artigo? substantivo adjetivo ;
Então ainda mais frases serão reconhecidas
E, assim por diante, basta criar mais regras e mais definições, para que as possibilidades cresçam
cada vez mais.
No nosso exemplo, montamos regras que descrevem um pedaço bem específico da gramática do
português, mas podemos usar o ANTLR para reconhecer outras coisas, desde que seja possível
interpretar da esquerda pra direita, com regras definidas.
Por exemplo, podemos criar regras para formação de palavras com radicais e desinências:
Criar um interpretador de expressões matemáticas:
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Ou reconhecer linguagens de máquina, como a linguagem G:
Novamente, as possibilidades são inúmeras, basta gastar a criatividade e criar mais coisas.
Pedro Neves é graduando de Engenharia Mecatrônica da Escola Politécnica da USP, conquistou a
Medalha de Bronze na International Linguistics Olympiad em Ljubljana (2012). É também um dos
membros do júri da Olimpíada Brasileira de Linguística, na qual confecciona as questões que todo
mundo “ama/odeia”.
FONTES:
[1] ANTLR, http://www.antlr.org/
[2] ANTLRWorks, http://www.tunnelvisionlabs.com/products/demo/antlrworks
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9. UM TIPO DE CONSTRUÇÃO COM PRONOME RELATIVO
37
por Eloy Gustavo de Souza
Há um tipo de construção com pronome relativo que costuma ser omitida nos materiais de ensino
médio: trata-se da construção em que o relativo desempenha função não na oração adjetiva que
introduz, mas numa outra oração subordinada a essa adjetiva. Antes de tratarmos dela, vamos
recapitular alguns pontos necessários para o seu entendimento.
Informações iniciais: o pronome relativo
O conector oracional por excelência é a conjunção, sendo as orações adjetivas as únicas que, se
desenvolvidas, devem ser introduzidas necessariamente por pronomes, chamados de relativos. Isso
ocorre, porque o conector dessa oração é um anafórico que retoma um termo da oração principal
(antecedente), para poder fazer assim uma afirmação sobre esse termo. Note que a troca da forma
“que” invariável pela forma variável “o qual” faz com que esta assuma as flexões de gênero e número
do antecedente. Outra prova dessa retomada é o fato de o relativo desempenhar na oração adjetiva a
função sintática que caberia ao antecedente. Vejamos o exemplo abaixo (o PR indica a classificação
morfológica do “que” como pronome relativo; “a qual” é o relativo variável):
Em ambas as frases, o relativo “que” retoma o termo “a garota” que é o objeto direto da oração
principal. Na frase 1, quer se afirmar que a garota ama o interlocutor, por isso se optou pela
colocação do verbo logo após o pronome relativo, conferindo a esse o papel de sujeito – note-se,
portanto, que as funções exercidas pelo relativo e pelo antecedente não precisam ser as mesmas. Na
frase 2, o simples deslocamento do “você” para antes do verbo leva-o a exercer a função de sujeito,
passando assim o relativo a exercer a função de objeto direto.
Caso a função exercida pelo relativo seja preposicionada, fica evidente o exercício dessa função. As
frases 3 e 4 repetem a estrutura das anteriores, mas a troca de “amar” (VTD) por “gostar” (VTI) leva
ao emprego da preposição “de” que incidirá sobre o pronome relativo ou sobre o de tratamento,
conforme o que se queira expressar. No caso do relativo “a qual”, ocorrerá contração “da qual”:
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Informações iniciais: a conjunção integrante
A conjunção integrante, que introduz orações substantivas, também pode vir antecedida por
preposição, mas nesse caso há duas diferenças marcantes, além do fato de que ela não exerce
função alguma.
I A preposição rege a oração substantiva inteira e não apenas o conector, tanto que a preposição
estará em conformidade com a função exercida por essa oração (objeto indireto, complemento
nominal, ou mesmo objeto direto preposicionado).
II O termo regente dessa preposição encontra-se na oração principal, e não na subordinada como
ocorre com a adjetiva.
Vejamos os exemplos (o CI indica a classificação morfológica do “que” como conjunção integrante, e
o símbolo indica a ausência de função sintática da conjunção):
Na frase 5, a conjunção introduz uma oração que se subordina ao verbo “disse” como seu
objeto direto, daí a ausência de preposição. Já na 6, a subordinação ocorre com o verbo transitivo
indireto “concorda”, que exige a preposição “com”, daí ela aparecer no início da oração subordinada,
uma vez que ela exerce a função de objeto indireto.
Vistas essas informações iniciais, passemos agora ao fenômeno de que nos propomos tratar.
Orações adjetivas entrançadas
Como foi dito, não é costume a apresentação desse tipo de oração em livros de ensino médio,
mesmo em obras de maior fôlego, como nas gramáticas de Celso Cunha e de Rocha Lima, ela não é
abordada. Teremos como base aqui, a “Moderna Gramática Portuguesa” de Evanildo Bechara e dois
manuais de sintaxe: “Lições de Português” também de Bechara e “Novas Lições de Análise Sintática”
de Adriano da Gama Kury, manuais que recomendamos como obras preciosas para o estudo da
análise sintática tradicional.
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Gama Kury usa a expressão “relativo com função noutra oração” e Bechara, “relativo sem função na
oração em que se encontra” para nomearem o fenômeno linguístico em questão. Preferimos aqui a
expressão “adjetivas entrançadas” de um autor (Guimarães Correa) da década de 60, por julgarmos
mais expressiva, pois a oração em que o relativo exerce a função está subordinada à adjetiva, dando
a ideia de fato de um entrelaçamento dessas duas orações. Abaixo retomamos as frases 2 e 5; no
exemplo 7, fazemos a fusão (entrelaçamento) dessas duas orações. Se a frase 2 informa que o
emissor conheceu a garota amada pelo receptor, dando esse amor como certo, a 7 não dá a certeza
desse amor, pois ele foi informado por uma quarta pessoa, que chamamos de João. Caso o emissor
não queira dizer que ele conheceu não a garota que o receptor ama, mas sim a garota que João diz
que o receptor ama, pode-se expressar tal ideia com entrelaçamento das duas orações.
A frase resultante possui três orações: a 2ª subordina-se à 1ª como adjetiva, já que o relativo que a
introduz tem como antecedente um termo da 1ª. A 2ª oração também cumpre o papel de principal em
relação à 3ª, já que esta se subordina ao verbo “disse” da 2ª como seu objeto direto. Orações
poderem desempenhar mais de um papel sintático em função de se subordinarem ou terem a si
subordinada mais de uma oração é um fato corriqueiro. O entrelaçamento ocorre pelo fato de o
relativo não desempenhar função na oração adjetiva (João disse), mas sim constituir o objeto direto
do verbo “ama” da oração subordinada substantiva. A prova de que o relativo de fato é o primeiro
“que” é que ele pode ser permutado por “a qual”. Além disso, caso trocássemos o verbo “ama” por um
que exigisse preposição, ficaria claro que o relativo se relaciona a esse verbo. Veja o exemplo a
seguir:
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O verbo “gosta”, no sentido com o qual foi empregado, exige preposição “de”, que deve ser colocada
antes do relativo, contraindo-se com ele, caso seja empregada a forma “a qual”.
Aqui utilizamos frases bem simples, para que os leitores possam acompanhar o raciocínio. Para
terminar, indicamos ao leitor duas frases de estrutura mais complexa, sublinhamos a oração adjetiva.
Fica o convite para que procedam à análise:
Não faças a outrem o que não queres que te façam. (máxima)
O de que eu quero que te esqueças é o sinal da cruz.
(A dama pé-de-cabra; Alexandre Herculano)
Eloy Gustavo de Souza cursou Letras na Universidade de São Paulo e exerce a docência desde
1998, atuando no ensino médio e em cursos preparatórios pré-vestibular. Atualmente, é professor de
português e literatura de curso pré-vestibular e no curso Clio, preparatório para o exame de admissão
à carreira diplomática.
FONTES:
KURY, Adriano da Gama. Novas Lições de Análise Sintática - Série Fundamentos. São
Paulo: Ática, 1993. 6a Edição.
BECHARA, Evanildo. Lições de Português pela Análise Sintática. s.l.: Lucena, 2001. 16a
Edição.
CORREA, Geraldo Guimarães. 2.500 Exercícios Graduados. s.l., 1965.
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10. A IMPORTÂNCIA HISTÓRICA E LINGUÍSTICA DO ESTUDO DE LATIM
por Tomislav Correia-Deur
Este artigo procura informar como o estudo da língua latina e sua evolução diacrônica constituem um
manancial útil para as reflexões linguísticas em geral. Para tanto, procura apresentar algumas áreas e
disciplinas inter-relacionadas, situando o leitor nos diversos campos de pesquisa e pontuando suas
principais descobertas.
Desde a idade Média, o estudo do Latim motiva a formulação de questões pertinentes, como a
relação deste idioma com outros percebidos como similares ou a possibilidade de agrupar o idioma
em famílias. No entanto, todo esse material não era organizado de forma sistemática e muitas vezes
se fundava em bases teóricas que depois se mostraram equivocadas. Apesar disso, a grande
quantidade de reflexões sobre questões de linguagem que se desenvolvem no correr dos séculos cria
condições para o desenvolvimento, no século XIX, da Filologia. Esta disciplina irá criar outras
subáreas com objetos e métodos específicos. Uma delas é a Crítica Textual (ou Edótica), que se
preocupa com questões históricas de preservação e transmissão dos textos como documentos
materiais – livros, manuscritos, inscrições arqueológicas nos mais diversos substratos, etc. – e não
será aqui discutida.
Outra parte da Filologia estuda a organização linguística dos diversos idiomas em busca de critérios
que permitam a comparação entre eles, a fim de isolar processos recorrentes, avaliar influências
mútuas, organizar árvores genealógicas, etc. Para tanto, vários métodos de pesquisa foram criados,
entre eles o Método Histórico-Comparativo e a Geografia Linguística. O primeiro procura verificar as
transformações de uma língua no correr do tempo (diacronia) e comparar diversas línguas em
diversos momentos. O segundo procura relacionar aspectos linguísticos com o espaço que as
diversas sociedades humanas ocupam.
Graças aos avanços da Filologia do século XIX, várias questões puderam ser desenvolvidas de forma
mais objetiva e rigorosa do ponto de vista científico. O estudo do latim e das línguas neolatinas
fornece um bom exemplo desses avanços e suas consequências. A Filologia Românica, então, se
constitui como a parte da Filologia dedicada a estudar as origens do latim, os diversos momentos da
sua história linguística e seus desdobramentos nas línguas neolatinas atuais.
A Filologia Românica desempenha um papel de destaque, nos estudos linguísticos, porque possui
um amplo acervo de exemplos documentados, que permite a elaboração de inferências teóricas.
Desde as inscrições arqueológicas do séc. VI a.C., até as gravações de áudio e vídeos do séc. XXI,
passando por todo tipo de texto metalinguístico, é possível ao estudioso verificar o estado de
questões específicas, como a fonética, a morfossintaxe ou o vocabulário em várias épocas.
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O conhecimento sólido da língua de origem (o latim) e das línguas de chegada (as línguas neolatinas)
fornece um modelo de referência para os estudos de outros ramos linguísticos, como as línguas
germânicas, do qual se conhece pouco sobre a língua de origem. Assim, alguns processos
comprovados no latim podem ser aplicados a outro idioma, possibilitando a reconstrução de
determinados aspectos linguísticos de um estado anterior daquela língua com base em um critério
objetivo (ainda que questionável).
A riqueza da documentação do latim permitiu também a periodização adequada da história da língua,
com grandes implicações para a compreensão da língua como fenômeno social. Era muito difícil
estabelecer uma relação entre a linguagem das obras literárias latinas e as diversas línguas
neolatinas. No entanto, as gramáticas do latim escritas a partir do século IV d. C. começam a apontar
os erros comuns dos falantes, muitas vezes, atrelando os erros a determinados tipos sociais. Assim,
percebe-se o descompasso entre a língua escrita e a língua falada pelos romanos. Os estudiosos
perceberam rapidamente que os tais erros da fala conseguiam explicar mais facilmente as línguas
neolatinas.
O latim, além de ser dividido em Arcaico, Clássico e Medieval – classificação que dava conta apenas
da norma culta escrita – passa a ter também o Latim Vulgar – ou seja, a língua popular falada que se
expande pelas possessões do Império Romano. Assim fica claro, desde o século XIX, que a língua
não é só um objeto dinâmico, mas também é um fenômeno social, que depende muito mais da fala
que da escrita. Tais posições serão desenvolvidas pela Sociolinguística de Coseriu no século XX.
A relação de várias línguas modernas como o Português, o Espanhol, o Italiano e Francês, por
exemplo, com o Latim Vulgar permitiu que essas línguas fossem agrupadas em troncos, como, no
caso, o Neolatino. Essa forma de agrupar idiomas se expande e, graças ao Método Histórico-
Comparativo, começa-se a perceber as relações entre os vários idiomas e os vários troncos a partir
de formas arcaicas, documentadas ou inferidas. Como tanto línguas quanto povos têm uma história, o
estudo das línguas possibilitou inferências sobre migrações humanas que foram corroboradas pelos
estudos de genética populacional do séc. XX. Saussure, pai da linguística moderna, foi um grande
comparativista, estudando as relações do hitita com o indo-europeu.
Também foi importante perceber a distinção entre os sistemas ortográfico e fonético. A perspectiva
diacrônica e o Método Comparativo mostram a necessidade da criação de um padrão de escrita dos
sons que permita as comparações entre diversos estágios de uma mesma língua e diversas línguas.
O Alfabeto Fonético Internacional (AFI) surge como elemento padronizador para os filólogos e,
conforme o estudo de outras línguas (como as indígenas) foi se desenvolvendo, o AFI foi se
consolidando como ferramenta de trabalho da Fonética.
REVISTA DA
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Os avanços da filologia do século XIX permitiram a classificação e compreensão de fenômenos, como
as transformações fonéticas (metapalasmos) que explicam como certas palavras mudam. A
sonorização (troca do fonema surdo pelo sonoro similar) explica como lupu (latim) se transforma em
lobo (português). No entanto, mesmo que o fenômeno tenha ocorrido em um momento específico da
história, isso não quer dizer que o mesmo fenômeno irá se repetir novamente. Assim, não é possível
afirmar que capa (português) irá se transformar em caba (português) no futuro, mesmo que isso seja
possível. Assim o filólogo, assim como o historiador pode fazer inferências, mas não pode prever,
categoricamente, o futuro.
Os estudos fonéticos revelaram o grande impacto deste nível de estruturação linguística na língua
como um todo. Pequenas mudanças fonéticas podem produzir dificuldades para os ouvintes. Por
exemplo, as 10 vogais do latim clássico se tornam 7 vogais por volta do século IV (i breve e e longo
convergem, assim como u breve e o longo, bem como as duas formas de a). Esse processo fica
congelado na parte ocidental da Península Ibérica, criando as 7 vogais presentes até o português
moderno (a vogal ê é derivada do i breve e do e longo, a vogal é do e breve; a vogal ô é derivada do
u curto e do o longo, a vogal ó, do o breve), enquanto que, na área central e oriental da península, o
processo continua em andamento, eliminando, ao longo dos séculos, a diferença ê/é e a diferença
ô/ó. Assim o falante de espanhol tem dificuldades para entender português, por não distinguir tantas
vogais.
A queda do fonema final (Apócope) tende a produzir grande impacto no latim, pois, por exemplo, a
queda do –m, marcador de acusativo, não só muda uma palavra, como obriga a criação de uma
forma alternativa de marcar caso, originando o fim do sistema de declinações do latim e sua
substituição pela ordem da sentença.
O relativo esgotamento do campo levou a Filologia a se transformar no século XX, com o surgimento
da Linguística Moderna, com suas várias correntes. No entanto, o manancial de informações não só
estimula as novas abordagens como ainda suscita diversas questões, como a comprovação de
formas hipotéticas ou nova leitura de documentos antigos, sem contar que novos documentos sempre
podem ser encontrados, lançando nova luz sobre velhas questões.
Tomislav Correia-Deur é Mestre em Letras Clássicas, com a dissertação “Considerações acerca da
Pureza e Clareza em Cícero, De oratoreIII.37-51” (2005). Foi professor da Universidade Ibirapuera,
onde lecionava Língua Latina, História da Língua e Literatura Greco-Latina (2002-2005). Foi professor
convidado da Fundação Poiesis no curso CLIPE, com a disciplina O Fazer Literário no Mundo
Clássico. (2015). É professor Língua Portuguesa e Literatura no ensino médio desde 1999.
FONTES:
Matéria tão vasta possui uma bibliografia também vasta. No intuito de ampliar o conhecimento, segue
uma bibliografia sumária, em língua portuguesa: Elementos de Filologia Românica, Bruno Basseto;
Gramática Histórica, Ismael de Lima Coutinho; Gramática do Latim Vulgar, Theodoro Henrique
Maurer Jr.; Linguística Românica, Heinrich Lausberg; Introdução à Linguística Românica, IorguIordan.
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11. A LÍNGUA E A LINGUAGEM NOS AFETOS DO MIGRANTE
44
por Samea Ghandour
Aeroporto de Atenas. Início de 2008. Primeira sinestesia: um grupo de senhores fuma freneticamente
num local fechado. O aeroporto é névoa. Eles gritam entre si, gesticulam muito, parecem brigar. Não
entendo uma palavra. Mais sinestesias, ainda no aeroporto: συγνώμη, κυρíα, δεν μπορείτε να
παρκάρετε εδώ. O som descortês das palavras me corta. Eu, em sobrolhos: Sorry, I don’t speak
greek. O policial grego impacientemente esboça, em inglês rudimentar, que eu não posso estacionar
ali. Não me agrada o modo como ele levanta o queixo enquanto se dirige a mim e, depressa, sem
olhar para ele, retiro-me dali rumo à cidade. Diante do choque intercultural e da autoridade policial,
naquele momento, não houve disponibilidade de minha parte em compreender a linguagem do
guarda, nem dele para comigo, embora a comunicação tenha sido estabelecida a partir da língua
inglesa. Hoje, entretanto, após ter absorvido parte da língua e da cultura helênica, compreendo que a
prosódia policial não foi, em momento algum, rude para o que um grego entende por ser rude.
Quanto aos velhos fumantes, hoje percebo que eles apenas gritavam por sentirem muita paixão pelas
coisas.
A língua pode ser uma fronteira invisível entre povos. No entanto, a linguagem, imbuída de afetos
(entendidos, aqui, como disposição gestual/facial/corporal dos falantes em se afetar da cultura e das
pessoas), pode ajudar a romper essa barreira na medida em que se vale de signos universais, os
quais facilitam a comunicação.
A língua é motriz das relações humanas. Ela pode tanto abrir, quanto fechar portas, sendo que,
muitas vezes, sua aprendizagem acontece, no quotidiano, para além dos livros. No entanto, a língua
não é sozinha. Para o imigrante que, muitas vezes, não fala a língua do país de destino, a
possibilidade de comunicação se efetiva tendo em vista também a linguagem, isto é, a disponibilidade
dele em se fazer entender e a do nativo em compreendê-lo a partir de convenções universais não
escritas ou faladas, como o olhar, a expressão corporal, a respiração, o tom de voz. Sem isso, a
possibilidade de comunicação entre imigrante e nativo pode ser mais dificultosa e pode haver a
formação de grupos e guetos.
Há muito mais riqueza na língua do que os livros de idiomas são capazes de transmitir. Seria
impossível retirar o mérito desses livros, visto que eles fornecem a base necessária para que se
possa esboçar qualquer percurso comunicativo. No entanto, atingido um determinado ponto de
domínio básico do idioma, é-se impelido a procurar a comunicação fora dos livros, complementada
pela linguagem. As pessoas que estudam língua estrangeira, quando chegam a outro país,
percebem, muitas vezes, que a língua utilizada no quotidiano, repleta de linguagens outras,
multicores, não é a mesma dos livros, mais formal e barra-afetos. Isso ocorre porque os livros de
idiomas transmitem, mormente, noções instrumentais aos estudantes, essas que objetivam a
praticidade na comunicação, desde o apanhar o ônibus ao comprar o leite, sem que, de fato, isso
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NÚMERO 1 - SETEMBRO/15
45
permita uma integração profunda com a cultura. Os livros de língua estrangeira parecem estar mais
voltados ao turista ou ao leitor prático de textos que, propriamente, ao imigrante em si, exigente de
noções mais profundas e humanas do idioma, uma vez que irá conviver com aquela determinada
cultura durante algum tempo.
Alguns imigrantes não falantes de língua inglesa ou da língua do país de destino, inclusive, formam
grupos isolados, tribos que se encontram, comunicam-se com mais entrosamento entre si,
compartilhando seu inglês de embromation, do que com os falantes nativos, muitas vezes não
dispostos a abrir mão de sua própria língua ou cultura para interagir com linguagens outras. Esse
entrosamento (ou a falta dele) é reflexo dos afetos, necessários a qualquer comunicação: os
migrantes que ficam à margem da sociedade (seja pela dificuldade em aceitar uma cultura tão
diferente da sua ou por não serem, de fato, bem-vindos ao país) dividem a mesma língua vernácula
ou o mesmo inglês livre, mais a exclusão social e as saudades da pátria. Para esses grupos, a língua
local passa, muitas vezes, despercebida porque - seja por opressão social ou por relutância individual
- a cultura, os afetos e as relações com os nascidos naquele país também passam despercebidos.
Um determinado chiste, por exemplo, perde o tom lúdico para quem não conhece o modo de pensar
de determinada sociedade, por mais que conheça a língua. De certo modo, pode-se dizer que um
amigo nativo pode ajudar o migrante a perceber a graça do chiste muito mais rápido ou
profundamente que um livro de idiomas.
O não-afeto diante da cultura do outro faz com que o imigrante não consiga ou relute em aprender a
linguagem e, por conseguinte, a língua do país aonde chega.
A linguagem está imbuída da língua e da cultura de um país, de suas escolhas, de seus afetos.
Dessa pluralidade, somente o percurso comunicativo pragmático pode dar conta, o que faz com que a
aprendizagem da língua possa se dar a qualquer momento, em qualquer lugar, entre quaisquer
pessoas dispostas a afetarem-se mutuamente pela linguagem. Após aprender, nos livros, as noções
básicas da língua, se quiser aprofundá-las, o migrante precisa conhecer pessoas, estabelecer
relações, fazer amigos. Ele precisa se disponibilizar a apreender a cultura, muitas vezes tendo de
temporariamente silenciar a sua própria, e encontrar nativos dispostos a com ele compartilhar seu
modo de vida para além das fronteiras linguísticas. Se essa combinação mágica ocorre, o imigrante
consegue introjetar o idioma com muito mais facilidade.
De modo semelhante, um afeto traumático pode fazer com que o aprendizado da língua seja barrado.
Uma sociedade xenófoba não contribui em nada para a aprendizagem da cultura e da língua pelo
imigrante, o que gera marginalizados sociais e ressentimento. Fato é que muitos dos que migram
fazem isso por falta de opção em seus países de origem, por guerras, perseguições políticas ou
pobreza, devendo adaptar-se ao máximo ao país aonde chegam. Nesse processo, aprender a língua
torna-se fator de sobrevivência, mas, quando a sociedade é xenófoba ou o imigrante relutante, este
aprende a língua com raiva, por mera repetição, o que pode gerar lacunas no léxico, uma vez que
esse só se completa a partir da linguagem.
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Por outro lado, qual não é a surpresa diante dos afetos interculturais! Pode-se dizer até que a língua
fica em segundo plano diante da complexidade da troca de linguagens. Dada a disponibilidade afetiva
entre nativo e imigrante, ambos se enriquecem da cultura um do outro. O migrante começa a
entender, por exemplo, por que num país se grita em vez de se falar baixo e pausadamente; por que
se amarra uma fita vermelha no braço, entre o verão e a primavera; por que se come com muito
azeite sempre.
E eis que o imigrante aprende que deve gritar para ser respeitado, mesmo que sua cultura o
repreenda e peça para que fale baixo; eis que ele amarra a fita vermelha para não se queimar demais
no tórrido sol de verão; eis que rega os pratos de azeite para, em comunhão com os nativos quebrapratos, lembrar-se dos tempos de guerra civil, quando o país passava fome.
Oculta em cada migrante ou nativo estereotipado, há uma individualidade que merece ser
desvendada, impossível de se instrumentalizar, pois a língua não dá conta de algo muito mais caro: a
vivência. Quando se percebe isso, os elementos do mundo continuam a ser nomeados, mas, dessa
vez, imbuídos de maior sentido, devido aos afetos. Tanto faz fronteira ou σύνορα, desde que haja
uma história, um percurso afetivo, que justifique atravessar a passagem e contar a experiência das
pessoas dispostas a compartilhar isso.
Samea Ghandour nasceu em São Paulo, em 1989. Atualmente, integra a equipe de atores da
exposição Máquina Tadeusz Kantor, no Sesc SP, bem como a XII Paralela do Club Noir, em São
Paulo, que pesquisa a relação entre voz, linguagem e teatro. Faz Iniciação Científica com ênfase em
Platão e Graduação em Letras com Habilitação em Grego e Português na Universidade de São
Paulo. Em 2014, formou-se no CPTzinho de Antunes Filho e no Teatro Escola Macunaíma. Em 2013,
acompanhou a Equipe Brasileira de Ensino Médio na International Linguistics Olympiad, em
Manchester. Participou do júri da Olimpíada Brasileira de Linguística de Ensino Médio (2012).
Estagiou na Escola Isou Theatrou (Ίσου θεατροu) em Atenas, em 2010. É fluente em grego moderno.
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EXERCÍCIO 1: DECLINAÇÕES LATINAS
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por Bruno L'Astorina e Felipe Assis
Nossa língua faz parte de uma grande família, as línguas neolatinas. Como o nome diz, elas vieram
do latim. Um dos elementos do latim que desapareceram, nas línguas neolatinas atuais, é a
declinação, que é uma espécie de conjugação dos nomes. A declinação facilitaria bastante seu
desempenho em provas de gramática. Veja abaixo alguns exemplos de frases latinas:
Puella amat magistram
A menina ama a professora
Puellam amat magistra
A professora ama a menina
Puellae servus magistram vocat
O servo da menina chama a professora
Aqua servum lavat
A água lava o servo
Dat puella muscam servo
A menina dá a mosca ao servo
Servi musca volat
A mosca do servo voa
Amat tauri magistram puella
A menina ama a professora do touro
Taurus currit
O touro corre
Agora traduza as seguintes frases para o latim:
O servo ama a mosca
A mosca da professora chama a mosca do servo
O servo da menina dá a menina ao touro
Exercício retirado da prova da primeira fase da OBL edição Kytã (2011), confira a prova original e o
gabarito no site http://www.obling.org/
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EXERCÍCIO 2: PARECE VERBO
por Robson Carapeto-Conceição e Bruno L'Astorina
As classes gramaticais não são estáticas. Inclusive, as palavras costumam mudar de função ao longo
do tempo e conforme o uso. Muitas vezes, palavras que normalmente expressam um significado
pleno são destituídas desse sentido primário e utilizadas como meros acessórios sintáticos. Esse
processo de mudança de classe e função das palavras é chamado de gramaticalização.
Os excertos abaixo são provenientes de reconhecidos bancos de textos da fala cotidiana. Numere as
ocorrências do verbo parecer, identificando uma variação gradual entre a frase em que ele é “mais
verbo” (5) e uma outra em que poderíamos classificá-lo claramente como uma outra classe gramatical
– portanto, “menos verbo” (1).
[
] Esse ano não teve [festa], caiu no domingo, então eles preferiram transferir parece para
o dia das crianças, porque, em geral, os ... a religião dele, aos domingos, não ... não ... é dia
completamente de ... que não tem comércio, não é?
[
] Fica uma delícia est/... Fica uma delícia... que Não fica aquele -- fica cajuzinho cre/
[
] Há um negócio que se chama haras... agora o haras me parece que não é no
[
] O pedágio passou para parece que setenta cruzeiro a partir de dia prime- depois de
[
] São certas ... liberdades ... que hoje existem ... que há anos atrás poderiam parecer
caramelo, o amendoim fica parecendo um caramelo.
hipódromo... é o local onde o cavalo é é é é... é cuidado... é tratado...
amanhã.
excessivas mas que na realidade NÃO SÃO.
O processo de gramaticalização é extremamente ativo nas línguas. Durante todo o tempo, sem
percebermos, usamos palavras gramaticalizadas a partir de outras formas. No parágrafo abaixo,
existem 25 palavras que ainda ocorrem em nossa língua no seu sentido original (como verbo,
substantivo, etc.), mas que também estão estabelecidas em papéis novos, gramaticalizados.
Sublinhe-as.
A notícia era surpreendente, visto que Juca sempre fora um empregado exemplar. Laura
soube via amigos, parece que enquanto voltava do trabalho. Joaquina, contudo, não se
abalou. Papai sempre foi assim, trabalhou duro a vida toda. Ficou desanimado uma dada
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época, é verdade, mas isso não explica. Que tal essa blusa laranja? Muito cheguei, né? E
essa? Essa vai ficar ótima nela. Posso trazer de volta, caso não sirva? Talvez leve um tempo
pra se acostumar, sabe? Fica indo sempre nos mesmos lugares, mantendo os mesmos
hábitos, aí depois fica mal mesmo. Vinte e sete e setenta e cinco. A pessoa precisa mudar,
dar uma colher de chá pras oportunidades. Crédito ou débito? Então a gente leva ela pra sair,
se pá ela até arruma um namorado novo. Não precisa da minha notinha não, tá? Obrigado.
Exercício retirado da prova da primeira fase da OBL edição Vina (2013), confira a prova original e o
gabarito no site http://www.obling.org/
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EXERCÍCIO 3: SEMANTOGRAFIA
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por Alexander Piperski
A semantografia é um sistema universal de símbolos desenvolvido por Charles K. Bliss (1897-1985),
um australiano de origem austríaca, que a imaginou compreensível por todas as pessoas,
independente de sua língua materna.
Abaixo são dadas palavras escritas em semantografia e suas traduções para o português em ordem
arbitrária:
cintura, ativo, doente, lábios, atividade, soprar, ocidental, alegre, chorar, saliva, respirar
Determine as correspondências corretas.
Indique o que significa cada um dos símbolos a seguir, sabendo que dois deles possuem o mesmo
significado.
Escreva em semantografia: ar, corpo (torso), levantar-se, leste, triste.
Exercício retirado e traduzido da prova IOL de 2010, confira a prova original e o gabarito no site
http://www.ioling.org/
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