REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 A Língua diminuindo distâncias REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 EDITORIAL 2 “REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA”. Linguística?! O que é isso?! Há a grande possibilidade de você, leitor, franzir as sobrancelhas com um curioso estranhamento como, muitas vezes, já ocorreu no decorrer de nossas atividades. Vamos, portanto, explicar as motivações para nossa experiência, embora saibamos que dela outras aventuras surgirão causando mais estranhamento ainda. Primeiro, a linguística é uma ciência e tem por seu objeto a língua, a linguagem em suas várias facetas, desde a sonora até a conceitual. Segundo, a linguística é perfeitamente aplicável nos processos educativos de ensino fundamental e médio e, uma das formas de incentivar tal procedimento, é através da olimpíada, competição entre os alunos, que, por meio de um pequeno corpus, apresentado em cada questão, deduzem regras e conceitos, numa desde 2011). deliciosa decifração (que já vem ocorrendo Terceiro, a revista (nosso primeiro número) dispõe de fatos diversos relacionados com nossa temática, desafios, enfim, um espaço de confraternização linguística e olímpica, janela aos devaneios e ousadias que os alunos e professores muitas vezes possuem e não encontram lugares para experimentarem sua expressão. Eis o desafio! Seria uma revista também com o propósito de diminuir um pouco o hiato abissal que existe entre o ensino universitário e o ensino médio no nosso país. Dessa forma, fomos sentindo o que cada autor se propôs e encontramos o seguinte eixo temático: “A LÍNGUA DIMINUINDO DISTÂNCIAS” Robson Carapeto Conceição fez um histórico da olimpíada, proposta de unir alunos brasileiros entre si e com os de outras nacionalidades, através de exercícios lógicos, conceituais e experiências de vida diversas, que nos possibilitará um processo contínuo ao encontro do OUTRO. Rogério de Almeida tratou da leitura como elemento transitivo, um exercício de percepção da ESTÉTICA em nós, as distâncias que temos conosco diminuindo-se pelo simples e difícil, às vezes, processo de fruição do texto. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 3 Vítor França Galvão lidou com o preconceito na estrutura mais profunda do plano narrativo através de um octógono semiótico, demonstrando quais tipos de distanciamentos existem entre pessoas com valores morais e conceituais diferentes. Antônio Roberto Giraldes escreveu sobre a visão simbólica que diversas culturas possuem da língua: encontro com o divino, com a natureza e, às vezes, distanciamentos entre os homens quando profanada, por exemplo, na Torre de Babel. Samea Ghandour escreveu sobre o migrante e a língua, encontros e desencontros, quando nos tornamos crianças diante da nova língua que nos recebe e afeta nossos afetos, problematizando até que ponto o aprendizado profundo de uma língua toca em nossas essências e articulando os princípios de língua e linguagem. Mário Martinez trabalhou com a canção e sua porosidade, ou seja, elemento de aproximação tanto de outras estéticas quanto da língua falada, cotidiana. José Pedro Antunes tratou da problemática da tradução. Como traduzir não o texto em si, mas o algo mais que esse texto propõe no momento em que foi feito? O que devemos traduzir? As palavras? Os sons? A ideia? A intenção? O autor ousou o encontro com o ousado, permitiu-se sentir o outro. Para não dizer que não falamos de forma, há também os textos que analisam a estrutura da língua em seu aspecto mais lógico/estrutural: Pedro Neves aproximou a sintaxe da língua portuguesa da computacional, Robson Carapeto conta-nos da estrutura do alemão, Tomislav Correia-Deur trouxe- nos o caráter histórico do Latim como elemento articulador e Eloy Gustavo de Souza proporcionou-- nos um estudo gramatical mais aprofundado sobre pronomes relativos, lembremo-nos de que o princípio da recursividade presente no pronome relativo é uma das máximas também da gramática gerativa de Chomsky, quiçá de nossa língua “quase” biológica (língua I). Caro leitor, se você achou isso tudo muito complicado, não se preocupe, não viemos aqui para explicar, viemos aqui para experimentar estruturas e conceitos e não cobrá-los fixos e memorizados numa prova, mesmo porque as questões da olimpíada desconcertam principalmente aqueles preocupados somente com a fixação de conteúdos fechados. Muitos alunos já disseram que para fazê-las é preciso ser um pouco DOIDO! Há algumas delas na revista, divirta-se... Pedimos, obviamente, retornos do leitor (alunos e professores): e-mails com comentários, sugestões de questões, algum texto para publicação, curiosidades, enfim, tudo que um leitor deste tipo de revista tem direito. Enviem-nos, por gentileza, para o e-mail: [email protected] É isso aí: Alea jacta est!!! OS EDITORES REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 ARTIGOS 4 1. A LINGUÍSTICA E AS OLIMPÍADAS DE ENSINO MÉDIO por Robson Carapeto........................................................................................................................5 2. O QUE É UM LEITOR? por Rogério de Almeida ................................................................................................................. 10 3. SOBRE UM TEMA DE REDAÇÃO DO ENEM por Vítor França Galvão ................................................................................................................ 13 4. LÍNGUA E LINGA por Antônio Roberto Giraldes ....................................................................................................... 16 5. PARA TRADUZIR UM GESTO POÉTICO DO PASSADO por José Pedro Antunes ................................................................................................................ 19 6. A LINGUAGEM DA CANÇÃO por Mário Martinez ......................................................................................................................... 22 7. 12 FATOS SOBRE A LÍNGUA ALEMÃ por Robson Carapeto..................................................................................................................... 24 8. GERANDO ÁRVORES por Pedro Neves ............................................................................................................................. 30 9. UM TIPO DE CONSTRUÇÃO COM PRONOME RELATIVO por Eloy Gustavo de Souza .......................................................................................................... 37 10. A IMPORTÂNCIA HISTÓRICA E LINGUÍSTICA DO ESTUDO DE LATIM por Tomislav Correia-Deur ............................................................................................................ 41 11. A LÍNGUA E A LINGUAGEM NOS AFETOS DO MIGRANTE por Samea Ghandour .................................................................................................................... 44 PROBLEMAS E DESAFIOS ..................................................................................... 47 REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 1. A LINGUÍSTICA E AS OLIMPÍADAS DE ENSINO MÉDIO 5 por Robson Carapeto As Olimpíadas de Conhecimento têm se popularizado no Brasil como um excelente instrumento para motivar estudantes em idade escolar para a pesquisa científica, além de fomentar uma cultura intelectual de alto nível entre jovens talentosos, com consequências claras para sua vida profissional. Ao passo que a maior parte das olimpíadas científicas espera dos alunos domínio sobre ideias e conteúdos previamente estudados, as olimpíadas de linguística, por sua vez, introduzem problemas inteiramente novos e não-familiares, exigindo dos estudantes um intenso trabalho lógico para montar estruturas implícitas. Esses padrões podem envolver diferentes sons, estruturas sintáticas, sistemas conceituais, ligações culturais e históricas entre diferentes línguas. Com isso, esperamos atingir estudantes com essa inclinação. A linguística é o estudo científico da linguagem humana como fenômeno natural em sua totalidade, em sua realidade multiforme e em suas múltiplas relações. Ela se fundamenta na observação direta e se abstém de toda e qualquer prescrição. Trata de compreender e descrever a linguagem em uso, sem interferir no seu funcionamento e sem estabelecer regras, modelos ou padrões normativos, ocupando-se das línguas em todos os seus níveis e modalidades. Dessa forma, olimpíadas de linguística fomentam o plurilinguismo, o interesse por outras culturas, o raciocínio lógico e metalinguístico. No mundo profissional, essas competências são valorizadas para o intercâmbio de ideias e contato com diferentes grupos de pessoas. Na pesquisa acadêmica em Ciências Humanas, desempenham um papel decisivo na área de Relações Públicas, em diversos ramos da computação, tecnologias de linguagem e de tradução, assim como qualquer carreira que envolve habilidades analíticas, de resolução de problemas e a habilidade de desenvolver modelos e argumentos lógicos a partir de um corpus de dados. Por essas razões, olimpíadas de linguística têm crescido em diversos países ao redor do mundo. A Olimpíada Internacional de Linguística (IOL – www.ioling.org) acontece anualmente desde 2003, e vem crescendo, atualmente com a participação de cerca de 30 países. Nesse contexto fundamos, em 2011, a Olimpíada Brasileira de Linguística (OBL – www.obling.org). REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 6 O trabalho anual da OBL acontece em três fases: Fase 1 – Prova Nacional. Essa prova é realizada em outubro ou novembro, em âmbito nacional, com a participação de estudantes do ensino médio de escolas do todo o país e aplicada de forma descentralizada, em cada escola participante. A inscrição dos alunos interessados em participar dessa fase se dá por e-mail e é feita por um professor da instituição, que se responsabiliza pela aplicação, pré-correção e envio das provas para a Comissão Organizadora. Fase 2 – Escola de Linguística. Realizada em abril ou maio, presencialmente e durante cinco dias, com os cerca de 60 estudantes mais bem classificados na Prova Nacional. Segue os moldes das Semanas Olímpicas da Olimpíada Brasileira de Matemática (OBM) e da edição para escolas públicas (OBMEP) bem como da Escola de Astronomia da Olimpíada Brasileira de Astronomia e Astronáutica (OBA). Com a Escola de Linguística, visamos (i) apresentar aos estudantes um panorama da pesquisa atual em Linguística, (ii) permitir a integração e troca de experiências entre estudantes de diferentes partes do país e que compartilham um interesse acadêmicos em comum, (iii) selecionar a equipe participante da IOL. Olimpíada Internacional (IOL). Acontece no mês de julho de cada ano. Dela podem participar, por país, até duas equipes de quatro estudantes cada. Consiste em prova individual e de equipes, com uma programação de palestras e atividades de intercâmbio linguístico e cultural. EDIÇÕES A primeira edição da OBL, Kytã, aconteceu de forma experimental em 2011, primariamente com recursos pessoais dos envolvidos na organização, bem como de algumas escolas. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 7 Para a edição de 2012, Noke Vana, firmamos parceria com a Fundação Carlos Chagas, que nos permitiu realizar diversas novas ações incluindo a ampla divulgação, resultando no aumento significativo do número de inscrições. Para a edição de 2013, participaram da primeira fase da terceira edição, Paraplü, 758 alunos, de 45 escolas, de 15 dos 27 estados da federação, incluindo escolas particulares, públicas federais e públicas estaduais. Todos os alunos participantes receberam um certificado de participação, assim como os professores que aplicaram e corrigiram as provas nos respectivos colégios participantes. Além disso, os 130 estudantes que fizeram mais de 300 pontos (de um máximo de 600) receberam um certificado especial de Menção Honrosa. Os 60 alunos com os melhores resultados foram convidados para a Segunda Fase (“Escola de Linguística”), realizada entre 21 e 26 de maio. Os estudantes convidados fizeram as provas individuais e em equipe da segunda fase e puderam assistir a palestras de línguas e Linguística com professores da própria organização da olimpíada e professores convidados da Universidade de São Paulo (USP) e a um mini-curso presidido pelo Prof. Dr. Boris Iomdin (Universidade Estatal Russa para Humanidades), membro do comitê de problemas e do júri da Olimpíada Internacional de Linguística. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 8 A correção das provas foi empreendida pela Comissão Organizadora e aberta à participação dos professores acompanhantes dos alunos, integrando-os ao projeto e permitindo uma troca de ideias entre docentes, que visou o incentivo e aprimoramento de oficinas de Linguística feitas em cada escola com o intuito de preparar alunos para as próximas edições. Ao fim da Segunda Fase, 8 estudantes receberam medalha de ouro, 17 receberam medalha de prata e 25, medalha de bronze. Com relação à competição de equipes, os integrantes da equipe vencedora receberam também livros de Linguística. Por fim, os quatro alunos com melhor desempenho foram selecionados para representar o Brasil na XI International Linguistics Olympiad (IOL). A maior parte do treinamento das equipes ocorreu via internet. O estudante de fora do Estado de São Paulo foi trazido para São Paulo uma semana antes do embarque internacional, para um treinamento intensivo. A XI IOL aconteceu em Manchester, no Reino Unido, entre 22 e 27 de julho de 2013 e teve a participação de 27 países. A equipe brasileira foi acompanhada pelo team leader Robson Carapeto, membro da Comissão Organizadora e professor da Escola Alemã Corcovado (Rio de Janeiro). Na terceira participação da equipe brasileira, o país teve um resultado excepcional: uma medalha de ouro, duas menções honrosas. Além disso, um dos estudantes brasileiros recebeu o prêmio de Melhor Solução para uma das questões (sobre a análise dos dados de um experimento neurolinguístico). A edição de 2014, Vina, levou também uma equipe para Pequim (China), na qual tivemos outra menção honrosa. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 9 E agora, junto com a primeira edição da REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA, chegamos a Òkun. Òkun é oceano em Iorubá. Subiremos, então, em nossa imensa canoa/jangada/navio e iremos ao oceano, junto com os orixás e toda a contribuição linguística negra para a cultura brasileira. Os oceanos separam e unem as pessoas, como as línguas, como se os deuses quisessem que a terra toda fosse uma. O Brasil é o único país da América do Sul a participar da Olimpíada Internacional de Linguística, é o primeiro também a trazer menções honrosas, uma medalha de bronze, uma de prata e uma medalha de ouro, enfrentando países que possuem por tradição a aprendizagem de linguística mais intensa no ensino médio (Rússia, Leste Europeu e Estados Unidos). Isso tudo nos demonstra a demanda de alunos no ensino médio sedenta por conteúdos e estruturas de aprendizagem diversas e o olimpismo como elemento de educação e interação, elementos perceptíveis também através do grande crescimento das olimpíadas científicas nas áreas até menos esperadas e conhecidas, como a línguística. Robson Carapeto é Professor de Alemão da Escola Alemã Corcovado (Deutsche Schule Rio de Janeiro) e doutorando em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal Fluminense. Levou o time brasileiro como team leader para as edições da IOL em Liubliana (2012) e Manchester (2013). Fã de ritmos caribenhos, teatro do absurdo, jogos de tabuleiro e viagens de trem. Peixes com câncer. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 2. O QUE É UM LEITOR? 10 por Rogério de Almeida Não há fatos, apenas interpretações. Nietzsche É muito comum ouvirmos que é importante ler, que todos devem ler, que ler é fundamental em nossas sociedades contemporâneas. E as razões para se ler são muitas e muitas delas utilitaristas. Por exemplo, uma vez um estudante me disse que ler ajuda a ampliar o vocabulário e que isso é útil numa entrevista de emprego. Perguntei a ele se gostava de ler e ele me respondeu que infelizmente não. Havia no tom de sua voz um certo amargor, como se o destino o tivesse privado de um gosto demasiadamente útil. Mas acho que as coisas não são bem assim. Primeiro porque ler não é um verbo intransitivo. Que isso quer dizer? Que não se lê qualquer coisa do mesmo jeito e nem com o mesmo gosto. Por exemplo, quem gosta de comer não gosta de comer qualquer coisa, mas certamente provou de muitos pratos antes de escolher seus favoritos. Com a leitura acontece o mesmo. Há quem goste de romances, mas não suporta poemas. Há os que se dedicam aos tratados filosóficos e esnoba os romances. Entre os que leem romances, há os que preferem os clássicos enquanto outros se contentam com os eróticos. Enfim, são gostos. Eu mesmo, que sou um leitor faminto, não suporto os livros jurídicos e, juro, nunca li um regulamento até o fim. Então, ler não é simplesmente ler, mas ler alguma coisa. Nesse sentido, somos todos leitores. Porque lemos livros, jornais, mensagens de whatsapp, receitas de bolo, legendas de filme... Bom, mas e os analfabetos? Estes, privados dos códigos linguísticos, leem o mundo. Aliás, Paulo Freire, o nosso educador maior, disse que ler é um ato importante porque a leitura da palavra escrita nos ajuda na leitura do mundo. E de fato lemos o mundo. Penso, por exemplo, em nossos ancestrais que não conheceram a palavra escrita porque ainda não tinha sido inventada. O que pensavam eles do mundo? O que faziam no tempo livre? Não sabemos exatamente, mas é certo que contavam histórias, quase sempre em volta de uma fogueira, de preferência quando a noite caía e o mundo se tornava mais misterioso, mais escuro e mais assustador. Somos, portanto, leitores do mundo. Aprendemos a lê-lo. Assim como aprendemos a ler a palavra escrita. Mas não estou interessado em qualquer tipo de leitor, me interessa agora o leitor de histórias de ficção, essas que são narradas com arte. Qualquer um escreve um bilhete, uma mensagem no twitter e, se conhecer a estrutura, uma redação escolar. Mas é preciso arte para um poema, para um conto, para um romance. E é preciso ser leitor para gozar dos prazeres de uma boa literatura. De fato, o leitor é aquele que joga com o texto, que inventa perguntas, constrói hipóteses, faz inferências, dá opinião, tece tramas paralelas, mergulha na história, imagina-se no lugar do herói, torce por ele, contra ele, vive enfim outras vidas. Se você perguntar ao leitor por que ele lê, sua resposta variará em torno da ideia de prazer. Há um gosto que se prova na leitura que não é igual a nenhum outro. Quem descobriu esse prazer, quer sempre mais. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 11 O leitor é um jogador. Ele aprendeu que todo texto é uma construção de sentidos. O escritor, fingindo que não quer nada além de contar uma história, inventa situações que poderiam ser reais, que poderiam acontecer com ele, com você ou comigo. E o leitor, entrando no jogo, faz de conta que essa história de fato aconteceu, que as personagens são pessoas como eu ou você. E então o jogo se desenrola: o escritor inventa um evento e o leitor o interpreta, isto é, constrói um sentido. O escritor faz aparecer uma personagem e o leitor logo adivinha quem ela é o que irá fazer. Por exemplo, se eu escrever que o João está num namoro monótono com a Maria porque tem medo de ficar sozinho, o que você, leitor ou leitora, imaginará se a Beatriz entrar na história e na relação dos dois? E se eu disser que essa Beatriz é uma sedutora, mas que, diferente do João, ela só quer saber de viver sozinha? Meu caro leitor, minha cara leitora, não sei o que você imaginou, mas eu mesmo que inventei isso, e que não sei o que acontecerá depois, estou curioso para saber como se resolve esse jogo que parece insolúvel. Terminará o João sozinho? Ou finalmente Beatriz quererá viver com alguém? Ou ainda: terminarão os dois infelizes? Ou você é do tipo que gosta dos jogos com finais felizes? Há muitas possibilidades. O leitor sabe que o prazer do jogo é que um desafio puxa outro, um problema se conecta ao outro e, às vezes, com sorte, as coisas se resolvem. Mas quem as resolve, o escritor ou o leitor? Creio que ambos, pois um não existe sem o outro. Porque é o leitor que dá vida a uma obra por meio de sua leitura. E não me refiro ao trabalho de decodificar palavras e sentenças, mas ao ato de criar uma história à medida que se mergulha na narrativa. Esse ato de criar, de imaginar, de vislumbrar um sentido no que está sendo lido é chamado de interpretação. O leitor é, desse modo, um intérprete. Na filosofia, a arte de interpretar textos é chamada de hermenêutica, em homenagem ao deus grego Hermes. E é uma arte porque um texto literário jamais se esgota em um único sentido, em uma única interpretação; ao contrário, é uma obra aberta, como chamou Umberto Eco. Uma obra aberta às múltiplas leituras, de acordo com os diferentes leitores que se lançam à aventura da navegação livresca. É por isto que os livros fazem bem: porque nos compreendemos melhor no exercício de compreender os outros, mesmo que esses outros sejam personagens literários que vivem uma vida de ficção, mas que por vezes desejamos que fosse a nossa. E esse jogo de viver de mentirinha é gostoso, pois as alegrias e tristezas estão sempre num lugar seguro, que são as páginas de papel. O leitor, por fim, é alguém em busca de mais vida, que quer com a leitura intensificar sua própria vida, torná-la mais intensa, mais repleta, mais plena. E o bom leitor sabe que o mundo não é muito diferente de um livro. Em ambos, as interpretações contam mais que os fatos. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 12 Mas e quem não gosta de ler? Estes terão de se alimentar de ficções e narrativas de outro modo e terão, cada um a seu modo, que aprender a ler o mundo. Porque é muito difícil ensinar alguém a gostar de ler. Penso que a leitura é um veneno e um remédio a um só tempo. Um veneno que mata o enfermo e um remédio que salva os que já estão curados. De fato, para quem não gosta dos livros, ler é uma tortura, um veneno que causa mais e mais angústia. Mas os adoradores de livros não se fartam de ler, estão sempre desejosos de mais uma dose. Rogério de Almeida é professor e pesquisador da USP, autor de livros acadêmicos e de ficção e um incurável adorador de livros. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 3. SOBRE UM TEMA DE REDAÇÃO DO ENEM 13 por Vítor França Galvão Apesar de ter caído há algum tempo no Enem - Exame Nacional de Ensino Médio -, o tema "O desafio de se conviver com as diferenças" (2007) provoca uma discussão extremamente atual, pois, nas sociedades modernas, frequentemente, os indivíduos se encontram lado a lado com outros de crenças, costumes, educação e culturas diferentes. O desafio de que fala o próprio tema passa, necessariamente, pela questão da estruturação de uma sociedade minimamente civilizada. Tal sociedade deverá contar com alguns elementos fundamentais para que seus cidadãos possam gozar de liberdade e, ao mesmo tempo, segurança, a fim de que se possa alcançar o perfeito cumprimento dos direitos e dos deveres estabelecidos por sua constituição. Dessa forma, caberia aqui uma reflexão baseada no seguinte octógono semiótico: PAZ PRECONCEITO RESPEITO TOLERÂNCIA TENSÃO DISTANCIAMENTO HIPOCRISIA NÃOTOLERÂNCIA NÃO RESPEITO CONFLITO Quando os cidadãos vivem no perfeito equilíbrio entre RESPEITO e TOLERÂNCIA ("tolerância", aqui, não em seu sentido mais pejorativo daquele que "tolera porque não tem opção", mas em seu sentido mais positivo, daquele que "sabe que o outro tem o direito de ser diferente"), esses mesmos cidadãos vivem no estado de PAZ, do que se entende que não pode haver PAZ sem RESPEITO ou sem TOLERÂNCIA. Quando um dos dois falta, a PAZ está comprometida. RESPEITO e TOLERÂNCIA seriam, então, as palavras-chave para uma redação em um exame que exige dos candidatos o chamado "respeito aos direitos humanos". Faz-se necessário lembrar que o Enem é extremamente rigoroso nesse quesito. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 14 Por outro lado, ainda que haja RESPEITO, mas não haja TOLERÂNCIA (ou NÃO-TOLERÂNCIA), a sociedade estará baseada em princípios como PRECONCEITO, DISTANCIAMENTO OU HIPOCRISIA: esse é um dos aspectos mais evidentes da sociedade brasileira. Comumente, o PRECONCEITO se esconde sob um véu de RESPEITO que requer DISTANCIAMENTO do objeto vítima dessa HIPOCRISIA. Trata-se da situação frequente de "Eu respeito, desde que...", desde que não se aproxime de mim, desde que eu não tenha que conviver com isso, desde que isso não interfira em minha vida. A questão da união homoafetiva, por exemplo, exemplifica perfeitamente esse comportamento. "Não tenho nada contra os homossexuais, desde que... meu filho não o seja". E, assim, caminha o brasileiro em seu papel de "respeitador", mas distanciado do problema num comportamento muitas vezes qualificado de "atitude de avestruz": a ave que enfia a cabeça no buraco para não tomar conhecimento do que ocorre ao seu redor. Da combinação NÃO-TOLERÂNCIA/NÃO-RESPEITO, nasce o CONFLITO. Quando isso se passa entre nações, constata-se a GUERRA; dentro de um país, tem-se a GUERRILHA URBANA. Em tal situação (ou na combinação desses termos), não há qualquer razão para que eu leve o outro em consideração e tente respeitá-lo com suas diferenças. Qualquer motivo é suficiente para que eu agrida, interpele, ofenda ou mesmo expulse o outro de minha presença (de minha terra), pois estou coberto de certezas, incluindo a certeza de que sou melhor do que ele. No caso do Brasil, é óbvio: a GUERRILHA URBANA se instalou principalmente devido à má distribuição de renda e das desigualdades a que estamos acostumados aqui - desde os CONFLITOS mais simples do dia a dia até os crimes mais chocantes sempre presentes na mídia. Por fim, do casamento da TOLERÂNCIA com NÃO-RESPEITO, nasce o que se chama de TENSÃO. A TENSÃO é aquele estado em que a TOLERÂNCIA é sinônimo de "eu aguento você porque não tem jeito", mas "não tenho RESPEITO por você". Assim, entre nós haverá um clima de hostilidade, um "barril de pólvora" prestes a explodir por um motivo sério ou fútil, não importa: sempre encontrarei uma razão para ser hostil ao outro, para deixar claro que não me simpatizo com ele, para destacar minha antipatia e reprovação por tudo o que ele representa. O estado de TENSÃO poderá "evoluir" para um acordo, isto é, para o estado de PAZ, ou poderá atingir o estado de CONFLITO ou GUERRA. O estado de TENSÃO (a TOLERÂNCIA com a FALTA DE RESPEITO) é sempre aquele período que antecede conflitos terríveis ou retomadas de paz memoráveis. Façamos uma viagem aos anos que vieram depois da II Guerra Mundial. O planeta ficou dividido entre duas superpotências, entre dois grandes líderes, cada um representando um sistema de governo e um sistema econômico - Estados Unidos e União Soviética. A chamada Guerra Fria foi o período mais tenso da contemporaneidade. O mundo esteve à beira de um CONFLITO mundial (agora com bombas atômicas) em várias ocasiões. Se hoje o mundo não está mais dividido entre americanos e soviéticos, a TENSÃO é facilmente notada entre nações do Oriente Médio e mesmo na Europa por diversos motivos. No cenário nacional, a TENSÃO se faz notar na iminência diária de conflitos sociais e na violência diária dos grandes centros do País. A TENSÃO gera medo, ansiedade, intolerância e preconceito. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 15 Seja na "vida real", seja na "vida virtual", uma pessoa pode encontrar, a todo momento, aqueles que pensam de maneira diferente: o religioso que se depara com o ateu; o vegetariano que tem de conviver com o apreciador de carne; o capitalista que sofre a reprovação do socialista, ou vice-versa; o nacionalista cujo amigo não vê esperanças para seu país e por aí vai. Estou no "Facebook" e, ao postar uma foto, um comentário ou mesmo uma opinião, um sem-número de outros internautas opinam - alguns me apoiando, outros me criticando... e muitas vezes críticas ofensivas, desrespeitosas, intolerantes porque eu simplesmente não penso como eles. Frequentemente, os líderes políticos (que deveriam dar o exemplo de conduta civilizada) são os primeiros a faltarem com o RESPEITO diante de seus adversários em debates pela TV ou mesmo na Câmara ou no Senado nacional. O espetáculo de selvageria que protagonizam oscila entre a TENSÃO (TOLERÂNCIA/NÃO-RESPEITO) e o CONFLITO (NÃO-TOLERÂNCIA/NÃO-RESPEITO). Além disso, há os contornos que o debate político tomou com a divisão do Brasil em "nós e eles", como se as decisões de nossos líderes não afetassem a todos, independentemente da região em que vivam. No rastro desse raciocínio, não se pode deixar de citar as recentes manifestações de NÃO- TOLERÂNCIA e NÃO-RESPEITO ocorridas no cenário brasileiro por parte dos eleitores nos últimos anos, principalmente perto das eleições presidenciais. Em nome da democracia, muitas pessoas se acham no direito de expressar suas opiniões, mas sufocando o direito do outro, não admitindo que o vizinho pense de maneira adversa. Em nome da democracia, eu me torno um pequeno ditador intolerante, totalitário e desrespeitoso. Vítor França Galvão é Graduado em Letras (Português e Inglês) pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Mestre e Doutor pela Universidade de São Paulo (USP) na Área de Semiótica e Linguística Geral, Professor de Redação de Curso Preparatório Pré-Vestibular, trabalhou também na redação do jornal O Estado de São Paulo. FONTES: GREIMAS, A. J. et FONTANILLE, J. - Semiótica das Paixões, pp.22-25. São Paulo, Ática, 1993. PAIS, C. T. - Semiótica, uma ciência em construção. In: Anais do Segundo Colóquio de Semiótica, pp.43-60. São Paulo, Loyola, 1983. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 4. LÍNGUA E LINGA 16 por Antônio Roberto Giraldes A intensidade da língua no nosso cotidiano é tanta que acabamos, muitas vezes, por não percebê-la, desvalorizando-a, como algum ente querido próximo que só sentimos a estima na ausência. Experimente você, caro leitor, permanecer um dia inteiro sem qualquer tipo de contato linguístico com ninguém: não falar e nada escutar, nada de leitura e de escrita. Creio que, se você fizer isso, acabará se surpreendendo a falar sozinho, ou seja, a utilização da língua é parte integrante e essencial de nós, precisamos falar e escutar para SERMOS alguém. Por ela, concebemos pensamentos e sentimentos; nos formatos dela, estão conceitos construídos por nós e pelos grupos com quem conversamos, refletindo tanto sobre a vida quanto sobre nossas questões cotidianas. A língua é enciclopédia viva, como nós compreendemos o mundo e vivemos essa compreensão propriamente dita. Há, dessa forma, uma materialidade sonora e gráfica que, praticamente orgânica, penetra e movimenta todos nós. Por um lado, pode aprisionar-nos a modelos “pré-conceituados” (quando não existem as palavras que desejamos, do fundo do coração, dizer); por outro lado, liberta-nos (quando nos permitimos brincar com ela e reinventá-la, “POIÉSIS”). Trabalhar com a língua, aceitá-la, requer não somente um labor neurológico e químico intenso como uma constante pré-disposição de compreendermos a nós e aos outros. Aí se encontra o processo de criação, procriação que há nela. Sim, com a língua, podemos fazer do encontro com o outro, efetivamente, uma procriação e, como ela nos permite esse lado do trocadilhar lúdico, brincaremos aqui num processo heurístico (descoberta a partir da livre associação) com suas variantes e permitiremos que o devaneio nos conduza ensaisticamente. A língua, pensando-a na sua natureza orgânico-fisiológica, é representada simbolicamente por muitas culturas como sendo a chama (possui formato semelhante ao fogo e move-se como ele). Há na língua, dessa forma, o poder de purificação e destruição. Na santíssima trindade, articulando-se com a noção de Pai e o Filho, vem o Espírito Santo em línguas de fogo cair sobre as cabeças dos apóstolos, dando-lhes o poder de exprimirem-se nos idiomas mais diversos do planeta e universalizarem a palavra/língua de Deus. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 17 Da mesma forma que recebemos o Espírito Santo por línguas, evocamos nossos pedidos ao céu também por elas. Em João (1,1), “no princípio era o verbo”, temos o verbo como o λογος, o instrumento da inteligência e da vontade de vida primordial na criação. “No começo era Brama” dizem os textos védicos, Vak, a palavra. No Islã, temos Kalimat Allah (a palavra de Deus) também como início. Como a raiz semítica é consonantal, segue “klmh”, a manifestação quaternária da unidade primeira. A Torre de Babel representa, nesse constructo, um distanciamento da língua original e única motivadora de todos. A diversidade das línguas (seus conteúdos) é nosso traço humano (distanciamento do sagrado), enquanto a natureza simbólica do fogo divino, nosso início comum, nossa chama metafísica presente a todos na essência mais profunda, é um encontro contínuo com novas possibilidades de vida e motivações existenciais. Do lado xamânico, a proximidade espiritual encontra-se na linguagem dos animais e vegetais, símbolo de retorno ao estado primeiro de conjunção completa com a natureza (estado edênico, adâmico na cultura cristão-hebraica). Segundo uma tradição oral Guarani, a criação do universo, da terra e do homem veio de um primeiro (Tenondé) som (Tupã) e de sua reverberação surgimos todos nós. Notamos que a sonoridade parece ser o divino e imponderável em nós porque não podemos vêla, apenas captá-la com os ouvidos. No entanto, a língua reinventa os sons e nos reinventa: somos capazes de nos aproximar da vibração divina da natureza e dos animais através da língua. Com ela, também conseguimos o trânsito nos agrupamentos humanos, a forma com a qual nos organizamos. Atacar uma língua, dessa forma, é atacar um ser, um povo, a essência divina encontrada na fé mais profunda desse povo, o encontro desse povo com o universo em que vive. Embora, aparentemente, não haja ligação etimológica direta entre as palavras língua e linga; semanticamente, podemos encontrar proximidades através da noção de signo, de sinal, bem como também na palavra linguagem. Linga é um amuleto, emblema. A raiz de linga, em sânscrito, é langalā (arado), designa a besta ou o falo. Eis aqui o falar como elemento da procriação/criação do signo linguístico, signo, do grego, σήµέίον, sinal, indicação. A linga, em seu conjunto, é o símbolo de Shiva, é o próprio Shiva. Contudo, Shiva é a causa, o imanifestado, Para que se manifeste, necessitamos do princípio feminino Yoni, o receptáculo (significante saussureano?). Daí o arado como fertilizador da terra (notem que grande parte das palavras ligadas à terra, em português, por exemplo, são femininas: árvore, folha, pedra). REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 18 No Japão, costumam ser enterradas pequenas representações fálicas de pedra no barro para trazer a prosperidade dos campos. Os gregos chegavam a fazer o próprio ato sexual na terra para prenunciar a colheita sadia. Na China, uma peça de jade na forma de um triângulo alargado, equivalente à linga hindu, encontra-se no centro dos templos e nas encruzilhadas para entendermos o mistério da vida e a sacralidade da procriação a se reverberar como se reverbera a onda sonora advinda das nossas línguas ressonada pelas nossas bocas. De novo, chegamos à ideia de criação, fertilização, formação de algo novo. No entanto, esse algo novo é, em sua anterioridade, algo divino deixado a nós, imanente, que se materializa através da terra, de receptáculos concretos a fazerem com que percebamos sua existência abstrata. Efetivamente, tal abstração passa a existir quando nos integramos com o outro, quando recebemos esse presente do coletivo ao indivíduo. Isso faz com que nos mantenhamos vivos, pois nossa carne, com o tempo, desaparece na terra, mas as palavras voam e, por voarem, permanecem no tempo, no vento, ressonantes como mantras a nos deixarem vivos nos sons das bocas dos outros homens que virão, dissolvidas no tempo, no espaço, na diversidade, nos outros e, justamente por isso, vivas, e, talvez, eternas na terra, no vento e nos pássaros. Antônio Roberto Giraldes é Bacharel em Letras com Habilitação em Português e Linguística, Licenciado em Língua e Literatura Portuguesas, Mestre e Doutorando em Educação na área de Mitohermenêutica e estudos do Imaginário (USP). Leciona há 22 anos no ensino médio e fundamental. Participou do júri da Olimpíada Brasileira de Linguística de Ensino Médio. Foi um dos responsáveis da Equipe Brasileira na International Linguistics Olympiad (2013), em Manchester, na qual a Equipe recebeu a premiação de duas menções honrosas e uma medalha de ouro. É apreciador de poesia e teatro. Blog: <http://professorantonior.blogspot.com.br>. FONTES: CHEVALIER, Jean et GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Tradução Vera da Costa e Silva et alli. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982. 995p. JECUPE, Kaka Wera, Tupã Tenondé: A Criação da Terra, do Universo e do Homem segundo a tradição oral guarani. São Paulo, Peirópolis, 2001. 45p. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 19 5. PARA TRADUZIR UM GESTO POÉTICO DO PASSADO por José Pedro Antunes Na Alemanha, idos de 1968, revolução estudantil nas ruas, a geração dos “filhos da guerra” dava as caras, em confronto aberto com a geração dos “pais da pátria”. No âmbito da literatura, quem dava as cartas eram os autores do Grupo 47. Criado dois anos depois de terminado o conflito, num país material e espiritualmente arrasado, era uma espécie de agremiação de ex-combatentes. Seus encontros se davam, estrategicamente, em cidades e países diferentes de cada vez, como forma de alcançar a necessária projeção para sua missão humanista e regeneradora. Do ponto de vista literário, para tecer relatos sobre o “passado recente”, formulação eufemística para o período nazista e sua derrocada, o grupo adotou como modelo o realismo do século XIX. Havia que combater o nazismo, reprovar a carnificina e o holocausto, mas também apregoar a necessidade de uma retomada. Convidado a participar da reunião que se deu em Princeton, nos EUA, em 1966, um representante da novíssima geração de autores, o austríaco Peter Handke, ousou erguer a voz contra a produção de seus anfitriões. Para ele, não se podia combater o nazismo com a mesma linguagem que o produzira; e a adoção de um modelo literário único era indefensável. Aos 23 anos, Handke saltou para as capas das revistas de grande circulação, tornando-se uma celebridade pop como a literatura em nenhum quadrante ainda conhecia. Em 1967, com a explosão da peça-falada Insulto ao Público na Documenta de Kassel, ele se tornaria, como Otto Maria Carpeaux talvez tenha sido o primeiro a reconhecer, o mais importante representante da geração de 68 na literatura alemã. Em O mundo interior do mundo exterior do mundo interior, também de 1967, seus petardos tinham a forma de poemas nada convencionais, como a parada de sucessos das emissoras japonesas ou a ficha técnica do filme “Bonnie and Clyde”. Mas foi a escalação do FC Nürnberg, campeão da Liga Alemã de Futebol naquele ano, o artefato mais explosivo, tendo gerado intensa e duradoura recepção crítica. Vale dizer: furibundamente crítica. No modo de apresentação das escalações dos times na época, que mimetiza a posição dos jogadores em campo, Handke percebe a semelhança com alguns procedimentos da poesia concreta, que ele bem conhecia. O resultado foi um impactante e provocatório poema visual. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 20 Die Aufstellung des 1. FC Nürnberg vom 27. 1. 1968 WABRA LEUPOLD POPP LUDWIG MÜLLER WENAUER BLANKENBURG STAREK STREHL BRUNGS HEINZ MÜLLER VOLKERT Spielbeginn: 15 Uhr Há tempos imaginei uma tradução para esse poema-provocação, que fui deixando sempre para mais adiante. Ela também pretendia ser uma provocação às teorias da tradução, em especial às vertentes que defendem o procedimento da “adaptação”, com o ocultamento dos vestígios da procedência estrangeira e do fazer tradutório. No caso, falando de onde falo, eu faria a transcrição da escalação da Ferroviária de Araraquara, que, no mesmo ano de 1968, vivia o seu apogeu como “locomotiva do futebol” no interior do Estado de São Paulo. No caso, fico com aquela que me pareceu ter sido a formação mais representativa, num ano em que a equipe grená venceu todos os grandes – inclusive o Santos, de Pelé, em Araraquara e na Vila Belmiro –, tendo conquistado o terceiro lugar no Campeonato Paulista e se sagrado campeã do interior. Diede Lameiro foi o técnico até o mês de junho, tendo, portanto, conduzido o time a esse apogeu. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 21 A escalação da AFE de Araraquara em junho de 1968 CARLOS ALBERTO BAIANO FERNANDO FOGUEIRA BEBETO ROSSI VALDIR ZÉ LUIS TÉIA BAZANI PIO Horário: 16 horas Num ensaio chamado “O mundo na bola de futebol”, anterior ao poema, Handke afirmava que, para certos povos do terceiro mundo, a única fruição estética possível eram as partidas de futebol. O carinhoso apelido com que o time araraquarense é tratado, “Ferrinha”, diz bastante dos intensos momentos de emoção e beleza que ela já proporcionou a seus torcedores. Foi essa a maneira que encontrei para traduzir um desafio poético no passado. É preciso imaginar que alguém tivesse ousado, na época, introduzir um ready made como esse num livro de poemas. Que, com isso, ousasse enfrentar o caudal discursivo engajado, que tomava conta de tudo naquele momento, num ano que viu tanto o surgimento da eclosão do Tropicalismo como um seu antídoto, o Ato Institucional n° 5 (AI-5). Zé Pedro Antunes é professor de língua e literatura alemã (Unesp/Araraquara) e doutor em Teoria Literária (IEL/UNICAMP). Traduziu, entre outros, Ensaio sobre a puberdade, de Hubert Fichte, O medo do goleiro diante do pênalti, de Peter Handke, e O Ajudante, de Robert Walser. Do teórico alemão Peter Bürger, traduziu e comentou O Surrealismo Francês (Tese de Doutorado – Unicamp, 2001) e Teoria da Vanguarda (Cosac Naify, 2008). Assina a coluna semanal oxouZINE no jornal Tribuna Impressa de Araraquara e publica seus textos em: <http://zepedradas.blogspot.com.br>. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 6. A LINGUAGEM DA CANÇÃO 22 por Mário Martinez Ouvir uma canção é entrar em contato com um amálgama de elementos que transcende, em muito, os aspectos de letra e melodia, a essência do gênero. Para além do texto (que pode ou não contemplar densidade poética) há os componentes musicais, como harmonia e ritmo, e para além destes, há ainda o arranjo e aquilo que delineou o processo de produção da gravação daquela canção, resultando no fonograma (a música gravada). Em um belo ensaio sobre a história do disco, o filósofo Lorenzo Mammi comenta a riqueza de Sgt. Pepper’s, o álbum mais radical dos Beatles, e ressalta que ali as sobreposições de elementos intrínsecos e extrínsecos às músicas fazem desse disco uma obra-prima, única. Ou, em suas palavras, “a mercadoria no seu maior esplendor, e no mais alto grau de reflexão e autoconsciência”. Num disco como esse, o ouvinte curioso não se deterá apenas na palavra cantada, mas penetrará em outras camadas de sentido, que são praticamente infinitas, indo da escolha dos instrumentos que compõem os arranjos a cada detalhe da capa. Luiz Tatit, um dos principais estudiosos da canção entre nós, assinala que o cancionista é aquele que “equilibra” elementos de sua entonação natural (decorrentes de sua fala cotidiana) com recursos musicais que estabilizam tal entonação. As peculiaridades de cada compositor formam o que o teórico denomina “dicção”. Teríamos então a dicção de Noel de Rosa, a de Chico Buarque, a de Lupicínio Rodrigues e assim por diante. No que concerne à recepção da forma por parte dos ouvintes, os componentes próprios da letra são os que primeiro dizem ao nosso intelecto, pois, feitos do tecido verbal com o qual nos expressamos e comunicamos, nos permitem a compreensão imediata do que se está ouvindo. Mas uma canção também pode nos tocar mesmo sendo feita apenas de sons guturais, ou com associações aleatórias de palavras. Ou pode ainda nos chegar em uma língua desconhecida. “Pata pata”, na voz de Miriam Makeba, é um bom exemplo. Composta em dialeto xhosa, falado na África do Sul, a letra, ininteligível para além dos limites dessa fala dialetal, não impediu seu estrondoso sucesso mundial na década de 1970. Em muitos outros casos, o acabamento poético da letra (que lhe reveste de melopeia, a sonoridade agradável aos ouvidos) aproxima-a da densidade dos grandes “poemas de livro”. É o que ocorre no Brasil com algumas das obras de Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Arnaldo Antunes, entre outros, e nos EUA com as letras de autores como Cole Porter, Ira Gershwin e Bob Dylan, entre outros também. A recepção dos elementos musicais é mais subjetiva, sensorial. Ter domínio da linguagem musical facilita o entendimento dos elementos implícitos numa dada composição, como sua sintaxe e estrutura. Mas a maioria dos ouvintes, mesmo não possuindo esse entendimento, é capaz de absorver alguns aspectos importantes do tecido musical a partir de analogias e metáforas, frutos da sensação de ouvir. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 23 Quanto aos elementos extrínsecos, estes não podem ser de todo mensurados. Estão, por exemplo, na tipografia utilizada para compor a letra do encarte do Cd (quando ainda se gravava neste formato), na foto utilizada para a divulgação, no clipe postado no You Tube, no songbook com a partitura, na letra e cifragem harmônica da música etc. São complementos que adensam o sentido da canção. Para estes elementos, uma boa fonte de pesquisa também podem ser os estudos de viés sociológico e antropológico (muito em voga hoje em dia nas universidades), bem como biografias e críticas jornalísticas. São trabalhos que se prestam a contextualizar, comparar, interpretar e fornecer detalhes sobre a produção de determinada obra ou artista... “O Leãozinho”, de Caetano Veloso, pode ser ouvida como uma canção simples, quase cantiga de ninar, singela, com sua temática de liberdade, de vida “ao léu”, e melodia doce. Penúltima faixa de Bicho, disco do artista lançado em 1977, a canção (em tonalidade maior, “solar”) se integra plenamente ao conceito do álbum e interage com outras faixas com a mesma temática, tais como “A grande borboleta” e “Tigresa”, sendo que outras canções também transitam nesse campo de sentido, como “Um índio” e “Alguém cantando”. Na letra, em puro artesanato poético, Caetano brinca com as palavras léu, homófono de leo (leão em latim) e numa, que lembra o nome do leão de Tarzã*. Na forma como concebeu o arranjo, arpejando nas cordas mais graves do violão as notas que compõem o acorde de dó maior, o músico simula um procedimento recorrente no modo como tocam os contrabaixistas (e talvez, numa tentativa de metáfora, o ritmo com que um leão se desloca livre na selva). Em um outro ponto da harmonia, as inversões de acordes a partir de lá menor também resultam no mesmo efeito. Um dado de bastidor, do qual a canção independe para ter sua grandeza, dá a ela mais vigor: feita em homenagem ao baixista Dadi Carvalho (integrante de bandas como Novos Baianos, A Cor do Som e Tribalistas), a música devota o arrebatamento do compositor ao conhecê-lo, leonino, na exuberância de seus 17 anos. Ouvi-la no álbum Circuladô Vivo (faixa três, do disco dois), que contém a gravação do show homônimo realizado em 1992, é apreciá-la plena de sentidos: Caetano a interpreta acompanhado somente pelo baixo de Dadi. Eis aí um exemplo de quão vasta é a linguagem da canção. Mário Martinez é músico, poeta e professor de literatura. FONTE: * Paulo Franchetti e Alcir Pécora em “Literatura Comentada – Caetano Veloso”, Ed. Abril, 1991, pág. 59. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 7. 12 FATOS SOBRE A LÍNGUA ALEMÃ 24 por Robson Carapeto 1. Alemão é língua oficial de seis países: Alemanha, Áustria, Liechtenstein, Bélgica, Suíça, Luxemburgo, sendo o idioma mais falado como língua materna na União Europeia (por 90 milhões de pessoas) e o segundo mais falado como língua estrangeira. Além disso, também é reconhecido regionalmente como língua oficial na Dinamarca, Polônia, Itália, Eslováquia e no Brasil. No continente americano, é falado como língua materna por dezenas de comunidades descendentes de imigrantes radicadas do Chile à Jamaica, do Canadá ao Paraguai. Foi língua oficial da Namíbia até 1990, e a partir de então língua oficial regional, e é a língua oficial da Guarda Suíça no Vaticano. 2. “Alemão”, “German”, “niemiecki”, “tedesco”, “Deutsch”... A maioria dos radicais usados por outras línguas para denominar a Alemanha, o povo e a língua alemã são derivados dos nomes dos povos germânicos ancestrais dos alemães de hoje em dia. Os alamanos eram o povo geograficamente mais próximo e que teve mais contato com os galoromanos antes do surgimento do Reino dos Francos. Ocupavam a área que se estende da Alsácia até o Vorarlberg, no ocidente da Áustria atual. Dessa forma, o termo que os designava derivou “allemand” e “Allemagne” e, no século 12, já tinha praticamente se estabelecido na língua francesa e até mesmo em inglês e em italiano eram os termos mais utilizados. Através do francês, o radical foi levado à península Ibérica, tendo sido aí incorporado pelo castelhano, o catalão, o português e o árabe. O significado original do termo em germânico antigo parece ser “todos os homens” ou “homens em geral” e corrobora a teoria de que o povo alamano tenha se constituído e se desenvolvido, na realidade, pela comunhão de diferentes grupos e famílias de origens diversas. “Deutsch” é como os alemães denominam a si próprios e deriva do adjetivo germânico que caracterizava tudo que era relativo ao povo. Assim denominou Martinho Lutero a língua na qual redigiu a sua versão do Novo Testamento, no século 16, combinando elementos de dialetos germânicos diferentes de forma que sua linguagem pudesse ser compreendida por mais gente possível. Finalmente, o falar “do povo” – germânico, vulgar, oral – ganhava uma obra de referência estabilizante e unificadora através da escrita. Em boa parte das línguas eslavas, a língua dos alemães é denominada a partir do radical “nemet”, que tem origem no eslavo antigo e significa “estrangeiro”, além de apresentar similaridade com o adjetivo que, naquela língua, significava “mudo”. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 25 Figura 1: Arnold Platon, Wikipedia 3. Alemão não é tão complicado quanto dizem. Apesar de não ser como em inglês, em que a desinência verbal é quase sempre substituída pela explicitação obrigatória do sujeito, a conjugação verbal em alemão é bastante simples e raramente irregular. Além disso, só há dois tempos verbais sintéticos em alemão. Com exceção do presente e do pretérito imperfeito (Präteritum), todos os demais tempos são formados pela combinação de um verbo auxiliar e o infinitivo ou particípio passado do verbo principal. No presente dos condicionais, somente verbos modais e auxiliares possuem paradigma conjugacional próprio. 4. É muito fácil grafar uma palavra alemã pela primeira vez sem cometer desvios ortográficos. A grafia corresponde, quase sempre, ao que se pronuncia e, com pouquíssimas exceções, cada som possui sempre uma única forma de ser representado. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 26 5. A estrutura oracional do alemão é muito clara, simples e praticamente universal. Num primeiro momento, você pode pensar que o alemão possui uma sintaxe bem engessada, mas a verdade é que somente os verbos é que têm uma posição fixa na frase (a posição seguinte ao primeiro termo, mesmo que não seja o sujeito) e isso aumenta muito a mobilidade dos outros termos da oração. Se houver uma locução verbal, a parte que traz a marca de conjugação fica na segunda posição, marcando o início do predicado, e o verbo principal encerra a oração, formando um lindo sanduíche oracional: Wir haben gestern den armen Kindern unsere alten Comic-Hefte geschenkt. *Nós temos (aux. de perfeito) ontem às pobres crianças nossos velhos gibis dado. (Nós demos ontem nossos gibis velhos para as crianças pobres.) Mein Sohn darf abends ihre Freunde nicht anrufen. *Meu filho pode à noite seus amigos não ligar. (Meu filho não pode ligar para seus amigos à noite.) Alguns verbos plenos, mesmo quando não vêm acompanhados de modal ou auxiliar, ajudam a organizar a oração nesse sanduíche ao se desprenderem de uma sílaba inicial que acompanha o radical e que se desloca para o final para marcar o fim da oração. Trotzdem ruft mein Sohn abends ihre Freunde an. *Mesmo assim /liga meu filho à noite seus amigos liga/. Orações subordinadas são construídas também por esse princípio – a conjunção abre e o verbo conjugado encerra. Os próprios termos delimitam os limites sintagmáticos e o uso de vírgula é muito mais pontual do que em português. Elas somente são usadas para enumerar itens e para separar uma oração subordinada da principal. Trotzdem ruft er abends ihre Freunde an, wenn ich vor dem Fernseher einschlafe. *Mesmo assim ele liga para seus amigos à noite, quando eu em frente à TV adormeço. 6. Tem gente que corre de declinação como o diabo do arco-íris e não calcula a montanha de ambiguidades que são evitadas quando ela existe. Em alemão, a flexão de caso não chega a reduzir drasticamente o número de preposições. Alemão até que tem bastante delas. Mas isso porque o seu sistema de declinação consiste em apenas quatro casos (nominativo, acusativo, dativo e genitivo) e somente é aplicado em artigos e pronomes. Adjetivos e substantivos sofrem leves ajustes em alguns casos. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 27 [Der erste Mann] stellt [dem lieben Mann] [des zweiten Mannes] [den vierten Mann] vor. [nominativo, sujeito] verbo [dativo, objeto indireto] [genitivo, adj. adnominal] [acusativo, objeto direto] *O 1º homem apresenta (stellt... vor) ao amável homem (marido) do 2º homem o 4º homem. (O primeiro apresenta o quarto ao marido do segundo.) 7. Sabe aquela bonequinha tradicional russa, a matrioshka? Pois é, os sintagmas nominais em alemão são construídos da mesma maneira. Se você compreendeu o esquema do sanduíche oracional, fica fácil de imaginar como isso também se aplica no cenário nominal. Como em outras línguas, o artigo acumula várias funções gramaticais, funcionando praticamente como a carteira de identidade do substantivo que é núcleo do sintagma nominal a que ele pertence. O artigo pode ser definido, indefinido, negativo, demonstrativo e possessivo e informa o gênero/número e o caso do substantivo. Para, além disso, em alemão, é importante salientar que o artigo marca o início do sintagma nominal. O artigo é o início e o substantivo marca o fim. Lembra que é o verbo principal que também encerra a oração? Pois essa é uma tônica da sintaxe alemã: sanduíches em que uma fatia do pão é temperada com traços mais gramaticais e a outra, que encerra, possui a maior carga semântica. Portanto, quando existe um ou mais atributos (adjetivos) no sintagma nominal, ele ou eles aparecem entre o artigo e o substantivo a que se referem. Como em várias outras línguas, os verbos alemães também possuem particípios, que são usados em tempos compostos, mas também como adjetivos. Isso significa que, nessa forma, eles podem aparecer entre um artigo e um substantivo compondo o sujeito ou o objeto direto, por exemplo, numa oração. A particularidade nesse caso, porém, é que, enquanto particípio-adjetivo, o radical verbal não perde nada de sua regência e isso permite que ele traga para dentro do sintagma nominal todos os seus próprios atributos, ou seja, seus complementos e adjuntos. Olha isso: Das Mädchen fährt jeden Tag mit dem roten Fahrrad nach Hause. *A garota todo dia com a vermelha bicicleta para casa. vai Ich sehe immer das Mädchen, das jeden Tag mit dem roten Fahrrad nach Hause fährt. Eu vejo sempre a garota, que... [oração relativa com o verbo conjugado no final] Ich sehe immer das jeden Tag mit dem roten Fahrrad nach Hause fahrende Mädchen. Eu vejo sempre a... REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 28 8. Outro mito é o de que a língua alemã tem três gêneros. Mentira, tem quatro: masculino (der), feminino (die), neutro (das) e plural (die também). Tudo bem, eu sei que plural é número e não gênero, mas morfologicamente, em alemão, essa categorização faz sentido, já que, em seu paradigma nominal o gênero, não é marcado no plural. Individualmente se faz distinção entre três gêneros, mas, no meio da multidão, ninguém é de ninguém. Os gêneros do singular são distribuídos bem arbitrariamente e não têm relação direta com o sexo ou ausência de sexo dos entes. Tanto que galinha é de gênero neutro (das Huhn) e menina também (das Mädchen). No entanto, estrela e árvore são masculinos (der Stern, der Baum), nariz e tempo são femininos (die Nase, die Zeit). Toda e qualquer coisa ou ser vivo, de qualquer gênero, no diminutivo passa a ser de gênero neutro. 9. Alemão tem umas letrinhas marotas, além das 26 do alfabeto. São os chamados Umlaute (sons arredondados) e o es-zet (esse-zê). Os Umlaute são três variações arredondadas das vogais a (ä), e (ö) e i (ü). O ä se tornou, com o tempo, um e bem aberto, assim como em “canela”. Não há mais nada que você precise saber sobre ele. Já o ö e o ü demandam uma certa experimentação articulatória para nós brasileiros. O truque é dizer e e i arredondando os lábios, como se fosse pronunciar o e u. O es-zet (ß) se chama assim porque surgiu mesmo da combinação gráfica de s com z. Isso que você deve achar mais parecido com um beta grego não passa da estilização de um s gótico (que era representado como um palitinho, tipo um t sem corte) grudado num z cursivo. O som que isso tem hoje é o s. O s simples em alemão é pronunciado como z e por essa razão o ß é também chamado de “s afiado”. Pra digitar o es-zet num teclado brasileiro, segure a tecla Alt do lado esquerdo enquanto digita 0225 no teclado numérico. 10. Todos os substantivos (todos!) são escritos com inicial maiúscula em qualquer posição da frase (qualquer!). 11. Não lembra como se chama ou não encontra uma palavra para designar um conceito qualquer? Invente! A justaposição de substantivos, adjetivos e até de radicais verbais é livre. Não tem patrulha de neologismo e perguntar pela maior palavra da língua alemã não faz nenhum sentido, uma vez que sempre vai ser possível construir uma maior: REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 29 Donau dampf schiff fahrts gesellschafts kapitän = capitão da sociedade de viagens de navio a vapor do Danúbio (tradução ao pé da letra, mas já seguindo o princípio de posicionamento do item de maior importância à direita – portanto, ao pé da letra, mas ao contrário) (e é claro que não se escreve assim, mas sim sem os espaços: Donaudampfschifffahrtsgesellschaftskapitän) 12. Os números também exigem uma certa mudança de hábito, mas não é nada complicado. É só fazer tudo ao contrário. Em alemão, diga primeiro a unidade e depois a dezena: 82 se diz zweiundachtzig, ao pé da letra, dois (zwei) e (und) oitenta (achtzig). Se temos a casa da centena, então adota-se a lógica a que você já está acostumado, ou seja, primeiro a centena. Mas a dezena com a unidade é tratada como um bloco indissociável, de forma que 382 (dreihundertzweiundachtzig) consiste na justaposição de trezentos (dreihundert) e oitenta e dois (zweiundachtzig). Pra dizer as horas, o alemão possui dois sistemas diferentes para expressar os minutos passados ou que faltam em relação à hora cheia. O uso de um ou de outro sistema depende da região em que a língua é falada e é muito controverso afirmar que uma ou outra maneira de se dizer seja a forma mais usada ou de uma maioria. A maneira mais simples de entendermos não é a mais simples de construir. A gente percebe logo como ocorre porque é similar ao funcionamento de outras línguas: um quarto passado da última hora cheia para dizer que é tantas horas e quinze minutos (XX:15); um quarto faltando para a próxima hora cheia quando se trata de XX:45: 8:15 = Viertel (¹ ₄) nach acht (pós 8) 8:45 = Viertel (¹ ₄) vor neun (antes de 9) Agora, olha só com que facilidade a outra metade dos alemães e dos austríacos dizem que horas são: 8:15 = Viertel neun 8:45 = drei Viertel (³ ₄) neun Estes adotam simplesmente a hora vindoura como referência universal e assim dispensam até mesmo o uso da preposição. Essa lógica é a empregada por todos os falantes (inclusive os que utilizam o primeiro sistema) para expressar a meia hora: 8:30 = halb (¹ ₂) neun Robson Carapeto é Professor de Alemão da Escola Alemã Corcovado (Deutsche Schule Rio de Janeiro) e doutorando em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal Fluminense. Levou o time brasileiro como team leader para as edições da IOL em Liubliana (2012) e Manchester (2013). Fã de ritmos caribenhos, teatro do absurdo, jogos de tabuleiro e viagens de trem. Peixes com câncer. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 8. GERANDO ÁRVORES 30 por Pedro Neves Apesar de ser uma característica bem humana, o uso de linguagens também pode ser implementado em máquinas, como nos computadores. Mesmo com suas limitações de funcionamento, ainda é possível criar línguas que um computador “entenda” e, de fato, todo o funcionamento dos programas e aplicativos que utilizamos é criado a partir de diversas linguagens de programação. Mas, mesmo que um computador consiga funcionar muito bem com suas linguagens específicas, ainda há diversas dificuldades para o entendimento de linguagens humanas e, para ajudar em uma dessas tarefas, mostraremos como utilizar uma ferramenta de reconhecimento de linguagem, o ANTLR[1], para que seu computador possa, na medida do possível, “entender” alguma língua, como o nosso português. O ANTLR (ANother Tool for Language Recognition, “mais uma ferramenta de reconhecimento de linguagem”, tradução livre) é uma poderosa ferramenta capaz de gerar códigos que implementam reconhecedores de linguagem a partir de uma dada gramática. Os reconhecedores gerados funcionam como um LL Parser, isso significa que as sentenças são analisadas da esquerda para a direita, sendo que o elemento mais à esquerda é encaixado na regra gramatical. O ANTLR em si apenas compila um arquivo que define a gramática e gera o código dos reconhecedores em alguma linguagem de programação (atualmente disponíveis em Java, C# e Python), mas, para uma implementação mais intuitiva e uma visualização mais direta da gramática, utilizaremos o ANTLRWorks[2], programa gratuito, com a geração de código do ANTLR já incorporada nele e ainda mostrando as árvores gramaticais para testes. Definindo uma gramática Para podermos implementar regras gramaticais utilizando o ANTLR, partimos de uma definição formal de gramática, que possui os seguintes elementos: símbolos terminais, utilizados para formação das sentenças; símbolos não-terminais, utilizados para descrever a língua; produções, as regras gramaticais da língua; símbolo inicial, não-terminal, a partir do qual iniciamos uma sentença. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 31 Por exemplo, para classificar um pequeno pedaço da gramática do português, que compreende apenas a seguinte sentença: sentença o menino leu o livro velho Podemos definir, pela sintaxe, os seguintes elementos: sujeito verbo o menino sentença objeto leu o livro velho E a partir disso definir, pela morfologia: sujeito artigo o verbo subs. verbo menino leu sentença artigo o objeto subs. livro adj. velho Se escolhermos parar nossa definição neste ponto, chegamos aos seguintes elementos: Símbolos terminais “o”, “menino”, “leu”, “livro”, “velho” Produções as regras sintáticas e morfológicas utilizadas na classificação Símbolos não-terminais artigo, substantivo, verbo, adjetivo, sujeito, objeto, sentença sentença Símbolo inicial É importante notar que poderíamos definir nossa gramática com mais detalhes, como separar o substantivo em radical e desinências, e construir regras cada vez mais precisas. Escrevendo a gramática Para iniciar a definição da gramática no ANTLRWorks, basta ir em File > New File; deixar a opção “ANTLR 4 Combined Grammar” selecionada; clicar em Next; dar um nome; escolher um local para salvar o arquivo e finalmente clicar em Finish. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 32 Isso criará um arquivo de extensão g4, em que será escrita a definição da gramática. O arquivo já começa com o nome da gramática. Iniciaremos definindo o elemento de ordem mais elevada, “sentença”, composto por “sujeito”, “verbo” e “objeto”. No ANTLRWorks, escrevemos como: sentenca : sujeito verbo objeto ; Neste momento, o programa dá sinais de erro porque ainda não definimos o que significa “sujeito”, “verbo” e “objeto”, o que faremos nas próximas linhas: sujeito : artigo substantivo ; objeto: artigo substantivo adjetivo ; Para finalizar a gramática, precisamos definir os últimos elementos com os símbolos terminais. Aqui, o símbolo | indica “ou” e é usado para listar as possibilidades dos terminais, ou seja, tanto “menino” quanto “livro” serão identificados como “substantivo”. artigo : 'o' ; verbo : 'leu' ; substantivo : 'menino' | 'livro' ; adjetivo : 'velho' ; Nossa gramática finalizada deve ter mais ou menos a seguinte forma: REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 33 Testando a gramática Para testar o reconhecimento das regras, primeiro criamos um arquivo no bloco de notas com a nossa frase. Depois voltamos ao ANTLRWorks, salvamos nossa gramática para que nada se perca e selecionamos Test > Run in TextRig. Aqui selecionamos o arquivo com nossa frase e na seção “Start rule”, selecionamos o símbolo inicial, no nosso caso, “sentenca”, e deixamos selecionada a opção “Show tree in GUI” para visualizar nossa árvore gramatical. Se tudo ocorrer corretamente, o programa apresentará uma árvore com todos os nossos elementos reconhecidos. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 34 Aprimorando a gramática Como já criamos uma primeira gramática simples, podemos melhorar e adicionar mais elementos para reconhecer frases cada vez mais gerais. Primeiro, como definimos que tanto “livro” como “menino” são “substantivo”, a seguinte frase também é reconhecida pelo programa: “o livro leu o livro velho” Mesmo que a frase não faça muito sentido, ela está gramaticalmente correta. Para reconhecer ainda mais palavras, podemos adicionar mais termos nas definições dos símbolos terminais: artigo : 'o' | 'a' ; verbo : 'leu' | 'lê' | 'comprou' | 'olhou' ; substantivo : 'menino' | 'livro' | 'revista' ; adjetivo : 'velho' | 'famoso' | 'caro' | 'azul' ; Então mais frases serão reconhecidas. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 35 Também podemos alterar algumas regras, como deixar o artigo opcional, escrevendo: sujeito : artigo? substantivo ; objeto: artigo? substantivo adjetivo ; Então ainda mais frases serão reconhecidas E, assim por diante, basta criar mais regras e mais definições, para que as possibilidades cresçam cada vez mais. No nosso exemplo, montamos regras que descrevem um pedaço bem específico da gramática do português, mas podemos usar o ANTLR para reconhecer outras coisas, desde que seja possível interpretar da esquerda pra direita, com regras definidas. Por exemplo, podemos criar regras para formação de palavras com radicais e desinências: Criar um interpretador de expressões matemáticas: REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 36 Ou reconhecer linguagens de máquina, como a linguagem G: Novamente, as possibilidades são inúmeras, basta gastar a criatividade e criar mais coisas. Pedro Neves é graduando de Engenharia Mecatrônica da Escola Politécnica da USP, conquistou a Medalha de Bronze na International Linguistics Olympiad em Ljubljana (2012). É também um dos membros do júri da Olimpíada Brasileira de Linguística, na qual confecciona as questões que todo mundo “ama/odeia”. FONTES: [1] ANTLR, http://www.antlr.org/ [2] ANTLRWorks, http://www.tunnelvisionlabs.com/products/demo/antlrworks REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 9. UM TIPO DE CONSTRUÇÃO COM PRONOME RELATIVO 37 por Eloy Gustavo de Souza Há um tipo de construção com pronome relativo que costuma ser omitida nos materiais de ensino médio: trata-se da construção em que o relativo desempenha função não na oração adjetiva que introduz, mas numa outra oração subordinada a essa adjetiva. Antes de tratarmos dela, vamos recapitular alguns pontos necessários para o seu entendimento. Informações iniciais: o pronome relativo O conector oracional por excelência é a conjunção, sendo as orações adjetivas as únicas que, se desenvolvidas, devem ser introduzidas necessariamente por pronomes, chamados de relativos. Isso ocorre, porque o conector dessa oração é um anafórico que retoma um termo da oração principal (antecedente), para poder fazer assim uma afirmação sobre esse termo. Note que a troca da forma “que” invariável pela forma variável “o qual” faz com que esta assuma as flexões de gênero e número do antecedente. Outra prova dessa retomada é o fato de o relativo desempenhar na oração adjetiva a função sintática que caberia ao antecedente. Vejamos o exemplo abaixo (o PR indica a classificação morfológica do “que” como pronome relativo; “a qual” é o relativo variável): Em ambas as frases, o relativo “que” retoma o termo “a garota” que é o objeto direto da oração principal. Na frase 1, quer se afirmar que a garota ama o interlocutor, por isso se optou pela colocação do verbo logo após o pronome relativo, conferindo a esse o papel de sujeito – note-se, portanto, que as funções exercidas pelo relativo e pelo antecedente não precisam ser as mesmas. Na frase 2, o simples deslocamento do “você” para antes do verbo leva-o a exercer a função de sujeito, passando assim o relativo a exercer a função de objeto direto. Caso a função exercida pelo relativo seja preposicionada, fica evidente o exercício dessa função. As frases 3 e 4 repetem a estrutura das anteriores, mas a troca de “amar” (VTD) por “gostar” (VTI) leva ao emprego da preposição “de” que incidirá sobre o pronome relativo ou sobre o de tratamento, conforme o que se queira expressar. No caso do relativo “a qual”, ocorrerá contração “da qual”: REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 38 Informações iniciais: a conjunção integrante A conjunção integrante, que introduz orações substantivas, também pode vir antecedida por preposição, mas nesse caso há duas diferenças marcantes, além do fato de que ela não exerce função alguma. I A preposição rege a oração substantiva inteira e não apenas o conector, tanto que a preposição estará em conformidade com a função exercida por essa oração (objeto indireto, complemento nominal, ou mesmo objeto direto preposicionado). II O termo regente dessa preposição encontra-se na oração principal, e não na subordinada como ocorre com a adjetiva. Vejamos os exemplos (o CI indica a classificação morfológica do “que” como conjunção integrante, e o símbolo indica a ausência de função sintática da conjunção): Na frase 5, a conjunção introduz uma oração que se subordina ao verbo “disse” como seu objeto direto, daí a ausência de preposição. Já na 6, a subordinação ocorre com o verbo transitivo indireto “concorda”, que exige a preposição “com”, daí ela aparecer no início da oração subordinada, uma vez que ela exerce a função de objeto indireto. Vistas essas informações iniciais, passemos agora ao fenômeno de que nos propomos tratar. Orações adjetivas entrançadas Como foi dito, não é costume a apresentação desse tipo de oração em livros de ensino médio, mesmo em obras de maior fôlego, como nas gramáticas de Celso Cunha e de Rocha Lima, ela não é abordada. Teremos como base aqui, a “Moderna Gramática Portuguesa” de Evanildo Bechara e dois manuais de sintaxe: “Lições de Português” também de Bechara e “Novas Lições de Análise Sintática” de Adriano da Gama Kury, manuais que recomendamos como obras preciosas para o estudo da análise sintática tradicional. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 39 Gama Kury usa a expressão “relativo com função noutra oração” e Bechara, “relativo sem função na oração em que se encontra” para nomearem o fenômeno linguístico em questão. Preferimos aqui a expressão “adjetivas entrançadas” de um autor (Guimarães Correa) da década de 60, por julgarmos mais expressiva, pois a oração em que o relativo exerce a função está subordinada à adjetiva, dando a ideia de fato de um entrelaçamento dessas duas orações. Abaixo retomamos as frases 2 e 5; no exemplo 7, fazemos a fusão (entrelaçamento) dessas duas orações. Se a frase 2 informa que o emissor conheceu a garota amada pelo receptor, dando esse amor como certo, a 7 não dá a certeza desse amor, pois ele foi informado por uma quarta pessoa, que chamamos de João. Caso o emissor não queira dizer que ele conheceu não a garota que o receptor ama, mas sim a garota que João diz que o receptor ama, pode-se expressar tal ideia com entrelaçamento das duas orações. A frase resultante possui três orações: a 2ª subordina-se à 1ª como adjetiva, já que o relativo que a introduz tem como antecedente um termo da 1ª. A 2ª oração também cumpre o papel de principal em relação à 3ª, já que esta se subordina ao verbo “disse” da 2ª como seu objeto direto. Orações poderem desempenhar mais de um papel sintático em função de se subordinarem ou terem a si subordinada mais de uma oração é um fato corriqueiro. O entrelaçamento ocorre pelo fato de o relativo não desempenhar função na oração adjetiva (João disse), mas sim constituir o objeto direto do verbo “ama” da oração subordinada substantiva. A prova de que o relativo de fato é o primeiro “que” é que ele pode ser permutado por “a qual”. Além disso, caso trocássemos o verbo “ama” por um que exigisse preposição, ficaria claro que o relativo se relaciona a esse verbo. Veja o exemplo a seguir: REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 40 O verbo “gosta”, no sentido com o qual foi empregado, exige preposição “de”, que deve ser colocada antes do relativo, contraindo-se com ele, caso seja empregada a forma “a qual”. Aqui utilizamos frases bem simples, para que os leitores possam acompanhar o raciocínio. Para terminar, indicamos ao leitor duas frases de estrutura mais complexa, sublinhamos a oração adjetiva. Fica o convite para que procedam à análise: Não faças a outrem o que não queres que te façam. (máxima) O de que eu quero que te esqueças é o sinal da cruz. (A dama pé-de-cabra; Alexandre Herculano) Eloy Gustavo de Souza cursou Letras na Universidade de São Paulo e exerce a docência desde 1998, atuando no ensino médio e em cursos preparatórios pré-vestibular. Atualmente, é professor de português e literatura de curso pré-vestibular e no curso Clio, preparatório para o exame de admissão à carreira diplomática. FONTES: KURY, Adriano da Gama. Novas Lições de Análise Sintática - Série Fundamentos. São Paulo: Ática, 1993. 6a Edição. BECHARA, Evanildo. Lições de Português pela Análise Sintática. s.l.: Lucena, 2001. 16a Edição. CORREA, Geraldo Guimarães. 2.500 Exercícios Graduados. s.l., 1965. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 41 10. A IMPORTÂNCIA HISTÓRICA E LINGUÍSTICA DO ESTUDO DE LATIM por Tomislav Correia-Deur Este artigo procura informar como o estudo da língua latina e sua evolução diacrônica constituem um manancial útil para as reflexões linguísticas em geral. Para tanto, procura apresentar algumas áreas e disciplinas inter-relacionadas, situando o leitor nos diversos campos de pesquisa e pontuando suas principais descobertas. Desde a idade Média, o estudo do Latim motiva a formulação de questões pertinentes, como a relação deste idioma com outros percebidos como similares ou a possibilidade de agrupar o idioma em famílias. No entanto, todo esse material não era organizado de forma sistemática e muitas vezes se fundava em bases teóricas que depois se mostraram equivocadas. Apesar disso, a grande quantidade de reflexões sobre questões de linguagem que se desenvolvem no correr dos séculos cria condições para o desenvolvimento, no século XIX, da Filologia. Esta disciplina irá criar outras subáreas com objetos e métodos específicos. Uma delas é a Crítica Textual (ou Edótica), que se preocupa com questões históricas de preservação e transmissão dos textos como documentos materiais – livros, manuscritos, inscrições arqueológicas nos mais diversos substratos, etc. – e não será aqui discutida. Outra parte da Filologia estuda a organização linguística dos diversos idiomas em busca de critérios que permitam a comparação entre eles, a fim de isolar processos recorrentes, avaliar influências mútuas, organizar árvores genealógicas, etc. Para tanto, vários métodos de pesquisa foram criados, entre eles o Método Histórico-Comparativo e a Geografia Linguística. O primeiro procura verificar as transformações de uma língua no correr do tempo (diacronia) e comparar diversas línguas em diversos momentos. O segundo procura relacionar aspectos linguísticos com o espaço que as diversas sociedades humanas ocupam. Graças aos avanços da Filologia do século XIX, várias questões puderam ser desenvolvidas de forma mais objetiva e rigorosa do ponto de vista científico. O estudo do latim e das línguas neolatinas fornece um bom exemplo desses avanços e suas consequências. A Filologia Românica, então, se constitui como a parte da Filologia dedicada a estudar as origens do latim, os diversos momentos da sua história linguística e seus desdobramentos nas línguas neolatinas atuais. A Filologia Românica desempenha um papel de destaque, nos estudos linguísticos, porque possui um amplo acervo de exemplos documentados, que permite a elaboração de inferências teóricas. Desde as inscrições arqueológicas do séc. VI a.C., até as gravações de áudio e vídeos do séc. XXI, passando por todo tipo de texto metalinguístico, é possível ao estudioso verificar o estado de questões específicas, como a fonética, a morfossintaxe ou o vocabulário em várias épocas. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 42 O conhecimento sólido da língua de origem (o latim) e das línguas de chegada (as línguas neolatinas) fornece um modelo de referência para os estudos de outros ramos linguísticos, como as línguas germânicas, do qual se conhece pouco sobre a língua de origem. Assim, alguns processos comprovados no latim podem ser aplicados a outro idioma, possibilitando a reconstrução de determinados aspectos linguísticos de um estado anterior daquela língua com base em um critério objetivo (ainda que questionável). A riqueza da documentação do latim permitiu também a periodização adequada da história da língua, com grandes implicações para a compreensão da língua como fenômeno social. Era muito difícil estabelecer uma relação entre a linguagem das obras literárias latinas e as diversas línguas neolatinas. No entanto, as gramáticas do latim escritas a partir do século IV d. C. começam a apontar os erros comuns dos falantes, muitas vezes, atrelando os erros a determinados tipos sociais. Assim, percebe-se o descompasso entre a língua escrita e a língua falada pelos romanos. Os estudiosos perceberam rapidamente que os tais erros da fala conseguiam explicar mais facilmente as línguas neolatinas. O latim, além de ser dividido em Arcaico, Clássico e Medieval – classificação que dava conta apenas da norma culta escrita – passa a ter também o Latim Vulgar – ou seja, a língua popular falada que se expande pelas possessões do Império Romano. Assim fica claro, desde o século XIX, que a língua não é só um objeto dinâmico, mas também é um fenômeno social, que depende muito mais da fala que da escrita. Tais posições serão desenvolvidas pela Sociolinguística de Coseriu no século XX. A relação de várias línguas modernas como o Português, o Espanhol, o Italiano e Francês, por exemplo, com o Latim Vulgar permitiu que essas línguas fossem agrupadas em troncos, como, no caso, o Neolatino. Essa forma de agrupar idiomas se expande e, graças ao Método Histórico- Comparativo, começa-se a perceber as relações entre os vários idiomas e os vários troncos a partir de formas arcaicas, documentadas ou inferidas. Como tanto línguas quanto povos têm uma história, o estudo das línguas possibilitou inferências sobre migrações humanas que foram corroboradas pelos estudos de genética populacional do séc. XX. Saussure, pai da linguística moderna, foi um grande comparativista, estudando as relações do hitita com o indo-europeu. Também foi importante perceber a distinção entre os sistemas ortográfico e fonético. A perspectiva diacrônica e o Método Comparativo mostram a necessidade da criação de um padrão de escrita dos sons que permita as comparações entre diversos estágios de uma mesma língua e diversas línguas. O Alfabeto Fonético Internacional (AFI) surge como elemento padronizador para os filólogos e, conforme o estudo de outras línguas (como as indígenas) foi se desenvolvendo, o AFI foi se consolidando como ferramenta de trabalho da Fonética. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 43 Os avanços da filologia do século XIX permitiram a classificação e compreensão de fenômenos, como as transformações fonéticas (metapalasmos) que explicam como certas palavras mudam. A sonorização (troca do fonema surdo pelo sonoro similar) explica como lupu (latim) se transforma em lobo (português). No entanto, mesmo que o fenômeno tenha ocorrido em um momento específico da história, isso não quer dizer que o mesmo fenômeno irá se repetir novamente. Assim, não é possível afirmar que capa (português) irá se transformar em caba (português) no futuro, mesmo que isso seja possível. Assim o filólogo, assim como o historiador pode fazer inferências, mas não pode prever, categoricamente, o futuro. Os estudos fonéticos revelaram o grande impacto deste nível de estruturação linguística na língua como um todo. Pequenas mudanças fonéticas podem produzir dificuldades para os ouvintes. Por exemplo, as 10 vogais do latim clássico se tornam 7 vogais por volta do século IV (i breve e e longo convergem, assim como u breve e o longo, bem como as duas formas de a). Esse processo fica congelado na parte ocidental da Península Ibérica, criando as 7 vogais presentes até o português moderno (a vogal ê é derivada do i breve e do e longo, a vogal é do e breve; a vogal ô é derivada do u curto e do o longo, a vogal ó, do o breve), enquanto que, na área central e oriental da península, o processo continua em andamento, eliminando, ao longo dos séculos, a diferença ê/é e a diferença ô/ó. Assim o falante de espanhol tem dificuldades para entender português, por não distinguir tantas vogais. A queda do fonema final (Apócope) tende a produzir grande impacto no latim, pois, por exemplo, a queda do –m, marcador de acusativo, não só muda uma palavra, como obriga a criação de uma forma alternativa de marcar caso, originando o fim do sistema de declinações do latim e sua substituição pela ordem da sentença. O relativo esgotamento do campo levou a Filologia a se transformar no século XX, com o surgimento da Linguística Moderna, com suas várias correntes. No entanto, o manancial de informações não só estimula as novas abordagens como ainda suscita diversas questões, como a comprovação de formas hipotéticas ou nova leitura de documentos antigos, sem contar que novos documentos sempre podem ser encontrados, lançando nova luz sobre velhas questões. Tomislav Correia-Deur é Mestre em Letras Clássicas, com a dissertação “Considerações acerca da Pureza e Clareza em Cícero, De oratoreIII.37-51” (2005). Foi professor da Universidade Ibirapuera, onde lecionava Língua Latina, História da Língua e Literatura Greco-Latina (2002-2005). Foi professor convidado da Fundação Poiesis no curso CLIPE, com a disciplina O Fazer Literário no Mundo Clássico. (2015). É professor Língua Portuguesa e Literatura no ensino médio desde 1999. FONTES: Matéria tão vasta possui uma bibliografia também vasta. No intuito de ampliar o conhecimento, segue uma bibliografia sumária, em língua portuguesa: Elementos de Filologia Românica, Bruno Basseto; Gramática Histórica, Ismael de Lima Coutinho; Gramática do Latim Vulgar, Theodoro Henrique Maurer Jr.; Linguística Românica, Heinrich Lausberg; Introdução à Linguística Românica, IorguIordan. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 11. A LÍNGUA E A LINGUAGEM NOS AFETOS DO MIGRANTE 44 por Samea Ghandour Aeroporto de Atenas. Início de 2008. Primeira sinestesia: um grupo de senhores fuma freneticamente num local fechado. O aeroporto é névoa. Eles gritam entre si, gesticulam muito, parecem brigar. Não entendo uma palavra. Mais sinestesias, ainda no aeroporto: συγνώμη, κυρíα, δεν μπορείτε να παρκάρετε εδώ. O som descortês das palavras me corta. Eu, em sobrolhos: Sorry, I don’t speak greek. O policial grego impacientemente esboça, em inglês rudimentar, que eu não posso estacionar ali. Não me agrada o modo como ele levanta o queixo enquanto se dirige a mim e, depressa, sem olhar para ele, retiro-me dali rumo à cidade. Diante do choque intercultural e da autoridade policial, naquele momento, não houve disponibilidade de minha parte em compreender a linguagem do guarda, nem dele para comigo, embora a comunicação tenha sido estabelecida a partir da língua inglesa. Hoje, entretanto, após ter absorvido parte da língua e da cultura helênica, compreendo que a prosódia policial não foi, em momento algum, rude para o que um grego entende por ser rude. Quanto aos velhos fumantes, hoje percebo que eles apenas gritavam por sentirem muita paixão pelas coisas. A língua pode ser uma fronteira invisível entre povos. No entanto, a linguagem, imbuída de afetos (entendidos, aqui, como disposição gestual/facial/corporal dos falantes em se afetar da cultura e das pessoas), pode ajudar a romper essa barreira na medida em que se vale de signos universais, os quais facilitam a comunicação. A língua é motriz das relações humanas. Ela pode tanto abrir, quanto fechar portas, sendo que, muitas vezes, sua aprendizagem acontece, no quotidiano, para além dos livros. No entanto, a língua não é sozinha. Para o imigrante que, muitas vezes, não fala a língua do país de destino, a possibilidade de comunicação se efetiva tendo em vista também a linguagem, isto é, a disponibilidade dele em se fazer entender e a do nativo em compreendê-lo a partir de convenções universais não escritas ou faladas, como o olhar, a expressão corporal, a respiração, o tom de voz. Sem isso, a possibilidade de comunicação entre imigrante e nativo pode ser mais dificultosa e pode haver a formação de grupos e guetos. Há muito mais riqueza na língua do que os livros de idiomas são capazes de transmitir. Seria impossível retirar o mérito desses livros, visto que eles fornecem a base necessária para que se possa esboçar qualquer percurso comunicativo. No entanto, atingido um determinado ponto de domínio básico do idioma, é-se impelido a procurar a comunicação fora dos livros, complementada pela linguagem. As pessoas que estudam língua estrangeira, quando chegam a outro país, percebem, muitas vezes, que a língua utilizada no quotidiano, repleta de linguagens outras, multicores, não é a mesma dos livros, mais formal e barra-afetos. Isso ocorre porque os livros de idiomas transmitem, mormente, noções instrumentais aos estudantes, essas que objetivam a praticidade na comunicação, desde o apanhar o ônibus ao comprar o leite, sem que, de fato, isso REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 45 permita uma integração profunda com a cultura. Os livros de língua estrangeira parecem estar mais voltados ao turista ou ao leitor prático de textos que, propriamente, ao imigrante em si, exigente de noções mais profundas e humanas do idioma, uma vez que irá conviver com aquela determinada cultura durante algum tempo. Alguns imigrantes não falantes de língua inglesa ou da língua do país de destino, inclusive, formam grupos isolados, tribos que se encontram, comunicam-se com mais entrosamento entre si, compartilhando seu inglês de embromation, do que com os falantes nativos, muitas vezes não dispostos a abrir mão de sua própria língua ou cultura para interagir com linguagens outras. Esse entrosamento (ou a falta dele) é reflexo dos afetos, necessários a qualquer comunicação: os migrantes que ficam à margem da sociedade (seja pela dificuldade em aceitar uma cultura tão diferente da sua ou por não serem, de fato, bem-vindos ao país) dividem a mesma língua vernácula ou o mesmo inglês livre, mais a exclusão social e as saudades da pátria. Para esses grupos, a língua local passa, muitas vezes, despercebida porque - seja por opressão social ou por relutância individual - a cultura, os afetos e as relações com os nascidos naquele país também passam despercebidos. Um determinado chiste, por exemplo, perde o tom lúdico para quem não conhece o modo de pensar de determinada sociedade, por mais que conheça a língua. De certo modo, pode-se dizer que um amigo nativo pode ajudar o migrante a perceber a graça do chiste muito mais rápido ou profundamente que um livro de idiomas. O não-afeto diante da cultura do outro faz com que o imigrante não consiga ou relute em aprender a linguagem e, por conseguinte, a língua do país aonde chega. A linguagem está imbuída da língua e da cultura de um país, de suas escolhas, de seus afetos. Dessa pluralidade, somente o percurso comunicativo pragmático pode dar conta, o que faz com que a aprendizagem da língua possa se dar a qualquer momento, em qualquer lugar, entre quaisquer pessoas dispostas a afetarem-se mutuamente pela linguagem. Após aprender, nos livros, as noções básicas da língua, se quiser aprofundá-las, o migrante precisa conhecer pessoas, estabelecer relações, fazer amigos. Ele precisa se disponibilizar a apreender a cultura, muitas vezes tendo de temporariamente silenciar a sua própria, e encontrar nativos dispostos a com ele compartilhar seu modo de vida para além das fronteiras linguísticas. Se essa combinação mágica ocorre, o imigrante consegue introjetar o idioma com muito mais facilidade. De modo semelhante, um afeto traumático pode fazer com que o aprendizado da língua seja barrado. Uma sociedade xenófoba não contribui em nada para a aprendizagem da cultura e da língua pelo imigrante, o que gera marginalizados sociais e ressentimento. Fato é que muitos dos que migram fazem isso por falta de opção em seus países de origem, por guerras, perseguições políticas ou pobreza, devendo adaptar-se ao máximo ao país aonde chegam. Nesse processo, aprender a língua torna-se fator de sobrevivência, mas, quando a sociedade é xenófoba ou o imigrante relutante, este aprende a língua com raiva, por mera repetição, o que pode gerar lacunas no léxico, uma vez que esse só se completa a partir da linguagem. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 46 Por outro lado, qual não é a surpresa diante dos afetos interculturais! Pode-se dizer até que a língua fica em segundo plano diante da complexidade da troca de linguagens. Dada a disponibilidade afetiva entre nativo e imigrante, ambos se enriquecem da cultura um do outro. O migrante começa a entender, por exemplo, por que num país se grita em vez de se falar baixo e pausadamente; por que se amarra uma fita vermelha no braço, entre o verão e a primavera; por que se come com muito azeite sempre. E eis que o imigrante aprende que deve gritar para ser respeitado, mesmo que sua cultura o repreenda e peça para que fale baixo; eis que ele amarra a fita vermelha para não se queimar demais no tórrido sol de verão; eis que rega os pratos de azeite para, em comunhão com os nativos quebrapratos, lembrar-se dos tempos de guerra civil, quando o país passava fome. Oculta em cada migrante ou nativo estereotipado, há uma individualidade que merece ser desvendada, impossível de se instrumentalizar, pois a língua não dá conta de algo muito mais caro: a vivência. Quando se percebe isso, os elementos do mundo continuam a ser nomeados, mas, dessa vez, imbuídos de maior sentido, devido aos afetos. Tanto faz fronteira ou σύνορα, desde que haja uma história, um percurso afetivo, que justifique atravessar a passagem e contar a experiência das pessoas dispostas a compartilhar isso. Samea Ghandour nasceu em São Paulo, em 1989. Atualmente, integra a equipe de atores da exposição Máquina Tadeusz Kantor, no Sesc SP, bem como a XII Paralela do Club Noir, em São Paulo, que pesquisa a relação entre voz, linguagem e teatro. Faz Iniciação Científica com ênfase em Platão e Graduação em Letras com Habilitação em Grego e Português na Universidade de São Paulo. Em 2014, formou-se no CPTzinho de Antunes Filho e no Teatro Escola Macunaíma. Em 2013, acompanhou a Equipe Brasileira de Ensino Médio na International Linguistics Olympiad, em Manchester. Participou do júri da Olimpíada Brasileira de Linguística de Ensino Médio (2012). Estagiou na Escola Isou Theatrou (Ίσου θεατροu) em Atenas, em 2010. É fluente em grego moderno. REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 EXERCÍCIO 1: DECLINAÇÕES LATINAS 47 por Bruno L'Astorina e Felipe Assis Nossa língua faz parte de uma grande família, as línguas neolatinas. Como o nome diz, elas vieram do latim. Um dos elementos do latim que desapareceram, nas línguas neolatinas atuais, é a declinação, que é uma espécie de conjugação dos nomes. A declinação facilitaria bastante seu desempenho em provas de gramática. Veja abaixo alguns exemplos de frases latinas: Puella amat magistram A menina ama a professora Puellam amat magistra A professora ama a menina Puellae servus magistram vocat O servo da menina chama a professora Aqua servum lavat A água lava o servo Dat puella muscam servo A menina dá a mosca ao servo Servi musca volat A mosca do servo voa Amat tauri magistram puella A menina ama a professora do touro Taurus currit O touro corre Agora traduza as seguintes frases para o latim: O servo ama a mosca A mosca da professora chama a mosca do servo O servo da menina dá a menina ao touro Exercício retirado da prova da primeira fase da OBL edição Kytã (2011), confira a prova original e o gabarito no site http://www.obling.org/ REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 48 EXERCÍCIO 2: PARECE VERBO por Robson Carapeto-Conceição e Bruno L'Astorina As classes gramaticais não são estáticas. Inclusive, as palavras costumam mudar de função ao longo do tempo e conforme o uso. Muitas vezes, palavras que normalmente expressam um significado pleno são destituídas desse sentido primário e utilizadas como meros acessórios sintáticos. Esse processo de mudança de classe e função das palavras é chamado de gramaticalização. Os excertos abaixo são provenientes de reconhecidos bancos de textos da fala cotidiana. Numere as ocorrências do verbo parecer, identificando uma variação gradual entre a frase em que ele é “mais verbo” (5) e uma outra em que poderíamos classificá-lo claramente como uma outra classe gramatical – portanto, “menos verbo” (1). [ ] Esse ano não teve [festa], caiu no domingo, então eles preferiram transferir parece para o dia das crianças, porque, em geral, os ... a religião dele, aos domingos, não ... não ... é dia completamente de ... que não tem comércio, não é? [ ] Fica uma delícia est/... Fica uma delícia... que Não fica aquele -- fica cajuzinho cre/ [ ] Há um negócio que se chama haras... agora o haras me parece que não é no [ ] O pedágio passou para parece que setenta cruzeiro a partir de dia prime- depois de [ ] São certas ... liberdades ... que hoje existem ... que há anos atrás poderiam parecer caramelo, o amendoim fica parecendo um caramelo. hipódromo... é o local onde o cavalo é é é é... é cuidado... é tratado... amanhã. excessivas mas que na realidade NÃO SÃO. O processo de gramaticalização é extremamente ativo nas línguas. Durante todo o tempo, sem percebermos, usamos palavras gramaticalizadas a partir de outras formas. No parágrafo abaixo, existem 25 palavras que ainda ocorrem em nossa língua no seu sentido original (como verbo, substantivo, etc.), mas que também estão estabelecidas em papéis novos, gramaticalizados. Sublinhe-as. A notícia era surpreendente, visto que Juca sempre fora um empregado exemplar. Laura soube via amigos, parece que enquanto voltava do trabalho. Joaquina, contudo, não se abalou. Papai sempre foi assim, trabalhou duro a vida toda. Ficou desanimado uma dada REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 49 época, é verdade, mas isso não explica. Que tal essa blusa laranja? Muito cheguei, né? E essa? Essa vai ficar ótima nela. Posso trazer de volta, caso não sirva? Talvez leve um tempo pra se acostumar, sabe? Fica indo sempre nos mesmos lugares, mantendo os mesmos hábitos, aí depois fica mal mesmo. Vinte e sete e setenta e cinco. A pessoa precisa mudar, dar uma colher de chá pras oportunidades. Crédito ou débito? Então a gente leva ela pra sair, se pá ela até arruma um namorado novo. Não precisa da minha notinha não, tá? Obrigado. Exercício retirado da prova da primeira fase da OBL edição Vina (2013), confira a prova original e o gabarito no site http://www.obling.org/ REVISTA DA OLIMPÍADA BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA NÚMERO 1 - SETEMBRO/15 EXERCÍCIO 3: SEMANTOGRAFIA 50 por Alexander Piperski A semantografia é um sistema universal de símbolos desenvolvido por Charles K. Bliss (1897-1985), um australiano de origem austríaca, que a imaginou compreensível por todas as pessoas, independente de sua língua materna. Abaixo são dadas palavras escritas em semantografia e suas traduções para o português em ordem arbitrária: cintura, ativo, doente, lábios, atividade, soprar, ocidental, alegre, chorar, saliva, respirar Determine as correspondências corretas. Indique o que significa cada um dos símbolos a seguir, sabendo que dois deles possuem o mesmo significado. Escreva em semantografia: ar, corpo (torso), levantar-se, leste, triste. Exercício retirado e traduzido da prova IOL de 2010, confira a prova original e o gabarito no site http://www.ioling.org/