É com que p uma e do Tri Estado reforç nos nú quant qualid Tivem

Propaganda
Pertence e ex-Ministro do
STF, por intermédio de
voto com acórdão, fala
sobre a inviolabilidade
de parlamentar, com
introdução produzida pelo
Procurador aposentado
Humberto Ribeiro Soares.
Nesta edição,
publicamos, além dos
votos selecionados dos
Conselheiros, os judiciosos
pareceres de Marianna
Montebello Willeman e
Aline Pires Carvalho Assuf,
que retratam as conclusões
do Ministério Público junto
ao TCE alicerçando os
votos proferidos.
Enfim, tivemos a honra
e o privilégio de ver
estampados em nossa
Revista artigos inéditos,
fato que nos deixa muito
gratificados e, porque não
dizer, prestigiados pelos
insignes mestres nacionais
e internacionais.
A missão de informar com
qualidade é prioridade
máxima.
O nosso compromisso
é levar até o leitor uma
doutrina de qualidade,
iluminando o saber com o
foco sempre voltado para o
enriquecimento cultural.
É com enorme satisfação
que publicamos mais
uma edição da Revista
do Tribunal de Contas do
Estado do Rio de Janeiro
reforçando o que frisamos
nos números anteriores
quanto ao padrão de
qualidade.
Tivemos o cuidado de
levar até você, que nos
acompanha pari passu,
número a número, artigos
de colaboradores de
alto nível que vêm nos
brindar com estudos
extremamente didáticos e
de alto teor técnico.
Abrimos a temática com o
professor Jorge Miranda,
catedrático da Faculdade
de Lisboa, discorrendo
sobre os novos paradigmas
do Estado social.
Em seguida, José Cretella
Júnior e José Cretella Neto,
pai e filho, ex-professor e
professor da USP, observam
sobre a nova modalidade
contratual da administração
pública no contrato de
parceria público-privada.
Na sequência, o mestre
Fábio Konder Comparato,
professor da USP, enfoca um
interregno agitado entre
dois autoritarismos.
Fechando, com maestria ,o
ex- Procurador Sepúlveda
3
TRIBUNAL DE CONTAS DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO
1°SEMESTRE / 2012
1
Conselho Deliberativo
EXPEDIENTE
Coordenadora-Geral de Comunicação Social,
Imprensa e Editoração
Fernanda Pedrosa
Jornalistas responsáveis: Fernanda Pedrosa/ Bruno Matos/ Editor executivo e revisor: Fernando
de Lima / Projeto gráfico e arte: Inês Blanchart /
Diagramação: Margareth Peçanha e Daniel Tiriba
/ Fotografia: Jorge Campos / Pesquisa de glossário: Luiz Henrique Almeida Pereira
Impressão
J.DI GIORGIO EDITORES - ARTES GRÁFICAS
Rua Vaz de Toledo 536, Engenho Novo - Rio
de Janeiro - RJ
CEP 20780-150 / Tel.: 2501-5042
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Presidente
Jonas Lopes de Carvalho Junior
Vice-Presidente
Aluisio Gama de Souza
Conselheiros
José Gomes Graciosa
Marco Antonio Barbosa de Alencar
José Maurício de Lima Nolasco
Julio Lambertson Rabello
Aloysio Neves Guedes
Tiragem — 500 exemplares
Distribuição gratuita
Os textos assinados nesta publicação são de
exclusiva responsabilidade dos seus autores
Endereço para correspondência
Tribunal de Contas do
Estado do Rio de Janeiro
Coordenadoria-Geral de Comunicação Social,
Imprensa e Editoração
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Tel.: (21) 3231-4135
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Ficha catalográfica
Rio de Janeiro (Estado). Tribunal de Contas
Revista do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro – v. 2, n. 4 (jul./dez. 2012) Rio de
Janeiro: O Tribunal
Semestral
ISSN: 0103-5517
SUMÁRIO
Editorial
Jonas Lopes de Carvalho Junior
4
Doutrina
Os novos paradigmas do Estado social
Jorge Miranda
Contrato de Parceria Público-Privada
Observações sobre esta nova modalidade contratual da Administração Pública
José Cretella Júnior e José Cretella Neto
8
26
A Constituição Brasileira
Um interregno agitado entre dois autoritarismos
Fábio Konder Comparato
40
Recurso Extraordinário
Sepúlveda Pertence
64
Votos
Aposentadoria e Fixação de Proventos
Aluisio Gama de Souza
84
Ato de Inexigibilidade de licitação
José Gomes Graciosa
94
Ato de Inexigibilidade de licitação
Marco Antonio Barbosa de Alencar
104
Representação
José Maurício de Lima Nolasco
114
Aposentadoria e Fixação de Proventos
Julio Lambertson Rabello
124
Convênio
Aloysio Neves Guedes
144
Pareceres
Termo Aditivo - Barcas S.A. - Transportes Marítimos
Aline Pires Carvalho Assuf
155
Inspeção Ordinária
Marianna Montebello Willeman
173
Quando lançamos o primeiro número da REVISTA DO TRIBUNAL DE
CONTAS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, prometemos ao leitor uma
publicação que pudesse trazer uma doutrina de qualidade, e ficamos
muito felizes ao constatar que, ao produzir este quarto número, nosso
padrão tem sido mantido.
É motivo de orgulho poder receber contribuições de renomadas
personalidades do mundo jurídico e publicar sua exegese em nossas páginas.
Temáticas das mais diversas são enfocadas por mestres do Direito,
abordando importantes reflexões.
4
EDITORIAL
Professores como Jorge Miranda, catedrático da Faculdade de Lisboa e
da Universidade Católica Portuguesa; José Cretella Júnior e José Cretella
Neto, o primeiro, professor aposentado de Direito Administrativo da USP
e o segundo, mestre, doutor e livre-docente em Direito Internacional pela
Universidade de São Paulo; Fábio Konder Comparato, doutor honoris causa
da Universidade de Coimbra, e Sepúlveda Pertence, ex-presidente do
Supremo Tribunal Federal, nos dão o tom desta edição.
Os votos de meus pares, escolhidos pelos próprios, vêm contribuir, e muito,
com os jurisdicionados para futuras decisões, pois são questões que se
apresentam no decorrer de suas gestões.
Com muita honra e satisfação estamos abrindo um novo e importante
espaço, neste número, para publicação de pareceres dos nossos
Procuradores, representantes do Ministério Público junto ao Tribunal. Esses
pareceres servem de base para que os Conselheiros desta Casa tenham
uma visão ampla do ponto de vista jurídico e, consequentemente, possam
produzir seus votos.
Agradecemos profundamente a essas personalidades que escrevem, dão
vida às nossas páginas e fazem com que o nosso leitor cada vez mais se
orgulhe de possuir uma Revista do TCE-RJ.
Jonas Lopes de Carvalho Junior
Presidente do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro
5
DOUTRINA
Os novos
paradigmas do
Estado social
Jorge Miranda*
JORGE MIRANDA*
Professor catedrático
da Faculdade de Lisboa
e da Universidade
Católica Portuguesa.
I
1. O Estado constitucional, representativo ou de Direito, surgiu nos séculos
XVIII e XIX, como Estado liberal, assente na ideia de liberdade e, em nome dela,
empenhado em conter o poder político tanto internamente, pela sua divisão,
quanto, externamente, pela redução ao mínimo das suas funções perante a
sociedade. “Il faut que le pouvoir arrête le pouvoir”, ensinava MONTESQUIEU.
Quando instaurado, coincidiria com o triunfo da burguesia. Daí o realce da
liberdade contratual, a absolutização da propriedade, a recusa, durante muito
tempo, do direito de associação (dizendo-se que ela diminuiria a liberdade
individual), a restrição do direito de voto aos possuidores de certo montante
de bens ou de rendimentos, únicos que, tendo responsabilidades sociais,
deveriam assumir responsabilidades políticas (sufrágio censitário).
Contudo, como assinala GUSTAV RADBRUCH, na sua Filosofia do Direito
(II, 4ª ed. portuguesa, Coimbra, 1961, 137, 138), a liberdade reclamada pela
burguesia, no seu interesse de classe, só pelo facto de ter sido reclamada sob
a veste do direito, veio a aproveitar ao quarto estado e a redundar em prejuízo
dos próprios interesses da burguesia sob a forma do direito de associação.
“É justamente por efeito desta auto regência do jurídico que até as próprias
classes inferiores podem ter interesse na realização do direito estabelecido
pelas classes superiores … Esse direito, apesar de ser de classe, é sempre direito
e, sendo direito, jamais ousará apregoar francamente o interesse de classe
dominante. Encontrá-lo-á sob a roupagem duma forma jurídica, redundando,
qualquer que seja o seu conteúdo, em benefício de todos os oprimidos”.
Seria, assim, menos em resultado das críticas doutrinais ao liberalismo, nas
suas vertentes filosófica e económica – críticas de vários quadrantes desde
as socialistas, de diferentes matrizes, à da Doutrina Social da Igreja – do que,
por efeito da progressiva organização dos trabalhadores em sindicatos e em
partidos, que, no exercício da liberdade, seriam reivindicados direitos sociais
ou direitos económicos, sociais e culturais – direitos económicos para garantia
da dignidade do trabalho, direitos sociais para segurança na necessidade
e direitos culturais como exigência do acesso à educação e à cultura e, em
último termo, de transformação da condição operária.
2. Estes direitos apenas lograriam ser consagrados constitucionalmente
aquando das convulsões decorrentes ou subsequentes à primeira guerra
mundial, em que foram mobilizados milhões de soldados e com a qual ocorreria
uma larga mudança de mentalidades. De qualquer forma, a industrialização,
10
a urbanização e a erradicação do analfabetismo torná-los-iam inevitáveis.
E, como se sabe, os primeiros textos constitucionais que os consagrariam
seriam a Constituição mexicana de 1917, a Declaração de Direitos do Povo
Trabalhador e Explorado, da Rússia, de 1918, e a Constituição alemã de 1919 (a
Constituição de Weimar).
Vem a ser a partir desta altura que começa a falar-se em Estado social como
Estado contraposto ao liberalismo económico, embora, em “era de ideologias
e de revoluções”, sejam intransponíveis as distâncias entre as concessões
e os tipos históricos que conseguem impor-se. São, de todo em todo,
inconfundíveis e irredutíveis o Estado soviético marxista, o Estado corporativo
fascista ou fascizante e o Estado designado por Estado social de Direito.
3. O ponto básico está em que o Estado social de Direito, se incorpora
os direitos sociais, não apaga, nem subverte as liberdades, mormente as
liberdades públicas, e, em geral, todos os direitos e garantias individuais; em
que, se afasta o liberalismo económico, continua fiel ao liberalismo político;
e em que, se exige para o Estado um papel insubstituível na economia, não
exclui a iniciativa privada e o mercado.
Vindo na continuidade do Estado liberal (ou como sua segunda fase) – mais
por transição constitucional do que por via revolucionária –, o Estado social
de Direito retira do princípio da soberania nacional, que aquele já proclamara,
o corolário lógico do sufrágio universal; e, por seu turno, o sufrágio universal
viria a ser um meio privilegiado de conquista de mais e mais direitos sociais.
Ao governo representativo burguês vai suceder a democracia representativa.
Ao mesmo tempo e não por acaso, procura se aperfeiçoar e consolidar a
tutela de uns e outros direitos, reforçando o controlo de constitucionalidade
e da legalidade pelos tribunais (tribunais constitucionais e administrativos ou
órgãos homólogos) e por outras formas.
Em suma: liberdade e direitos sociais, Estado prestador de serviços e interventor,
sob feições e em graus diversos, nos mecanismos económicos, mercado
condicionado e regulado (ou economia social de mercado), separação de
poderes (mesmo se diferente, em vários pontos, do século XIX). Em suma
ainda: Estado democrático de Direito (ou Estado de Direito) é o outro nome
do Estado social de Direito.
4. Para o Estado social de Direito, a liberdade possível – e, portanto, necessária
– do presente não pode ser sacrificada em troca de quaisquer metas, por
11
justas que sejam, a alcançar no futuro. Há que criar condições de liberdade
– de liberdade de facto, e não só jurídica; mas a sua criação e a sua difusão
somente têm sentido em regime de liberdade. Porque a liberdade (tal como
a igualdade) é indivisível, a diminuição da liberdade – civil ou política de
alguns (ainda quando socialmente minoritários), para outros (ainda quando
socialmente maioritários) acederem a novos direitos, redundaria em redução
da liberdade de todos.
O resultado almejado há de ser uma liberdade igual para todos, construída
através da correcção das desigualdades e não através de uma igualdade sem
liberdade; sujeita às balizas materiais e procedimentais da Constituição; e
susceptível, em sistema político pluralista, das modulações que derivem da
vontade popular expressa pelo voto.
Nos direitos de liberdade parte-se da ideia de que as pessoas, só por
o serem, ou por terem certas qualidades ou por estarem em certas
situações ou inseridas em certos grupos ou formações sociais, exigem
respeito e protecção por parte do Estado e dos demais poderes. Nos
direitos sociais, parte-se da verificação da existência de desigualdades
e de situações de necessidade – umas derivadas das condições físicas
e mentais das próprias pessoas, outras derivadas de condicionalismos
exógenos (económicos, sociais, geográficos, etc.) – e da vontade de as
vencer para estabelecer uma relação solidária entre todos os membros da
mesma comunidade política.
A existência das pessoas é afectada tanto por uns como por outros direitos.
Mas em planos diversos: com os direitos, liberdades e garantias, é a sua esfera
de autodeterminação e expansão que fica assegurada, com os direitos sociais
é o desenvolvimento de todas as suas potencialidades que se pretende
alcançar; com os primeiros, é a vida imediata que se defende do arbítrio do
poder, com os segundos é a esperança numa vida melhor que se afirma; com
uns, é a liberdade actual que se garante, com os outros é uma liberdade mais
ampla e efectiva que se começa a realizar.
Os direitos, liberdades e garantias são direitos de libertação do poder e,
simultaneamente, direitos à protecção do poder contra outros poderes (como
se vê, quanto mais não seja, nas garantias de intervenção do juiz no domínio
das ameaças à liberdade física por autoridades administrativas). Os direitos
sociais são direitos de libertação da necessidade e, ao mesmo tempo, direitos
de promoção. O conteúdo irredutível daqueles é a limitação jurídica do poder,
o destes é a organização da solidariedade.
12
Liberdade e libertação não se separam, pois; entrecruzam-se e completam-se;
a unidade da pessoa não pode ser truncada por causa de direitos destinados
a servi-la e também a unidade do sistema jurídico impõe a harmonização
constante dos direitos da mesma pessoa e de todas as pessoas.
II
5. A passagem dos direitos sociais das Constituições para a prática foi
ocorrendo, nos últimos cem anos, em ondas sucessivas e, em alguns casos,
com refluxos.
Na Europa a sua época de ouro vai desde 1945 até aos anos 80, com abonos
familiares, segurança social abrangendo todas as vicissitudes das vidas das
pessoas, serviço nacional de saúde geral e gratuito ou tendencialmente
gratuito, garantia de acesso de todos aos graus mais elevados do ensino,
segundo as suas capacidades e independentemente das condições
económicas, políticas de pleno emprego, garantia do mínimo existencial, etc.
Alude-se, com frequência, a um modelo social europeu. Na realidade, ele toma
configurações diversas em virtude de fatores variáveis; melhor será considerar
um modelo nórdico, um modelo britânico, um modelo francês, um modelo da
Europa central, um modelo da Europa meridional.
Fora da Europa, entre os países anglo-saxónicos ou de influência anglo
-saxónica, muito nítido é o contraste entre os Estados Unidos (onde só muito
recentemente se tenta estabelecer um sistema de saúde universal), de uma
parte, e a Austrália e a Nova Zelândia, de outro lado, e de outro lado ainda,
a África do Sul (onde graças ao Tribunal Constitucional, se têm conseguido
alguns avanços sociais). Não menos significativas são as concretizações
muito variáveis nos países da América Latina. Já em quase todos os países
asiáticos e africanos são ainda tímidas as realizações de Estado social.
No tocante a Portugal e ao Brasil remontam às Constituições, respectivamente,
de 1933 e de 1934, as primeiras normas definidoras de direitos sociais,
acompanhadas de instituição de previdência. Mas, em rigor, o Estado social
apenas se irá desenvolver por força e na vigência das novas Constituições
democráticas de 1976 e 1988, tendo vindo a jurisprudência constitucional a
desempenhar um relevante papel (mais no Brasil do que em Portugal).
6. Os direitos sociais ou o princípio da socialidade (na fórmula cunhada por
alguns Autores) manifestam-se também para lá do Estado, na sociedade
13
internacional. Segundo o art. 22º da Declaração Universal dos Direitos do
Homem, toda a pessoa, como membro da sociedade, pode legitimamente
exigir a satisfação dos direitos económicos, sociais e culturais indispensáveis,
graças ao esforço nacional e à cooperação internacional, de harmonia com
a organização e os recursos de cada país. E elencos mais ou menos densos
constam do Pacto Internacional de Económicos, Sociais e Culturais, da
Convenção interamericana de Direitos do Homem, da Carta Social Europeia,
da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia e das convenções
internacionais de trabalho.
O nível de proteção internacional é muito menos apurado do que o
dos direitos de liberdade, o que não quer dizer que não possa existir e
desenvolver-se. Como observa AMARTYA SEN (The Idea of Justice, 2009,
trad. A ideia de Justiça, Coimbra, 2010, pág. 504), se a viabilidade fosse
uma condição necessária para que as pessoas tivessem qualquer tipo de
direitos, então não seriam apenas os direitos económicos e sociais, mas sim
todos os direitos – e mesmo os direitos de liberdade – a terem de ser vistos
como um contrassenso, pois é inviável que se chegue a garantir a vida e a
liberdade de todos contra quaisquer transgressões.
III
7. Hoje, no início do século XXI e de um novo milénio, o panorama político
constitucional é, de novo, de grande instabilidade, incerteza e múltiplas
contradições.
Já não existem, desapareceram ou entraram em queda irreversível quase
todos os regimes totalitários e autoritários e o constitucionalismo de matriz
ocidental, identificado agora com a democracia representativa e pluralista e
com o Estado de Direito dir-se-ia prevalecer. Todavia, não se denotam poucas
as deficiências e indefinições que ostenta (ligadas ao funcionamento dos
sistemas eleitorais e de partidos e às dependências dos mecanismos financeiros
e dos poderes económicos). Nem é pequena a sua falta de autenticidade em
numerosos países.
O capitalismo financeiro transnacional tornou-se ator privilegiado no jogo
político, económico e social. Apesar de estar ligado à crise desencadeada,
em setembro de 2008, pela falência do banco Lehmann Brothers, tem vindo
a adquirir crescente poder e contra os “mercados” pouco êxito têm todas as
politicas públicas. Verificou-se aquilo que, com propriedade, MARIO TURCHETTI
14
(Tyrannie et tyrannicide de l’Antiquité à nos jours, Paris, 2000, págs. 973 e segs.)
designa por “economização do mundo”.
À escala de toda a Humanidade acrescem a degradação da natureza e do meio
ambiente, os movimentos de migração do Sul para o Norte, a multiplicação de
conflitos regionais ou locais com ingerências ditas humanitárias (ditadas, por
vezes, por objetivos estratégicos), os fundamentalismos religiosos, as tensões
étnicas, os obstáculos ao interculturalismo, a erosão de valores éticos familiares
e políticos, a corrupção endémica, enfim surtos de terrorismo maciço.
Estamos muito longe da sociedade solidária (a que apelam o art. 1º da
Constituição portuguesa e o art. 3º da Constituição brasileira). E, mesmo nos
países aparentemente mais estabilizados, as pessoas defrontam-se com aquilo
que se vem denominando sociedade de risco. Através do sistema jurídico, o
Estado havia se tornado o principal garante da confiança em massa de que
necessitava a sociedade moderna. Mas a dimensão, sem precedentes, do risco
e do perigo, desgastou, diz BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS (A crítica da
razão indolente – contra o desperdício da experiência, I, Porto, 2000, págs. 165
e 169), a credibilidade dessa confiança.
Não se chegou, pois, ao “fim da história” – muito longe disso; apenas se
chegou ao fim de certa época ou a um momento de transição, com todas
as virtualidades que, apesar de tudo, pode conter. E até um Autor como
FRANCIS FUKUYAMA (The end of history and the last man, 1992, trad.
portuguesa O fim da história e o último homem, Lisboa, 1992, págs. 324
e 325; e ainda págs. 303, 310 e segs. e 320, 321), que fala numa “história
direcional e universal rumo à democracia liberal”, reconhece que, ainda que
a maioria das carruagens da caravana da história chegue eventualmente
ao seu destino, não sabemos se os seus ocupantes, ao olharem em redor,
não julgarão inadequadas as novas circunstâncias e “resolverão dar início a
uma nova e mais distante viagem”.
8. Muito em especial, tornou-se na Europa um lugar comum declarar a
existência de uma crise ou rutura do Estado social ou mesmo em Estado
pós-social (por exemplo, VASCO PEREIRA DA SILVA, Em busca do acto
administrativo perdido, Lisboa, 1995, págs. 122 e segs., ou JOSÉ CASALTA
NABAIS e SUZANA TAVARES DA SILVA, O Estado pós-moderno e a figura
dos tributos, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, 3965, Novembro
Dezembro de 2010, pág. 88). E, por certo, do Reino Unido a Portugal, da
França à Suécia, em moldes não sem semelhança, ele enfrenta quer
dificuldades quer ataques sem paralelo.
15
Tem que se reconhecer que contribuíram para a situação fatores de ordem
interna:
– As demandas excessivas de grupos sociais, com a criação de uma cultura
de subsídiodependência frente ao Estado e, como escrevia JOSÉ GREGORIO
PECES BARBA em 1995 (Ética, Poder y Derecho – Reflexiones ante el fin del
siglo, pág. 38), gerando uma patologia de direitos ou uma ampliação de
prestações tão egoístas como a provocada pela mentalidade privada da
sociedade organizada segundo a lei da oferta e da procura;
– As duplicações de estruturas organizativas, os desperdícios e as gestões
incompetentes, inadequadas ou corruptas;
– O facilitismo do crédito bancário.
Isto a par:
– Da baixa da natalidade e envelhecimento das populações, tornando
problemática a subsistência, a prazo, dos serviços sociais;
– Da proliferação das tendências corporativas desagregadoras da coesão social.
Assim como ressaltam as causas externas:
– O mercado global, com penetração de produtos vindos de países com mão
de obra barata e desprovida de proteção social, e levando a deslocalização de
empresas para esses países;
– A concorrência desleal entre Estados no domínio do sistema tributário;
– O capitalismo financeiro transnacional, já referido, os off shores ou “paraísos
fiscais” e a especulação bolsista;
– Ao domínio das correntes neoliberais, exigindo a desregulação de setores
básicos da economia e privatizações sem freio;
– Ao desaparecimento ou apagamento dos partidos democratas cristãos;
– A crise de identidade dos partidos social democratas, socialistas e trabalhistas;
– À perda de influência dos sindicatos.
16
9. Os anos de 2010 e 2011 marcam o auge da crise, agravada pelo
endividamento das famílias e pelo endividamento público dos Estados Unidos
e de grande parte dos países europeus, juntamente com a recessão e, noutras
partes do mundo, com o sobreaquecimento da economia.
Resta saber até onde os remédios trazidos pelo Fundo Monetário Internacional
e pelo Banco Central Europeu – cortes orçamentais, aumento dos impostos,
liberalização dos contratos de trabalho, aumento das taxas e tarifas dos
serviços públicos – atingem a economia real e se, por isso – por previsível
diminuição das receitas tributárias – não vão acarretar o arrastamento da crise
por mais e mais tempo conforme vêm alertando PAUL KRUGMAN e outros
importantes economistas.
No entanto, também resta saber se medidas de linha keynesiana ou na esteira
do New Deal de Roosevelt poderiam constituir alternativa satisfatória em anos
bem diferentes da dos anos 30 do século passado.
De todo o modo, vão avultando os efeitos sociais da crise: aumento do
desemprego e da precariedade do trabalho, ausência de expectativas da
juventude, em vez de prestações sociais universais programas de cunho
assistencialista, crescimento da criminalidade. Tal como se vão afetando
os mecanismos de democracia representativa, compelidos a consignar os
ditames dos organismos financeiros internacionais.
10. A despeito de tudo, apenas franjas neoliberais radicais defendem, pura
e simplesmente, o fim do Estado social. Compreende-se porquê: porque
ele se revelou elemento pacificador, integrador e propulsor de crescimento
económico e a sua supressão desencadearia instabilidade e conflitualidade;
porque ele se encontra radicado na consciência jurídica geral onde quer que
se tenha implantado; e porque, assim, em democracia representativa, não se
vislumbra como o eleitorado tal pudesse aceitar.
Aquilo a que se assiste, em vários países europeus, entre os quais Portugal, é a
uma espécie de estado de necessidade económico-financeira (paralelo, dizse, ao estado de sítio) que determina larga redução de prestações sociais ou,
noutros termos, restrição ou suspensão de certas incumbências do Estado,
embora não de direitos sociais em si mesmos (não se pode suspender, por
exemplo, o direito à proteção da saúde ou o direito ao ensino). Mas não
falta quem tema que se acabe por cair na desconstrução ou, pelo menos,
na quebra da sua qualidade (ao passo que no Brasil, felizmente, se assiste a
uma caminhada segura na construção do Estado social).
17
11. Em contrapartida, uma postura de imobilismo ou de cristalização não
tanto do adquirido quanto da forma como está adquirido mostrar-se-ia muito
negativa e contraproducente. Em face das deficiências internas apontadas
justificam-se medidas corretivas e adaptações, desde a desburocratização
à coordenação de serviços sociais com as autoridades independentes
reguladoras das atividades económicas à luz de um princípio de eficiência; e
desde a racionalização dos tipos de prestações ao aproveitamento concertado
dos meios públicos e dos meios e potencialidades de grupos existentes na
sociedade civil (como as instituições particulares de solidariedade social do art.
63º, nº 5 da Constituição portuguesa), pois o Estado, se deve ter o primado,
não deve ter o exclusivo da efetivação dos direitos sociais.
Não apenas isto. A reforma e a revitalização do Estado social passam pela
democracia participativa, requisito da democracia inclusiva (democracia
participativa que não é o mesmo que a democracia semidireta através
do referendo). Passam pela participação dos cidadãos e dos grupos de
cidadãos na definição das políticas públicas setoriais e na gestão e no
controlo dos serviços que diretamente os afetam. Eis o que a Constituição
portuguesa prevê na seara dos direitos dos trabalhadores [arts. 54º, nº 5,
alíneas d) e e) e 56º, nº 2, alíneas b) e p)], dos direitos dos consumidores (art.
60º, nº 3), da segurança social (art. 63º, nº 2), do serviço nacional de saúde
(art. 64º, nº 4), do planeamento urbanístico (art. 65º, nº 6), da proteção das
famílias [art. 67º, nº 2, alínea g)], da política de juventude (art. 70º, nº 3),
dos direitos à educação e à cultura (arts. 73º, nº 3, 77º e 78º, nº 2). Eis o que
a Constituição brasileira prescreve acerca dos direitos dos trabalhadores
(art. 10º), da seguridade social (art. 194º, § único), da saúde (art. 198º-III),
da assistência social (art. 204º II). Tudo reside então em querer conferir
efetividade às normas constitucionais.
12. A este propósito, GOMES CANOTILHO [A governança do terceiro capitalismo
e a Constituição social (Considerações preambulares), in Entre Discursos e
Cultura Jurídica, obra coletiva, Coimbra, 2006] alvitra uma reinvenção do
Estado social, com cooperação e comunicação entre os atores sociais mais
importantes e os interesses políticos organizados, levando a um Estado
cooperativo (pág. 149), não sem salientar que a garantia dos direitos sociais
pressupõe uma articulação do Direito com a economia progressivamente
neutralizada pela expressão do mercado global (pág. 146).
Por outra parte, JOÃO CARLOS LOUREIRO (Adeus ao Estado social?, Coimbra,
2010, págs. 40 e segs.) sublinha que tempos difíceis não significam o fim do
Estado social; e que uma esperança sustentável – razoável na formulação
18
de DANIEL INNERATY – é tarefa de todos, um “plebiscito de todos os dias”,
exigindo uma “esperança democrática”.
E, mais à frente, diz: “A falência de uma compreensão obesa do Estado social
– o Estado-providência – que se traduziu numa «colonização do mundo da
vida» e em mecanismos de desresponsabilização das pessoas, não deve ser
lida como sinónimo de réquiem pelo Estado social. (…) Este, calejado pela
maturidade do tempo, não escapa ao pós da circunstância: não ao da sua
superação, mas ao do alargamento do campo de adjetivação (…) e, a par da
responsabilidade de prestação, afirma se uma responsabilidade de garantia”
(págs. 108 109).
IV
13. Voltando ao núcleo ineliminável de toda esta problemática – os direitos
sociais.
Sobre eles importa frisar, necessariamente em breve síntese:
1º) Como os direitos de liberdade, os direitos sociais fundam-se na dignidade
da pessoa humana (art. 1º da Declaração Universal, art. 1º da Constituição
portuguesa, art. 1º III da Constituição brasileira).
2º) Os direitos sociais são direitos universais, são direitos de todos os membros
de comunidade política; não são só direitos das classes trabalhadoras (como
terão sido no início e como pretende o pensamento marxista), nem tão pouco
direitos dos pobres ou dos carentes (como seriam numa linha neoliberal
de um Estado mínimo) e, como de certo modo sugere VIEIRA DE ANDRADE
(Algumas reflexões sobre os direitos fundamentais, três décadas depois, in
Anuário Português de Direito Constitucional, 2006, pág. 139).
3º) São direitos universais, ainda que alguns atribuídos em razão de categoria
de pessoas (as crianças, os jovens, as pessoas portadoras de deficiência,
os idosos) ou em razão de situações especiais (as grávidas, os privados de
família normal, os toxicodependentes, os deslocados) – porquanto todos
que pertençam a essas categorias ou se achem nessas situações deles devem
beneficiar.
4º) São direitos universais, sem que isto implique necessária gratuitidade
universal das prestações; longe disso, gratuitidade universal não tem
19
cabimento senão quanto a prestações correspondentes a bens jurídicos
essenciais e universais.
5º) São direitos universais, embora muito dificilmente seja possível efetivar
todos, simultaneamente, com toda a mesma intensidade.
6º) São direitos universais, no presente e possuem outrossim uma dimensão
transgeracional e de futuro (para recorrer ao título do livro de JUAREZ FREITAS
– Sustentabilidade – Direito ao Futuro, Belo Horizonte, 2011) direitos através
dos quais se manifesta a solidariedade entre gerações a que também aludem
tanto a Constituição brasileira (art. 223º) quanto a portuguesa (art. 66º).
7º) Apesar de não constarem dos elencos dos arts. 288º da Constituição
portuguesa e 60º, § 4º da Constituição brasileira, os direitos sociais devem
considerar-se, à luz dos respetivos sistemas, limites materiais de revisão
constitucional, cláusulas pétreas.
14. Os direitos fundamentais sociais são também, como não poderia deixar
de ser, suscetíveis de tutela através dos tribunais, conquanto em moldes bem
mais circunscritos do que os direitos de liberdade.
Como escreve SÉRVULO CORREIA, “o âmbito da pronúncia jurisdicional
encontra-se limitado pela reserva de conformação política do legislador, não
cumprindo ao julgador extrair directamente dos enunciados constitucionais
conteúdos justiciáveis; o juiz possui no entanto competência excepcional
para, julgando segundo a equidade, corrigir os efeitos mais nocivos da inacção
do legislador, ou seja, as situações de necessidade exceciona ou de injustiça
extrema possibilitadas pela inacção legislativa, condenando as entidades
públicas com atribuições na matéria em prestações de conteúdo mínimo
susceptíveis – à luz das circunstâncias do caso concreto – de reparar ofensas
intoleráveis à dignidade da pessoa humana”1.
1 - Interrelação entre os
regimes constitucionais
dos direitos, liberdades
e garantias e dos
direitos económicos,
sociais e culturais e o
sistema constitucional
de automomia do
legislador e de separação
e interdependência de
poderes, in Estudos em
homenagem ao Prof.
Doutor Armando Marques
Guedes, obra coletiva
(coord. de Jorge Miranda),
Coimbra, 2004, pág. 970.
Mas importa lembrar JORGE REIS NOVAIS (Direitos Sociais, Coimbra, 2010,
pág. 27), alertando que “o desvio forçado de verbas não negligenciáveis para
atender às imposições judiciais concretas pode pôr em causa e forçar mesmo
a inflexões significativas ou retrocesso na política de saúde globalmente
programada em direção a uma melhoria das condições de setores mais
desfavorecidos. Quem, na prática, beneficia das estratégias maximalistas de
realização dos direitos sociais no plano jurídico não é a grande massa dos
excluídos, a que não vem ao sistema, não recorre aos tribunais, porque não
tem condições para tanto”.
20
15. A transparência dos procedimentos legislativos, a eficácia da Administração,
o célere funcionamento das instituições judiciárias, a real responsabilidade do
Estado e dos seus agentes – política, financeira, civil e criminal e a contenção
das pulsões corporativistas mostram-se indispensáveis para a cabal efetivação
dos direitos sociais. Todavia, são os condicionalismos económicos e
económico-financeiros os que mais avultam e o Pacto Internacional de Direitos
Económicos, Sociais e Culturais liga a progressiva efetivação dos direitos aos
recursos disponíveis – ao “máximo de recursos disponíveis” (art. 2.º, n.º 1).
Fala-se aqui no ajustamento do socialmente desejável ao economicamente
possível (JEAN RIVERO, Les droits de l’homme, catégorie juridique?, in
Perspectivas del Derecho Publico en la segunda mitad del siglo XX, obra
coletiva, III, pág. 32), na subordinação da efetividade concreta a uma reserva
do possível (GOMES CANOTILHO, Constituição dirigente e vinculação do
legislador, Coimbra, 1982, pág. 365; INGO WOLFGANG SARLET, A eficácia dos
direitos fundamentais, 10ª ed., Porto Alegre, 2009, págs. 284 e segs.), na reserva
financeira do possível ou do financiamento possível (PAULO GILBERTO COGO
LEIVAS, Teoria dos direitos fundamentais sociais, Porto Alegre, 2006, págs. 99
e segs.; JORGE REIS NOVAIS, Direitos sociais, Coimbra, 2010, págs. 87 e segs.),
num princípio de sustentabilidade (JOÃO CARLOS LOUREIRO, Adeus …, cit.,
págs. 128 e segs. e 261 e segs.) ou no caráter de direitos quantitativos, como
direitos de medida (CRISTINA QUEIROZ, Direitos Fundamentais, Coimbra,
2010, pág. 305).
A apreciação dos fatores económicos para uma tomada de decisão quanto às
possibilidades e aos meios de efetivação dos direitos cabe aos órgãos políticos
e legislativos – não aos da Administração nem aos tribunais. Não corresponde
a uma simples operação hermenêutica, mas a um confronto complexo das
normas com a realidade circundante.
De resto, sendo abundantes as normas e escassos os recursos, dessa
apreciação poderá resultar a conveniência de estabelecer diferentes
tempos, graus e modos de efetivação dos direitos. Se nem todos os direitos
económicos, sociais e culturais puderem ser tornados plenamente operativos
em certo momento ou para todas as pessoas, então haverá que determinar
com que prioridade e em que medida o deverão ser. O contrário redundaria
na inutilização dos comandos constitucionais: querer fazer tudo ao mesmo
tempo e nada conseguir fazer.
Seja como for, o conteúdo essencial de todos os direitos deverá sempre ser
assegurado, e só o que estiver para além dele poderá deixar ou não de o ser
21
em função do juízo que o legislador vier a emitir sobre a sua maior ou menor
relevância dentro do sistema constitucional e sobre as suas condições de
efetivação.
16. Não posso deixar de aludir ao tema da proibição do retrocesso social.
Sobre ele, a doutrina portuguesa – como a de outros países – acha-se
fortemente dividida entre os Autores que a afirmam (GOMES CANOTILHO,
VITAL MOREIRA, DAVID DUARTE, CRISTINA QUEIROZ), os que negam
(MANUEL AFONSO VAZ, JORGE REIS NOVAIS, JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO)
e os que, apesar de a negar, acolhem um qualquer princípio de salvaguarda
de um grau maior ou menor de concretização legislativa das normas de
direitos sociais (JOÃO CAUPERS, VASCO PEREIRA DA SILVA, RUI MEDEIROS,
VIEIRA DE ANDRADE, TIAGO DE FREITAS, PAULO OTERO). E no Brasil parece
próximo deste último entendimento INGO SARLET. Sobre tudo isto, pode
ver-se o vol. IV do meu Manual de Direito Constitucional, 4ª ed., Coimbra,
2008, págs. 435 e segs.
Quanto à jurisprudência do Tribunal Constitucional português, nela regista-se
uma evolução assinalável.
O acórdão n.º 39/84 (sobre o serviço nacional de saúde) orientou-se
perentoriamente na linha do princípio da proibição do retrocesso social: “Em
grande medida, os direitos sociais traduzem-se para o Estado em obrigação de
fazer, sobretudo de criar certas instituições públicas. Enquanto elas não forem
criadas, a Constituição só pode fundamentar exigências para que se criem;
mas após terem sido criadas, a Constituição passa a proteger a sua existência,
como se já existissem à data da Constituição. As tarefas constitucionais
impostas ao Estado em sede de direitos fundamentais no sentido de criar
certas instituições ou serviços não o obrigam apenas a criá-los, obrigam-no
também a não aboli-los uma vez criados.
“Quer isto dizer que a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou
parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito
social, o respeito constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de consistir
apenas) num obrigação positiva, para se transformar (ou passar também a
ser) numa obrigação negativa. O Estado, que estava obrigado a atuar para dar
satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra
a realização dada ao direito social”.
Contudo, em sucessivos arestos, o Tribunal foi suavizando o seu enfoque do
22
problema e adotando formulações mais moderadas. O acórdão n.º 509/2002
(sobre rendimento social de inserção) é o que melhor traduz essa inflexão,
por aduzir que: 1.º) onde a Constituição contenha uma ordem de legislar,
suficientemente precisa e concreta, de tal sorte que seja possível determinar
com segurança as medidas jurídicas necessárias para lhe conferir exequibilidade,
a margem de liberdade do legislador para retroceder no grau de proteção
atingido é necessariamente mínimo, já que só o poderia fazer na estrita
medida em que a alteração legislativa pretendida não viesse a consequenciar
uma inconstitucionalidade por omissão; 2.º) noutras circunstâncias porém,
a proibição de retrocesso social apenas pode funcionar em casos-limite,
uma vez que, desde logo, o princípio da alternância democrática, inculca a
revisibilidade das opções político-legislativas, ainda quando estas assumam o
caráter de opções legislativas fundamentais.
17. Por mim, penso que, quando as normas legais vêm concretizar normas
constitucionais não exequíveis por si mesmas, não fica apenas cumprido o
dever de legislar como o legislador fica adstrito a não as suprimir, abrindo
ou reabrindo uma omissão. Assim o exige a própria força normativa da
Constituição.
Não se visa com isso revestir as normas legais concretizadoras da força
jurídica própria das normas constitucionais ou elevar os direitos derivados
a prestações a garantias constitucionais. Essas normas continuam
modificáveis como quaisquer outras normas ordinárias, sujeitas a
controlo da constitucionalidade e passíveis de caducidade em caso de
revisão constitucional (sem prejuízo de limites materiais). Nem sequer
vêm a prevalecer sobre outras normas ordinárias; como tais, nenhuma
consistência específica adquirem.
O que se pretende é, na vigência de certas normas constitucionais, impedir
a ab-rogação pura e simples das normas legais que com elas formam uma
unidade de sistema. O legislador, de acordo com os critérios provenientes do
eleitorado, pode adotar outros modos e conteúdos de concretização. Nada
obriga, por exemplo, a que o serviço nacional de saúde (art. 64.º) ou o sistema
de ensino (arts. 74.º, 75.º e 76.º) tenham de obedecer sempre aos mesmos
paradigmas: podem ser, ora mais centralizados ora mais descentralizados, ora
mais socializantes ora mais liberalizantes. O que não pode é o legislador deixar
de prever e organizar tal serviço e tal sistema.
Porém, porque os direitos sociais estão sujeitos à reserva do possível, as
respetivas normas concretizadoras têm de ser entendidas nestes termos:
23
1.º) Quando se verifiquem condições económicas favoráveis, essas normas
devem ser interpretadas e aplicadas de modo a de delas se extrair o
máximo de satisfação das necessidades sociais e a realização de todas as
prestações;
2.º) Ao invés, não se deparando tais condições – em especial por causa
de recessão ou de crise financeira – as prestações têm de ser adequadas
ao nível de sustentabilidade existente, com eventual redução dos seus
beneficiários ou dos seus montantes;
3.º) Situações de escassez de recursos ou de exceção constitucional podem
provocar a suspensão destas ou daquelas normas – não a das normas
constitucionais atributivas dos direitos a que se reportam (insisto), mas
elas hão-de retomar a sua efetividade, a curto ou a médio prazo, logo que
restabelecida a normalidade da vida coletiva.
Há uma relação necessária constante entre a realidade constitucional
e o estádio de efetividade das normas, entre a capacidade do Estado
e da sociedade e os direitos derivados a prestações, entre os bens
económicos disponíveis e os bens jurídicos deles inseparáveis. Por isso,
deve concluir-se: 1º) Somente é obrigatório o que seja possível; 2º) mas
tudo quanto seja possível torna-se obrigatório.
18. Uma última palavra acerca do problema de saber como devem ser
encaradas e suportadas as despesas inerentes à satisfação das necessidades
coletivas. Aqui deparam-se três orientações bastante demarcadas:
a) A do Estado mínimo, que tende a atribuir todos ou quase todos esses
encargos aos indivíduos ou a grupos privados;
b) A do Estado marxista, que tende, pelo contrário, a confiá-los ao Estado;
c) E a do Estado social, que aceita assumir os custos de satisfação de
necessidades básicas, embora não os das demais necessidades a não ser
na medida do indispensável para assegurar aos que não possam pagar as
prestações os mesmos direitos a que têm acesso aqueles que as podem
pagar.
Se, obviamente, as Constituições portuguesa e brasileira rejeitam o Estado
mínimo (em face da soma de tarefas e incumbências que atribuem às
entidades públicas, à luz do desígnio de “uma sociedade mais solidária”),
24
muito menos se compadecem com o Estado marxista. De resto, no caso
português, duas normas relevantíssimas tomam em conta os meios
económicos ou as condições económicas dos cidadãos: as normas sobre o
acesso à Justiça (art. 20º, nº 1) e sobre o serviço nacional de saúde [art. 64º,
nº 2, alínea c), após 1989].
19. Sem dúvida, recai sobre o Estado assegurar, por meio de impostos,
a assistência materno-infantil, os cuidados de saúde (ou, pelo menos os
cuidados primários), o ensino básico e o secundário obrigatórios, o apoio
no desemprego, a integração dos deficientes e dos marginalizados, o
auxílio material às vítimas de crimes e de calamidades naturais, etc. A
essencialidade dos bens ou a universalidade justificam-no.
Por outro lado, quanto às restantes necessidades – ou porque não afetam
identicamente todos os cidadãos, ou porque não revestem para todos o
mesmo significado ou porque dependem de circunstâncias nem sempre
previsíveis – pode justificar-se uma partilha dos custos da sua satisfação
(até porque se verifica uma partilha de benefícios). O Estado deve pagar
uma parte, os próprios outra parte e até onde possam pagar.
Os que podem pagar, devem pagar. E é preferível que paguem em parte
(até certo limite do custo real) o serviço ou o bem, diretamente, por meio
de taxas, e não indiretamente, mediante impostos, por três motivos: 1)
porque assim tomam consciência do seu significado económico e social
e das consequências de aproveitarem ou não os benefícios ou alcançarem
ou não os resultados advenientes; 2) porque, em muitos casos, podem
escolher entre serviços ou bens em alternativa; 3) porque mais de perto
podem controlar a utilização do seu dinheiro e evitar ou atenuar o peso do
aparelho burocrático.
Diversamente, os que não podem pagar, não devem pagar (ou devem
receber prestações pecuniárias – bolsas, pensões, subsídio de desemprego
para poderem pagar).
Mas a fronteira entre necessidades básicas e outras necessidades
não é nunca rígida, nem definitiva. Depende dos estágios de
desenvolvimento económico, social e cultural e da situação do país. E
é também o sufrágio universal que, em cada momento, a traça, através
das políticas públicas prosseguidas pelos órgãos por ele legitimados.
Tudo em qualquer caso, insista-se, no respeito da dignidade de cada
uma e de todas as pessoas humanas.
25
Contrato de Parceria
Público-Privada
Observações sobre esta nova modalidade
contratual da Administração Pública
José Cretella Júnior
e José Cretella Neto
JOSÉ CRETELLA JÚNIOR
é Professor Titular
(aposentado) de Direito
Administrativo da Faculdade de Direito da USP;
Advogado em São Paulo
JOSÉ CRETELLA NETO
é Mestre, Doutor e Livre-Docente em Direito
Internacional pela Faculdade de Direito da USP;
Advogado em São Paulo
Introdução - Contratação pela Administração
Pública
A Administração contrata tradicionalmente com entidades privadas mediante procedimento licitatório.
A legislação não define licitação1 , mas a doutrina tem-se ocupado em conceituar esse típico instituto do Direito Administrativo. Licitação (que deriva
do latim licitatione(m) = ato ou efeito de venda de lances num leilão ou
hasta pública, acusativo de licitatio, onis2) pode ser definida como “o procedimento administrativo por via do qual a Administração Pública busca
conseguir a proposta mais vantajosa, seja para a execução de obras e serviços, seja para a compra de materiais e gêneros, seja, até, para alienação de
bens de seu patrimônio”3.
É um procedimento integrado por atos e fatos da Administração e atos e
fatos do licitante, todos contribuindo para a formação da vontade contratual4, ou seja, o objetivo da Administração é contratar com quem possa
fornecer bens e/ou prestar serviços de interesse público.
1- Vide Lei nº 8.666, de
21.06.1993.
2 - Cretella Júnior, José. Das
Licitações Públicas, 17ª ed., Rio,
Ed. Forense, 2001, p. 49.
3 - Schiesari, Nelson. Direito
Administrativo, Hemeron
Editora, 1975, p. 149; também
estudaram e conceituaram o
instituto e suas modalidades:
Meirelles, Hely Lopes. Direito
Administrativo Brasileiro, 38ª
ed., Malheiros Ed., 2012, p. 287;
Medauar, Odete. Direito Administrativo Moderno, 16ª ed.,
Ed. Revista dos Tribunais, 2012,
p. 195; e Cretella Júnior, José.
Curso de Direito Administrativo, 18ª ed., Ed. Forense, 2006, p.
300; e Araújo, Edmir Netto de.
Curso de Direito Administrativo, 5ª ed., Ed. Saraiva, 2010, pp.
529-530.
4- Di Pietro, Maria Sylvia
Zanella. Direito Administrativo,
24ª ed., Ed. Atlas, 2011, pp.
356-357.
5 - Araújo, Edmir Netto de.
Curso de Direito Administrativo, Op. cit., p. 661.
6 - Cretella Neto, José. Comentários à Lei das Parcerias
Público-Privadas-PPPs, 2ª ed.,
Rio de Janeiro, GZ Editora,
2011, p. 1.
Esses contratos administrativos, como bem assinala Edmir Netto de Araújo,
“são dotados de regime jurídico próprio e especial, porque especial é a relação entre os interesses em jogo: de um lado, o interesse do particular em
prestar o serviço ou desempenhar a atividade, auferindo rendimento, por
isso; de outro, o interesse do Estado no cumprimento de uma finalidade
pública, que se sobreleva ao interesse privado, gerando uma posição de
supremacia estatal que, em nosso entendimento, não desvirtua, em absoluto, a figura do contrato, mas antes, a tipifica como contrato de direito
público”5.
A partir de 2004, o ordenamento jurídico brasileiro passou a autorizar a
Administração Pública a celebrar contratos em mais uma modalidade, o
chamado contrato de Parceria Público-Privada (PPP).
Definimos contrato de parceria público-privada como “o acordo firmado
entre a Administração Pública e entes privados, que estabelece vínculo
jurídico para implantação, expansão, melhoria ou gestão, no todo ou em
parte, e sob o controle e fiscalização do Poder Público, de serviços, empreendimentos e atividades de interesse público em que haja investimento
pelo parceiro privado, que responde pelo respectivo financiamento e pela
execução do objetivo firmado”6.
28
Em boa hora, veio o legislador brasileiro acrescentar mais essa ferramenta jurídica que permita à Administração Pública a celebração de contratos, nacionais e internacionais, que permitam impulsionar o crescimento
econômico do País, condição absolutamente necessária para melhorar
as condições sociais, de saúde, de emprego e de educação de seu povo,
embora, evidentemente, não suficiente para colimar todos esses objetivos,
que dependem, ainda, de políticas públicas mais abrangentes e eficazes
em outras áreas, como saúde, educação, segurança pública, etc.
Assim, reconhecendo a problemática e desejando colocar em prática uma
estratégia diferente, um Projeto de Lei (PL nº 2.546/03) foi elaborado pelo
governo e por lideranças empresariais, contemplando uma nova forma de
relacionamento entre o Poder Público e as empresas privadas, regulando
os chamados contratos de Parceria Público-Privada-PPP.
A ideia central envolvendo as PPPs, além do envolvimento conjunto do governo com empresas particulares, é dirigir recursos para setores considerados prioritários, mas onde o retorno econômico não seria suficientemente
elevado para atrair investimentos apenas do setor privado.
Após tramitação de mais de um ano do referido PL, foi este convertido na
Lei nº 11.079, de 30.12.2004, que terminou por adotar definição mais concisa do instituto: “Parceria público-privada é o contrato administrativo de
concessão, na modalidade patrocinada ou administrativa”. (art. 2o, caput)
Tem, portanto, natureza jurídica de contrato administrativo de concessão,
nas modalidades patrocinada ou administrada. A lei estabelece que nenhuma dessas modalidades deve ser confundida com a chamada concessão comum, aquela regida pela Lei nº 8.987, de 13.02.1995, quando não envolver contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado.
O caput do art. 1o e o parágrafo único da Lei das PPPs indicam os sujeitos
de Direito aos quais a norma legal se dirige, ou seja, delimita seu campo de
aplicação ratione personae.
Subjetivamente, portanto, são abrangidas pela Lei nº 11.079/04, as seguintes entidades:
1. os órgãos da Administração Pública direta;
2. os fundos especiais;
3. as autarquias;
29
4. as fundações públicas;
5. as empresas públicas;
6. as sociedades de economia mista; e
7. as demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios
2. Novo marco jurídico na contratação pela Administração Pública - o contrato de PPPs - alguns
pontos relevantes
Instituída pela mencionada Lei nº 11.079/2004, essa modalidade de contratação administrativa é espécie do gênero concessão.
O fundo terá
natureza privada
e os recursos
deverão ser
destinados
exclusivamente
aos projetos
realizados na
modalidade PPP.
Assim, na modalidade concessão patrocinada, o empreendedor recebe como retorno por seu investimento, tarifas pagas pelos usuários (como pedágios, por exemplo), mais uma contraprestação
da União; já na modalidade concessão administrada, o empresário
receberá tão somente a contraprestação da União, pois não cabe a
cobrança de tarifas pelo serviço. Esses recebimentos, por parte do
empreendedor, somente começarão a ocorrer quando o serviço estiver disponível e a qualidade do serviço atingir as metas mínimas estabelecidas no edital de concorrência. As contraprestações poderão
ser vinculadas ao pagamento de financiamentos.
A lei impôs limitações à participação do Poder Público: União, Estados e Municípios somente poderão comprometer o montante máximo de 1% (art. 22) de suas receitas líquidas com o pagamento das
contraprestações. Caso Estados ou Municípios ultrapassem esse percentual, deverão ser imediatamente suspensos os repasses da União.
Instituições financeiras públicas – como o BNDES – somente poderão financiar até 70% do montante de cada empreendimento. Caso haja participação de fundos de pensão, o percentual pode ser elevado para 80%
(art. 27).
Criar-se-á um Fundo Garantidor de Parcerias Público-Privadas (art. 16,
caput), com recursos provenientes do Orçamento e ativos da União (tais
como ações de empresas públicas de fácil negociação). O fundo terá natureza privada e os recursos deverão ser destinados exclusivamente aos
projetos realizados na modalidade PPP. O propósito do fundo é assegurar
30
que as contraprestações estatais sejam pagas, caso o Estado não cumpra as
obrigações de pagamento. Com isso, evita-se o problema dos precatórios
– verbas estatais resultantes de condenações em processos judiciais, cujo
pagamento atrasa em muitos anos – e assegura-se ao investidor privado
o rápido ressarcimento dos valores acordados. Não apenas a União deverá criar um fundo garantidor; Estados e Municípios que desejarem realizar
projetos com base nas PPPs, também deverão criá-los.
Os projetos cobrem variadíssima gama de setores: rodovias, ferrovias, usinas de geração de energia, obras portuárias, projetos de irrigação, hospitais, etc.
Veda-se, no entanto, a celebração de contrato de PPP exclusivamente para
o fornecimento de mão de obra, o fornecimento e a instalação de equipamentos ou a execução de obras públicas (art. 2º, § 4º, III). Para ser aprovado, o contrato de PPP precisa, obrigatoriamente, prever a prestação de
algum tipo de serviço.
A redação do PL nº 2.546/03 foi aprovada pela Câmara, com emendas, em
17.03.2004, sendo remetida ao Senado Federal, onde recebeu nova numeração: PL nº 10/2004.
O referido projeto institui normas gerais para licitação e contratação de
parceria público-privada, no âmbito da administração pública da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, aplicando-se também
aos órgãos da administração direta, aos fundos especiais, às autarquias, às
fundações públicas, às empresas públicas, às sociedades de economia mista e às demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União,
pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios. Converteu-se na
Lei nº 11.079, promulgada em 30.12.2004, após receber veto (Mensagem
Presidencial nº 1.006, de 30.12.2004 ao Presidente do Senado Federal) a
dois dispositivos, o inciso II do art. 11 e o § 3º do art. 28.
As PPPs no Brasil, segundo o formato proposto pelo governo federal, surgem como alternativa à simples privatização, com o governo oferecendo
garantias de pagamento e rentabilidade ao setor privado em contratos públicos, com o objetivo de incentivar e atrair investimentos, especialmente
nos setores de infraestrutura e de produção de bens e serviços à população.
É considerado, por seus defensores, como a única forma para impulsionar
o desenvolvimento do País, diante da escassez de recursos orçamentários
e da pouca lucratividade de determinados setores, pela mobilização de
31
vultosos recursos para suprir demandas nas áreas de segurança pública,
habitação, saneamento básico, infraestrutura viária e elétrica.
Trata-se de modalidade de contratação diferente das praticadas, e que
adapta a legislação brasileira, para permitir que a administração pública
possa compartilhar riscos e financiamentos com o setor privado.
Até a promulgação da Lei nº 11.079/04, para contratar obras públicas, a
legislação pátria permitia à Administração que o fizesse com fundamento
na Lei de Licitação e Contratos7 e as Leis de Concessão e Permissão8.
Justiça seja feita, a César o que é de César: a iniciativa pela busca de novas
fontes de recursos para realizar obras públicas não tem origem em qualquer partido ora governista.
7 - Trata-se da Lei Federal de
nº 8.666, de 21.06.1993, que
regulamenta o art. 37, XXI da
Constituição Federal, tendo
revogado o Decreto-Lei nº
2.300, de 21.11.1986, e sido
parcialmente alterada pelas
Leis nos 8.883, de 08.06.1994,
9.648, de 27.05.1998, e 9.854,
de 27.10.1999. Além dessas,
a Lei nº 10.520/02, acresceu
às modalidades de licitação
previstas na Lei nº 8.666/93 a
modalidade de pregão.
8 - Lei nº 8.987, de 13.02.1995,
e Lei nº 9.074, de 07.07.1995.
A Lei nº 8.666/93 cria os meios
para a escolha das melhores
condições e das propostas
mais vantajosas para a
realização de obras, serviços,
compras, alienações públicas.
As Leis nos 8.987/95 e 9.074/95
estabelecem os meios para a
transferência de patrimônio
público e delegação, mediante
concorrência, da prestação de
serviços públicos pela iniciativa
privada (pessoas jurídicas ou
consórcio de empresas) que
demonstre capacidade para
seu desempenho, por sua
conta e risco e por prazo determinado, em troca de cobrança
de tarifas dos usuários, finais
dos serviços. Uma série de leis
posteriores também disciplina
determinados aspectos da
contratação pública, como a
Lei nº 12.462, de 04.08. 2011,
que estabelece o Regime
Diferenciado de Contratações
Públicas.
Recorde-se o pioneiro projeto do então vereador paulistano e Professor
Titular da Fundação Getúlio Vargas, Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, apresentado à Câmara Municipal de São Paulo em 1994, que recebeu
o número 259/94, e foi aprovado em 09.03.1994. Esse projeto criava os
Certificados de Potencial Adicional de Construção-CEPACs, após ter sido
aplaudido em um congresso internacional de administradores públicos
em Toronto, Canadá.
A implantação dos CEPACs foi, no entanto, judicialmente impedida, na
época, por iniciativa de um então vereador do PT, que entendeu ser o
projeto “desastroso para a cidade”. Os argumentos foram, afinal, repelidos
pela Justiça e, após longa tramitação pelos meandros administrativos e legislativos, a lei dos CEPACs chegou ao Executivo municipal paulistano para
sanção da então prefeita Marta Suplicy, no entanto, a vetou em agosto de
2001. O Secretário Municipal das Finanças da época, João Sayad, chegou a
conceder entrevista ao jornal “Gazeta Mercantil”, na qual condenou o projeto, que, em seu entender, poderia “degradar a cidade”.
O CEPAC ressurgiu com a chamada Operação Urbana Água Espraiada (Lei
nº 13.260/01) e também com o Plano Diretor Estratégico do Município de
São Paulo (Lei nº 13.430/02).
No âmbito federal, o CEPAC foi incluído, em 2001, no Estatuto da Cidade, que
regulamenta artigos da Constituição Federal que dispõem sobre a legislação
urbana. Finalmente, em 2003, a Comissão de Valores Mobiliários-CVM, baixou
a instrução 401/03, regulamentando a negociação e a distribuição de CEPACs.
32
Segundo o ex-deputado federal e vereador Marcos Cintra, Secretário Municipal de Desenvolvimento Econômico e do Trabalho de São Paulo (gestão
2008-2012), idealizador dos CEPACs, estes resolvem dois problemas: “captam recursos não-tributários para financiar gastos públicos e absorvem,
para a coletividade, a renda diferencial gerada por investimentos governamentais, renda esta normalmente absorvida pelos agentes privados”9.
Finalmente, no poder municipal em São Paulo (e também, a partir de 2003
no Poder Executivo federal), o Partido dos Trabalhadores, despertando
para a realidade de não mais poder comportar-se como partido de oposição, sem responsabilidades administrativas, rendeu-se à ideia e começou
a usar esse instrumento em diversas ações municipais, em S. Paulo: o leilão
dos CEPACs realizado em 20.07.2004 negociou, em 15 minutos, 100 mil
títulos, que geraram para os cofres da Prefeitura cerca de R$ 30 milhões
em projetos urbanísticos. Os recursos serão empregados na construção de
duas pontes e 600 casas na Zona Sul de São Paulo.
Os CEPACs são instrumentos tão inovadores quanto as PPPs, recentemente
aprovadas. O PT, agora não mais como oposição, deverá utilizar-se delas
como instrumento de governo para promover inúmeros investimentos necessários para sustentar o desenvolvimento da economia.
As chamadas “parcerias público-privadas” – PPPs, na abreviatura já consagrada – constituem formas de contrato por tempo pré-fixado e longo (no
caso da lei sob comentário, de 5 até 35 anos, segundo o art. 5°
, I) entre o
Estado e o setor privado para a realização, principalmente, de obras e serviços de infraestrutura, de valor não inferior a R$ 20 milhões (art. 2º, § 4º, I)
– investimentos que tradicionalmente propiciam baixo retorno – visando
à diminuição dos riscos das empresas mediante concessão de garantias
extras de pagamento em relação a outras despesas públicas.
Nas PPPs, os interessados nos projetos definidos pelo governo devem
formar uma empresa para participar da licitação pública, a Sociedade de
Propósito Específico-SPE. Vencedores, poderão construir as obras, e serão
remunerados de modo convencionado caso a caso, sendo os pagamentos
a que fazem jus efetuados com prioridade sobre os demais investimentos
públicos, o que é garantido pela denominada cláusula de precedência.
Uma importante restrição à interferência governamental é que o Estado
não poderá controlar a SPE criada para realizar o empreendimento (art. 9º,
§ 4º). Os financiadores do investimento, ademais, poderão reestruturar
33
9 - Cintra, Marcos. Novas Fontes
de Investimentos Públicos,
artigo publicado na edição de
06.09.2004, jornal Folha de S.
Paulo, p. B-2.
financeiramente as operações, a fim de garantir melhores condições de
funcionamento e continuidade na prestação dos serviços.
As PPPs constituem a principal alternativa à falta de recursos públicos para
as obras de infraestrutura, investimentos considerados urgentes para assegurar o crescimento econômico do Brasil. São mecanismos, na verdade,
já testados em outros países, como a Grã-Bretanha, a Espanha, Portugal e
a África do Sul. No Brasil, antes da aprovação da lei federal das PPPs, leis
estaduais semelhantes já haviam sido aprovadas nos Estados de São Paulo,
Minas Gerais e Goiás.
Importante progresso na lei é o estabelecimento da opção de solucionar os
eventuais litígios entre a União e as empresas envolvidas nas PPPs por meio
de arbitragem10 (art. 10, III, b), ou seja, por método privado de resolução de
disputas, sem recorrer ao moroso e incerto Poder Judiciário brasileiro.
O funcionamento do Poder Judiciário brasileiro é motivo de fundada insegurança, por parte dos investidores, especialmente os estrangeiros. Embora a arbitragem ora incentivada não seja obrigatória – como, aliás, é do
feitio desse método alternativo de solução de conflitos – a ênfase nessa
opção deverá obviar mais um dos percalços à atuação de empreendedores
privados no País.
O mecanismo não está isento de críticas: seus adversários vislumbram
nas PPPs a possibilidade de aumentar a dívida pública – a ser paga pelos
governos futuros – e também, conforme as regras de seleção dos parceiros privados, a abertura de caminhos para a corrupção. Além disso, não
aceitam participação majoritária do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social-BNDES nem de fundos de pensão de empresas estatais.
10 - Sobre arbitragem, vide
nossos Curso de Arbitragem,
2ª ed., Campinas, Millennium
Ed., 2009 e Comentários à Lei
de Arbitragem Brasileira, 2ª ed.,
Rio, Ed. Forense, 2007. Método
que goza de grande prestígio
nos países industrializados, a
arbitragem ainda engatinha,
no Brasil. No entanto, se espera
que ganhe renovado alento
nos próximos anos, depois
de vencidos os obstáculos e
atrasos de natureza cultural de
que ainda padecem muitos de
nossos operadores jurídicos.
Os gastos governamentais com as PPPs apresentam a peculiaridade de
não ser contabilizados como dívidas, o que não esconde a realidade, ora
mascarada por meio de artifício contábil, de onerarem os cofres públicos.
De qualquer modo, não poderão ultrapassar 1% (um por cento) das receitas líquidas da União (art. 22).
As decisões do órgão gestor colegiado, integrado por representantes da
Casa Civil e dos Ministros da Fazenda e do Planejamento, não precisam
ser tomadas por unanimidade. Segundo a lei aprovada, esse órgão gestor
deverá ser criado por ato do Poder Executivo.
34
Esse órgão, denominado pelo Decreto nº 5.385, de 04.03.2005, de Comitê
Gestor de Parcerias Público-Privada Federal-CGP, será integrado por um
representante, titular e suplente, dos seguintes órgãos: a) Ministério do
Planejamento, Orçamento e Gestão, que o coordenará; b) Ministério da Fazenda; Casa Civil da Presidência da República (art. 2º).
Essa estrutura e o sistema de votação, na prática, retiram o poder de veto
do Ministério da Fazenda, responsável pelo fechamento das contas do Tesouro, o que representa fator de risco a desequilíbrios orçamentários.
As parcerias público-privadas têm conhecido relativo sucesso em Portugal,
na Alemanha e na Grã-Bretanha.
Neste último, três modalidades de cooperação entre os setores público e
privado foram criadas11:
› a introdução da propriedade, pelo setor privado, de empresas estatais,
usando toda a gama legal possível de estruturas (colocação de ações no
mercado ou entrada de um sócio estratégico);
›
a Iniciativa Financeira Privada (Private Finance Initiative-PFI) e outras
configurações, nas quais o setor público contrata para adquirir serviços
de qualidade durante prazos longos, de modo a obter vantagens das
competências de gestão do setor privado, incentivadas pela existência
do risco financeiro privado. Isso inclui concessões e franquias, onde um
empreendedor privado assume a responsabilidade pelo fornecimento de
um serviço público, incluindo a manutenção, a ampliação ou a construção
da infraestrutura necessária; e
› a venda de serviços do governo ao mercado em geral e outras estruturas de
parcerias, nas quais as competências do setor privado e seu financiamento
são usados para explorar o potencial comercial dos ativos governamentais.
É preciso destacar que a Lei das PPPs não inova, propriamente, em nosso
ordenamento jurídico, dado que amplia a figura da concessão, o que pode
ser saudado como uma evolução do instituto, possibilitando ao Estado
criar uma forma de crédito e financiamento de projetos importantes para
o Estado, que não poderiam ser realizados por falta de recursos públicos,
além de possibilitar transferência de tecnologia.
Não se esqueça, também, que, em muitos casos, a concessão tem sido
35
11 - PFI: Meeting the Investment Challenge, Her Majesty’s
Treasury Report, Julho de 2003.
Em 2000, o Governo Britânico
publicou o documento Public
Private Partnerships – the
Government’s Approach, que
detalhou o funcionamento
de cada uma das formas de
parceria.
usada com sucesso, como ocorreu com as principais rodovias do Estado
de São Paulo (chamadas, equivocadamente, de “privatizações”), a partir da
gestão do governador Mário Covas (1995) e cuja administração/operação
estão a cargo de consórcios de empresas (Ecovias, Autoban, etc.), sempre
por períodos limitados de tempo.
Qualquer um que tenha circulado por essas rodovias notará a diferença
entre suas condições de segurança e manutenção e as das demais rodovias do País, especialmente as federais não “privatizadas” ou “concedidas à
iniciativa privada”, eufemismo criado pelo governo para evitar desavenças
com a ala radical do PT.
Apesar das críticas – procedentes – aos altos valores dos pedágios cobrados, bem como do excessivo número de cabines de cobrança, entendemos que, dado ao parceiro privado um horizonte jurídico seguro, não há
porque não lhe transferir a gestão de serviços públicos, mediante certas
condições e controles apropriados. No caso das rodovias, seria importante
revisar as tarifas e adequá-las às possibilidades de pagamento dos usuários, o que é um aspecto que não invalida o modelo.
Sem dúvida, não apenas São Paulo, mas também Minas Gerais se adiantaram ao Governo Federal, editando, respectivamente, as Leis nos Estados
esses que se adiantaram ao Governo Federal e editaram leis próprias sobre o tema, respectivamente as Leis nos 11.688, de 19.05.2004 e 14.868, de
16.12.2003.
Igualmente, no caso dos Correios, desde a década de 1990, já se conseguira ampliar significativamente a rede por meio do sistema de franchising
que, a nosso ver, funciona bastante bem, embora o mecanismo esteja obstado principalmente por iniciativa do Ministério Público, o qual, inexplicavelmente, se mostra refratário a certas modalidades modernas de contratação12.
12 - Abordamos o tema em
nosso livro Do Contrato
Internacional de Franchising,
2ª ed., Rio, Ed. Forense, 2002,
pp. 65-69. O contrato de franchising envolvendo os serviços
e a marca dos Correios veio de
tal modo desfigurado que mais
se aproxima da concessão de
serviço público.
Como o Estado brasileiro não dispõe de recursos para investir os bilhões
de reais de que o Brasil necessita para desenvolver-se, importante é avaliar
com espírito aberto as novas modalidades de financiamento e execução,
para oferecer serviços públicos de alto nível.
Nesse sentido, alguns projetos prioritários já começam a ser delineados.
O Ministério do Planejamento arrolou, inicialmente, algumas obras priori-
36
tárias, que entende serem iniciadas até 2007, dentre as quais se destacam13 (entre colchetes, o valor estimado das obras, na época):
obras ferrovias: [total estimado = R$ 2,4 bilhões]
• construção da variante ferroviária Ipiranga-Guarapuava (PR) [R$ 220 milhões];
• construção do contorno ferroviário de Curitiba (PR); [R$ 150 milhões]
• construção do Anel Ferroviário (Ferroanel) de São Paulo – Tramo Norte
(SP/RJ) [R$ 200 milhões];
• construção do contorno ferroviário de São Félix, próximo a Salvador (BA)
[R$ 40 milhões];
• construção da ferrovia Transnordestina no trecho entre Petrolina (PE)–
Missão Velho (CE) [R$ 364 milhões];
• construção da ferrovia Transnordestina (Ramal do Gesso), entre Araripina
e Salgueiro (PE) [R$ 346 milhões];
• construção do trecho ferroviário Estreito-Balsas (MA); [R$ 480 milhões]
• construção do trecho ferroviário Alto Taquari-Rondonópolis (MT) [R$ 400
milhões];
• trem turístico do Pantanal (MS) [R$ 200 milhões].
obras rodoviárias: [R$ 7,251 bilhões]
• construção do Rodoanel de São Paulo – Trecho Sul (SP) [R$ 1,9 bilhões];
• duplicação do trecho paulista da BR 116 – Rodovia Régis Bittencourt (SP)
[R$ 970 milhões];
• duplicação de trecho da BR 381 – São Paulo (SP) a Belo Horizonte (MG)
[R$ 1,5 bilhões];
• arco rodoviário na BR-493 – Porto de Sepetiba (RJ)-BR-040 [R$ 250 milhões];
• duplicação da BR 101 e entroncamento rodoviário com a BR 324 – divisa
AL/SE [R$ 381 milhões];
• duplicação da BR 101 – próximo a Natal (RN) – divisa Rio Grande do Norte
com Paraíba [R$ 1,591 bilhões];
• construção da BR 163 – rodovia entre Santa Helena (MT) e Santarém (PA),
divisa MT/PA [R$ 623 milhões].
obras portuárias: [R$ 760 milhões]
• adequação do complexo viário do Porto de Santos (SP) [R$ 500 milhões];
• melhorias na infraestrutura – Porto de Sepetiba (RJ) [R$ 100 milhões];
37
13 - Fontes: Ministério do
Planejamento e reportagem
PPP vai ajudar a infraestrutura.
Mas demora, publicado no
jornal O Estado de S. Paulo, ed.
de 11.07.2004, p. B3.
• recuperação e ampliação do porto de Itaqui (MA) [R$ 160 milhões].
obras de irrigação: [R$ 2,668 bilhões]
• Jaíba (MG) [R$ 1,3 bilhões];
• Salitre (BA) [R$ 362 milhões];
• Baixio do Irecê (BA) [R$ 750 milhões];
• Pontal (PE) [R$ 256 milhões].
Um dos autores do presente artigo comentou a Lei nº 11.079/04, sem se
alongar em demasia, propositadamente, na conceituação dos institutos
correspondentes do Direito Administrativo e do Direito ConstituAinda é bastante cional, fazendo-o, é claro, mas apenas para estabelecer definições
operacionais, referenciando a melhor bibliografia especializada. O
recente entre
objetivo é esclarecer seu alcance, para que advogados, adminisnós a lei que
tradores governamentais, empresários e juízes disponham de uma
possibilita a forma ferramenta doutrinária, a um só tempo conceitual e prática.
de contratação por
meio de parceria
público-privada, daí
ser prematuro
chegar-se a
conclusões
definitivas sobre
seu funcionamento.
Algumas imperfeições devem ser apontadas no novo diploma legal, desde já dentre outras, formulamos as seguintes críticas: a) a
lei é confusa em alguns dispositivos e redundante em outros, além
de tratar da mesma matéria em artigos dispersos, em lugar de
concentrá-los; b) a regulamentação dos FGPs em nível federal não
foi acompanhada por normas equivalentes para os Estados, para o
Distrito Federal e para os Municípios; c) o valor para o patrimônio
dos FGPs é relativamente baixo, insuficiente para as necessidades
do País; e d) não faz sentido a necessidade de aprovação, pelo Tesouro Nacional, de todos os projetos, inclusive os estaduais e municipais.
CONCLUSÕES
Ainda é bastante recente entre nós a lei que possibilita a forma de contratação por meio de parceria público-privada, daí ser prematuro chegar-se a
conclusões definitivas sobre seu funcionamento;
Provavelmente, após o kick-off dos projetos, a Lei nº 11.079/04 seja reformulada, para torná-la instrumento legal mais eficaz para impulsionar
o desenvolvimento econômico do Brasil, eliminando barreiras e entraves
inúteis.
38
Ao examinar esse novo diploma legal, não nos parece o momento adequado para tecer considerações sobre o possível sucesso ou fracasso do modelo econômico ao qual confere sustentação jurídica, embora não deva ser
perdida a oportunidade de lamentar os obstáculos criados pelo Partido dos
Trabalhadores, enquanto oposição, para que fossem colocados em prática
esses novos mecanismos.
Desperdiçaram-se cerca de 10 anos por conta da imaturidade política de
um partido que não soube colocar seus próprios interesses de lado, em lugar de contribuir para o desenvolvimento da nação. Esta atitude não pode
ser esquecida e a lição deve ser aprendida, de que a construção da sociedade não deve depender do partido político que ocupa – sempre transitoriamente – a posição de governo.
Como em toda ação humana, haverá acertos e erros.
Aprender rapidamente com os eventuais erros terá sido a maior virtude
dos idealizadores, do legislador e dos executores do mecanismo das PPPs,
em especial se o aprendizado se converter em correções de rota que, feitas
de boa-fé – o que, diga-se, seria de esperar muito de qualquer governo –
possam acelerar o desenvolvimento do Brasil.
O que nos preocupa, dentre outras características do projeto, além da sempre presente possibilidade de ensejar a corrupção – esse flagelo que aflige
nossa sociedade há séculos – é a não-contabilização dos gastos com as
PPPs na dívida pública. O aumento de despesas leva, invariavelmente, a
um aumento de tributos – e essa é uma das poucas promessas de campanha não feitas durante a disputa, mas que todos os políticos, quando no
poder... sempre cumprem.
39
A Constituição
Brasileira
Um interregno agitado
entre dois autoritarismos
Fábio Konder Comparato
Fábio Konder
Comparato
é Doutor Honoris Causa
da Universidade de
Coimbra, Professor
Emérito da Faculdade
de Direito da
Universidade de
São Paulo.
O direito e o avesso constitucional
Logo após a Revolução Francesa, o aristocrata Joseph de Maistre dizia
que a França passara a dividir-se em dois países: o legal e o real. Para
ele, as mudanças radicais operadas no regime político, a partir de 1789,
confinavam-se à superfície das coisas. O país continuava monárquico,
como sempre fora, e dividido nos três estamentos: o clero, a nobreza e o
povo.
Pois bem, essa opinião de um dos mais retrógrados autores da época tem
o seu ponto de verdade. Uma Constituição não é apenas, como pensaram
os revolucionários norte-americanos e franceses do final do século XVIII, o
documento solene que enuncia o sistema normativo supremo de organização política de um país. Por trás dessa forma, ou, se se quiser, no lado do
avesso, há uma outra realidade, igualmente normativa, mas que não goza
da chancela oficial. Tal como a politeia dos filósofos gregos, trata-se de
algo semelhante a uma Constituição não escrita, mas nem por isso menos
vigente, formada pelos usos e costumes tradicionais, os valores predominantes na sociedade e o complexo campo dos poderes privados.
Entre essas duas dimensões constitucionais, estabelece-se uma relação de
recíproca influência. O direito positivo é tanto mais forte e eficaz, quanto
menos oposição encontre do lado da mentalidade social, dos costumes
políticos assentados e da urdidura dos poderes econômico-sociais,
tecida na sociedade. Se ocorre o contrário, a Constituição oficial pode se
transformar em mero ornamento jurídico.
No tocante aos costumes e valores políticos presentes historicamente na
sociedade brasileira, um lugar de preeminência sempre foi ocupado pelo
espírito de conciliação entre as forças opostas. Em toda a nossa história
política, um mau acordo sempre foi tido como preferível a um claro
rompimento.
1 - Um Estadista do Império,
Rio de Janeiro, Nova Aguilar,
1975, pág. 57.
A nossa Independência não resultou de uma insurreição dos brasileiros
contra o rei de Portugal, mas da revolta dos portugueses contra a
permanência do rei no Brasil. A journée des dupes do 7 de abril de 1831,
como a denominou Teófilo Ottoni, com a abdicação de D. Pedro I em favor
de seu filho, não passou, no dizer acertado de Joaquim Nabuco, de “um
desquite amigável entre o Imperador e a nação, entendendo-se por nação
a minoria política que a representa”1. Durante todo o segundo reinado,
os dois partidos existentes alternaram-se amigavelmente no governo,
42
mas o ponto alto desse falso parlamentarismo foi, justamente, o gabinete
dito de “conciliação”, que tomou posse em 6 de setembro de 1853, sob
a chefia de Honório Hermeto Carneiro Leão. A proclamação da República
nasceu de um “lamentável mal-entendido”, para tomarmos emprestada a
expressão famosa de Sérgio Buarque de Holanda a respeito da experiência
democrática entre nós:2 o Marechal Deodoro da Fonseca queria destituir
o primeiro-ministro, o Visconde de Ouro Preto; não tencionava mudar o
regime político. A Revolução de 1930 decidiu-se na batalha de Itararé, que
nunca chegou a ser travada.
Ora, o período histórico que ora nos ocupa foi balizado por episódios do
mesmo gênero conciliatório: ele se iniciou com a pacífica deposição do
ditador Getúlio Vargas em outubro de 1945, e encerrou-se com a mal
chamada “revolução” de 1964, que não passou de um golpe de Estado,
perpetrado por meio de um lance estratégico de movimentação de tropas,
sem combate algum.
Quanto ao sistema de poder em vigor entre nós, ele tem sido
invariavelmente oligárquico. As Constituições, autênticas ou contrafeitas,
se sucedem, contendo proclamações sempre harmônicas com os valores
políticos predominantes no mundo civilizado do momento. Mas esse direito
constitucional mal esconde o seu avesso: em menos de dois séculos de
vida política independente, logramos constituir um liberalismo de senzala,
uma república privatista e uma democracia sem povo. A minoria que
manda é sempre composta do chefe de Estado – Imperador ou Presidente
da República –, em associação com grupos variados: parlamentares,
burocratas, militares, proprietários e empresários e, antigamente, a Igreja
Católica. Só o povo fica de fora, mas é justamente dele que as Constituições,
a partir de 1934, declaram, solenemente, que emanam todos os poderes.
Ambos esses fatores, os valores políticos em vigor e o sistema efetivo
de poder, foram determinantes na elaboração da Constituição que iria
encerrar o período da ditadura getulista.
O ocaso do Estado Novo
A partir de 1943, a Segunda Grande Guerra entra em sua fase final e
principia, coincidentemente, o ocaso do Estado Novo, instaurado por
Getúlio Vargas em outubro de 1937, com a revogação da Constituição de
1934 e a outorga ao país de uma carta constitucional de fachada.
43
2 - Raízes do Brasil, 5ª edição
revista, Rio de Janeiro, José
Olímpio, 1969, pág. 119.
A democracia, nos anos que precederam o conflito bélico, foi considerada
um regime político ultrapassado, incapaz de enfrentar os novos desafios do
século XX, sobretudo no campo econômico-financeiro, com a depressão
mundial iniciada com a quebra da Bolsa de Nova York em outubro de 1929.
Foi tão só com a perspectiva da iminente derrota das potências do “Eixo”
– a Alemanha, a Itália e o Japão –, que o regime democrático, fundado na
liberdade – política, econômica e cultural –, recobrou prestígio. Entre nós,
após a Revolução de 1930, os únicos partidos atuantes, o comunista e o
integralista, eram nitidamente antiliberais.
A União Soviética, que resistira bravamente à invasão nazista,
conseguiu mudar o curso da guerra com a rendição do 6º Exército
alemão em Stalingrado, no dia 2 de fevereiro de 1943. Com isso, o
movimento comunista, no mundo todo, perdia, pelo menos durante
algum tempo, a conotação de inimigo mortal da democracia.
Tais acontecimentos forçaram Getúlio Vargas a alterar rapidamente
a orientação política do Estado Novo, que nascera como um
arremedo moderado do fascismo. Jamais chegou a se aproximar
do totalitarismo, mas foi, indubitavelmente, um regime autoritário.
Aliás, a distinção entre essas duas formas de Estado foi feita
em doutrina, pela primeira vez, por um autor alemão radicado
nos Estados Unidos, Karl Loewenstein, ao analisar no Brasil o
funcionamento da ditadura getulista.3 Ele salientou que no Estado
autoritário, não obstante a supressão da liberdade política, a vida
privada conserva uma certa autonomia. No Estado totalitário,
diversamente, desaparece a distinção entre a esfera pública e a
privada: tudo é estatal.
No campo externo, pressionado pelos Estados Unidos, já em julho de 1941
Getúlio assina um pacto secreto com o governo ianque para a construção
de bases aéreas e navais no extremo oriental do Nordeste brasileiro, como
trampolim para o transporte de tropas e armamentos norte-americanos
em território africano, onde já operava a Wehr-macht. Em compensação, o
O movimento
comunista, no
mundo todo,
perdia, pelo
menos durante
algum tempo,
a conotação de
inimigo mortal
da democracia.
3 - Brazil under Vargas, The
MacMillan Company, Nova
York, 1942.
governo americano libera um empréstimo de 20 bilhões de dólares para a
fundação da Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda. Em agosto
do ano seguinte, após o torpedeamento de 21 navios mercantes brasileiros
que navegavam em nosso mar territorial, o governo declara o estado de
beligerância e, logo após, a declaração de guerra contra a Alemanha e a
Itália. Um ano depois, em 9 de agosto de 1943, cria-se a Força Expedicionária
Brasileira, que é finalmente enviada a combater na Itália em 1944.
44
A influência norte-americana fez-se presente também no plano da política
interna, envolvendo os militares. Em 1943, o General Manuel Rabelo cria
a Sociedade Amigos da América, que contava com o apoio dos Generais
Horta Barbosa e Candido Rondon. Em 1944, Oswaldo Aranha, desde
há muito amigo dos americanos, desliga-se do Ministério das Relações
Exteriores.
Apesar de tudo, o ditador conseguiu adiar a mudança política interna
até o início de 1945. Em 28 de fevereiro desse ano, ele tenta uma última
cartada para manter em funcionamento o Estado Novo, e assina a Lei
Constitucional nº 9. Ela altera fundamente a Carta de 1937 e determina
que dentro de noventa dias sejam fixadas em lei “as datas das eleições para
o segundo período presidencial e Governadores dos Estados, assim como
das primeiras eleições para o Parlamento e as Assembleias Legislativas”.
A expressão “segundo período presidencial” era bastante sutil. Ela
pressupunha que o ditador exercia legitimamente, até então, a
presidência da República, e ao mesmo tempo nada dispunha com
respeito à sua eventual “reeleição”, uma vez terminado o “primeiro
período presidencial”.
Em 2 de abril 1945, pouco mais de um mês antes da rendição da Alemanha
nazista, Getúlio preparou-se para enfrentar a nova distribuição de cartas
do jogo político, aproximando-se dos comunistas. Atendendo ao apelo
feito por um enviado do governo norte-americano após a Conferência de
Ialta em fevereiro, foram estabelecidas relações diplomáticas com a União
Soviética e decretou-se a anistia de todos os que haviam cometido crimes
políticos desde julho de 1934. Com isso, Luiz Carlos Prestes pôde deixar a
prisão, e passou a apoiar a permanência do ditador no poder. Enquanto
isso, Getúlio fugia, como o diabo da cruz, de qualquer aproximação com os
integralistas, herdeiros do fascismo.
Os Estados Unidos, por intermédio do embaixador Adolph Berle Jr.4,
voltaram a fazer pressão em favor da reconstitucionalização do país, o que
acabou ocorrendo em maio com a edição do Decreto nº 7.586. Ele fixou
as eleições do Presidente da República e dos membros da Assembleia
Nacional Constituinte para o dia 2 de dezembro de 1945.
Iniciou-se, então, em todo o país, a movimentação de comunistas e líderes
sindicais em defesa da “Constituinte com Getúlio”; vale dizer, da eleição de
Vargas para o “segundo período presidencial”.
45
4 - Tratava-se de reputado
scholar, autor, juntamente
com Gardiner Means, do
ensaio clássico Modern
Corporation and Private
Property, em 1932.
Dessa vez, porém, o grande feiticeiro não logrou paralisar seus adversários
com hábeis passes de mágica. Em 29 de outubro, um grupo de generais,
liderado por Góis Monteiro, congrega a maior parte das Forças Armadas e
depõe Getúlio Vargas.
A Constituinte de 1946
Embora deposto da presidência da República, Getúlio conseguiu
exercer uma influência decisiva sobre as eleições de 2 de dezembro
de 1945.
Em primeiro lugar, apoiou abertamente a candidatura do seu
ex-ministro da guerra, General Eurico Gaspar Dutra, que acabou
sendo eleito Presidente da República. Em segundo lugar, criou
dois dos três partidos que dominaram a cena política até 1964:
um à direita, o Partido Social Democrático, e outro à esquerda,
o Partido Trabalhista Brasileiro. O PSD era o partido dos antigos
interventores nos Estados e reunia os latifundiários, bem como os
empresários que presidiam as federações das indústrias em Estados
importantes, como Roberto Simonsen em São Paulo, Euvaldo Lodi
no Rio de Janeiro e Américo Giannetti em Minas Gerais. Já o PTB era
o partido dos sindicatos operários, que sempre viveram atrelados
ao Ministério do Trabalho. Ou seja, como disse ferinamente Carlos
Lacerda, o grande líder antigetulista da época, enquanto o PSD
criava a miséria, o PTB explorava as suas consequências.
Aproveitando-se das disposições da lei eleitoral, que permitia
candidaturas individuais em mais de um Estado, Getúlio Vargas
foi eleito, na legenda do PSD, deputado federal por 7 Estados e
senador por São Paulo e Rio Grande do Sul. Optou pela cadeira de senador
do Estado gaúcho.
A oposição a Getúlio organizou-se sob a bandeira da União Democrática
Nacional, que representou na origem uma frente ampla contra o Estado
Novo, composta principalmente de intelectuais liberais e da esquerda,
de advogados (os “leguleios em férias”, como os classificou Getúlio), de
militares favoráveis à liderança mundial dos Estados Unidos, de banqueiros
e alguns setores da classe média. Em pouco tempo, porém, os políticos da
esquerda abandonaram o partido, que dentro em pouco passou a cortejar
abertamente os chefes militares golpistas.5
Embora deposto
da presidência
da República,
Getúlio
conseguiu
exercer uma
influência
decisiva sobre
as eleições de 2
de dezembro de
1945.
5 - Veja-se, a esse respeito, a
monografia ainda insuperada
de Maria Victoria de Mesquita
Benevides, A UDN e o
Udenismo – Ambiguidades
do liberalismo brasileiro (1945
– 1965), Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1981.
46
Apurados os votos, verificou-se a seguinte distribuição de bancadas
partidárias na Assembleia Constituinte:
PSD – 54,0%; UDN – 26,0%; PTB – 7,5%; PCB – 4,7% 6
Diante dessa distribuição de cadeiras, seria de esperar-se que os dois
grandes partidos getulistas se unissem, dispensando qualquer negociação
com a UDN. Não foi isto, porém, o que ocorreu durante os trabalhos
constituintes: os parlamentares conservadores, tanto do PSD, quanto da
UDN, passaram a atuar sem grandes divergências entre si, e a minoria da
esquerda ficou reduzida à impotência.
Reproduzia-se, assim, mais uma vez, a política de conciliação entre
conservadores e liberais, a qual dominou todo o nosso segundo reinado.
Essa inesperada harmonia entre adversários políticos prosseguiu, uma vez
encerrados os trabalhos constituintes, durante todo o governo do General
Dutra, com a presença de dois udenistas, Raul Fernandes e Clemente
Mariani, na chefia, respectivamente, do Ministério das Relações Exteriores
e do Ministério da Agricultura e Saúde.
Duas grandes discussões dominaram os trabalhos constituintes, iniciados em
31 de janeiro de 1946: a liberdade de funcionamento dos partidos políticos e a
autonomia dos sindicatos.7 Sobre ambas, pairava o espectro comunista. É verdade
que o mundo já havia entrado, então, no período da chamada Guerra Fria, que
opunha os Estados Unidos e seus aliados à União Soviética e seus satélites.
O Código Eleitoral de 1945 dispunha, em seu art. 114, que o Tribunal
Superior Eleitoral poderia negar registro a qualquer partido cujo programa
fosse contrário aos princípios democráticos ou aos direitos fundamentais
do homem, como definidos na Constituição.
O Partido Comunista Brasileiro havia obtido o seu registro em maio de
1945. Mas já em março do ano seguinte, portanto com os trabalhos
constituintes apenas iniciados, dois deputados8 ajuizaram uma ação de
cassação desse registro partidário na Justiça Eleitoral. A ação foi julgada
procedente, por acórdão do Tribunal Superior Eleitoral de 7 de maio de
1947, com base no disposto no art. 141, § 13 da Constituição de 1946:
“É vedada a organização, o registro ou o funcionamento de qualquer
partido político ou associação, cujo programa ou ação contrarie o regime
democrático, baseado na pluralidade dos partidos e na garantia dos
direitos fundamentais do homem”.
47
6 - O Partido Comunista
Brasileiro elegeu 15 deputados
e um senador (Luiz Carlos
Prestes), para grande temor
dos conservadores.
7 - Sobre o assunto,
consultar-se-á com proveito a
monografia de João Almino,
Os Democratas Autoritários
– Liberdades individuais, de
associação política e sindical
na constituinte de 1946, São
Paulo, Brasiliense, 1980.
8 - Tratava-se de Barreto Pinto
e de Himalaia Virgulino. O
primeiro perdeu o mandato,
pouco tempo depois, por
procedimento declarado
incompatível com o decoro
parlamentar: havia posado
de cuecas para uma revista
semanal de grande circulação.
O segundo foi procurador
junto ao infame Tribunal de
Segurança Nacional, instituído
por Getúlio Vargas após a
frustrada revolta comunista
de 1935.
Era a primeira vez que uma Constituição brasileira adotava disposição dessa
ordem e, o que foi pior, no capítulo consagrado aos direitos e garantias
individuais. Nem mesmo a Carta fascistoide de 1937 chegara a tanto.
A segunda questão a suscitar grandes debates, durante os trabalhos de
elaboração da Constituição de 1946, foi a da autonomia sindical. A ela
ligou-se, indissociavelmente, o reconhecimento da greve como um direito
fundamental dos trabalhadores.
O início dos trabalhos constituintes coincidiu com o aumento
substancial do número de greves e o notável incremento da
sindicalização de trabalhadores. Em janeiro e fevereiro de 1946,
registraram-se em todo o país mais de 60 movimentos paredistas,
e no dia 20 de fevereiro, só em São Paulo, havia cerca de 100.000
operários em greve. O aumento no número de trabalhadores
sindicalizados cresceu substancialmente, passando de um total de
474.943 em 1945, para 797.691 em 1946.
O governo Dutra não esperou a conclusão dos trabalhos constituintes
para intervir no campo das relações de trabalho. Aproveitando-se
do fato de continuar em vigor a Constituição de 1937, o Presidente
da República editou, em 15 de março de 1946, o decreto-lei nº 9.070,
que dispôs “sobre a suspensão ou abandono coletivo no trabalho”,
estabelecendo, a esse respeito, a distinção entre atividades
profissionais fundamentais e acessórias. Na categoria das primeiras,
onde a greve era proibida, o decreto-lei incluiu as seguintes
atividades profissionais: “serviços de água, energia, fontes de
energia, iluminação, gás, esgotos, comunicações, transportes,
carga e descarga; nos estabelecimentos de venda de utilidade
ou gêneros essenciais à vida das populações; nos matadouros,
na lavoura e na pecuária; nos colégios, escolas, bancos, farmácias,
drogarias, hospitais e serviços funerários, nas indústrias básicas ou
essenciais à defesa nacional”.
Como se isso não bastasse, o decreto-lei determinou que o Ministro do
Trabalho, Indústria e Comércio teria o poder de, mediante simples portaria,
incluir outras atividades entre as consideradas fundamentais (art. 3º, § 1º).
A Constituinte deparou-se, assim, com o fato consumado: a greve deixava,
praticamente, de existir como remédio legal. Os debates parlamentares
foram, desde então, meramente retóricos. Enquanto os deputados do PSD
Em janeiro
e fevereiro
de 1946,
registraram-se
em todo o país
mais de 60
movimentos
paredistas, e
no dia 20 de
fevereiro, só em
São Paulo, havia
cerca de 100.000
operários em
greve.
48
diziam preferir que as restrições ao direito de greve fossem expressamente
incluídas na Constituição, os comunistas não admitiam restrição alguma.
Quanto aos udenistas, malgrado ou em razão mesma de seu decantado
liberalismo, encontravam-se muito divididos.
Prevaleceu, afinal, a emenda proposta pelo Professor Hermes Lima,
paradoxalmente originário da Esquerda Democrática: “É reconhecido o
direito de greve, cujo exercício a lei regulará”. A fórmula foi desde logo
aceita com alívio pelos conservadores, pois a lei já existia: era o decreto-lei
nº 9.070, que ninguém mais pensou em revogar.
O mesmo quiproquó repetiu-se em matéria de liberdade sindical.
A proposta apresentada ao plenário pela Comissão encarregada de
elaborar o projeto de Constituição afirmava o princípio da liberdade
sindical, atribuindo à lei competência para regular “a forma de constituição,
a representação legal nos contratos coletivos de trabalho e o exercício de
funções delegadas pelo poder público.”
Os deputados comunistas imediatamente propuseram que o artigo se
limitasse a declarar a liberdade de associação profissional ou sindical. Essa
posição contou com o apoio da UDN, cujos deputados queriam, a todo
custo, desvincular os sindicatos do governo e desfazer, portanto, nesse
particular, o modelo fascista adotado por Getúlio Vargas.
Após acalorados debates, as forças getulistas do PSD e do PTB acabaram
por se impor, sendo finalmente aprovado o art. 159, com redação idêntica à
da proposta inicial da Comissão elaboradora do projeto de Constituição. Os
sindicatos brasileiros continuariam, pois, controlados pelo governo federal.
A Constituição posta à prova dos fatos
O balanço final da Constituição, em seus quase 18 anos de vigência,
mostra, lamentavelmente, que o avesso prevaleceu sobre o direito. Os
grandes pontos negativos da organização constitucional foram a inaptidão
do Estado a promover o desenvolvimento nacional, a persistência de
um sistema agrário retrógrado e a constante insubordinação das forças
militares aos poderes constituídos.
Vejamos, mais de espaço, cada um desses pontos.
49
1 - Os empecilhos institucionais à promoção do
desenvolvimento nacional
Na data em que a Constituição entrou em vigor, 18 de setembro de 1946,
começava a firmar-se, no mundo todo, a distinção doutrinária entre
países desenvolvidos e subdesenvolvidos, em função da existência, ou
não, de um processo harmônico de crescimento autônomo e de redução
das desigualdades sociais e regionais. Entendia-se, naquela época, que
competia ao Estado nacional dirigir esse processo, o que exigia uma
adequada organização dos poderes públicos. O modelo do Estado de
Bem-Estar Social (Welfare State), já posto em prática nos países escandinavos,
principiava a ganhar adeptos em toda a Europa Ocidental.
A nova Constituição brasileira, porém, nada inovou a respeito
das funções estatais, relativamente à de 1934; esta inspirada,
principalmente, no modelo de Weimar de 1919, no tocante
aos direitos sociais. Ora, o respeito a estes últimos, ao contrário
do que sucede em matéria de liberdades fundamentais,
pressupõe a ação e não a abstenção estatal.
A organização dos poderes públicos prendia-se – e até hoje
se prende, aliás – ao esquema clássico tripartido de Locke e
Montesquieu, próprio de um Estado estático, separado da
sociedade civil, e cuja principal função era a edição de leis.
A noção dinâmica de políticas públicas, como programas
de ação governamental, sempre esteve ausente dessa
concepção teórica.
No mundo contemporâneo, a consequência inevitável da
inadequação estrutural do Estado à realização de políticas
públicas foi, em todos os países, a concentração de
competências funcionais, regulares ou irregulares, no mal chamado
Poder Executivo, em evidente contradição com o princípio da separação
de poderes, fundamento da teoria clássica de organização do Estado.
Até hoje, ainda não logramos estruturar os poderes públicos em função
do desenvolvimento nacional, com a criação de um órgão de previsão e
planejamento, autônomo em relação ao Poder Executivo, e que atue no
longo prazo, não sujeito às periódicas mudanças eleitorais, mas contando
com a participação efetiva dos setores diretamente interessados da
sociedade civil: trabalhadores, empresários, pesquisadores, grupos
sociais vulneráveis.
No momento em
que a Constituição
foi elaborada,
não haviam ainda
penetrado no meio
dirigente brasileiro
as noções de
desenvolvimento e
subdesenvolvimento.
50
Ora, no momento em que a Constituição foi elaborada, não haviam ainda
penetrado no meio dirigente brasileiro as noções de desenvolvimento e
subdesenvolvimento.
O governo Dutra manteve-se, a esse respeito, fiel aos cânones da economia
política clássica, depositando toda a sua confiança na livre iniciativa e na
colaboração do capital estrangeiro.
Ao voltar legitimamente à presidência da República pela via eleitoral,
em 1951, Getúlio Vargas pôs fim à orientação liberal privatista do
seu antecessor. Logo após a posse, foi criada, junto à Secretaria da
Presidência, uma Assessoria Econômica, composta de competentes
administradores públicos de orientação nacionalista. Esse órgão exerceu,
na prática, as funções de planejamento, dando especial atenção à política
de investimentos na infraestrutura do país. Da Assessoria Econômica
presidencial saíram, entre outros, os projetos de criação da Petrobras, do
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, do Fundo Rodoviário
Nacional e da Eletrobras.
O projeto de criação da Petrobras, enviado ao Congresso Nacional em 6 de
dezembro de 1951, foi afinal transformado em lei quase dois anos depois
(Lei nº 2.004, de 3 de outubro de 1953). O novo diploma legal, vencendo
duras resistências no país e no exterior, instituiu o monopólio estatal do
petróleo.
A segunda grande tentativa para pôr em ação um programa de
desenvolvimento nacional, malgrado os entraves constitucionais
na organização de poderes públicos, ocorreu com a presidência de
Juscelino Kubitschek. No quinquênio 1956 – 1961, o governo federal
adotou, enfim, a prática do planejamento de políticas públicas para a
consecução de resultados predeterminados. Foi o Programa de Metas.
Escolheram-se trinta e uma metas, classificadas em 6 grandes grupos:
energia, transportes, alimentação, indústrias de base, educação e,
finalmente, construção de Brasília.9
O cérebro de toda essa política de previsão e planejamento foi Celso
Furtado. Ele participou do Grupo Misto de Estudos BNDE–CEPAL, que deu
a público, em 1955 e 1956, o Esboço de um programa de desenvolvimento
para a economia brasileira: período de 1955–1962.
Celso Furtado foi também, como todos sabem, o inspirador da criação da
51
9 - Sobre o assunto, vejam-se
Celso Lafer, JK e o Programa
de Metas – Processo de
planejamento e sistema
político no Brasil, 1956-1961,
bem como a monografia de
Maria Victoria de Mesquita
Benevides, O Governo
Kubitschek – Desenvolvimento
econômico e estabilidade
política, Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1976, pp. 210 e ss.
Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE, no final do
governo Kubitschek (Lei nº 3.692, de 13 de dezembro de 1959).
Sem dúvida, os constituintes de 1946 manifestaram preocupação com o
problema da seca do Nordeste e com a valorização da região amazônica.
Decidiram, a esse respeito, incluir na Constituição disposições específicas
de vinculação da renda tributária da União (arts. 198 e 199). Mas, como
a experiência tem amplamente demonstrado, a obtenção de recursos
financeiros, desligada de uma ação planejadora, nada resolve.
Como a
experiência tem
amplamente
demonstrado,
a obtenção
de recursos
financeiros,
desligada de uma
ação planejadora,
nada resolve.
A criação da SUDENE representou a primeira experiência positiva
de reformulação do federalismo brasileiro. Tal como o New Deal do
Presidente Roosevelt nos Estados Unidos, durante a grande crise
mundial iniciada em 1929, passou-se de uma organização federal
estática a um federalismo cooperativo e desenvolvimentista.
Por isso mesmo, a criação de um órgão de desenvolvimento
para a região nordestina ampliada teve que enfrentar duras
resistências do meio político local, acostumado a recusar toda
interferência externa em suas bases eleitorais próprias. No caso,
essa interferência apresentava, ainda, a agravante de ser feita pelo
governo federal, pois a Sudene era vinculada à presidência da
República.
Outro problema não resolvido, durante todo o período de vigência
da Constituição de 1946, foi o do controle monetário e cambial. Os
surtos de inflação foram frequentes, e a disponibilidade de moeda
estrangeira para pagamento das importações, muito restrita. As
unidades componentes da federação, a começar pela própria União, não
se submetiam a nenhuma disciplina fiscal. Demais, o país não tinha Banco
Central, sendo a política de moeda e de crédito desempenhada por um
departamento do Banco do Brasil, a SUMOC – Superintendência da Moeda e
do Crédito, obviamente sujeito às injunções governamentais.
2 - A questão agrária
Não é exagero afirmar que a política agrária, isto é, o sistema oficial de
atribuição de direitos reais sobre terras agrícolas, foi o principal fator de
organização da sociedade brasileira, até meados do século passado. Em
razão dele, com efeito, desenvolveu-se quase toda a nossa vida política e
econômica, e moldaram-se as classes sociais.
52
A Constituição de 1946, em seu art. 156, limitou-se a reproduzir, com duas
alterações, as normas inovadoras da Constituição de 1934 sobre o mundo
rural. Uma dessas alterações foi a admissão expressa de que as terras
públicas seriam suscetíveis de alienação e não apenas de concessão de
uso. A outra consistiu em ampliar, de dez para vinte e cinco hectares, a área
rural objeto de usucapião excepcional.
Mas no tocante especificamente à reforma agrária como política global
de repartição de terras, a Constituição continha uma disposição
genérica, sem nenhuma força cogente e, pior ainda, inaplicável:
Art. 147. O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar
social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141,
§ 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual
oportunidade para todos.
O art. 141, § 16, aí citado, tornava impraticável qualquer plano de
reforma agrária, pois exigia fosse paga, nas desapropriações, “prévia
e justa indenização em dinheiro”. A exigência de pagamento de
indenização em dinheiro resultou de emenda ao texto do projeto
original da Constituição, em reação contra as expropriações de
imóveis urbanos, efetuadas no Rio de Janeiro para a abertura da
Avenida Getúlio Vargas, cuja indenização se efetuou em apólices
da dívida pública.
Como se percebe, os constituintes jamais tiveram em mira a
necessidade de uma reforma agrária. Ora, essa omissão foi um
dos focos infecciosos que levaram o país à supressão do regime
constitucional em 1964.
Não é exagero
afirmar que a
política agrária,
isto é, o sistema
oficial de
atribuição de
direitos reais
sobre terras
agrícolas, foi o
principal fator
de organização
da sociedade
brasileira, até
meados do século
passado.
O movimento de organização dos trabalhadores rurais no país
inicia-se em 1950, com a realização em Campanha (MG), por
iniciativa da Ação Católica Brasileira, da Primeira Semana Ruralista.
O movimento prossegue, no Nordeste, com a criação, em 1º de janeiro de
1955, em Vitória de Santo Antão (PE), da Sociedade Agrícola e Pecuária
de Plantadores de Pernambuco, embrião das futuras Ligas Camponesas,
dirigidas pelo advogado Francisco Julião Arruda de Paula.
A reação dos grandes proprietários rurais foi imediata e intensificou-se
sobremaneira com a investidura de João Goulart na presidência da República.
Com efeito, a reforma agrária foi a principal das Reformas de Base,
53
apresentadas pelo Presidente como seu programa de governo, uma
vez encerrada a fase parlamentarista. Na intensa campanha ideológica
desenvolvida, então, pelos latifundiários e empresários em preparação ao
golpe de estado de 1964, tais reformas sempre foram apresentadas como
um programa de “comunistização” do país.
O paradoxo é que uma das primeiras emendas constitucionais editadas
pelo regime militar à Constituição de 1946 visou justamente possibilitar
a reforma agrária (Emenda Constitucional nº 10, de 9 de novembro de
1964).
Ela acrescentou ao art. 147 os seguintes parágrafos:
§ 1º Para os fins previstos neste artigo, a União poderá promover a
desapropriação da propriedade territorial rural, mediante pagamento
da prévia e justa indenização em títulos especiais da dívida pública, com
cláusula de exata correção monetária, segundo índices fixados pelo
Conselho Nacional de Economia, resgatáveis no prazo máximo de vinte
anos, em parcelas anuais sucessivas, assegurada a sua aceitação, a qualquer
tempo, como meio de pagamento de até cinquenta por cento do Imposto
Territorial Rural e como pagamento do preço de terras públicas.
§ 2º A lei disporá sobre o volume anual ou periódico das emissões, bem
como sobre as características dos títulos, a taxa de juros, o prazo e as
condições de resgate.
§ 3º A desapropriação de que trata o § 1º é da competência exclusiva
da União e limitar-se-á às áreas incluídas nas zonas prioritárias, fixadas
em decreto do Poder Executivo, só recaindo sobre propriedades rurais
cuja forma de exploração contrarie o disposto neste artigo, conforme for
definido em lei.
§ 4º A indenização em títulos somente se fará quando se tratar de latifúndio, como tal conceituado em lei, excetuadas as benfeitorias necessárias
e úteis, que serão sempre pagas em dinheiro.
§ 5º Os planos que envolvem desapropriação para fins de reforma agrária
serão aprovados por decreto do Poder Executivo, e sua execução será de
competência de órgãos colegiados, constituídos por brasileiros de notável
saber e idoneidade, nomeados pelo Presidente da República, depois de
aprovada a indicação pelo Senado Federal.
54
§ 6º Nos casos de desapropriação, na forma do § 1º deste artigo, os proprietários ficarão isentos dos impostos federais, estaduais e municipais que
incidam sobre a transferência da propriedade desapropriada.”
Em 30 de novembro daquele mesmo ano de 1964, o governo militar fez
com que o Congresso Nacional votasse a Lei nº 4.504, mais conhecida
como Estatuto da Terra, que permanece em vigor até hoje, embora com
várias ab-rogações.
3 - O descontrole do poder militar
Tirante o Governo Dutra, todos os que o sucederam foram abalados por
múltiplas rebeliões militares, amplas ou localizadas. Se não, vejamos.
Em fevereiro de 1954, o chamado “manifesto dos coronéis”, reivindicando
uma ampliação dos recursos orçamentarios destinados ao Exército e
protestando contra o aumento do salário-mínimo em 100%, forçou Getúlio
Vargas a exonerar João Goulart, Ministro do Trabalho, e o General Ciro
Espírito Santo Cardoso, Ministro da Guerra.
Na madrugada do dia 5 de agosto, em frente à sua residência, Carlos Lacerda
sofreu um atentado, que o feriu e matou o Major da Aeronáutica Rubens
Florentino Vaz, encarregado de sua guarda pessoal. Imediatamente, os oficiais
mais graduados daquela Arma reuniram-se em comissão de inquérito no
aeroporto do Galeão (a chamada “República do Galeão”), e poucos dias depois
obtiveram a confissão de membros da guarda pessoal do Presidente Getúlio
Vargas de que o atentado fora por eles planejado e executado. A partir de então,
os oficiais superiores do Exército e da Marinha manifestaram-se solidários
com a Aeronáutica e passaram a exigir a renúncia de Getúlio. Buscou-se, sem
êxito, até o dia 23 uma fórmula de conciliação. No dia seguinte, pela manhã,
recebendo do irmão, Benjamin Vargas, a informação de que o oficialato das
três Armas exigia sua renúncia imediata da presidência da República, Getúlio
suicidou-se, provocando em todo o país, desde logo, a revolta popular.
Em 11 de novembro de 1955, o então Ministro da Guerra, General Henrique
Teixeira Lott, decidiu prevenir um golpe de estado em preparação para
impedir a posse do Presidente da República regularmente eleito, Juscelino
Kubitschek de Oliveira. O Presidente em exercício, Carlos Luz, foi deposto
e o Vice-Presidente Café Filho, que sucedera Getúlio e se afastara da
presidência por razões de saúde, impedido de voltar ao poder.
55
Em 1956 e 1959, oficiais da Aeronáutica declararam-se em estado de
insurreição contra o Presidente Kubitschek, em Jacareacanga e Aragarças,
respectivamente.
Após a renúncia do Presidente Janio Quadros em 25 de agosto de 1961,
os ministros militares, Marechal Odílio Denis, Almirante Sílvio Heck e
Brigadeiro Gabriel Grün Moss, declararam-se contrários à posse do
Vice-Presidente João Goulart, que se encontrava ausente do país em
viagem oficial. Imediatamente, o Governador do Rio Grande do Sul,
Leonel Brizola, levantou-se contra os militares, obtendo o apoio do
comando do III Exército, sediado em Porto Alegre.
O vitorioso
golpe de estado
de 31 de março
e 1º de abril de
1964 pôs fim
ao regime
constitucional
instaurado em
1946.
O confronto acabou sendo resolvido por meio de uma transação
conciliatória: os ministros militares aceitaram a investidura de João
Goulart como Presidente da República, contanto que se adotasse
o sistema parlamentar de governo; o que foi feito pelo Congresso
Nacional ao votar a emenda constitucional nº 4, de 2 de setembro
de 1961. Dita emenda previa, em seu art. 25, que a lei “poderá dispor
sobre a realização de plebiscito que decida da manutenção do
sistema parlamentar ou volta ao sistema presidencial, devendo, em tal
hipótese, fazer-se a consulta plebiscitária nove meses antes do termo
do atual período presidencial”. Realizado o plebiscito, uma ampla
maioria optou pelo retorno ao sistema presidencial de governo. O
Congresso Nacional, dando cumprimento à vontade popular, aprovou
a emenda constitucional nº 6, de 23 de janeiro de 1963.
Em 12 setembro de 1963, centenas de sargentos, fuzileiros e soldados
da Aeronáutica e da Marinha de Guerra sublevaram-se em Brasília,
ocupando na madrugada importantes centros administrativos. O
motivo do levante foi a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal,
confirmando a inelegibilidade das pessoas enumeradas no art. 132,
parágrafo único da Constituição (praças de pré, suboficiais, subtenentes,
sargentos e alunos das escolas militares de ensino superior).
Finalmente, o vitorioso golpe de estado de 31 de março e 1º de abril de
1964 pôs fim ao regime constitucional instaurado em 1946.
Que concluir de tais fatos? A conclusão se encontra inscrita na máxima
exarada por Montesquieu, no capítulo IV do Livro XI do Espírito das Leis:
« pour qu’on ne puisse abuser du pouvoir, il faut que, par la disposition
des choses, le pouvoir arrête le pouvoir ». Entenda-se: não é o direito que
56
detém o poder, mas somente um contrapoder. É indispensável, portanto,
que pela própria disposição dos diferentes poderes no tabuleiro político
eles estejam contrapostos uns aos outros.
É aí que se vê, com a maior clareza, a insuficiência da análise positivista de
uma Constituição. É muito fácil comentar textos normativos in abstracto.
Basta manter um mínimo de coerência e a correta interpretação técnica
do sentido dos vocábulos. Mas não é por esse método que se chega,
minimamente, a compreender (cum prehendere) o direito vivo.
Dir-se-á que a disposição constitucional de poderes e contrapoderes não
é tarefa jurídica e sim política. Ora, como se a política nada tivesse a ver
com o direito e vice-versa! Como se uma Constituição atuasse no vácuo!
Desde o início desta exposição, advertiu-se que, tal uma indumentária,
toda Constituição tem um direito e um avesso; ou, em outras palavras,
uma substância e uma forma. Contentar-se em analisar unicamente esta
última é o mesmo que verificar a adequação de uma vestimenta a um
manequim.
Toda relação de poder contém um elemento material e outro espiritual ou
axiológico; um elemento de força e outro de justiça. O poder murcha ou se
esvazia, rapidamente, quando um desses dois elementos desaparece.
Os gregos sempre foram bem conscientes da necessidade de não separar
a justiça da força. A mitologia personificou essas duas ideias em deuses
irmãos: Kratos e Bia. Foi a eles que Zeus confiou a missão de punir Prometeu
de sua rebeldia culpável.10 Themis, a deusa da justiça, tem sido, desde a
antiguidade, representada sob a figura de uma mulher que porta numa
mão a balança e noutra a espada.
“A justiça sem a força”, lembrou Pascal, “é impotente; a força sem a justiça,
tirânica. A justiça sem a força é contradita, porque há sempre pessoas más;
a força sem a justiça é acusada. É mister, portanto, juntar a justiça à força e,
para tanto, fazer com que o justo seja forte, ou o forte seja justo”.
Ou, como assinala Camões:11
Quem faz injúria vil e sem razão,
Com forças e poder em que está posto,
Não vence, que a vitória verdadeira
É saber ter justiça nua e inteira.12
10 - Veja-se a tragédia
Prometeu Acorrentado de
Ésquilo, versículo 13.
11 - Pensées, ed. Brunschvicg,
nº 298.
12 - Os Lusíadas, canto X,
estrofe LVIII.
57
De sua parte, Max Weber, ao distinguir a força (Macht) do senhorio
(Herrschaft), salientou que o titular deste último jamais pode satisfazer-se
com o fato puro e simples da obediência de seus subordinados. Ele procura
sempre, de uma forma ou de outra, obter a confiança dos subordinados.13
Analogamente, o controle do poder faz-se de modo objetivo e subjetivo.
Pode-se evitar o abuso de poder pela distinção de competências, como
preconizaram Locke e Montesquieu, ou pela separação física de forças ou
recursos materiais.
Toda relação
de poder
contém um
elemento
material e outro
espiritual ou
axiológico; um
elemento de
força e outro
de justiça.
13 - “Keine Herrsachaft
begnügt sich, nach aller
Erfahrung, freiwillig mit
den nur materiellen oder
nur affektuellen oder nur
wertrationalen Motiven als
Chance ihres Fortbestandes.
Jede sucht der Art der
beanspruchten Legitimität
zu erwecken und zu pflegen”
(Wirtschaft und Gesellsachaft,
5ª ed. revista, Tübingen,
J.C.Mohr, 1985, pág. 122).
14 - Foi esta a explicação
dada por Montesquieu, na
Advertência preliminar que
fez publicar após as primeiras
edições do Espírito das Leis,
aos que o acusaram de negar
a existência de virtude no
regime monárquico.
15 - De l’Esprit des Lois,
Livro III.
Este último modo de controle do poder é o mais apropriado no
campo militar. Durante a nossa Velha República, o governo federal só
não conseguiu intervir nos três Estados que dispunham de uma força
militar respeitável, capaz de se opor ao Exército nacional: São Paulo,
Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Como lembrado acima, o golpe de
estado ensaiado pelos três ministros militares, em 1961, só não teve
êxito, porque o III Exército, no Rio Grande do Sul, recusou-se a aderir.
Sob o aspecto subjetivo, a existência de uma justificativa social,
representada pela aceitação majoritária do poder pelo povo, está na
base da moderna teoria da legitimidade. Cada regime político tem
a sua própria justificativa ética ou razão de ser; ou, como preferiu
dizer Montesquieu, um princípio que anima a sua natureza. Esse
princípio, para o grande pensador francês, seria, na república ou na
democracia, a virtude, entendida como “amor da pátria, isto é, amor
da igualdade”14; na monarquia, a moderação ou a honra; no regime
despótico, o medo.15
Seja como for, bem se vê, nessa classificação um tanto formalista de
Montesquieu, que nenhum regime político funciona sem que o povo
respeite os governantes. Se esse respeito, nos regimes despóticos, é fundado
no temor da repressão, nos demais regimes ele é todo feito de confiança.
Aí está o grande fator de equilíbrio na organização política, como já havia
salientado Confúcio, muitos séculos antes:
Zigong: Em que consiste governar?
O Mestre: Em cuidar para que o povo tenha víveres suficientes, armas
bastantes e para que ele confie nos governantes.
Zigong: E se fosse necessário dispensar uma dessas três coisas, qual seria ela?
O Mestre: As armas.
58
Zigong: E das duas outras, qual seria dispensável?
O Mestre: Os víveres. Desde sempre, os homens são sujeitos à morte. Mas
sem a confiança do povo, não há ordem política que subsista.16
É exatamente por isso, que os regimes fundados preponderantemente
na força são todos, apesar das aparências, fracos. E é também por isso,
que as classes dominantes, hoje, tomaram consciência de que um dos
pressupostos indispensáveis à permanência no poder, numa sociedade
de massas, é o controle dos meios de comunicação de massa; pois são
eles que logram forjar, em grande parte, aquele elemento essencialmente
mutável, que denominamos opinião pública.
Ora, o que se viu, durante todo o regime constitucional instaurado em 1946,
foi, de um lado, a inexistência de uma soberania popular efetiva, dotada de
instrumentos jurídicos de controle da ação dos governantes. Ao povo, só
coube votar em candidatos escolhidos previamente pelos partidos, sem
poder destituí-los em caso de perda de confiança (recall) e sem o direito de
impor sua vontade aos governantes por meio de plebiscitos e referendos.
O recurso ao povo, mediante a consulta plebiscitária de janeiro de 1963, foi
uma exceção à regra do mando oligárquico, possibilitada unicamente pelo
fato de sua divisão interna.
De outro lado, tivemos – e continuamos tendo – manifestações de
confiança popular, não no regime político, mas tão só em governantes
determinados: naquela época, Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek.
Deparamo-nos aí, mais uma vez, com dois traços salientes de nossa
mentalidade coletiva, em todos os tempos: a cultura da personalidade, isto
é, o apego a pessoas e não a instituições ou protocolos, e o espírito cordial,
ou seja, uma orientação de vida norteada pelos sentimentos e não pela
fria razão.17 Para a massa do povo, bom governante é aquele com quem se
pode manter relações, reais ou falsas, de aproximação e quase intimidade;
não é o administrador racional e distante. O povo tinha manifesta empatia
com Gegê, o Pai dos Pobres, e com JK, o otimista construtor de Brasília. Não
tinha empatia alguma com os chefes militares e os políticos conservadores.
À época, as massas populares permaneceram impermeáveis às ideologias
políticas, as quais, ao contrário, continuaram a encantar os intelectuais,
sobretudo quando expressas em formas fixas e leis genéricas, que
dispensam todo esforço de raciocínio e compreensão da realidade,
necessariamente complexa e cambiante. Foi o que sucedeu com o
59
16 - Entretiens de Confucius,
livro XII, 7, tradução do chinês,
introdução e notas de Anne
Cheng, Éditions du Seuil, Paris,
1981, pág. 97.
17 - Cf. Sérgio Buarque de
Holanda, op. cit., capítulos
I. e V.
positivismo e o marxismo, entre nós. Ao contrário, o integralismo, mais
adstrito a símbolos e manifestações teatrais, no estilo tradicional das
procissões religiosas, e fundado na veneração de um líder máximo, alter
ego de um cacique tribal, não deixou de atrair multidões, mais fascinadas
do que convencidas; e, por isso, feneceu rapidamente, com a derrota do
fascismo no qual se inspirara.
Dir-se-á, no entanto, que os líderes do movimento de 1964
arregimentaram militares, religiosos, empresários e latifundiários
com muita propaganda ideológica, à qual os militantes da
esquerda responderam com ideologias contrárias. É verdade, mas
aqueles defendiam seus privilégios e propriedades, enquanto
estes acabaram, em grande parte, por sacrificar o seu futuro,
quando não a própria vida. O resultado é que a massa do povo
assistiu naquele momento, sem compreender, ao confronto de
ideias, parecendo perguntar como o burro da fábula: Não terei a
vida toda de carregar a albarda?
Em suma, por força do pronunciado descompasso entre a nossa
vida política e o texto formal da Constituição de 1946, os seus
preceitos vigoraram despidos de efetividade, sobretudo no
terreno profundamente minado das relações entre o poder civil
e a força militar.
Continuamos
à espera da
criação de um
órgão estatal de
planejamento,
que seja
autônomo
em relação ao
Poder Executivo
e trabalhe no
longo prazo, com
a participação
efetiva dos
setores
diretamente
interessados da
sociedade civil.
Lições para o tempo presente
Das três questões fundamentais que puseram em xeque o regime
constitucional de 1946, duas delas – a inaptidão do Estado a
promover o desenvolvimento nacional e a ausência de reforma
agrária – permanecem irresolvidas e continuam a ensombrecer o
futuro do país na vigência da Constituição de 1988.
A organização das funções e poderes estatais permanece alheia às
exigências modernas de previsão e planejamento na elaboração e
condução das políticas públicas. O Poder Executivo continua hegemônico
e concentrador de atribuições, mas desenvolve suas atividades no curto
prazo do mandato de seu chefe, em busca de resultados fáceis e vistosos,
que garantam a vitória nas próximas eleições. Essa tendência, que é uma
constante de nossa vida política, ganha força atualmente com o predomínio
do capitalismo financeiro, fundado na rápida circulação de riquezas, com a
superposição de títulos especulativos, cuja vinculação aos valores materiais
60
de origem torna-se cada vez mais remota. Continuamos à espera da criação
de um órgão estatal de planejamento, que seja autônomo em relação ao
Poder Executivo e trabalhe no longo prazo, com a participação efetiva dos
setores diretamente interessados da sociedade civil.
A política de injusta distribuição da renda nacional continua a aprofundar a
desigualdade. Ao contrário do que sucedeu durante o período de vigência
da Constituição de 1946, o Banco Central tornou-se autônomo em relação
à presidência da República, ainda que essa autonomia não tenha sido
inscrita no texto constitucional. Além disso, o Congresso Nacional aprovou,
em 2000, a Lei Complementar nº 101, que instituiu regras precisas de
responsabilidade fiscal em todas as unidades da federação.
Mas o reverso dessa moeda é negativo. Durante os últimos governos, a
política de moeda e de crédito deixou de ser instrumental, para tornar-se
uma verdadeira finalidade pública, à qual devem submeter-se todas as
demais políticas. Demais, o endividamento público passou a substituir
largamente a arrecadação de recursos financeiros por meio de impostos.
O serviço da dívida pública – pagamento de juros e amortização do
capital – atingiu proporções gigantescas: cerca de 7% do PIB. Para se
ter uma ideia aproximada do que isso significa em termos de repartição
da riqueza nacional, é preciso considerar que, nos últimos exercícios
financeiros, as parcelas pagas aos portadores de títulos públicos de dívida
têm representado o quádruplo das despesas totais com o custeio do SUS
– Sistema Único de Saúde, e mais de treze vezes o gasto anual com o Bolsa
Família, durante o governo Lula.
Quanto ao Poder Legislativo, ele tende a representar cada vez menos o
povo no seu conjunto. Em primeiro lugar, porque desde a Constituição de
1891 dividimos o povo em unidades federadas, profundamente desiguais
em densidade demográfica e situação socioeconômica. Em segundo
lugar, porque o corpo de representantes do povo continua dominado
majoritariamente, em razão do nosso defeituoso sistema eleitoral, por
parlamentares ligados às oligarquias locais, ou sustentados na vida pública
pelo poder econômico privado.
Em suma, a relação de confiança política continua, até hoje, a ser pessoal
e não institucional. Ela pode ser incrementada com um programa de
assistência social inteligente e eficaz, como sucedeu nos dois mandatos do
Presidente Lula. Mas esta não é, por certo, uma garantia do desenvolvimento
nacional, exigida pela Constituição de 1988 (art. 3º, II). É muito mais fácil e
61
produz melhores resultados eleitorais distribuir uma média de R$100,00
por mês a cada família pobre o país, do que abrir postos de emprego
formal para os mais de dois milhões de jovens que entram, todos os anos,
no mercado de trabalho.
No tocante à reforma agrária, muito embora a Constituição em vigor a
tenha tornado impositiva, esse dever fundamental do Estado tem sido
mediocremente cumprido nos últimos vinte anos. A principal razão
para esse resultado insatisfatório é, ainda uma vez, o atrelamento
das políticas públicas exclusivamente ao governo, que exerce
poderes discricionários na execução do orçamento e atua sempre
no curto prazo, sem previsão nem planejamento adequados.
O resultado é que, nos últimos anos, tem crescido a prática da
escravidão agrícola, bem como o desalojamento de famílias de
lavradores. Além disso, tem aumentado vertiginosamente a área
total de terras adquiridas por estrangeiros, e vêm se multiplicando
os conflitos oriundos da apropriação irregular de terras habitadas
por indígenas.
Isto, sem falar no fato de que a questão agrária, hoje, já não se
confina à necessidade de uma justa redistribuição da terra agrícola,
mas vincula-se, sempre mais, ao dever fundamental do Estado
de preservar o meio ambiente, impedindo os desmatamentos
criminosos.
Ora, para surpresa geral, a questão das relações entre o poder civil
e as forças militares, que ocupou a maior parte da cena política
no período compreendido entre 1946 e 1964, volta à ordem do
dia. Até há pouco, tinha-se a impressão de que se tratava de um problema
superado com o advento da Constituição de 1988. Foi só com o atual
debate sobre o alcance da lei de anistia de 1979, que se percebeu ter o
conflito permanecido em estado latente, pronto a ressurgir a qualquer
momento. Esquecemo-nos de que a lei de anistia foi negociada pelos
últimos governos militares com o Congresso Nacional, como condição
para se permitir a reconstitucionalização do país. Para o estamento militar,
deixar de considerar anistiados os companheiros de farda que reprimiram
criminosamente os opositores políticos, durante o regime castrense, seria
quebrar os termos da negociação efetuada sob os governos de Ernesto
Geisel e João Baptista Figueiredo. Saberemos vencer essa resistência, de
modo a cumprir integralmente os deveres fundamentais decorrentes do
sistema mundial de direitos humanos?
Tem aumentado
vertiginosamente
a área total de
terras adquiridas
por estrangeiros,
e vêm se
multiplicando os
conflitos oriundos
da apropriação
irregular de terras
habitadas por
indígenas.
62
A primeira condição, para tanto, é vencer o tradicional regime oligárquico,
reconhecendo ao povo brasileiro aquela soluta potestas de que falava
Bodin; ou seja, uma soberania efetiva e não meramente retórica. Ora,
isto implica, antes de mais nada, em quebrar o monopólio do Congresso
Nacional de alterar a Constituição. Afinal, que soberania é essa, que
não permite ao seu titular decidir, em última instância, sobre mudança
constitucional alguma? Que democracia é essa, na qual o povo não tem
nem mesmo o poder de iniciativa de emendas constitucionais; não tem
o direito de votar em referendos e plebiscitos sem autorização dos seus
representantes, nem o poder de destituir os mandatários que elegeu?
Essas as indagações capitais que devem ser feitas ao país pelas entidades
cujo dever estatutário consiste em defender o Estado Democrático de
Direito, como é o caso da Ordem dos Advogados do Brasil.
São Paulo, 1º de setembro de 2008.
63
Recurso
Extraordinário
Sepúlveda Pertence
VOTO SOBRE INVIOLABILIDADE DE PARLAMENTAR
DA AUTORIA DO MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE
DADO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Humberto Ribeiro
Soares
Procurador do Estado
do Rio de Janeiro
aposentado
Tarefa das mais difíceis e quase torturante – de que me incumbiu a Revista
– foi a de escolher Voto do Ministro Sepúlveda Pertence dado no Supremo
Tribunal Federal no desempenho da nobre missão de Ministro da Corte
(da qual se aposentou), dentre a pletora dos que de sua autoria, já que
todos são de enorme dignidade e superlativa erudição. Com uma carreira
extremamente benfazeja às letras jurídicas, nota-se de todos os votos
que ele proferiu na Suprema Corte, o extremo cuidado que Sepúlveda
Pertence imprimia ao estudo das teses, que levava ao mais aprimorado
grau científico de ourivesaria jurídica.
Assim, pretendendo levantar a situação quanto a Vereador, selecionei,
aleatoriamente, o voto em que ele funcionou como Relator, no RE 210.917/
RJ, do Plenário, sobre tema de sua inviolabilidade parlamentar.
Recordo que, dos principais provimentos da Constituição Federal sobre
tal tema, há o inciso VIII do art. 29 {“Art. 29 (...) VIII – inviolabilidade dos
Vereadores por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e
na circunscrição do Município.”}, o inciso IX do mesmo art. 29 [“proibições
e incompatibilidades, no exercício da vereança, similares, no que couber,
ao disposto nesta Constituição para os membros do Congresso Nacional
e, na Constituição do respectivo Estado, para os membros da Assembleia
Legislativa”] e, ainda, o art. 53 [“Art. 53 – Os Deputados e Senadores são
invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e
votos.”]
A evolução da construção do Supremo ao longo dos anos e à luz da
Carta de 88 (mas, desde 1914 em caso em que Ruy Barbosa funcionou
como advogado) pode ser aferida pelos arestos no RE 140.867/MS, de
30/06/1996, no HC 74.201/MG de 12/11/1996 e no RE 210.917/RJ de
12/08/1998 este no Plenário da Corte. Adviria o nº RE 220.687?MG, de
13/04/1999, reportando-se àquele último.
Pois bem, o Pleno, no RE 210.917/RJ de 12/08/1998, é da relatoria do
cultíssimo Ministro Pertence e entendi de escolhê-lo.
Penso, tão somente, que a jurisprudência ainda carece de, no trato
66
evolutivo, dedicar-se mais detalhadamente ao aspecto dos abusos.
O que, espero, há de ocorrer, possivelmente pela via do confronto de
bens constitucionais.
Mas, é um prazer ler o voto deste excepcional e corretíssimo jurista que
é Sepúlveda Pertence. Recomendo aos leitores da Revista com empenho.
67
SEPÚLVEDA PERTENCE
Professor e jurista,
foi presidente do
Supremo Tribunal
Federal e presidente
da Comissão de Ética
Pública da Presidência
da República.
RECURSO EXTRAORDINÁRIO
VOTO
Não se questiona a efetividade dos fatos nem suas circunstâncias.
Gira sim a controvérsia sobre estar ou não a responsabilidade da recorrente
no episódio – em particular, a sua responsabilidade civil por danos morais
acarretados ao recorrido pelas publicações – coberta pela inviolabilidade
de que é titular, nos termos do art. 53 da Constituição.
É problema, logo se vê, de pura qualificação jurídico-constitucional de fato
certo, a cuja solução está precisamente destinado o recurso extraordinário.
Duas são as indagações a responder: se o fato cabe no âmbito material
da inviolabilidade parlamentar; a segunda, se a extensão da eficácia dessa
imunidade real alcança, além da responsabilidade penal, a responsabilidade
civil do parlamentar por danos morais oriundos das notícias.
A primeira questão, da resposta afirmativa, ao que penso, a leitura vigente
da jurisprudência do Tribunal sobre o art. 53 da Constituição, no ponto em
que - rompendo linha constante dos textos constitucionais anteriores deixou de restringir a esfera da imunidade real às manifestações emitidas
pelo parlamentar "no exercício de suas funções" (Constituição do Império,
art. 26; CF 1937, art. 43) "no exercício das funções do mandato" (CF 1934,
art. 31), ou simplesmente "no exercício do mandato" (CF 1891, art. 19; CF
1946, art. 44; CF 1967, art. 34; CF 1969, art. 32).
Aqui, não se pode irrogar ao Tribunal o misoneísmo exegético ou
a interpretação retrospectiva que sói atribuir-se, muitas vezes com
razão, à jurisprudência constitucional que, avessa às inovações de uma
Constituição, continua a decidir, na sua vigência, como se nada houvesse
mudado ...
Certo num primeiro momento APen. 292, 12.4.89, Gallotti, RTJ 135/489 -,
os termos do acórdão parece testemunharem certa indiferença do Tribunal
acerca da alteração constitucional; dela entretanto, tomou conhecimento
tão logo se mostrou decisiva para os casos enfrentados e, então, não lhe
negou as consequências inovadoras entendidas cabíveis (v.g., InqQ0 396,
21.9.89, Gallotti, 10 Ql42?, a/RE 210917-7 - RJ RTJ 131/1039; InqQ0 390,
27.9.89, Pertence, RTJ 129/970; Inq. 503, 24.6.92, Pertence, RTJ 148/73;
AgInq 874, 22.3.95, Velloso, DJ 26.5.95).
68
Não chegou o Tribunal, é verdade, à posição extremada de entender
irrestrita a imunidade, de modo a cobrir qualquer delito de palavra
imputável a Deputados ou Senadores (cf, Sérgio O. Médici, Imunidades
Parlamentares na nova Constituição, RT 666/403, abr. 1991).
Nem foi ao ponto de incluir, no âmbito da irresponsabilidade, toda e
qualquer manifestação de caráter político-parlamentar como sustentam
opiniões respeitáveis, como, em parecer no Inq. 390, o d. Procurador
da República Eugênio Aragão (RTJ 129/971), em sede doutrinária, o il.
Advogado Orcir Peres (Imunidade Parlamentar - Alcance, Rev. Br. C.Crim.,
13/144) e, em decisão individual, de 1.8.97, no Inq. 1296, o em. Ministro
Nelson Jobim (DJ 14.8.97).
Lê-se nessa última, depois de erudita recordação das restrições impostas
pelo direito anterior:
"O art. 53 suprimiu a menção ao exercício do mandato e não o fez somente
por ser desnecessária a restrição.
Suprimiu para dar outro contexto de incidência e aplicação da prerrogativa.
Observe-se que a mesma Carta, quando trata das prerrogativas dos
Vereadores, retoma a cláusula do "exercício do mandato" e cria outra
restrição:
"Art. 29. ...
VI. inviolabilidade dos Vereadores por suas opiniões, palavras e votos no
exercício do mandato e na circunscrição do município."
Quer a Constituição Federal de 1988 outro tratamento para a
prerrogativa quando se tratar de Parlamentares Federais (art. 53) e
estaduais (art. 27, § 10). A sua opção foi explícita quando, para estes,
suprimiu o que os textos anteriores continham e, para os vereadores, os
manteve com acréscimo.
O texto de 1988 passou a valorar a ATIVIDADE POLÍTICA do parlamentar.
Entenda-se como exercício do mandato ou de suas funções, todas
aquelas atividades vinculadas ao desempenho, pelo Parlamento, de suas
funções constitucionais. É o parlamentar, nessa perspectiva, uma agente
das funções do Parlamento. O exercício do mandato tem por objetivo
viabilizar a realização, pelo Parlamento, de suas funções.
69
A atividade política do parlamentar inclui o exercício do mandato e de suas
funções. No entanto, nele e nelas não se esgota. É mais ampla.
A atividade política dos parlamentares abrange uma gama de funções e
tarefas de natureza vária. É nos partidos, cuja responsabilidade é maior que
a dos não parlamentares; é nas eleições; é nos debates na mídia, etc."
O Plenário, contudo, repita-se, não foi a tanto, como reconhece o Ministro
Jobim: provam-no as decisões que repeliram a invocação da inviolabilidade
parlamentar na hipótese de ofensas irrogadas a adversários em atos de
campanha eleitoral (cf. Inq. 503, 24.6.92, Pertence, RTJ 148/73, e Inq. 496,
23.9.93, Gaivão, RTJ 150/688) ou aquelas dirigidas ao atual Prefeito por seu
antecessor - malgrado ser esse último Deputado Federal -, porque "insertas
em uma disputa política municipal", a revelar "sua clara desvinculação para
com o ofício parlamentar federal do indiciado", (Inq 803, 30.8.95, Gallotti,
RTJ 156/772, 776).
16. De outro lado, porém, penso que a orientação dominante no Tribunal
não está na passagem da ementa, invocada pelo acórdão recorrido, do
Inq. 510, de 1.2.91, de que V.Exa., Senhor Presidente, foi o relator, e na
qual se lê que apenas são passíveis da tutela de imunidade material "os
comportamentos parlamentares cuja prática seja imputável ao exercício
do mandato legislativo": trata-se de consideração lateral do voto de V. Exa.,
data venia, sem relevo no caso então decidido, um exemplo de escola de
ofensa sempre compreendida na esfera tradicional de inviolabilidade, qual
seja, aquela contida em discurso proferido da tribuna de uma das Casas do
Congresso Nacional.
Estou em que a linha de nossa jurisprudência dá maior relevo à alteração
constitucional discutida, como se verifica nos dois leading cases já referidos,
nos quais a interpretação dela constituiu efetivamente premissa necessária
das decisões dos casos concretos.
O primeiro é o Inq. 396, 21.9.89, relator o em. Ministro Gallotti: para concluir
pela incidência da nova regra de imunidade real a "ofensa desferida fora do
recinto das sessões, por Deputado Federal à honra de Senador, em razão
de entrave que estaria sendo oposto, pelo último, à tramitação de projeto
de lei", não foi preciso imputar juridicamente o discurso ofensivo ao
exercício do mandato mas apenas reconhecer existente "a vinculação - de
natureza lógica - "entre o discurso questionado e a atividade parlamentar
do representado".
70
Na linha do acórdão, proferi voto-vista (RTJ 131/1046), que desenvolvi ao
relatar pouco depois, em 29.9.89, o Inq. 390, de cujo voto condutor peço
vênia para recordar o seguinte:
"1. Questão similar foi resolvida na Sessão Plenária de 21-9-89, quando se
declarou extinta a punibilidade do Deputado Fábio Feldman por ofensas
ao Senador Humberto Lucena (Inq. 396, rel. em. Ministro Octavio Gallotti).
Tendo pedido vista dos autos, acompanhei o voto do relator, o em. Ministro
Octavio Gallotti.
Li e endossei passagem do seu voto, em que S. Exa. observava:
"Esse silêncio (do art. 53) não tem, todavia, o efeito de tornar extensível,
para além do exercício do mandato, a proteção da imunidade material,
pois esta não pode ser entendida como um privilégio pessoal do deputado
ou senador, mas como verdadeira garantia da independência do exercício
do poder legislativo. É assim, inerente ao instituto, o liame indispensável
entre a prerrogativa em causa e a função parlamentar. E os crimes contra a
honra, que não sejam praticados no desempenho do mandato, são objeto
somente da imunidade formal, cabendo às Casas do Congresso resguardar
a sua independência, mediante a concessão ou a recusa, caso a caso, da
licença para o processo de seus membros)".
Nessa linha, disse eu, é que lhe acompanhava a conclusão; donde
acrescentei a necessidade de explicitar certa reserva à tese do brilhante
parecer da Procuradoria-Geral. E prossegui:
Não creio, por exemplo, que o tratar-se de "exteriorização da opinião
política" seja bastante para, em qualquer hipótese, expungir a criminalidade
da ofensa à honra alheia perpetrada por membros do Congresso Nacional:
do contrário, estaria consagrado em seu favor e em detrimento de seus
adversários um injustificável privilégio, por exemplo, nas campanhas
eleitorais em que disputassem a reeleição ou outro cargo eletivo.
Estou assim em que, ainda quando se cuide de discursos políticos, é de
excluir-se a imunidade material, se a ocasião, o local, o propósito ou outras
circunstâncias relevantes evidenciarem a total desconexão do fato com o
exercício do mandato ou a condição de parlamentar.
Por tudo isso, a mim me parece que, para compatibilizar a amplitude
sem precedentes, da nova inviolabilidade parlamentar, com os
71
princípios basilares da Constituição, entre os quais o do pluralismo e
o da isonomia, o Tribunal deve reservar-se o poder de examinar, caso a
caso, o contexto do fato, a fim de evitar que a prerrogativa legítima se
converta em odioso privilégio.
Se, não obstante, naquele caso, se reconheceu a abolitio criminis, é que
se levaram em conta as circunstâncias do fato: reunião pública entre
parlamentares e cidadãos militantes de movimentos ecologistas, realizada
no Auditório Nereu Ramos, no próprio edifício da Câmara dos Deputados,
denominada Alerta do Meio Ambiente à Nação, no correr da qual o Deputado
Feldman, notório integrante da Frente Verde, teria feito acusações ao
Senador Lucena, a propósito de alegado retardamento na tramitação de um
projeto de lei de preservação das baleias. Todo esse contexto do fato, como
pude acentuar, tornava mais estreito e, inequívoco o liame entre o discurso
questionado e a atividade parlamentar do representado.
Daí, parece, a unanimidade da decisão.
O em. Ministro Brossard, por exemplo, acompanhou, no caso, o voto
do relator e o meu, embora declarando entender que nada mudou de
substancial, no ponto, entre a Constituição de /946 e a atual. Explicou S. Exa.:
sendo a imunidade garantia da função legislativa e não do mandatário, era
ocioso dizer que só protegia suas opiniões, palavras e votos, "no exercício
do mandato".
De seu turno, também o em. Ministro Célio Borja sublinhou que só
reconhecia, naquele caso, a imunidade material, porque se tratava de um
episódio parlamentar sobre assunto parlamentar.
Considero, data venia, que o âmbito da imunidade material efetivamente
se ampliou no texto constitucional de 1988 em relação ao de 1946, ou, pelo
menos, em relação à interpretação predominante sob a vigência deste ou
de preceitos constitucionais idênticos.
No referido Inq. 396, o voto do Ministro Gallotti citou passagem de Raul
Machado Horta, que entendia já naquele regime anterior, que a imunidade
devesse compreender manifestações alheias à área específica do exercício
do mandato e abranger manifestações dele decorrentes, a exemplo do
relatório que o congressista fizesse das suas atividades parlamentares, em
reunião com os eleitores ou em correspondência a eles dirigida.
Essa não foi, porém, a orientação que então prevaleceu. A consulta à
72
doutrina e à jurisprudência convencerá que a tese dominante foi mais
restritiva (Barbalho, Comentários, 1924, pág. 99; Maximiliano, Comentários,
1948, 11/48; Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1946, 1953,
11/243); Rosah Russomano, O Poder Legislativo na República, 1960, fl. 140).
Exemplo dela é a opinião de Pontes de Miranda (ob. loc. cit.), citada no
parecer, para quem, sob o art. 44 da Constituição de 1946, a inviolabilidade
do parlamentar "só se refere ao que profere, ou escreve, no exercício da
função, discursos, no recinto, pareceres e votos proferidos no edifício
do corpo legislativo ou nas sessões conjuntas, opiniões emitidas no
desempenho de comissões da sua câmara, ou em qualquer lugar por
incumbência dela". Admitia, o grande tratadista, que a imunidade cobrisse
a publicação do discurso ou de qualquer trabalho parlamentar, advertindo
que "susceptível de aplicação penal, porém, a publicação de discurso
que não foi dito, ou do trabalho que não foi apresentado à câmara, ou a
qualquer das comissões, ou em desempenho de missão da Câmara".
Hoje, – e daí o meu voto no caso Feldman – estou em que a eliminação,
no art. 53 CF, da cláusula restritiva "no exercício do mandato" - permite
efetivamente que se dê à imunidade material uma extensão maior, de
modo a compreender na sua esfera de proteção manifestações que,
embora não se possam estritamente caracterizar como exercício da função
parlamentar, dela são consequências inarredáveis, em particular no tempo
das comunicações de massa.
É preciso não olvidar, contudo, como frisou, com razão, o parecer do
Ministério Público, que, mesmo na sua dicção vigente, a garantia "refere-se
a senadores e deputados, evidentemente enquanto tais" (fl. 40).
O decisivo para que incida a regra da inviolabilidade parlamentar será,
assim em cada caso, que haja um nexo de implicação recíproca entre a
manifestação de pensamento do congressista, ainda que fora do exercício
do mandato, e a condição de deputado ou senador.
Em outros termos, a imunidade material cobre hoje não apenas o que
disser o mandatário no exercício do mandato, mas também em razão dele.
É induvidoso, assim, para voltar ao parecer da Procuradoria-Geral, não ser
admissível "estender a vantagem ao cidadão acaso mandatário que inverte
com ofensas, e.g., contra seu vizinho de residência, pois, nesse âmbito de
interesses, não há considerá-lo sendo senador ou deputado federal" (fl. 41).
73
Nossa divergência começa, porém, no ponto em que, logo em
seguida, o parecer entende compreender-se nas novas dimensões de
irresponsabilidades, "até, exteriorizações de opinião política, no sentido
coloquial mesmo - estampadas em jornais, proferidas por deputado ou
senador em diversas situações da vida social".
Est modus in rebus. Tratar-se de opinião política ou de opinião sobre
políticos não me parece suficiente para expungir a criminalidade de
eventuais ofensas à honra alheia perpetradas por membros do Congresso
Nacional, quando nem estejam no exercício do mandato nem haja conexão
entre o discurso e a função parlamentar.
Se não se quiser confundir a imunidade material com o privilégio de
irresponsabilidade pessoal, é preciso o cuidado de distinguir entre a ação
do congressista e a ação do político.
A pregação de ideias, o apoio e a crítica a atos dos governos, a qualificação
positiva ou negativa de homens públicos são a matéria prima do
aliciamento e da mobilização de opiniões que constituem o empenho
cotidiano dos políticos, sejam eles mandatários ou não: estender a
inviolabilidade ao que, nesse trabalho essencialmente competitivo, diga
o político, que seja parlamentar, fora do exercício do mandato e sem
conexão com ele, é dar-lhe uma situação privilegiada em relação aos
concorrentes, que briga com princípios fundamentais da Constituição".
A partir dessas premissas, naquele caso, distinguiram-se duas partes no
texto da matéria atribuída a uma Deputada Federal e dada por ofensiva ao
Governador do seu Estado.
Reputou-se sem conexão com o exercício do mandato da indiciada ou
com a sua condição parlamentar federal a pendenga em torno da alegada
demissão em massa de servidores estaduais, cuja atribuição critica ao
Governador, pelo Estado, era a "manifestação de uma militante política
sobre fato de administração local, que nada indica sequer tivesse sido
objeto de pronunciamento seu na Câmara dos Deputados".
Já no segundo tema das diatribes – o comportamento do Governador
do Estado junto ao Executivo da União a propósito da nomeação de
reitor pro tempore da Universidade Federal no Estado – se identificaram
circunstâncias aparentes – quais, o caráter federal do affaire, a alusão a um
discurso na Câmara e a contactos da indiciada com Ministros de Estado
que, confirmadas, permitiriam identificar o reclamado "nexo de implicação
74
recíproca entre a manifestação de pensamento do congressista, ainda que
fora do exercício do mandato, e a condição de deputado ou senador".
Sigo convencido da correção dessa linha intermédia que, a partir da
inovação do teor constitucional, nossa jurisprudência vem trilhando.
Por ela, o tribunal se recusa, de um lado a fazer da imunidade um privilégio
pessoal do político que detenha um mandato, mas de outro atende às
justas ponderações daqueles que, já sob os regimes anteriores, realçavam
como a restrição da inviolabilidade aos atos de estrito e formal exercício
do mandato deixava ao desabrigo da garantia manifestações que o
contexto do século dominado pela comunicação de massas tornou um
prolongamento necessário da atividade parlamentar.
Serve de exemplo voto vencedor de Raul Pina, em 1954, na Comissão de
Justiça da Câmara dos Deputados, citado por Pedro Aleixo (Imunidades
Parlamentares, ed. Rev. Br. Est. Políticos, B. Horizonte, 1961, p. 71).
"As condições da vida moderna", acentuou o pranteado homem público
gaúcho - "com os seus poderosos meios de difusão, como a imprensa,
servida pela composição mecânica e por eficientes rotativas, o rádio, a
televisão, não permitem se restrinja ao âmbito das Câmaras e das suas
Comissões, internas ou externas, o exercício da função de representante
da Nação. Deixou de ser um ambiente materialmente limitado pelas
paredes de um edifício aquele em que se exerce a função parlamentar.
Apresentado um projeto de interesse geral, proposta uma reforma
importante, denunciado um abuso clamoroso, vê-se o representante
desde logo assediado pela imprensa e pelo rádio, desejosos de melhor
esclarecer o público. Forçoso se lhe torna, assim, ampliar o debate, com
vantagem, aliás, do funcionamento do regime democrático. As casas do
Parlamento" enfatizava "são hoje, apenas, o centro donde se irradia ação
parlamentar e não mais em si a podem confinar".
"E não é somente isto", prosseguia Pilla. "Divulgadas pela imprensa e pelo
rádio as acusações de um representante, os acusados vêm frequentemente
a público para as rebater e revidar, sem esperar a ação dos órgãos de
investigação parlamentar, necessariamente mais lenta. O representante
vê-se, destarte, obrigado pelos próprios acontecimentos a transferir para
cenário mais amplo a sua atuação parlamentar".
A esse reclamo de expansão da esfera de garantia para aos cenários mais
amplos da atuação parlamentar contemporânea parece corresponder
75
adequadamente o critério firmado nos precedentes de levar o alcance da
imunidade até onde se possa identificar um laço de implicação recíproca
entre a manifestação incriminada, ainda que fora do estrito exercício do
mandato, e a qualidade de mandatário político do agente.
Esse liame parece inquestionável na espécie.
O fato noticiado - o encaminhamento ao Ministério Público de notitia
criminis contra autoridades administrativas e judiciais veiculando
suspeitas de práticas ilícitas em prejuízo de uma autarquia federal - posto
não constitua exercício do mandato parlamentar stricto sensu, uma
vez facultado a qualquer cidadão - quando feito por uma Deputada,
notoriamente empenhada no assunto, guarda inequívoca relação de
pertinência com o poder de controle do Parlamento sobre a administração
da União.
Certo, a causa de pedir da ação reparatória de danos morais não é a
formulação da notitia criminis mas a divulgação pela imprensa do seu
encaminhamento pela Deputada ao Ministério Público.
Mas afora a evidência de a própria repercussão jornalística do fato ser
indissociável da posição e da atividade parlamentar da subscritora das
suspeitas, de qualquer modo, em tema de imunidade parlamentar,
é assente que não ilide a incidência da franquia a publicação pela
imprensa, por iniciativa do congressista ou até de terceiros, do fato
coberto pela inviolabilidade.
O ponto está de há muito sedimentado na jurisprudência, desde, pelo menos,
o julgamento, em 1914, do HC 3.635, relator Oliveira Ribeiro, requerido por
Rui em favor dos diretores de O Imparcial para assegurar-lhes a publicação
de discursos parlamentares (Edgard Costa, Os Grandes Julgamentos do
Supremo Tribunal Federal, 1964, 1/190; Leda Boechat Rodrigues, História do
Supremo Tribunal Federal, 1991, 111/169).
Já então se rendia o Tribunal à evidência de que a publicidade dos debates
parlamentares, fora dos limites e controles da imprensa oficial, era da
essência do regime político (Edgard Costa, ob. locs. cits, p. 197).
Sabidamente, porém, o império das comunicações de massa no mundo
contemporâneo tornou insuficiente para assegurar o acesso da atividade
parlamentar à opinião pública a veiculação pela imprensa do próprio texto
dos discursos: essa realidade acentuada por vozes de peso (v.g., Raul Pilla,
76
DON, 9.6.54, apud Fernanda M. de Almeida, Imunidades Parlamentares,
Câmara dos Deputados, 1982, p. 97; Raul Machado Horta, Imunidades
Parlamentares, RDP 3/31 e Estudos Dir. Constitucional, 1995, p. 591, 598) –
esteve certamente à base da opção do art. 53 da Constituição de 1988 de
ampliar a esfera da inviolabilidade.
Nesse quadro é indiscutível que a compreensão da publicidade no
âmbito da imunidade real há de acompanhar o alargamento do domínio
da inviolabilidade, de modo a proteger não apenas a divulgação de atos
do estrito exercício do mandato, quais os discursos parlamentares, mas
também aos atos que o excedam, mas que se tenham como relacionados
à atividade ou à condição de congressista do agente e, por isso, também
cobertos pela franquia constitucional.
Esse entendimento parece estar subjacente tanto à decisão plenária
do Aglnq. 874, de 26.5.95, da lavra do em. Ministro Velloso, quanto na já
referida decisão individual do em. Ministro Jobim, no Inq. 1296: em ambos
os casos, declarou-se tuteladas pela imunidade material - com invocação
dos limites mais flexíveis do art. 53 CF - não a publicidade da manifestação
dos Senadores envolvidos na reunião das comissões parlamentares de
inquérito que integravam, mas as entrevistas por eles concedidas a respeito
de investigações que nelas tinham curso.
Resta a segunda questão, a de saber se a imunidade material do parlamentar
com relação ao fato elide também a sua responsabilidade civil pelos danos
morais consequentes.
Impressiona aqui o silêncio da jurisprudência, onde não logrei encontrar
precedentes, assim como a omissão de boa parte da doutrina brasileira
(v.g., Barbalho, Constituição Federal Brasileira, 1902, p. 64; Herculano de
Freitas, Direito Constitucional, 1923, p. 207; Aurelio Leal, Constituição
Federal Brasileira, 1925, p. 285; Pedro Aleixo, Imunidades Parlamentares,
cit., Barbosa Lima Sobrinho, As Imunidades dos Deputados Estaduais,
1966; J. Celso de Mello Filho, Constituição Federal, anotada, 1986, p. 156;
Pinto Ferreira, Comentários à Constituição Brasileira, Saraiva, 1990, p.
2/622; José Afonso da Silva, Curso de Dir. Constitucional Positivo, 15a ed,
1998, p. 532; Michel Temer, Elementos Dir. Constitucional, 14a ed, 1998, p.
129; Celso Bastos, Comentários à Constituição do Brasil, 4°v., 1/186.
O vácuo, entretanto, menos parece de atribuir a dúvidas não resolvidas
a propósito do que à relativa novidade da generalizada aceitação
de reparabilidade patrimonial dos danos morais à tendência de
77
deslocar a reação dos ofendidos, do campo da repressão penal, para
o da responsabilidade civil, que tem a ver também com o movimento
contemporâneo pela depenalização.
Tanto assim que, dos mais antigos até os de hoje, quantos se ocuparam
do problema são acordes no sentido de os efeitos da inviolabilidade
parlamentar alcançarem a responsabilidade civil.
A sentença proferida neste processo refere - a partir da citação de João de
Oliveira Filho (Legislativo - Poder Autêntico, Forense, 1974), filiado à tese as opiniões, no estrangeiro, de Laband (Le Dr. Public de 1'Empire Allemand,
1°
/531) e de Pierre (Tr. Dr. Politique, p. 1095) e, no Brasil, de Paulo Lacerda
(Dr. Constitucional Brasileiro, 11/173) e de Carlos Maximiliano (Comentários
à Constituição Brasileira, 4a ed. 1948, 11/49).
"Não se admite o processo" escreveu, depois, peremptório, Pontes de
Miranda (Comentários à Constituição de 1946, 1953, 11/243) - "porque
não há crime; nem cabe a responsabilidade por perdas e danos,
porque a irresponsabilidade do art. 44 é geral, de direito constitucional
material e, pois, compreensiva da irresponsabilidade penal e da
irresponsabilidade civil".
Nessa mesma trilha, sem maiores comentários, sao numerosas e
consensuais as opiniões na doutrina brasileira (v.g., Raul Machado Horta,
Imunidades Parlamentares, cit., 1968, RDP 3/36; Estudos, p. 597); Manoel
G. Ferreira Filho, Comentários à Constituição Brasileira, 1972, 1°
/214;
Marcelo Caetano, Direito Constitucional, 1978, 11/183; Rosah Russomano,
Imunidades Parlamentares, Rev. Inf. Legislativa, 1984, n. 81/245 e Curso
Dir. Constitucional, 5a ed, 1997, p. 157; Alexandre de Moraes, Imunidades
Parlamentares, Rev. Br. C.Crim., 21/50 e Direito Constitucional, 3ª ed.
1998, p. 329).
No direito comparado, a pesquisa, posto sem pretensões exaustivas,
desvela a mesma tranquila extensão à responsabilidade civil dos efeitos da
inviolabilidade parlamentar (cf., v.g., para o direito anglo-americano, E. May,
A Treatise on the Law, Privileges, Proceedings and Usage of Parliament,
1946, p. 51; B. Schwartz, American Constitutional Law, 1955, p. 57; Corwin,
The Constitution and What it means today, 40ª ed., 1978, p. 25; na França:
Duguit,Tr. Droit Constitutionnel, 1911, T. IIª, § 134, p. 282; G. Vedei, Droit
Constitutionnel, 1949, p. 402; M. Duverger, Droit Constitutionnel et Insts
Politiques, 1956, p. 484; Ch. Debbasch et alii, Droit Constitutionnel e Insts
Politiques, 1990, p. 824; na Itália: Ceretti, Diritto Costituzionale Itália, 5ª,
78
1957, p. 331; Biscaretti di Ruffia, Derecho Constitucional, trad., Madri, 1965,
p. 381; C. Mortati, Istituzioni di Diritto Pubblico, 8ª, 1969, 1/470; S. Traversa,
Immunità Parlamentare, na Enciclopedia del Diritto, 1970, XX/178, 192;
Santi Romano, Principios de Dr. Constitucional Geral, trad., S.Paulo, 1977, p.
297; Crisafulli Paladin, Commentario Breve alia Costituzione, 1990, art. 68, n.
3, p. 410; em Portugal: Canotilho - Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa Anotada, 2', 1985, art. 160°
, nota II, p. 171; na Argentina: Bidart
Campos, Derecho Constitucional del Poder, 1967, 1/276; Quiroga Lavié,
Derecho Constitucional, 3°
, 1993, p. 767).
Note-se que também civilistas de autoridade sói referirem-se à imunidade
parlamentar do agente como causa excludente da responsabilidade civil
(v.g., H.L. Mazeaud e Tune, Traité (...) de la Responsabilité Civile, 5a, 1957,
1/595; Aguiar Dias, Da Responsabilidade Civil, 3a, 1954, 11/6391.
Tanto quanto o consenso, chama a atenção na pesquisa doutrinária
que a compreensão da irresponsabilidade civil no círculo de eficácia da
imunidade material seja, em praticamente todos os autores, objeto de
uma afirmação apodítica, indiscutível e evidente por si mesma (só Ridart
Campos anota, na Argentina, a dissenção de Lozada, fundada, porém, em
peculiariedade da redação do art. 61 da Constituição).
Daí talvez que, dos textos consultados, só a atual Constituição portuguesa
haja pormenorizado, no art. 160°
, 1, dedicado à imunidade real, que "os
Deputados não respondem civil, criminal ou disciplinarmente pelos votos
e opiniões que emitirem no exercício das suas funções" (a explicação da
minúcia provavelmente estará no intuito de marcar a frontal contraposição
histórica com o art. 89, § 1º da Carta salazarista).
A Constituinte italiana, por proposta de Mortati, cogitou de explicitação
semelhante, afinal rejeitada, sem prejuízo, segundo a doutrina, pois
"não há dúvida razoável alguma" - asseveram Crisafulli e Paladir (ob. loc.
cits) - "sobre o âmbito de aplicação da prerrogativa, sendo unânime o
reconhecimento de que ela opera tanto na área penal, quanto na civil e na
administrativa", só remanescendo alguma incerteza sobre a possibilidade
de cominar sanções de caráter disciplinar para o deputado ou senador que
recorresse a expressões "não parlamentares".
"A regra da inviolabilidade não é temperada pela existência da
responsabilidade penal por falta grave" - atesta, na mesma linha, o douto
Raul Machado Horta (ob. locs. cits.), como dado comum das constitucionais
democráticas: "O Deputado na tribuna" - e hoje, em termos, mesmo fora
79
dela - "pode injuriar; caluniar; atingir levianamente pessoas estranhas ao
Poder Legislativo". Só estará sujeito, para correção dos excessos ou dos
abusos, ao poder disciplinar previsto nos Regimentos Internos. A fórmula
clássica de Royer Collard - "La tribune ri'est responsable que de la Chambre"
- ainda é princípio fundamental no governo representativo.
De minha parte, não vejo como nem porque romper com esse princípio
fundamental.
Não convence, data venia, o argumento com o qual o acórdão recorrido
desafiou no ponto o consenso doutrinário, ao final das contas reduzido à
assertiva de que, no art. 53 da Constituição, "a inviolabilidade diz respeito
apenas ao cometimento de crimes" porque "os parágrafos do artigo ora
analisado não fazem qualquer referência à prática de ilícito civil".
Sucede que só o caput do art. 53 tem a ver com a imunidade material, o que
torna impertinente argumentar com os parágrafos, relativos a franquias
parlamentares de natureza inteiramente diversa.
Por outro lado, a premissa do acórdão não é correta, pois nem tudo,
nos parágrafos do art. 53 CF tem em vista unicamente o processo penal:
ao contrário, a mais vetusta e conspícua das garantias neles tratada,
a imunidade contra a prisão – freedom from arrest – na sua fonte
histórica, o direito anglo-americano, só protege o parlamentar contra a
prisão civil, não, contra a decretada em processo criminal (B. Schwartz,
op. loc. cit.; Corwin, ob. loc. cit.; Black's Law Dictionary, vb. Legislativa
Immunity); estendida a imunidade à prisão, na maioria dos países,
a partir da França, também àquela decorrente da persecução penal,
a ninguém jamais ocorreu negar-lhe a incidência nas modalidades
residuais de prisão civil.
Afastados os equívocos do aresto recorrido, o mais importante a repisar é
que a ausência da menção específica à isenção também da responsabilidade
civil nas normas de imunidade material, jamais, se entendeu induzir à sua
exclusão dos efeitos da garantia, da qual, ao contrário, se tem reputado
corolário essencial.
Certo, sob uma perspectiva puramente dogmática, nada impediria a
Constituição de excluir a responsabilidade civil da tutela da imunidade
material, reduzindo-a a uma excludente da criminalidade sem exclusão da
ilicitude do fato.
80
Mas, além de seguramente inexistente no direito pátrio, como em qualquer
Constituição democrática e norma que assim dispusesse contrariaria
gravemente as inspirações teleológicas do instituto da inviolabilidade como
garantia da liberdade do exercício da missão do parlamentar: é manifesto
que, conforme as circunstâncias, a imputação da responsabilidade civil
pode ser tão ou mais inibitória da ação do mandatário político que a
incriminação da conduta.
Não se desconhece que a afirmação da inviolabilidade parlamentar,
ampliada às dimensões exigidas pela sociedade de massas pode acarretar
injustiças às vitimas da leviandade por ela eventualmente acobertada; mas
as instituições democráticas tem o seu custo, às vezes, cruel.
Esse o quadro, conheço do recurso para dar-lhe provimento.
Sob a minha perspectiva, a questão é de mérito: a afirmação da incidência
de regra constitucional de imunidade vale pelo reconhecimento de
causa excludente da ilicitude do fato, e pois, de responsabilidade, não
apenas penal, mas também civil, do agente parlamentar. Isso levaria à
improcedência da ação.
Limitou-se, porém, o RE a pleitear o restabelecimento da sentença de
primeiro grau, que extinguiu o processo sem julgamento de mérito:
adstrito aos limites da pretensão objeto do recurso, cinjo-me a acolhê-la e
restaurar a decisão de primeira instância: é o meu voto.
81
VOTOS
84
Aluisio Gama de Souza
Aposentadoria e Fixação de Proventos
Trata o presente Processo TCE-RJ 110.405-5/08 de concessão de Aposentadoria
Especial e Fixação de Proventos, em nome de VALERIA FADUL, no cargo de
Professor, matrícula nº 163.316-3, com fundamento no art. 6º da Emenda
Constitucional n.º 41/03, combinado com o §5º do art. 40 da CR.
Em Sessão realizada em 03/09/2009, o Plenário desta Corte decidiu por
Comunicação ao jurisdicionado para dar ciência à interessada, bem como
questionar a incorporação da parcela denomina Gratificação de Encargos
Especiais aos seus proventos.
Não pode o servidor,
após ter cumprido
os requisitos para
aposentação, ser
prejudicado em
decorrência da
opção voluntária
por permanecer em
atividade.
A interessada manifestou-se nos autos, juntando o documento de fls.
63/71.
Em síntese, a interessada alega os seguintes argumentos:
- Após 08 anos de recebimento ininterrupto da gratificação de encargos
especiais, teve seu valor reduzido de R$ 1.470,34 para R$ 564,46 no mês de
maio de 2005;
- Como houve tal redução, o cálculo da gratificação para fins de proventos,
conforme média aritmética dos últimos 12 (doze) meses da validade da
aposentadoria resultou no valor de R$ 790,93;
- Como já tinha preenchido os requisitos para se aposentar, solicitou ao
jurisdicionado que seu tempo de contribuição fosse computado até
31/05/2005, data na qual houve a redução do valor da gratificação de
encargos especiais, com o objetivo de receber nos seus proventos o valor
de R$ 1.470,34;
- Sustenta seu pedido com fundamento no direito adquirido ao cálculo dos
proventos de acordo com a legislação vigente à época do preenchimento
dos requisitos legais para a aposentação.
O Corpo Instrutivo, após análise de fls. 73/73-verso, observou que a servidora
cumpriu o requisito temporal estabelecido pelo então vigente art. 220 do
Decreto n.º 2.479/79 e, por essa razão, a incorporação da gratificação de
encargos especiais foi regular. Em vista disso, sugeriu o Registro dos atos
em exame sem, no entanto, examinar os argumentos da interessada em
relação aos valores a que faria jus, anteriores à redução, quando já poderia
ter se aposentado.
85
*Voto aprovado por
unanimidade.
O Ministério Público junto ao TCE, às fls. 73-verso, manifesta idêntica
posição.
É o Relatório.
Após a análise do processo, verifico que a interessada, pertencente aos
quadros da Secretaria de Estado de Educação (SEE), esteve à disposição
da Fundação de Apoio à Escola Técnica, e diante dessa condição de
anormalidade de exercício de suas atribuições, percebeu Gratificação de
Encargos Especiais de outubro de 1999 até fevereiro de 2006, conforme
documento acostado às fls. 28/30.
Ao fixar o valor da Gratificação de Encargos Especiais para fins de proventos,
o jurisdicionado aplicou a média aritmética dos valores recebidos nos
últimos 12 (doze) meses que antecederam à data do requerimento da
aposentadoria (31 de março de 2006 conforme solicitação às fls. 02).
A interessada recebeu a Gratificação de Encargos Especiais no valor de R$
1.474,34 desde abril de 2002 e, no mês de maio de 2005, houve redução
para R$ 564,46. Dessa forma, considerando que nos 12 meses anteriores a
31/03/2006 houve variação do valor recebido, o resultado final da média
aritmética foi de R$ 790,93.
Ocorre que, como o valor da média encontrado nos últimos doze meses
anteriores a 31/03/2006, data do protocolo do pedido, foi inferior ao valor
de R$ 1.474,34, a interessada solicitou ao jurisdicionado que seu tempo
de contribuição fosse computado até 31/05/2005, data em que houve a
redução do valor da Gratificação de Encargos Especiais, a fim de receber
nos seus proventos o valor de R$ 1.470,34, pois este vigorava desde abril
de 2002.
Passo a analisar o caso.
Verifico que, em 31/05/2005, a interessada já havia cumprido os requisitos para
se aposentar com fundamento no art. 6º da Emenda Constitucional n.º 41/03
combinado com o §5º do art. 40 da CR. Mas, como a aposentadoria compulsória
se dá aos 70 anos, a interessada continuou exercendo suas funções.
O jurisdicionado defende que a legislação incidente para fins de proventos
deve ser aquela vigente no momento em que o servidor protocola seu
pedido de aposentadoria.
86
Com a devida vênia, tal posição não reflete a melhor interpretação a ser
adotada ao caso, diante do princípio da segurança jurídica, traduzido no
fato de que a lei não pode prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico
perfeito e a coisa julgada (art. 5º, XXXVI, CR).
Conforme jurisprudência dos Tribunais do país, há direito adquirido ao
cálculo dos proventos de acordo com a legislação vigente à época do
preenchimento dos requisitos legais para a aposentação, ainda quando
só requerida na vigência da lei posterior menos favorável.
Registre-se ainda que a legislação vigente se refere tanto à Constituição
da República – que prevê regras para aposentação e forma de cálculo dos
proventos - quanto às leis esparsas do ente federativo que determinam as
parcelas permanentes da remuneração do cargo efetivo do servidor, bem
como regras de incorporação de vantagens transitórias (plano de cargos e
salários, estatuto do servidor, etc.). Trata-se de toda a legislação que influa
no cálculo de proventos.
É esse o norte trilhado pela jurisprudência pátria consoante se percebe dos
julgados que se seguem:
PREVIDENCIÁRIO. REVISÃO DE RMI. ABONO DE PERMANÊNCIA EM SERVIÇO.
DIREITO ADQUIRIDO AO CÁLCULO DOS PROVENTOS DE ACORDO COM A
LEGISLAÇÃO VIGENTE À ÉPOCA DO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS
LEGAIS PARA A APOSENTAÇÃO. INAPLICABILIDADE DA LEI 11.960/2009 AOS
PROCESSOS INICIADOS ANTES DE SUA ENTRADA EM VIGOR. I – De acordo
com o entendimento já consolidado na jurisprudência pátria, uma vez
preenchidos os requisitos legais para a obtenção da aposentadoria, possui
o beneficiário direito adquirido de ver seus proventos calculados de acordo
com as normas legais então vigentes. Precedentes. II – Entre a concessão
do abono de permanência e a aposentadoria da parte autora sobrevieram
inovações legislativas que acarretaram significativa mudança de critério no
cálculo da RMI da aposentadoria do Autor, que já possuía direito adquirido
de ter seu benefício calculado de acordo com a legislação vigente ao
tempo em que preencheu os requisitos exigidos para a aposentação, não
podendo, portanto, ser prejudicado em decorrência da opção voluntária
por permanecer em atividade. III – No que toca ao advento da Lei 11.960,
de 29 de junho de 2009, que deu nova redação ao art. 1º-F, da Lei 9.494/97,
a inovação legislativa não se aplica à hipótese vertente, somente podendo
atingir as relações jurídicas constituídas a partir de sua vigência, tendo
em vista tratar-se de norma de natureza instrumental material, conforme
87
restou decidido recentemente pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça
(EDcl no REsp nº 1.057.014/SP, Quinta Turma, Rel. Min. Arnaldo Esteves
Lima, DJ 20/11/2009), razão pela qual não incide sobre os processos em
andamento. IV – Agravo interno do INSS parcialmente provido, tão somente
para reconhecer a prescrição quinquenal, nos termos da Súmula 85 do STJ.
Acórdão
Origem: TRF-2
Classe: APELREEX - APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO - 481908
Processo: 2003.51.01.533924-4 UF : RJ Orgão Julgador: PRIMEIRA TURMA
ESPECIALIZADA
Data Decisão: 25/01/2011 Documento: TRF-200246899
Fonte
E-DJF2R - Data::01/02/2011 - Página::23
Relator
Juiz Federal Convocado ALUISIO GONCALVES DE CASTRO MENDES
"AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. PREVIDENCIÁRIO.
APOSENTADORIA POR TEMPO DE SERVIÇO CONCEDIDA NA VIGÊNCIA
DA LEI Nº 8.213/1991. TETO-LIMITE. VINTE SALÁRIOS-MÍNIMOS. LEIS
Nos 5.890/1973 E 6.950/1981. REQUISITOS PREENCHIDOS ANTES DO
ADVENTO DA LEI Nº 7.787/1989. SÚMULA Nº 7/STJ.
1. Não há como abrigar agravo regimental que não logra desconstituir os
fundamentos da decisão atacada.
2. É firme o entendimento deste Superior Tribunal de Justiça de que,
preenchidos os requisitos para a aposentadoria antes do advento da Lei
nº 7.787/1989, deve prevalecer no seu cálculo o teto de 20 (vinte) saláriosmínimos previsto na Lei nº 6.950/1981, ainda que concedida na vigência
da Lei nº 8.213/91.
3. A inversão do decidido quanto à alegação do preenchimento dos
requisitos para a concessão da aposentadoria antes da Lei nº 7.787/1989,
como propugnado, demandaria o reexame do conjunto fático-probatório,
providência sabidamente incompatível com a via estreita do recurso
especial (enunciado nº 7/STJ).
4. Agravo regimental a que se nega provimento."
88
(AgRg no REsp 966.738/SC, 6ª Turma, Rel. Min. Paulo Gallotti, DJE 6/10/2008,
negrito nosso).
"AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. PREVIDENCIÁRIO.
APOSENTADORIA POR TEMPO DE SERVIÇO. VIGÊNCIA DA LEI Nº 8.213/91.
REQUISITOS PREENCHIDOS ANTES DO ADVENTO DA LEI Nº 7.787/89. TETO.
VINTE SALÁRIOS-MÍNIMOS.
'É firme o entendimento deste Superior Tribunal de Justiça de que,
preenchidos os requisitos para a aposentadoria antes do advento da
Lei nº 7.787/89, deve prevalecer no seu cálculo o teto de 20 (vinte)
salários-mínimos previsto na Lei nº 6.950/81, ainda que concedida na
vigência da Lei nº 8.213/91.'(Precedentes). Agravo regimental provido."
(AgRg no REsp 751.454/RJ, 5ª Turma, Rel. Min. José Arnaldo Esteves, DJ
12/9/2005, negrito nosso).
EMENTA Agravo regimental no agravo de instrumento. Decisão que nega
provimento ao agravo, por estar a decisão atacada em conformidade com
o verbete da Súmula nº 359 desta Suprema Corte. 1. A rejeição ao agravo
de instrumento ocorreu porque tal recurso se voltava a atacar acórdão
proferido em conformidade com matéria já sumulada no Supremo Tribunal
Federal. 2. É pacífica a jurisprudência desta Suprema Corte no sentido de
que os proventos da inatividade se regulam pela lei vigente ao tempo em
que reunidos os requisitos para sua concessão. 3. Agravo regimental não
provido
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO.
ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. APOSENTADORIA REGULADA PELA
EC 41/03. SÚMULA 359 DO STF. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA
PROVIMENTO. I - Os proventos regulam-se pela lei vigente ao tempo
em que o servidor reuniu os requisitos da inatividade, ainda quando só
requerida na vigência da lei posterior menos favorável. Súmula 359 do STF.
II - Agravo regimental improvido.
Este é o teor da Súmula 359 do Egrégio Supremo Tribunal Federal:
RESSALVADA A REVISÃO PREVISTA EM LEI, OS PROVENTOS DA INATIVIDADE
REGULAM-SE PELA LEI VIGENTE AO TEMPO EM QUE O MILITAR, OU O
SERVIDOR CIVIL, REUNIU OS REQUISITOS NECESSÁRIOS.
Lembro ainda que, nas duas reformas da previdência ocorridas em 1998 e
2003, as Emendas Constitucionais 20/98 e 41/03, para que não pairassem
dúvidas, protegeram os servidores que já haviam adquirido o direito de
se aposentar pelas regras anteriores às reformas, como não poderia deixar
89
de ser em virtude da segurança jurídica. Aliás, as emendas poderiam ser
silentes nesse assunto, já que os servidores estariam respaldados pelo
direito fundamental assentado no art. 5º, XXXVI, da CR.
Quando o servidor cumpre os requisitos para aposentação, desde que
não tenha 70 anos (compulsória), pode continuar na ativa exercendo
suas funções normalmente, principalmente para adquirir mais vantagens
financeiras, como, por exemplo, aumento de percentual para fins de
adicional por tempo de serviço, certo de que tem o direito adquirido para
se aposentar a qualquer momento com base nas regras que lhe forem
mais benéficas. Não pode o servidor, após ter cumprido os requisitos para
aposentação, ser prejudicado em decorrência da opção voluntária por
permanecer em atividade.
Seria totalmente incoerente o servidor continuar laborando, após adquirir
o direito de se aposentar, para se submeter a riscos decorrentes de
mudanças legislativas que viessem para prejudicá-lo. É justamente isso que
o art. 5º, XXXVI, da CR protege. Os regimes jurídicos podem ser alterados,
mas os direitos adquiridos com base na legislação alterada ou revogada
não podem ser destruídos sob pena de se instaurar insegurança jurídica
nas relações entre o indivíduo e o Estado.
No caso em exame, a interessada já havia preenchido os requisitos para
aposentação em 31/05/2005 e, naquela data, nos últimos doze meses
anteriores, o valor que recebia de Gratificação de Encargos Especiais era de
R$ 1.470,34. Assim, a média resultaria nesse valor.
Mas deixo claro que, nessa hipótese, não é lícito utilizar o tempo de
contribuição/serviço após a data de 31/05/2005, visto que os regimes jurídicos
não podem se misturar, sob pena de ser criado regime híbrido, incompatível
com a vontade da lei. Cito trecho da decisão desta Corte de Contas aprovada
pelo Plenário nos autos do processo TCE-RJ n.º 105.558-7/06:
(..) Os excertos são claros e não deixam margens a dúvidas. O regramento
constitucional convencionou um direito optativo para os servidores; assim
como certificou o direito à obtenção do benefício pelas regras anteriores,
também lhe concedeu a possibilidade para que, conforme seus interesses
e ao seu livre-arbítrio, optar pela eventualidade que lhe fosse mais
conveniente.
No entanto, não é possível compreender, com efeito, a possibilidade de
90
se deferir aposentadoria com esteio na legislação vigente em 30.12.03,
haja vista a satisfação, naquela data, dos requisitos prementes exigidos,
e, simultaneamente, quando do requerimento do benefício, conceder-se
vantagens provenientes do período laborado posteriormente a 30.12.03,
por aplicação da lei que permaneceu em vigor. In casu, para o servidor
usufruir-se das vantagens adquiridas no lapso temporal entre a entrada em
vigor da precitada Emenda e o período trabalhado até a data da validade
de sua aposentadoria (07.11.05), ter-se-ia de aplicar, necessariamente, o
regime instituído pela Emenda Constitucional nº 41/03.
A ser considerado incorreto este entendimento, não haveria a confrontação
apenas entre o direito adquirido e assegurado na data em que o servidor
reuniu condições para aposentar-se e tudo a que faria jus na data de
validade de sua aposentadoria. Ao longo do tempo decorrido entre esses
dois momentos deveria ser verificado se em algum instante os valores
são maiores e então considerar esse cálculo para fins de definir o direito
adquirido. Este estaria, dessa forma, em permanente mutação, aguardando
o seu ponto ótimo. (...)
O fundamento para impossibilidade é maior do que apenas o princípio da
legalidade, remontando ao fato de que tal implicaria promover a mistura
de regras, acumulando-as com o fito de auferir vantagens, isto é, o que se
está fazendo é buscar elementos em um regime para garantir benefícios
em outro, implicando, consequentemente, em violar premissas básicas,
gerando uma terceira relação híbrida e fictícia, ou seja, aplicando-se
simultaneamente duas legislações distintas a concessões que teriam de
serem regidas por uma ou por outra.
Assim, proponho diligência externa para que órgão de origem avalie a
utilização do tempo de contribuição/serviço até 31/05/2005 para esta
aposentadoria, desprezando o tempo posterior para fins de aquisição
de quaisquer vantagens financeiras, tendo em vista que naquela data a
servidora já havia preenchido os requisitos da aposentação.
Assim, em desacordo com o Corpo Instrutivo e com o douto Ministério
Público Especial,
V O T O:
I – Por DILIGÊNCIA EXTERNA para que, no prazo de 30 (trinta) dias, o órgão
de origem avalie a recomendação desta Corte de Contas para que:
91
a) Utilize para esta aposentadoria o tempo de contribuição/serviço até
31/05/2005;
b) Calcule os proventos, de acordo com a legislação vigente na data de
31/05/2005, na qual a interessada já havia preenchido os requisitos para se
aposentar com fundamento no art. 6º da Emenda Constitucional n.º 41/03,
combinado com o §5º do art. 40 da CR;
c) Despreze o tempo posterior a 31/05/2005 para fins de aquisição de
quaisquer vantagens financeiras.
92
93
94
José Gomes Graciosa
ATO DE INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO
Trata o presente Processo 113.006-5/10 do Ato de Inexigibilidade de
Licitação, com fundamento no inciso I do art. 25 da Lei Federal nº 8.666/93,
formalizado pela Secretaria de Estado de Segurança, em favor das empresas
Bell Helicopter Textron Inc., no valor de R$ 11.386.167,00 (onze milhões,
trezentos e oitenta e seis mil, cento e sessenta e sete reais) e TAM Aviação
Executiva e Taxi Áereo S.A., no valor de R$ 934.918,00 (novecentos e trinta
e quatro mil, novecentos e dezoito reais).
Deverá, em
casos futuros,
o juridicionado
anexar aos autos
cotação de preços
a fim de subsidiar
a análise do ato de
inexigibilidade de
licitação.
O valor total da despesa decorrente deste Ato é de R$ 12.321.085,00 (doze
milhões, trezentos e vinte e um mil e oitenta e cinco reais) e tem como objeto
a aquisição de helicóptero, semi novo, com equipamentos e acessórios,
bem como os serviços de treinamento, translado e documentação.
Na Sessão Plenária de 12/07/11, este Tribunal decidiu:
I. Pela COMUNICAÇÃO atual Secretário de Estado de Segurança, na forma
prevista na Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro
em vigor, para que, no prazo de 15 (quinze) dias, a contar da ciência da
decisão desta Corte, adote as providências necessárias ao cumprimento da
DILIGÊNCIA EXTERNA, em atendimento ao item proposto pela Instrução
e transcrito em meu Relatório, alertando-o para as sanções previstas no
artigo 63 da Lei Complementar Estadual nº 63/90;
II. Por DETERMINAÇÃO à SSE para que, ao efetivar a Comunicação supra,
encaminhe cópia integral da informação do Corpo Instrutivo, de fls.
274/282.
A resposta à Comunicação, decidida na Sessão de 12/07/11, encontra-se
no Doc. TCE-RJ nº 24.312-8/11, às fls. 290/373.
O Corpo Instrutivo, após a devida análise, às fls. 375/377, sugere o
Conhecimento deste Ato de Inexigibilidade de Licitação e o posterior
Arquivamento do processo, conforme análise abaixo transcrita:
Trata o presente de cópia do Ato de Inexigibilidade de Licitação, celebrado
pela Secretaria de Estado de Segurança.
Pelo Princípio da Conexão Processual consagrado no artigo 103 do Código
de Processo Civil, aplicável conforme disposto no artigo 180 do Regimento
95
*Voto aprovado por
unanimidade.
Interno desta Corte de Contas, procedemos à informação conjunta dos
processos a seguir relacionados, tendo em vista a correlação da matéria.
PROCESSO TCE-RJ
NATUREZA
*113.006-3/10
Ato de Inexigibilidade de Licitação
115.996-6/10
Contrato
DECISÃO PLENÁRIA
Esta Corte, em Sessão de 12.07.11, mediante voto do Conselheiro – Relator,
José Gomes Graciosa, fls.284/285, decidiu pela comunicação na forma
abaixo, com base na instrução do Corpo Instrutivo:
“VOTO:
I. Pela COMUNICAÇÃO atual Secretário de Estado de Segurança, na forma
prevista na Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro
em vigor, para que, no prazo de 15 (quinze) dias, a contar da ciência da
decisão desta Corte, adote as providências necessárias ao cumprimento da
DILIGÊNCIA EXTERNA, em atendimento ao item proposto pela Instrução
e transcrito em meu Relatório, alertando-o para as sanções previstas no
artigo 63 da Lei Complementar Estadual nº 63/90;
II. Por DETERMINAÇÃO à SSE para que, ao efetivar a Comunicação supra,
encaminhe cópia integral da informação do Corpo Instrutivo, de fls.
274/282. “
O Corpo Instrutivo, às fls.277/282, sugeriu:
“1 – Diligência Externa, com Comunicação ao responsável pela Secretaria
de Estado de Segurança – SESEG, para que envie as justificativas de
preço, considerando o disposto no art. 26, inciso III da Lei Federal
8.666/93, acompanhada da documentação suporte que esclareça quais as
características da presente contratação que podem esclarecer a diferença
de preço verificada entre a aquisição presente (U$ 6.965.000,00) e a do
Contrato entre a Polícia Civil e a TAM Aviação Executiva e Táxi Aéreo S/A,
em exercício anterior (U$ 4.281.300,00).
2 – Determinação para que os dados referentes ao Ato de Inexigibilidade e do
Contrato sejam incluídos no SIGFIS, o que será objeto de verificação futura.”
96
Em cumprimento à decisão plenária foi expedido o Ofício PRS/SSE/CSO
24478/2011, de 12.07.11, fls.287, destinado ao Sr. José Mariano Benincá
Beltrame, Secretário de Estado de Segurança.
Em resposta, foram encaminhados elementos que deram origem ao
Documento TCE n.º 24.312-8/11, fls. 290/373.
ANÁLISE DO DOCUMENTO TCE N.º 24.312-8/11
O Subsecretário de Gestão Estratégica da SESEG, Sr. Hélio Pacheco Leão,
fls.292, informou o seguinte:
Quanto à justificativa da diferença de preço entre as duas aeronaves,
temos que a primeira aeronave foi contratada em 11/12/2007 e a segunda
em 23/07/2010, mais de dois anos e meio após, sendo o lapso temporal um
dos diferenciadores do preço.
A primeira aeronave foi adquirida a preço promocional, abaixo da tabela,
por ser a primeira vendida ao Brasil, havendo interesse do fabricante no
mercado brasileiro.
Porém, os acessórios são o principal ponto de distinção e nas propostas
que acompanham o presente e na planilha anexa resta demonstrado que
as contratações não são idênticas, sendo a segunda mais equipada. A
aquisição da primeira praticamente só envolveu a aeronave propriamente
dita.
Às fls. 294 encontra-se a mencionada planilha anexa, que relaciona
acessórios e equipamentos extras do helicóptero adquirido em 2010.
Às fls. 295/300 consta cópia de correspondência expedida em 12/07/10
pela TAM Aviação Executiva e Táxi Aéreo S.A., na qual foi informado, entre
outros itens, que naquele exercício o Bell Huey II teria passado a custar US$
5.140.000,00, que os acessórios e equipamentos da aeronave montariam
US$ 1.465.000,00 e que os treinamentos e serviços fornecidos totalizariam
US$ 470.000,00.
OBSERVAÇÕES
Nesse passo, entendemos que o presente processo reúne condições para
prosseguir, considerando que foram apresentados esclarecimentos ao
questionamento efetuado por esta Corte.
97
CONCLUSÃO
Cumpre registrar que o exame destes autos contemplou requisitos da
Lei Federal 8.666/93, da Deliberação TCE-RJ 244/07 e de outras normas
aplicáveis à análise da formalização dos atos em questão, sendo certo
que outros aspectos, inclusive quanto à legalidade, à economicidade e à
execução, poderão ser abordados por ocasião de auditorias que se realizem
no órgão/entidade de origem, entre outros atos inerentes à fiscalização
que compete a este Tribunal.
Ante o exposto, sugerimos o conhecimento do presente Ato de
Inexigibilidade de Licitação e do respectivo Contrato, e o posterior
arquivamento dos processos
O Douto Ministério Público Especial, representado pelo Procurador Marcelo
Martins Evaristo da Silva, manifesta-se no mesmo sentido (fl. 378).
É o Relatório.
Tramita, apenso ao presente, o Processo TCE-RJ nº 115.996-6/10, que trata
do Contrato decorrente deste Ato de Inexigibilidade de Licitação e, ainda,
o Processo TCE-RJ nº 117.753-6/10, anexo ao presente, que também se
refere ao Contrato, encontrando-se em duplicidade com o Processo TCE-RJ
nº 115.996-6/10.
A duplicidade de processos referentes ao mesmo Contrato decorre de que
um Contrato foi extraído do presente Ato, enquanto o outro foi originado
do Convênio do Estado do Rio de Janeiro com a Secretaria Nacional de
Segurança.
Quanto ao questionamento feito à Secretaria de Estado de Segurança,
entendo que as informações trazidas aos autos, pelo jurisdicionado,
esclarecem, qualitativamente, em relação à diferença de preços verificada
entre a aquisição presente (US$ 6.965.000,00) e a do Contrato anterior
entre a Polícia Civil e a TAM Aviação Executiva e Táxi Aéreo S/A (US$
4.281.300,00, acrescidos de US$ 244.108,00 pelo 1º Termo Aditivo,
celebrado em 10.03.2008), porém, o valor exato dessa diferença ainda
demanda esclarecimentos pelos motivos que passo a expor:
Às fls.217 e 297, constam informações quanto aos dois fornecimentos em
épocas distintas, a saber:
98
j. A aeronave, acrescida de alguns equipamentos de apoio, tais
como quatro capacetes e macacões de vôo, além de treinamento
de adaptação ao modelo para somente dois pilotos, ministrado nas
instalações da Bell Academy nos EUA, foi fornecida, à época, pelo valor
de US$ 4.281.300,00 (quatro milhões duzentos e oitenta e um mil e
trezentos dólares norte-americanos);
k. O Bell Huey II, além de outros modelos fornecidos pela Bell, desde
aquela época teve o valor de venda de sua versão standard reajustado,
passando a custar US$ 5.140.000,00 (cinco milhões cento e quarenta mil
dólares norte-americanos), em valores para entrega no corrente exercício;
Às fls. 218 e 298, encontra-se, ainda, a seguinte informação:
A aeronave ofertada, diferentemente daquela adquirida em 2007, possui
o conceito de aviônicos glass cockpit, absolutamente moderno e de
confiabilidade inquestionável. A aeronave virá com duas telas Multi
Function Display – MFD, uma para o piloto e outra para o co-piloto, com
várias funcionalidades embutidas. Seu motor, diferentemente daquele
fornecido com a primeira aeronave, possui um kit especial que aumentou
o Time Between Overhaul – TBO de 3.500 horas para 5.000 horas, o que,
de forma indireta, diminui sobremaneira o custo operacional da aeronave.
Consta, ainda, às fls. 217/218 e 297/298, um rol de itens, no montante de
US$ 1.465.000,00, além daqueles fornecidos na aquisição de aeronave
entregue em setembro/2007 à CORE, quais sejam:
• Esqui alto com degrau corrido;
• Guincho externo BF Goodrich 600Ibs External Hoist - Equipamento &
Provisões;
• Kit com 3 macas;
• GPS stand alone GNS-500;
• LifePort Blindagem complementar no nariz da aeronave;
• Horímetro;
• Fluxômetro;
• Tetra Radio (Teltronic MDT-400);
• Mais 5 fones de ouvido David Clark Headset H10-13H;
• Equipamento de combate a incêndio Bambi Bucket 545L e provisões;;
• Capas do pára-brisas;
• Dois conjuntos duplos de assentos laterais;
• Kit Rappel para ambos os lados da aeronave;
99
MFD – pequena tela
em uma aeronave
com vários botões que
pode ser usada para
mostrar informação
ao piloto de várias
formas configuráveis.
(Wikipédia)
• Sistema de Comunicação Interna com 11 pontos e 9 extensões
independentes;
• Pintura com esquema especial de camuflagem, no estilo digital; e
• Rede de carga com capacidade para 2000 kg.
O jurisdicionado agregou, ainda, a seguinte informação (fl. 218 e 298):
No valor proposto também estão incluídos os custos relativos às despesas
do traslado dos EUA para o Brasil (piloto, combustível, taxas aeroportuárias,
seguros, etc.), custos aduaneiros e emolumentos para a importação e
nacionalização da aeronave. O valor dos treinamentos e dos serviços
relacionados ao traslado, importação e nacionalização da aeronave é da ordem
de US$ 470.000,00 (quatrocentos e setenta mil dólares norte-americanos);
Por fim, à fl. 294, conforme pontuado pela Instrução, consta a seguinte
planilha, que relaciona os extras do presente fornecimento, em relação ao
fornecimento de 2007:
ACESSÓRIOS E EQUIPAMENTOS EXTRAS DO HELICÓPTERO BELL HUEY ll
ADQUIRIDO EM 2010
Além da configuração padrão standard com seus equipamentos e
acessórios, praticamente todos comuns a ambas as aeronaves (2007 e
2010), o helicóptero adquirido em 2010 possui os seguintes extras:
descrição
Bambi Bucket –
recipiente cilíndrico
com água suspenso
em um cabo levado
por um helicóptero
para combate aéreo de
incêndios.
quantidade
Provisões para operação do Bambi Bucket
01
Equipamento de combate a incêndio Bambi Bucket de 545 Litros
01
Gancho de Carga - Equipamento
01
Espelhos de Carga Duplo
01
Sistema de Desembarque Fast Rope
01
Blindagem Lateral da Cabine de Passageiros
01
Blindagem de Piso, Cabine e Cockpit
01
Blindagem da Area do Motor
01
Fones de Ouvido, David Clark H10-13H (cinco a mais que em 2007)
13
Kit com 3 Macas, Provisões e Equipamento
01
Seção do Nariz (Bell 212)
01
Kit Rappel em ambos os lados
01
Guincho Externo BF Goodrich 600L, equipamento & provisões
01
100
Rede de Carga com capacidade de 2000Kg
01
Esqui alto com degraus corridos
01
Freio do rotor principal
01
Capa protetora dos pára-brisas
01
ICS com 11 pontos e 9 extensões de fones
01
Kit de dois assentos duplos em tubos de lona, tipo utilitário
01
Blindagem extra no nariz da aeronave
01
Horímetro
01
Fluxõmetro
01
GPS Garmin GNS-500
01
Tetra Radio (Teltronic MDT - 400)
01
VHF/UHF Nav/Com - Cobham/Wulfsberg RT5000
02
Multi Function Color Display -MFCD, compatíveis para utilização
de Night Vision Goggles - NVG, GPS com moving map (além do
GNS 500), atualização disponível de seu database, indicações do
HSI, de atitude (ADI) velocidade, altitude, entre outros , dentro do
conceito “Glass Cockpit”.
01
Kit para turbina Honeywell T53-L-703 que efetiva revisão geral
após 5.000 horas de funcionamento (TBO de 5.000h), desonerando
o custo operacional.
01
Curso de Adaptação e Treinamento para 04 (quatro) pilotos e
03 (três) mecânicos, nas instalações da Contratada, nos EUA, e
treinamentos teóricos, no Brasil, para 15 (quinze) pilotos e 10 (dez)
mecânicos, nas instalações do Grupamento Aéreo e Marítimo
(GAM) da PMERJ
Obs.: Os itens com fundo cinza totalizam US$ 1.465.000,00 (fls. 217/218 )
Estou convencido, portanto, pelos elementos constantes dos autos e
da análise realizada pelo Corpo Instrutivo, que a diferença entre as duas
aquisições não decorre, simplesmente, de reajuste de preços - o que
poderia sugerir um valor excessivo - mas de elementos acrescidos à
presente contratação.
Consta, às fls. 344/350, cópia do 1º Aditamento ao Contrato nº 36/
SESEG/2007, que acrescentou US$ 244.108,00 ao Contrato original (US$
4.281.300,00), totalizando US$ 4.525.408,00. O valor acrescido refere-se aos
itens de blindagem do helicóptero, incluindo coletes balísticos.
Entretanto, não há elementos nos autos suficientes para consolidar o
valor de US$ 2.439.592,00 entre os Contratos nos 036/SESEG/2007 (US$
4.525.408,00) e 033/SESEG/2010 (US$ 6.965.000,00), uma vez que a tabela
acima, transcrita do Doc. TCE-RJ nº 24.312-8/11, não apresenta coluna com
os respectivos valores.
101
Pode-se concluir, da análise da tabela anterior (fl.294) combinado com
as informações trazidas originalmente pelo jurisdicionado aos autos (fls.
217/218) e às fls. 297/298, que parte dos itens constantes da planilha
totalizam US$ 1.465.000,00.
Se for considerado, apenas a título de exercício, para obtenção da diferença
encontrada entre os dois Contratos, o somatório dos três itens referentes
à blindagem como sendo o mesmo valor aditado ao Contrato nº 36/
SESEG/2007 (US$ 244.108,00), obtem-se US$ 1.709.108,00.
Conforme o item k (fl.217 e 297) o modelo Bell Huey II teve o valor de venda
de sua versão standard reajustado, passando a custar US$ 5.140.000,00
(cinco milhões cento e quarenta mil dólares norte-americanos).
Somados, portanto, o valor do helicóptero reajustado (US$ 5.140.000,00);
a blindagem, tomando por base o Contrato anterior (US$ 244.108,00)
e os equipamentos listados pelo jurisdicionado como totalizando US$
1.465.000,00, obtem-se o valor total de US$ 6.849.108,00.
O valor do Contrato em tela é de US$ 6.965.000,00, ou seja, US$ 115.892,00
acima do valor obtido a partir das considerações acima.
Registre-se que constam, da planilha incorporada a essa fundamentação
itens que não estão listados pelo jurisdicionado, ao menos explicitamente,
no rol de equipamentos que totalizam US$ 1.465.000,00 e que, portanto,
podem justificar essa diferença, mas não cabe a este Relator fundamentar
seu Voto nessa suposição.
É oportuno tecer considerações, ainda, quanto à especificação da aeronave,
em face de haver, no mercado internacional, diversos helicópteros
disponíveis para comercialização, os quais são classificados em função de
diversas características.
Importante registrar que o Sr. Adonis Lopes Oliveira, Chefe do Serviço
Aeropolicial, informa, às fls. 59/63, que, à época da aquisição da aeronave
BELL HUEY II, pela Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, foi demonstrada a
necessidade de adequação dos recursos materiais necessários à consecução
da atividade aeropolicial no Estado do Rio de Janeiro. (grifo meu)
A aeronave em tela atende, portanto, à Secretaria de Estado de Segurança
102
do Rio de Janeiro, sobretudo se for levado em consideração que já existe,
no Estado, aeronave semelhante, o que pode diluir custos com manuais e
kit de ferramentas necessárias à manutenção e operação das aeronaves.
Entretanto, considerando-se que a aeronave com duas turbinas é mais
segura do que uma aeronave monoturbina, além de apresentar melhor
desempenho, entendo pertinente recomendar à Secretaria de Estado
de Segurança que faça constar dos autos, em casos futuros, cotação de
aeronave com duas turbinas, cuja especificação viabilizaria o torneio,
mediante o necessário procedimento licitatório.
Ademais, ainda que o valor cotado para aeronave com duas turbinas
exceda os recursos disponíveis, deverá constar dos autos as cotações
obtidas, a fim de afastar qualquer dúvida quanto aos motivos que levaram
a Secretaria de Estado Segurança a optar por um modelo monomotor, de
fabricante único e fornecedor exclusivo.
Pelo exposto e examinado, considero que ainda são necessárias
informações indispensáveis à decisão adequada no presente processo,
manifestando-me, desse modo, em desacordo com o Corpo Instrutivo e o
Douto Ministério Público Especial, devendo o jurisdicionado comparecer
aos autos com planilha que demonstre, analiticamente, a diferença
entre os Contratos nos 036/SESEG/2007 e 033/SESEG/2010, além da
Recomendação para que, em casos futuros, o jurisdicionado anexe aos
autos cotação de aeronave com duas turbinas, a fim de subsidiar a análise
quanto aos motivos que levaram a Secretaria de Estado Segurança a optar
por um modelo monomotor, de fornecedor exclusivo.
VOTO:
I. Pela COMUNICAÇÃO ao atual Secretário de Estado de Segurança, na
forma prevista na Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado do Rio de
Janeiro em vigor, para que, no prazo de 30 (trinta) dias, a contar da ciência
da decisão desta Corte, adote as medidas necessárias ao cumprimento de
DILIGÊNCIA EXTERNA, para o cumprimento da Determinação constante
da fundamentação do meu voto, bem como para que tome ciência da
Recomendação ali contida;
II. Por DETERMINAÇÃO à SSE para que, ao efetivar a Comunicação supra,
encaminhe cópia integral do presente Voto, da Instrução e do parecer do
Ministério Público Especial.
103
104
Marco Antonio B. de Alencar
ATO DE INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO
VOTO-REVISOR
Trata o presente de ato de inexigibilidade de licitação fundamentado no
caput do artigo 25 da Lei Federal nº 8.666/93, formalizado entre a Prefeitura
de Nova Iguaçu e o Nova Iguaçu Futebol Clube, objetivando a aquisição de
espaço publicitário para a veiculação de publicidade institucional em favor
do município, no valor de R$600.000,00, pelo prazo de aproximadamente
um ano (de 13.01.2006 a 31.12.2006).
O administrador
público pode utilizar
todos os meios de
comunicação e de
divulgação para
veiculação dos atos
governamentais,
pois a Lei Maior
não veda o uso
de nenhum
instrumento
publicitário.
Em razão da correlação da matéria, será proferido um único voto nestes
autos e no Processo TCE/RJ nº 203.746-5/06, em apenso, que cuida do
respectivo contrato, de nº 004/2006, assinado em 13/01/2006.
Em Sessão de 31/05/2011, o Plenário aprovou o seguinte voto (fls. 188/189):
Pela COMUNICAÇÃO ao atual então Prefeito Municipal de Nova Iguaçu,
nos termos da Lei Complementar nº 63/90, para que, no prazo de 30
(trinta) dias, encaminhe estudo que permita a correta avaliação do retorno
que o serviço traria ao Município e a sua população, acompanhado do
detalhamento dos custos envolvidos no objeto do presente, sendo
especificado o número, tamanho, localização e especificações das placas
estáticas utilizadas, o custo da veiculação publicitária nas referidas placas, o
número de uniformes usados, os custos de sua estampa com a publicidade
almejada, e todos os demais custos necessários para a veiculação da
publicidade institucional objetivada.
Em atendimento, encaminhou o jurisdicionado o Documento TCE/RJ nº
26.727-1/11.
Após o reexame do processo, o Corpo Instrutivo assim se manifesta (fls.
203/204):
I – Pela ilegalidade do presente ato de inexigibilidade de licitação, bem
como do contrato decorrente, tendo em vista ausência de atendimento ao
interesse público;
II – Pela aplicação de multa ao Prefeito de Nova Iguaçu, à época, Sr.
Lindbergh Farias Filho, com fulcro no art. 63, inciso III, da Lei Complementar
105
*Voto aprovado com o
impedimento do Cons. Aluisio
Gama de Souza e suspeição
do Cons. José Gomes Graciosa,
consoante parágrafo único do
art. 135 do CPC.
nº 63/90, em razão da formalização de ato não atendendo ao interesse
público.
O Ministério Público Especial, representado pelo Procurador Leonardo
Marins, corrobora a instrução técnica (fls. 206).
Concordando parcialmente com o CI e com o MPJTC, o preclaro
Conselheiro-Relator ofertou o seguinte voto, na Sessão Ordinária de
08/05/2012 (fls. 207/214):
I – Pela ILEGALIDADE do presente ato de inexigibilidade de licitação,
bem como do Contrato decorrente (TCE nº 203.746-5/06), tendo em vista
ausência de atendimento ao interesse público;
II – Pela APLICAÇÃO DE MULTA, mediante Acórdão, no valor de R$ 5.688,00
equivalentes, nesta data, a 2.500,00 UFIR-RJ, ao Sr. Luiz Lindbergh Farias
Filho, Prefeito de Nova Iguaçu à época, com base no inciso III do artigo 63
da Lei Complementar 63/1990, em razão da homologação e formalização
do presente ato, referente à aquisição de espaço publicitário junto ao Nova
Iguaçu Futebol Clube, sem observância dos princípios da moralidade e da
economicidade, por não atender ao interesse público;
III - Pela COMUNICAÇÃO ao atual Prefeito Municipal de Nova Iguaçu, para
que, com fulcro no artigo 10 da Lei Complementar Estadual nº 63/90,
determine, no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, através do respectivo
órgão de controle interno – ou equivalente, sob pena de responsabilidade
solidária, instaure TOMADA DE CONTAS ESPECIAL e remeta a este Tribunal
de Contas, a fim de verificar se o valor transferido ao particular reverteu,
concretamente, em favor do interesse público, bem assim se não houve
enriquecimento sem causa e eventual dano ao erário, tendo em conta os
custos inerentes à prestação objeto do ajuste;
A seguir, solicitei e obtive vista dos autos.
É o relatório.
vista – na terminologia do
Direito Processual. vista
entende–se, propriamente,
por exame, ou ação de ver
para examinar, ou ter ciência.
(Vocabulário Jurídico – De
Plácido e Silva)
Inicialmente, após solicitar vista do presente feito, pesquisei a existência de
precedentes desta Corte de Controle nos quais houvesse sido avaliado o tema
central posto neste administrativo, qual seja o patrocínio de times de futebol
por prefeituras municipais, pois a meu sentir, em cognição sumária, não teria
havido a ilegalidade proclamada pelo CI, MPJTC e o Conselheiro-Relator.
106
Por lealdade processual, devo consignar que identifiquei duas decisões
contrárias a este meu entendimento preliminar, nas quais o Plenário
efetivamente declarou como irregulares as concessões de verbas pelas
municipalidades de Resende e Quissamã ao Resende Futebol Clube e ao
Quissamã Futebol Clube (processos TCE/RJ nºs 206.781-2/09 e 282.123-2/04).
Nada obstante, após compulsar detidamente estes autos, penso que é
chegado o momento de oferecer uma nova visão sobre esta controversa
matéria ao Corpo Deliberativo.
Senão vejamos.
Na presente inexigibilidade de licitação, a Prefeitura de Nova Iguaçu
pagou seiscentos mil reais ao Nova Iguaçu Futebol Clube, então
participante da primeira divisão do Campeonato Carioca de Futebol
(exercício de 2006), para ter o direito de explorar espaço publicitário
através da veiculação de publicidade institucional, em especial na
frente e verso dos uniformes de todos os jogadores utilizados nos jogos
oficiais, e ainda nas placas estáticas situadas à beira do gramado em
partidas nas quais a agremiação tivesse a titularidade do mando de
campo.
Não existem dúvidas de que a avença foi cumprida à risca pelas partes, não
há objeções à escolha da modalidade de inexigibilidade de licitação e não
se questiona a economicidade em si do montante pago (vide informação
da Coordenadoria de Estudos e Análises Técnicas – CEA, encartado à lauda
93, informando acerca da inexistência de parâmetros de mercado para
subsidiar parecer conclusivo).
Na verdade, a única erronia apontada no ajuste, segundo o Corpo
Instrutivo, o parquet e o culto Conselheiro-Relator, teria sido a
inexistência de interesse público na presente contratação, eis que
teria havido apenas o interesse particular do clube de futebol, disto
resultando dano ao erário.
Discordo desta conclusão.
Veja-se, em primeiro lugar, que estava em pleno vigor, no município,
quando da efetivação do ato de inexigibilidade de licitação, a Lei n.º
3.748/05, que expressamente autorizava a prefeitura a investir no tipo de
publicidade aqui contratado.
107
Afira-se:
Art. 1º - Fica o poder executivo autorizado a incluir na verba de publicidade
institucional da prefeitura a aquisição de espaço publicitário:
I – em eventos desportivos
II – no uniforme de times ou atletas de futebol e de outros esportes.
Art. 2º - A publicidade de que trata o artigo 1º deverá, preferencialmente,
incluir times e atletas com sede, residentes ou nascidos no município de
Nova Iguaçu, cuja posição de destaque nos respectivos esportes permita
ampliar o impacto da publicidade, observado o princípio da eficiência e da
isonomia.
Desta sorte, havia inequívoco respaldo normativo, no âmbito local, para
o investimento.
Ademais, julgo que a conduta sob comento não se subsume à dicção do
parágrafo 1º do artigo 37 da Carta Magna, uma vez que o patrocínio em
questão não é sinônimo de publicidade institucional em si, na medida em
que se ajusta a conceito distinto, qual seja, a promoção mercadológica da
municipalidade.
Na verdade, mesmo a Lei Municipal padece de certa imprecisão técnica
conceitual ao tratar da matéria, justificável pela complexidade do assunto,
mas que é cristalinamente esclarecida através da leitura informativa de
norma federal que equaciona o tema.
Esta é a inteligência extraída da leitura do artigo 2º do Decreto n.º 4.799/03,
que “Dispõe sobre a comunicação de governo do Poder Executivo Federal
e dá outras providências”, aplicável ao caso concreto por simetria e vigente
na época da formalização do presente ato.
Confirme-se:
Art. 2º - As ações de comunicação de governo compreendem as áreas de:
I - imprensa;
II - relações públicas;
108
III - publicidade, que abrange:
a) a publicidade de utilidade pública, a publicidade institucional, a
publicidade mercadológica e a publicidade legal;
b) a promoção institucional e mercadológica, incluídos os patrocínios.
Precisamente por tais razões, a doutrina comumente enquadra o patrocínio
na categoria de publicidade meramente "alternativa" ou "indireta",
conforme ilustra Guilherme Porto, ao defini-lo como:
"um contrato de publicidade indireta, pois através do patrocinado, e não
pela própria empresa, que se irá ter conhecimento do produto ou da
própria companhia; ele é que irá repassar ao consumidor a imagem de que
determinada empresa está tornando possível a realização de determinado
evento"
(Contrato atípico de patrocínio: princípios e possibilidades negociais.
Revista Jurídica Empresarial, v. 11, p. 154, nov./dez. 2009)
Tal exegese, somada ao fato de que o administrador público pode utilizar
todos os meios de comunicação e de divulgação para veiculação dos atos
governamentais, pois a Lei Maior não veda o uso de nenhum instrumento
publicitário, afasta a aplicabilidade, ao patrocínio aqui avaliado, da restrição
feita à publicidade tipicamente institucional, por parte do mencionado
artigo 37, parágrafo 1º (sendo certa, obviamente, a completa inexistência
de qualquer resquício de conexão pessoal com os gestores municipais no
acordo).
Isto posto, e sob o risco de digressionar, penso que talvez a dificuldade
desta Corte de Contas, inclusive deste Revisor, na chancela de ajustes
análogos, em Sessões pretéritas, guarde relação com o fato de estarmos
todos condicionados, por ofício, a checar números, a medir grandezas, a
contabilizar balanços.
Não é habitual que sejamos levados a avaliar a pertinência de uma
estratégia publicitária (até mesmo por força da discricionaridade que
permeia a atuação do agente público).
Nesse diapasão, diante da dificuldade inerente à quantificação do sucesso
ou insucesso da aposição do nome da municipalidade numa camisa, dado
seu altíssimo grau de subjetividade, tendemos a supervalorizar a frieza da
109
Lei de Licitações, em detrimento do viés mais ampla consubstanciado na
repercussão, muitas vezes imensurável, de uma campanha centrada no
esporte.
Ora, por qual outra razão seria o município de Osasco, em São Paulo,
exposto seguidamente na mídia nacional, além da constante conquista
de títulos, inclusive da Superliga, pela equipe feminina de voleibol de
mesmo nome, tudo naturalmente sob o patrocínio da prefeitura municipal
(conforme www.voleibrasil.org.br)?
Quantas pessoas saberiam da existência da pequena cidade de Carlos Barbosa,
no Rio Grande do Sul, não fosse a excelência do seu time de futebol de salão,
de mesmo nome, campeão mundial de clubes, devidamente patrocinado
pela prefeitura municipal (leia-se, a respeito, www.acbf.com.br)?
Qual motivo adicional levaria a cidade de Franca, no estado de São Paulo, a
ser conhecida nacionalmente e internacionalmente, além da excelência do
seu time de basquete, de mesmo nome, fundado em 1953 e detentor de
todos os maiores títulos no continente, ainda uma vez com patrocínio da
prefeitura municipal (vide www.francabasquete.com.br)?
Veja-se que propositadamente não darei exemplos, aqui, de times de futebol de
campo, pois a lista de patrocínios por prefeituras, num país que conta com mais
de 5.000 (cinco mil municípios), ocuparia páginas e mais páginas deste voto.
Aliás e a propósito, com o perdão do uso dos clichês, futebol em nosso país
é religião, é paixão, como sabem, melhor do que ninguém, os membros
deste colegiado.
Daí porque, notoriamente, qualquer exposição ligada ao futebol, em
especial nos uniformes dos times e nos cartazes do campo, atinge todos os
brasileiros, independentemente de renda, nível educacional, idade e classe
social, razão pela qual, inclusive, ocorrem intensas disputas entre empresas
visando associar suas marcas aos clubes.
Lei 8666/1993 – Regulamenta
o art. 37, inciso XXI, da
Constituição Federal, institui
normas para licitações e
contratos da Administração
Pública e dá outras
providências.
Coincidentemente, na data em que elaboro este voto, os jornais do dia
noticiam que grande equipe carioca recebeu setecentos mil reais para
ostentar, nas mangas(!) dos uniformes de seus jogadores, em dois(!!) jogos,
os nomes de uma dupla de cantores sertanejos(!!!).
Quero dizer, com esta constatação e com este exemplo, que investimento
110
em camisas de jogadores profissionais e em placas nos gramados, no
Brasil, sempre reverterá em prol do anunciante, seja ente público ou
privado, de alguma forma, tangível ou intangível, em algum momento,
presente ou futuro.
E isso não é menos verdadeiro quando o time é patrocinado pela prefeitura.
Logo, mais importante do que descobrir o número de uniformes usados
ou calcular os custos de estampa, é ter a certeza de que este ato de
inexigibilidade proporcionou a visibilidade do município em incontáveis
sites na internet, programas de canais esportivos, noticiários locais, jornais
e toda espécie de meios de comunicação.
Desta forma, atinjo o cerne deste voto: no caso concreto, ao revés do que
foi afirmado pelo CI, pelo MPJTC e pelo nobre Conselheiro Relator, tenho
convicção, por tudo quanto exposto, que o patrocínio feito ao Nova Iguaçu
Futebol Clube pela Prefeitura de Nova Iguaçu atendeu sim ao interesse
público, respeitando os princípios da moralidade e economicidade.
Insisto, propositadamente, que o investimento promocional gerou divisas
para a municipalidade, ainda que sua quantificação seja difícil ou mesmo
impossível, pois é induvidoso que a divulgação do nome “Nova Iguaçu”
promoveu a cidade, proporcionou mídia espontânea e estimulou o
orgulho dos seus habitantes.
Forte nestes fundamentos, sou pela legalidade da ação empreendida pela
prefeitura, neste caso específico.
Um arremate, por fim.
Não fossem suficientes todos os motivos antes elencados, verifico que
a verba aportada pela prefeitura permitiu que o clube desenvolvesse
o projeto denominado “Crianças da Baixada”, no bojo do qual foram
empreendidas as seguintes ações, dentre outras (fls. 196/200):
- almoços diários para crianças carentes no refeitório do centro de
treinamento, com capacidade para quarenta lugares;
- assistência médica diária em clínica geral e ortopedia;
- exames periódicos de sangue, esforço, tórax e coração;
111
- acompanhamento nutricional.
Destarte, também sob este aspecto, me parece cristalino que o termo
cumpriu o fim ao qual se destinava.
Em suma, o ato de inexigibilidade de licitação e o contrato respectivo, em
minha ótica, devem ser conhecidos, e posteriormente arquivados.
À luz dos fatos e fundamentos apontados, e por estar em desacordo com
o Corpo Instrutivo, com o Ministério Público Junto ao Tribunal de Contas e
com o Conselheiro-Relator,
VOTO:
1) Pelo CONHECIMENTO do presente ato de inexigibilidade de licitação e
do contrato dele decorrente.
2) Pelo posterior ARQUIVAMENTO dos autos.
112
113
José Maurício de Lima Nolasco
114
REPRESENTAÇÃO
Trata o presente Processo 201.681-0/12 de Representação, interposta
pelo Sr. Samuel de Souza Marques, em face de supostas irregularidades
contidas no Edital de Concorrência Pública nº 04/2011, oriundo da
Prefeitura Municipal de Mesquita, cujo objeto é a cessão de uso de 04
(quatro) quiosques para a exploração de atividade comercial (venda de
lanches, plantas, revistas e jornais), pelo prazo de 05 (cinco) anos.
Na sessão de 08/03/12, o Plenário deste Tribunal de Contas, acolhendo
voto de minha lavra, decidiu nos termos que seguem:
“VOTO:
I- Pelo ACOLHIMENTO da presente Representação, dado o preenchimento
dos requisitos previstos no Regimento Interno;
Deve o órgão
licitante se certificar
da idoneidade do
licitante mediante
consulta em seus
próprios acervos ou
por autodeclaração,
no sentido de que
não se encontra
punido pelo poder
público, entretanto,
não poderá fazer
por intermédio do
arrolamento conjunto
com as que são
próprias à aferição da
qualificação técnica.
II- Pelo PROVIMENTO da Representação, em razão dos suficientes indícios
de ilegalidade do Edital da Concorrência pública nº 04/2011, editado pelo
Município de Mesquita, dada a previsão de regras sem amparo na LF nº
8.666/93;
III- Pela NOTIFICAÇÃO, prevista no §2º do art. 6º da Deliberação TCERJ nº 204/96, do Sr. Artur Messias da Silveira, Prefeito do Município de
Mesquita, para que apresente razões de defesa pela previsão referente
à qualificação técnica constante do Edital de Concorrência nº 04/2011
em dissonância com a LF nº 8.666/93, nos termos constantes de minha
fundamentação.
IV- Pela EXPEDIÇÃO DE OFÍCIO ao autor da presente Representação para
que tenha ciência da decisão desta Corte.” (Grifei)
Em atendimento, o Titular do Poder Executivo do Município encaminha as
peças que formalizaram o Doc. TCE-RJ nº 13.209-8/12, de fls. 144/162, donde
se colhem as seguintes razões, reproduzidas em apertada síntese:
(i) que não obstante a exigência formulada não devesse constar do rol de
documentos relativos à qualificação técnica, a mesma não se fez desprovida
de amparo legal, tampouco houve restrição ao caráter competitivo da
concorrência;
115
Representação – vocábulo
usado, na terminologia
jurídica, no sentido de petição
ou de reclamação escrita.
(Vocabulário Jurídico – De
Plácido e Silva)
*Voto aprovado por
unanimidade.
(ii) que a CPL deve levar em conta os critérios previamente definidos em
edital;
(iii) que a Administração pode exigir garantias ao contrato, ainda não se
configure como habilitação jurídica, fiscal ou econômico-financeira;
(iv) que a intenção legítima da exigência restou demonstrada da decisão
desta Corte: apurar a idoneidade do licitante;
(v) que a exigência fora legítima e devidamente prevista no edital, sendo
cumprido o princípio da vinculação ao instrumento convocatório.
Por fim, dita autoridade municipal roga seja indeferida, no mérito, a
presente Representação.
Após nova análise, o Corpo Instrutivo, representado pela Coordenadoria de
Exame de Editais (CEE) e pela Secretaria-Geral de Controle Externo (SGE), se
manifesta nos termos seguintes (fls. 154/157):
“Em atendimento à notificação, o Sr. Artur Messias da Silveira, Prefeito de
Mesquita encaminhou sua defesa, por meio do Ofício GP nº 110/2012,
cadastrada sob o doc. TCE-RJ nº 13.209-8/12, acostado às fls. 144/151.
Na sequência, passamos a verificar as razões de defesa apresentadas pelo
Sr. Artur Messias da Silveira, Prefeito de Mesquita, em face da notificação
constante do item III.
III - Pela NOTIFICAÇÃO, prevista no §2º do art. 6º da Deliberação TCERJ nº 204/96, do Sr. Artur Messias da Silveira, Prefeito do Município de
Mesquita, para que apresente razões de defesa pela previsão referente
à qualificação técnica constante do Edital de Concorrência nº 04/2011
em dissonância com a LF nº 8.666/93, nos termos constantes de minha
fundamentação.
Inicialmente vamos recordar a fundamentação utilizada no voto:
CPL – Comissão Permanente de
Licitação
A exigência estabelecida no subitem 4.6.3, I, “b” não encontra amparo
legal, eis que tal regra teria o desiderato de apurar a idoneidade
do licitante, sendo que para esta finalidade, não importaria o
ramo de comércio do declarante, autor da carta de referência a ser
apresentada.
116
A declaração de idoneidade para licitar com a Administração deve ser
exigida em campo outro que não o da aferição técnica.
As exigências relativas à qualificação técnica devem ser somente as
indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações, conforme
previsto no inc. XXI do art. 37 da Constituição Federal.
Nos termos do artigo 30 da Lei 8.666/93, a documentação relativa à
qualificação técnica é limitada àquelas insertas em seus incisos, inexistindo
nestas, a previsão de se apurar eventual idoneidade do licitante.
Pelos motivos expostos, a previsão editalícia empregada na inabilitação do
representante-licitante, padece de vícios insanáveis.
Com relação à inabilitação do representante-licitante, os motivos invocados
pela CPL, quando de sua análise em sede de recurso administrativo
interposto pelo licitante (aqui representante), não guardam cabimento,
uma vez que a regra editalícia invocada não exigia relação de pertinência
entre a idoneidade e o ramo comercial a ser explorado pelo pretenso
cessionário do espaço público.
Tais considerações levaram ao provimento da presente representação
quanto ao seu mérito.
Das razões de defesa (doc. TCE-RJ nº 13.209-8/12 - fls. 145/148)
Inicia informando às fls. 145 que o Sr. Samuel de Souza Marques compareceu
na sessão de julgamento da Concorrência nº 04/2011 e foi inabilitado uma
vez que não apresentou uma ‘carta de referência expedida por empresário
do ramo comércio’ exigida pelo edital regulador do certame.
Em sua defesa expõe que a exigência de apresentação de carta de referência
foi incluída incorretamente no rol das exigências de qualificação técnica,
mas que tal exigência encontra amparo legal e também não restringe o
caráter competitivo da licitação.
Prossegue afirmando que o art. 44 da Lei 8.666/93 prevê que a comissão
de licitação no julgamento das propostas deve levar em consideração os
critérios previamente definidos no edital regulador.
Desta forma, a comissão julgadora exigiu uma carta de referência expedida
117
por empresário do ramo do comércio, independente de esta exigência
estar relacionada como critério de habilitação técnica, quando o correto
seria qualificá-la como um critério de aceite para classificação da proposta
e que esta regra intencionava apurar a idoneidade do licitante.
Por este motivo a exigência de apresentação da carta de referência não
pode ser considerada eivada de vício por ausência de embasamento legal.
Torna a afirmar que: ‘não é a classificação da exigência no edital que a
torna indevida e contamina todo o procedimento de vício insanável como
defende o voto.’
Da análise da defesa:
A defesa apresentada não expõe motivos capazes de justificar a exigência
do subitem 4.6.3, I, ‘b’, do Edital de Concorrência nº 04/2011, inserta no rol
das qualificações técnicas, ao arrepio da Lei Federal nº 8.666/93.
O jurisdicionado afirma que a exigência é legal e sustenta sua defesa em
diferentes redações invocando o mesmo argumento, de que a exigência
foi elencada no rol da qualificação técnica quando o correto seria qualificála como um critério de aceite para classificação da proposta.
Contudo, a questão que se apresenta não é a discussão acerca da
legalidade de se exigir a comprovação do licitante de sua idoneidade,
que deve sim ser exigida para fins de resguardar o sucesso da futura
contratação, mas tão somente que esta declaração só possa ser elaborada
por empresa do ramo do comércio (implicitamente ao ramo de atividade
do lote à que o licitante deseja concorrer), conforme posição consolidada
com a desclassificação do representante, em conformidade à regra
estabelecida no subitem 4.6.3, I, ‘b’:
4.6.3 - Documentação relativa à QUALIFICAÇÃO TÉCNICA, a saber:
I – Comprovação do licitante, pessoa física, por meio de atestados e/ou
certidão (ões), de idoneidade, por meio de um dos seguintes documentos:
a) Contrato de Trabalho em CTPS – (Carteira de Trabalho e Previdência
Social);
b) Carta de referência emitida por um empresário do ramo do comércio.
118
O autor da declaração não é relevante para se aferir a idoneidade do
licitante. Neste sentido, exigindo-se que a prova de idoneidade só possa
ser produzida por empresário do ramo do comércio, a cláusula torna-se
restritiva, pois restringiu que o documento a ser apresentado só possa ser
confeccionado por empresas de determinado ramo de comércio.
Somente o fato de se exigir a comprovação da idoneidade do licitante
inserta no rol das exigências relativas à qualificação técnica configuraria
uma impropriedade de caráter formal, de forma.
No caso em apreço, o vício está configurado pela redação inserta na
alínea ‘b’ do inc. I do subitem 4.6.3, que determina que a comprovação do
licitante se dê mediante a apresentação de carta de referência emitida por
um empresário do ramo do comércio.
Desta forma, o Sr. Artur Messias da Silveira, Prefeito de Mesquita, não foi
capaz de justificar o estabelecimento da regra restritiva à licitação quando
da elaboração do Edital de Concorrência nº 04/2011, caracterizando-se por
vício insanável.
CONCLUSÃO
Ante todo o exposto, sugerimos:
I – pela rejeição das razões de defesa apresentadas pelo Sr. Artur Messias
da Silveira, Prefeito de Mesquita, por meio do doc. TCE-RJ nº 13.209-8/12
(fls. 144/151), pelos motivos elencados na presente análise;
II - pela ilegalidade do Edital de Licitação por Concorrência Pública nº
04/2011 da Prefeitura Municipal de Mesquita, e consequentemente, a
nulidade de todos os atos dele decorrentes, nos termos do art. 48 da Lei
Complementar n.º 63/90, tendo em vista a imposição de regra restritiva
à ampla competitividade referente à qualificação técnica, em dissonância
com a Lei Federal nº 8.666/93;
III – pela aplicação de multa ao Sr. Artur Messias da Silveira, Prefeito de
Mesquita, com fulcro no artigo 63, inciso III, da Lei Complementar n º
63/90, em face da irregularidade apontada, qual seja, a imposição de regra
restritiva contida no subitem 4.6.3, I, ‘b’;
IV – pela comunicação, nos termos do art. 6º, § 1º da Deliberação TCE-
119
RJ nº 204/96, ao Prefeito de Mesquita, para que adote as providências
necessárias visando:
IV.1 - a anulação do Edital de Concorrência nº 004/2011 e de todos os
atos dele decorrentes, observando o disposto no art. 49 da Lei Federal nº
8.666/93, encaminhado a este Tribunal a cópia do ato de anulação bem
como sua publicação no Diário Oficial, alertando que o não atendimento
desta determinação o sujeitará às sanções previstas no art. 63 da Lei
Complementar nº 63/90.”
O Ministério Público Especial, representado por seu Procurador-Geral,
Dr. Horacio Machado Medeiros, manifesta-se favoravelmente às medidas
preconizadas pelo Corpo Técnico (fls. 158).
É o Relatório.
Estes autos foram formalizados mediante o manejo do instrumento de
Representação1 pelo Sr. Samuel de Souza Marques, que se fez devidamente
qualificado em razão de sua participação, como licitante, em certame
promovido pelo Município de Mesquita.
Dita competição licitatória tinha por objeto a cessão de uso de 04
quiosques, localizados em diferentes pontos do Município, de acordo com
as especificações constantes do Anexo I (fls. 19/20).
O ponto nevrálgico da inconformidade do signatário da peça vestibular
fora sua inabilitação na competição em razão de ter sido exigida, como
condição de qualificação técnica, declaração de idoneidade exarada por
empresário do ramo do comércio.
Mesmo apresentando tal documentação, a CPL deu por descumprida
citada exigência editalícia, por não ter sido expedido o dito documento
por empresário do ramo correspondente às explorações comerciais a que
se destinariam os quiosques objeto da cessão de uso.
Recurso administrativo –
petição ou apelo dirigido à
autoridade pública, para que
se desfaçam as consequências
ou efeitos das medidas
desfavoráveis ao recorrente.
(Vocabulário Jurídico – De
Plácido e Silva)
Interpostos recursos administrativos, foram os mesmos desprovidos pela
municipalidade.
Em sede de decisão preliminar, esta Corte de Contas, acolhendo
fundamentação de minha pena, assentou que a previsão editalícia
empregada na inabilitação do representante-licitante, padecia de vícios
120
insanáveis, de modo que descaberia sua inabilitação pelos motivos
invocados pela CPL.
Nessa linha de ideias, realcei, ainda, que o edital, em sua previsão, não exigia
relação de pertinência entre o ramo de comércio explorado pelo emitente
da declaração de idoneidade e o ramo comercial a ser explorado pelo
pretenso cessionário do espaço público. Portanto, a par da inadequada
formulação editalícia, a interpretação adotada pela CPL a respeito das
regras constantes do edital teria sido restritiva à ampla participação no
certame e destoante dos termos do próprio edital.
Nesse passo, vem o Chefe do Poder Executivo local reconhecer o
descabimento da exigência formulada como condição de habilitação
técnica, sem, contudo, descartar a viabilidade jurídica de a mesma ser
aferida no certame, como garantia da boa execução contratual.
Como pude asseverar em oportunidade passada, a qualificação técnica
tem o propósito de aferir a aptidão, profissional e operacional, do licitante
à plena execução das obrigações contratuais futuras, de interesse da
Administração. Desse modo, não se pode ter a pretensão de, por intermédio
dela, avaliar eventual idoneidade dos interessados.
Por outro lado, devo consignar que a pessoa física ou jurídica declarada
inidônea pela Administração Pública, nos termos do inc. IV do art. 87
da LF nº 8.666/93, fica impedida de com ela licitar e contratar enquanto
perdurarem os motivos determinantes da sanção e até que seja promovida
sua reabilitação.
Nesse condão, não se obsta, por óbvio, que a Administração certifiquese da idoneidade do licitante mediante exigências formuladas no
ato convocatório. Entretanto, não as poderá fazer por intermédio do
arrolamento conjunto com as que são próprias a aferição da qualificação
técnica.
A questão que deve ser posta é a dos meios que devam ser empregados
para que a Administração promova tal verificação de idoneidade.
Nesse caso, e sem ter a pretensão de aqui discutir os efeitos e a extensão da
sanção declaratória de inidoneidade, matéria que suscita divergência entre
os especialistas, entendo que restam à Administração duas alternativas
razoavelmente viáveis:
121
(i) ter registro dos licitantes que se encontram punidos com a pena de
inidoneidade;
(ii) exigir dos licitantes autodeclaração de que os mesmos não se
encontram punidos pelo poder público, estando os mesmos passíveis de
responsabilização diante de eventual declaração falsa ou incongruente
com a verdade dos fatos.
Lei 8666/1993:
Art. 30. A documentação
relativa à qualificação técnica
limitar-se-á à:
[...]
II - comprovação de
aptidão para desempenho
de atividade pertinente e
compatível em características,
quantidades e prazos com
o objeto da licitação, e
indicação das instalações
e do aparelhamento e do
pessoal técnico adequados e
disponíveis para a realização do
objeto da licitação, bem como
da qualificação de cada um dos
membros da equipe técnica
que se responsabilizará pelos
trabalhos;
[...]
§ 1º A comprovação de
aptidão referida no inciso II
do "caput" deste artigo, no
caso das licitações pertinentes
a obras e serviços, será feita
por atestados fornecidos
por pessoas jurídicas de
direito público ou privado,
devidamente registrados
nas entidades profissionais
competentes, limitadas as
exigências à:
I - capacitação técnicoprofissional: comprovação
do licitante de possuir em
seu quadro permanente, na
data prevista para entrega da
proposta, profissional de nível
superior ou outro devidamente
reconhecido pela entidade
competente, detentor de
atestado de responsabilidade
técnica por execução de obra
ou serviço de características
semelhantes, limitadas estas
exclusivamente às parcelas
de maior relevância e valor
significativo do objeto da
licitação, vedadas as exigências
de quantidades mínimas ou
prazos máximos.
Nesse caso, descabe previsão editalícia que exija dos licitantes a
apresentação de declaração de idoneidade formulada por terceiros,
uma vez que a estes não é dado certificar se determinada pessoa física ou
jurídica é idônea ou não para firmar contratos com a Administração, já que
está em pauta uma espécie de sanção aplicada pelo poder público.
No caso concreto, a autoridade municipal parece associar idoneidade
com bons antecedentes, que seriam passíveis de atestação por terceiros,
nos mesmos moldes daqueles emitidos por pessoas jurídicas de direito
público ou privado para confirmar a aptidão técnica do licitante para o
desempenho de atividade pertinente e compatível em características,
quantidades e prazos com o objeto da licitação, nos termos do art. 30, II e
§1º, da LF nº 8.666/93.
É imperioso consignar que idoneidade não se confunde com bons
antecedentes, tampouco se demonstra por atestados técnicos lavrados
por terceiros.
A regra geral é a da presunção juris tantum de idoneidade dos licitantes;
a inidoneidade é uma condição excepcional, que tem natureza jurídica
de penalidade administrativa.
Portanto, o órgão licitante deve se certificar da idoneidade do licitante
mediante consulta em seus próprios acervos ou por autodeclaração
do licitante, no sentido de que não se encontra punido pelo poder
público.
Diante desse contexto, entendo que não só foi imprópria a alocação da
exigência no campo da qualificação técnica, bem como a formulação de
se exigir declaração de terceiros, conduta que viola o §1º do art. 3º da
LF nº 8.666/93, que veda ao administrador público prever cláusulas ou
condições, nos atos convocatórios, que restrinjam ou frustem o caráter
competitivo do certame.
122
Por fim, deixo de acompanhar a sugestão do Corpo Técnico e do MPE no
sentido de promover a aplicação de pena ao Chefe do Poder Executivo
local por entender que se trata de erro formal e pontual na elaboração
técnica do edital e, por via de consequência, do desenvolvimento dos
procedimentos dele decorrentes, corrigível pela própria Administração,
não havendo indícios suficientes da ocorrência de má-fé por parte do
administrador público local.
A isso se some que o objeto licitado não redundou em dispêndio aos cofres
da municipalidade, ao contrário, gerou receitas ao erário, que se diga, de
pequena monta, sendo daí, ao meu sentir, desproporcional a aplicação de
medida punitiva no patamar mínimo atualmente adotado por esta Corte.
Diante, portanto, dos fundamentos aqui empregados, reputo ilegal o
ato convocatório, por afronta ao §1º do art. 3º da LF nº 8.666/93, sendo
de igual modo ilegais os atos dele decorrentes, cabendo ao Titular
do Poder Executivo local promover a anulação dos atos praticados
de modo a compatibilizar o procedimento administrativo ao exato
cumprimento da lei.
Pelo exposto e examinado, posiciono-me parcialmente de acordo com o
Corpo Instrutivo e com o Ministério Público Especial e
VOTO:
I- Pela REJEIÇÃO das razões de defesa apresentadas pelo Sr. Artur Messias
da Silveira, Prefeito do Município de Mesquita;
II- Pela ILEGALIDADE do Edital da Concorrência Pública nº 04/2011, oriundo
do Município de Mesquita, em razão de previsão de cláusula incompatível
com o caráter competitivo do certame, em clara afronta ao §1º do art. 3º
da LF nº 8.666/93;
III- Pela COMUNICAÇÃO, prevista no §1º do art. 6º da Deliberação TCERJ nº 204/96, ao Sr. Artur Messias da Silveira, Prefeito do Município
de Mesquita, para que, no prazo de 30 (trinta) dias, adote as medidas
administrativas necessárias à anulação do edital e dos atos dele decorrentes,
compatibilizando o procedimento licitatório aos exatos mandamentos da
LF nº 8.666/93;
IV- Pela EXPEDIÇÃO DE OFÍCIO ao signatário da presente Representação
para que tenha ciência desta decisão.
123
124
Julio L. Rabello
APOSENTADORIA E FIXAÇÃO DE PROVENTOS
Trata o presente do ato concessório de aposentadoria e respectiva fixação
de proventos integrais em nome de EDILA HERMIDA DOS SANTOS, no
cargo de Professor, ato exarado a contar de 19.02.2008.
O Pleno deste Tribunal, em Sessão de 25.11.2010, assim deliberou:
“VOTO:
Pela COMUNICAÇÃO, nos termos da Lei Complementar n.º 63/90, ao
responsável pelo Departamento de Pessoal da Secretaria de Estado de
Educação, para que, no prazo de 30 (trinta) dias:
1 - Comprove o período em que a servidora percebeu a Gratificação de
Encargos Educacionais, informando, ainda, o dispositivo que tenha
autorizado o seu pagamento;
2 - Cientifique de forma inequívoca a servidora da situação de seu processo
de aposentadoria, assim como franqueie à mesma manifestar-se nos
autos, para que esta possa, se lhe aprouver, de modo autônomo, oferecer
esclarecimentos e razões para os pontos suscitados e reputados irregulares,
garantindo-se assim o exercício do direito constitucional ao contraditório e
à ampla defesa.”
As parcelas
remuneratórias pagas
em decorrência de
local de trabalho
possuem um caráter
condicional, o seu
pagamento somente
é garantido ao
servidor enquanto
permanecer exercendo
as atividades
naquele local. As
vantagens, que
podem ser retiradas
a qualquer momento
da remuneração do
servidor, não podem
adquirir caráter
permanente, com
a concessão da
aposentadoria.
Retornaram os autos da COMUNICAÇÃO, visto que o Jurisdicionado cumpriu
a exigência, acostando no presente processo documentos de fls. 39 a 49.
Ademais, a Superintendência de Gestão de Pessoas da Secretaria de Estado
de Educação solicita nova análise do presente tendo em vista o Parecer
RIOPREVIDÊNCIA n.º 03/2009 – FDCB –, do Diretor Jurídico da citada
autarquia com a aprovação da Procuradoria-Geral do Estado.
Seguindo a regular tramitação, a Instrução conclui por sugerir o REGISTRO
dos atos em apreço.
O Ministério Público Especial, este representado pela Procuradora Marianna
Montebello Willeman, manifesta-se em igual sentido.
*Voto aprovado por
unanimidade.
É o Relatório.
125
Assiste razão à Instância Instrutiva. O presente processo merece ser
CHANCELADO por este Órgão Controlador de Contas.
No que tange ao Parecer RIOPREVIDÊNCIA n.º 03/2009 – FDCB –, tecerei
alguns comentários.
Em síntese, sustenta o ilustre Procurador que, quando da edição da Lei estadual
n.º 5.260/08, o legislador optou pela proteção das expectativas legítimas dos
servidores públicos, ao manter, na regra transitória do art. 35, a possibilidade
de cômputo de Gratificações de Encargos Especiais nos proventos de
inatividade para aposentadorias voluntárias, ainda que restringindo o universo
de beneficiários mediante o enrijecimento dos requisitos.
Assevera, também, que o art. 1º, in fine, da Lei estadual n.º 5.352/08,
especificamente na parte em que modifica a redação do art. 35 da Lei
estadual n.º 5.260/08, é materialmente inconstitucional, por ferir os
princípios do direito adquirido e da segurança jurídica, uma vez que
suprime, pura e simplesmente, a regra de transição entre o regime do
Decreto n.º 2.479/79 e aquele previsto na legislação previdenciária ora em
vigor, ou seja, o art. 35, em seu formato original, ainda está vigente.
Data maxima venia, discordo da posição do Diretor Jurídico do
RIOPREVIDÊNCIA. Senão vejamos.
Preliminarmente, quero deixar consignado que os Tribunais de Contas, no
cumprimento de suas funções constitucionais e, mais especificamente, no
exercício do controle da legalidade das aposentadorias, que é atribuição
conferida pela Constituição Federal, também, exercem, incidenter tantum,
de maneira difusa, controle in concreto de constitucionalidade de leis,
visto que se é certo que as Cortes de Contas não podem “declarar” um
ato normativo inconstitucional, é cediço que podem no exercício de suas
funções, centralmente constitucionais, deixar de aplicar aqueles que, no
seu entender, ofendam o Texto Constitucional, conforme lhes permite a
Súmula n.º 347 do Supremo Tribunal Federal.
Decreto 2479/79 – Aprova o
Regulamento do Estatuto dos
Funcionários Públicos Civis do
Poder Executivo do Estado do
Rio de Janeiro.
Todavia, não me manifestarei quanto à aplicabilidade ou não da referida
Súmula n.º 347/STF no art. 35, em seu formato original, da Lei estadual
n.º 5.260/08, haja vista que já me pronunciei a respeito desta questão nos
autos do Processo TCE n.º 102.193-8/09.
Considerando a uniformidade das decisões deste Órgão Controlador de
126
Contas, posso até considerar a vigência do citado dispositivo legal. No
entanto, tão somente, no período de 12.06.2008 (data da promulgação) a
19.12.2008 (data da revogação).
O que defenderei neste voto, é a inequívoca e acertada modificação do
susomencionado art. 35, em sua forma original, da Lei estadual n.º 5.260/08.
O que farei a seguir.
Em primeiro lugar, vejamos o que estabelecia o artigo 35 da Lei 5.260, de
11 de junho de 2008, cujo texto original trazia a seguinte redação, verbis:
“Art. 35 - Integrarão os proventos dos segurados as vantagens pecuniárias
percebidas ininterruptamente, na data de publicação desta Lei, há pelo
menos 3 (três) anos, desde que o segurado permaneça no gozo da mesma
por período de tempo ininterrupto, a contar da data de publicação
desta Lei, e que, findo este período, totalize, pelo menos, 5 (cinco) anos
de percepção, ingresse na inatividade, hipótese em que se manterá a
incidência da contribuição previdenciária sobre a mencionada vantagem.”
Contudo, é de fácil verificação que o dispositivo ora transcrito padecia
de vício de inconstitucionalidade, por acolher a integração de quaisquer
vantagens aos proventos dos servidores, mediante o cumprimento das
circunstâncias ali lavradas. Tanto que, em 19.12.2008, apenas 06 meses
após a sua edição, o texto em destaque foi revogado pela Lei estadual n.º
5.352/08, que trouxe a seguinte redação:
“Art. 35 - Não integrarão os proventos dos segurados as parcelas
remuneratórias pagas em decorrência de local de trabalho, de função
de confiança ou de cargo em comissão, exceto quando tais parcelas
integrarem a remuneração de contribuição do servidor que se aposentar
com fundamento no artigo 40 da Constituição da República, respeitado,
em qualquer hipótese, o limite do § 2º do citado artigo”.
O Professor Hely Lopes Meirelles assim define “vantagens pecuniárias”1:
“Vantagens pecuniárias são acréscimos de estipêndio do servidor,
concedidas a título definitivo ou transitório, pela decorrência do tempo
de serviço (ex facto temporis), ou pelo desempenho de funções especiais
(ex facto officii), ou em razão das condições anormais em que se realiza o
serviço (propter laborem) ou, finalmente, em razão de condições pessoais
do servidor (propter personam). As duas primeiras espécies constituem
127
1 - MEIRELLES, Hely Lopes.
Direito administrativo
Brasileiro. 33ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2007.
os adicionais (adicionais de vencimento e adicionais de função), as duas
últimas formam a categoria das gratificações (gratificações de serviço
e gratificações pessoais). Todas elas são espécies do gênero retribuição
pecuniária, mas se apresentam com características próprias e efeitos
peculiares em relação ao benefício e à Administração.”
Portanto, o dispositivo citado alhures vai de encontro à norma inserta no §
2º do art. 40 da Constituição Federal, com a redação trazida pela Emenda
Constitucional n.º 20, de 16.12.1998:
“§ 2º - Os proventos de aposentadoria e as pensões, por ocasião de sua
concessão, não poderão exceder a remuneração do respectivo servidor, no
cargo efetivo em que se deu a aposentadoria ou que serviu de referência
para a concessão da pensão.”
Conforme fartamente exposto por mim no voto que prolatei no Processo
TCE n.º 231.958-2/06 (aprovado em Sessão de 25.06.09), e o que a doutrina
e a jurisprudência abalizam, remuneração do cargo efetivo é o valor
constituído pelo vencimento e vantagens pecuniárias permanentes desse
cargo, estabelecido em lei, acrescidos dos adicionais de caráter individual e
das vantagens pessoais permanentes, em harmonia também com o Art. 2º
da Orientação Normativa MPS/SPS N.º 02, de 31.03.2009, verbis:
“IX - remuneração do cargo efetivo: o valor constituído pelos vencimentos
e pelas vantagens pecuniárias permanentes do respectivo cargo,
estabelecidas em lei de cada ente, acrescido dos adicionais de caráter
individual e das vantagens pessoais permanentes;”
Proficiências transitórias, percebidas em razão do local de trabalho, bem
como cargos comissionados e funções gratificadas não integrariam os
proventos do servidor, conforme a Orientação Normativa acima citada –
art. 43, caput e seu parágrafo primeiro:
Emenda Constitucional
20/98 – Modifica o sistema de
previdência social, estabelece
normas de transição e dá
outras providências.
“Art. 43. É vedada a inclusão nos benefícios de aposentadoria e pensão,
para efeito de percepção destes, de parcelas remuneratórias pagas em
decorrência de local de trabalho, de função de confiança, de cargo em
comissão, de outras parcelas temporárias de remuneração, ou do abono
de permanência de que trata o art. 86.”
“1º Compreende-se na vedação do caput a previsão de incorporação das
parcelas temporárias diretamente nos benefícios ou na remuneração,
128
apenas para efeito de concessão de benefícios, ainda que mediante regras
específicas, independentemente de ter havido incidência de contribuição
sobre tais parcelas.”
Por isso, quaisquer parcelas de natureza precária, dissociadas do
cargo efetivo, a exemplo das gratificações de horas extras, serviços
extraordinários, cargos em comissão ou funções gratificadas, após 16.12.98,
data de publicação da Emenda Constitucional n.º 20/98, não mais poderão
ser incorporados aos proventos.
Como consequência, após 16.12.98, qualquer norma existente, seja ela
constitucional ou infraconstitucional, que assegure ao servidor o direito
de incorporar, quando da passagem para a inatividade, gratificações
ou adicionais, encontram-se revogadas pela Emenda Constitucional n.º
20/98, porquanto tais verbas não são e nunca foram parcelas inerentes à
remuneração de servidor titular de cargo efetivo.
Portanto, depreende-se que as parcelas de natureza precária, que estão
atreladas ao desempenho do cargo ou às condições e locais onde tal
cargo é exercido, a partir de 16.12.98, data da publicação da Emenda
Constitucional n.º 20/98, somente poderão ser incorporadas na forma
expressa por lei, e frise-se: em atividade. Dito por outras palavras, é
necessário que a vantagem integre os proventos de aposentadoria, e não
se subordine quando da passagem à inatividade para ser inclusa nos
proventos.
Repiso: as parcelas remuneratórias pagas em decorrência de local de
trabalho possuem um caráter condicional, o seu pagamento somente é
garantido ao servidor, enquanto permanecer exercendo suas funções
naquele local. Desta maneira, as vantagens que podem ser retiradas a
qualquer momento da remuneração do servidor, não podem, a meu ver,
adquirir caráter permanente, com a concessão da aposentadoria, por
colidir com a regra estatuída pela Emenda Constitucional n.º 20/98.
Assim, o parágrafo 2º do art. 40 da CF combate a edição de lei que preveja
a incorporação de vantagens excedentes das próprias do cargo efetivo,
quando da aposentadoria. Os proventos hão de abarcar, apenas, a
remuneração do servidor no cargo efetivo em que se der a aposentadoria,
colhendo tão somente as vantagens percebidas em função da titularização
desse cargo, salvo, como já exposto, para aquelas vantagens que ocorram
ainda em atividade, que passam a compor a remuneração do servidor,
129
constituindo direito pessoal, e, portanto, a inclusão das mesmas nos cálculos
dos proventos não fere as disposições contidas na Emenda Constitucional
n.º 20/98, no entanto, não é compatível o mesmo raciocínio em relação às
parcelas transitórias, que dependem da concessão da aposentadoria para
serem incorporadas aos proventos.
Sustenta-se, pois, que ao estabelecer o Texto Constitucional que os
proventos não podem ter valor superior à remuneração do cargo efetivo
(conceba-se, procedente do cargo efetivo) dissipou-se a possibilidade de
outros valores ou vantagens integrarem a composição dos proventos,
exceto aquelas gratificações próprias da retribuição ou inerentes ao
exercício do cargo em que se deu a aposentadoria. Segundo tais dispositivos
legais, está proibida pela Constituição Federal, com as disposições trazidas
pela Emenda Constitucional n.º 20/98, a incorporação aos proventos, a
guisa de estabilidade financeira ou incorporação ordinária - institutos
de certa similitude nos efeitos pecuniários, mas de teleologia e regimes
jurídicos bastante distintos -, outrora existentes no âmbito de nosso
Estado e em muitos dos seus Municípios (bem assim em outros Estados e
Municípios da Federação), de quaisquer vantagens que não tenham direta
conexão derivativa do exercício do cargo efetivo, também compondo sua
remuneração. Consequentemente, cabe a assertiva de que as leis que
preveem essa espécie de benefício foram revogadas pela referida Emenda.
Corroborando com todo o exposto, vale destacar que o Superior Tribunal de
Justiça – STJ – já decidiu em reiterados julgados2 que as parcelas concedidas
em decorrência da anormalidade do serviço (propter laborem), isto é, por
exemplo, gratificação de assiduidade, de adicional noturno, de serviços
extraordinários, de desempenho e parcelas temporárias de remuneração
são gratificações de serviço, que não se incorporam automaticamente ao
vencimento, nem são auferidas na aposentadoria.
Apelação – termo originado
do latim appellattio, que é
utilizado no mesmo sentido
originário: recurso interposto
de juiz inferior para superior.
Apelação cível – assim se
diz da apelação interposta
em ação cível ou comercial.
(Vocabulário Jurídico – De
Plácido e Silva)
2 - RMS 22.239/PR – Paraná.
Relator: Felix Fischer.
Julgamento em 05.09.2007.
Decisões judiciais de diversos tribunais do país enveredam no mesmo
raciocínio, conforme podemos verificar nos arestos abaixo:
TJRJ – Apelação Cível n.º 30.572/2006 – Relator: Des. Fernando Cabral.
Administrativo e constitucional. Servidor Público. Gratificação de função
de caráter transitório. Inadmissibilidade de sua incorporação aos
vencimentos ou proventos do servidor. Pode a Administração, dentro
de seu poder discricionário, a qualquer tempo, extinguir gratificação de
caráter precário e transitório, sem que isto represente qualquer violação
ao direito do servidor. O servidor público não tem direito adquirido a um
130
determinado regime jurídico, nem a critérios estabelecidos anteriormente
para a formação de sua remuneração global. Se a extinção se deu por
simples discrição do Poder Público, que considerou desnecessário o
pagamento da referida verba, deixando de estendê-la aos servidores
do Poder Judiciário, a partir de então, dispensável a instauração de
procedimento administrativo específico para a extinção do pagamento
àquele determinado servidor. Norma de caráter geral por não se tratar
de imputação de irregularidade ou ilegalidade no pagamento da referida
verba, mas de juízo de conveniência e oportunidade da Administração. O
regime previdenciário dos servidores públicos, a partir da EC 20/98, passou
a ter, induvidosamente, caráter contributivo, não podendo o desconto
de contribuição previdenciária incidir sobre vantagens não integrantes
dos vencimentos do cargo efetivo para fins de aposentadoria, diante do
princípio da não confiscatoriedade e da proporcionalidade dos tributos.
Recurso parcialmente provido, para acolher o pedido alternativo dos
autores, condenando o Estado a restituir-lhes os valores indevidamente
descontados.
TJSC – Apelação cível n.º 2006.001891-9, da Capital
Des. Relator: Volnei Carlin - Data da Decisão: 30/03/2006
APELAÇÃO CÍVEL - REVISÃO DE APOSENTADORIA POR INVALIDEZ SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL - REQUERIMENTO DE INCLUSÃO DAS
GRATIFICAÇÕES DE FUNÇÃO E DESEMPENHO DE ATIVIDADE ESPECIAL E DO
AUXÍLIO-ALIMENTAÇÃO AOS PROVENTOS PREVIDENCIÁRIOS - VANTAGENS
PROPTER LABOREM - IMPOSSIBILIDADE.
As gratificações de função e desempenho de atividade especial, bem como
o auxílo-alimentação, consubstanciam-se como verbas propter laborem,
sendo necessário o efetivo exercício do cargo para o recebimento da
respectiva vantagem remuneratória, não podendo, portanto, compor os
proventos de aposentadoria .
TJMG – Número do processo: 1.0106.06.021959-4/002(1)
Relator: ALVIM SOARES
Data do Julgamento: 12/02/2008
EMENTA: CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA - BASE DE CÁLCULO - VERBA
DE NATUREZA TRANSITÓRIA - NÃO INCORPORAÇÃO AO VENCIMENTO
DO SERVIDOR - REPETIÇÃO DE INDÉBITO - POSSIBILIDADE. A verba
de natureza transitória não se incorpora ao vencimento do servidor.
Logo, não pode integrar a base de cálculo para efeito da incidência da
contribuição previdenciária. Pedido julgado improcedente. Reforma da
sentença.
131
Em reforço à minha argumentação, trago as palavras de Hely Lopes
Meirelles, em obra já citada:
“Gratificação de serviço (propter laborem) é aquela que a Administração
institui para recompensar riscos ou ônus decorrentes de trabalhos normais
executados em condições anormais de perito ou de encargos para o
servidor, tais como os serviços realizados com risco de vida e saúde ou
prestados fora do expediente, da sede ou das atribuições ordinárias do
cargo. O que caracteriza essa modalidade de gratificação é sua vinculação
a um serviço comum, executado em condições excepcionais para o
funcionário, ou a uma situação normal do serviço, mas que acarreta
despesas extraordinárias para o servidor. Nessa categoria de gratificações
entram, dentre outras, as que a Administração paga pelos trabalhões
realizados com risco de vida e saúde; pelos serviços extraordinários; pelo
exercício do Magistério; pela representação de gabinete; pelo exercício
em determinadas zonas ou locais; pela execução de trabalho técnico
ou científico não decorrente do cargo; pela participação em banca
examinadora ou comissão de estudo ou de concurso; pela transferência
de sede (ajuda de custo); pela prestação de serviço fora da sede (diárias).”
“Essas gratificações só devem ser percebidas enquanto o servidor está
prestando o serviço que as enseja, porque são retribuições pecuniárias
“pro labore faciendo” e “propter laborem”. Cessando o trabalho que lhes
dá causa ou desaparecidos os motivos excepcionais e transitórios que as
justificam, extingue-se a razão de seu pagamento.”
Não se olvidando que aqueles servidores que reuniram os requisitos para
se aposentarem, e, também, os pressupostos básicos consubstanciados no
citado art. 35, poderiam incorporar aos proventos quaisquer vantagens,
inclusive, cargos em comissão, funções gratificadas, gratificação de
horas extras, gratificação de desempenho funcional, gratificação de
produtividade, gratificação de representação de gabinete, gratificação
pela participação em órgão de deliberação coletiva, gratificação pelo
exercício temporário de magistério, uma vez que todas são consideradas
“vantagens pecuniárias”. Todavia, não podemos confundir vantagem
pecuniária permanente com vantagem pecuniária transitória.
Norma legal – em sentido
genérico, é toda norma
jurídica, ou toda regra, todo
preceito emanado do poder
competente e fixado na lei.
(Vocabulário Jurídico – De
Plácido e Silva)
Sem mencionar o importante fato de que tal norma legal trouxe, de forma
indireta, a volta do instituto da incorporação de cargos comissionados e funções
gratificadas, que, há muito, não mais existe no sistema jurídico administrativo
do Estado, desde a edição da Lei estadual n.º 2.565, de junho de 1996.
132
De certo, houve uma grande alteração em todo o quadro normativo,
que determinou mudanças em conceitos jurídicos tais como “tempo de
contribuição”, bem como na própria metodologia de cálculo.
A alteração do cálculo do beneficio do servidor após as Emendas
Constitucionais n.ºs 20 e 41, fez com que a incidência de contribuição
previdenciária sobre certas verbas fosse considerada indevida, como
no caso da tributação previdenciária sobre os montantes percebidos a
título de cargo em comissão, a título do exercício de função gratificada e
parcelas que tenham como fundamento o local de trabalho do servidor,
sem mencionar a incidência sobre verbas de natureza indenizatória.
Hoje em dia é praticamente pacífico que tais verbas, como não irão
se refletir nos proventos do aposentado, não poderão ser tributadas
quando percebidas em atividade, mas tal entendimento foi construído
recentemente após estudos decorrentes das reformas previdenciárias e
após várias decisões judiciais neste sentido.
O Superior Tribunal de Justiça já decidiu3 - inspirado em julgados do
Supremo Tribunal Federal - que a incidência de contribuição previdenciária
sobre parcelas remuneratórias que não integrem à remuneração do cargo
efetivo do servidor, à míngua de dispositivo legal que defina como base
de cálculo, constitui violação aos princípios da legalidade, da vedação
de confisco e da capacidade econômica (contributiva), insculpidos nos
incisos I e IV do art. 150 e § 1º do art. 145 da Constituição Federal, bem
como o princípio da proporcionalidade entre o valor da remuneração-decontribuição e o que se reverte em benefícios, posto que, na aposentadoria,
o servidor receberá tão somente a totalidade da remuneração do cargo
efetivo e não o quantum proporcional àquele sobre o qual contribuiu.
Forço concluir, então, que, em qualquer caso, os servidores deveriam
manifestar o seu assentimento quanto ao desconto, sendo irregular
qualquer incidência tributária caso não haja a manifestação positiva do
servidor nesse sentido, inexistindo o entendimento de que o silêncio
valeria como uma opção pelo desconto nesse caso, a não ser que a verba
fosse incorporável.
Inexistindo o direito à incorporação, a verba não pode ser tributada
pela contribuição previdenciária, a menos que o servidor manifeste
expressamente seu desejo de que isso ocorra, pois nesse caso, no futuro,
esses valores de contribuição irão aumentar o seu benefício, caso este seja
133
3 - RMS 21.559/DF –
Distrito Federal. Relator:
Ministro Luiz Fux. Julgamento
em 02.10.2008.
calculado com base nas novas regras. Entretanto, o desconto é por conta
e risco do servidor.
A Constituição Federal, em seu art. 24, estabelece que a União Federal tem
competência para editar normas gerais sobre direito previdenciário, e as
Leis federais n.°9.717/98 e n.°10.887/2004 são consideradas regras gerais,
e, em virtude disso, são de aplicação cogente e inafastável a todos os entes
federativos.
Insta destacar que a Lei n.°10.887/2004, no § 2º do seu artigo 4°
, trazia
essa previsão da opção pelo desconto somente em relação aos servidores
federais, sendo um dispositivo constante desta lei que não possuía
caráter nacional, e, sendo assim, a opção nos estados-membros somente
poderia ser feita quando houvesse legislação apta a ensejá-la.
E assim o fez o nosso Estado com a promulgação da Lei estadual n.º 5.260,
de 11.06.2008, onde foi disponibilizada aos servidores do Estado do Rio
de Janeiro a opção pelo desconto nessas verbas que, em princípio, seriam
isentas.
Logo, repiso: estou convencido de que a revogação do artigo 35 da Lei n.º
5.260, em seu texto original, de 11 de junho de 2008, foi apropriada.
Jurisprudência – derivado do
latim jurisprudentia, de jus
(Direito, Ciência do Direito)
e prudentia (sabedoria),
entende–se literalmente que é
a ciência do Direito vista com
sabedoria. [...] Assim é que se
entende a jurisprudência como
sábia interpretação e aplicação
das leis a todos os casos
concretos que se submetam a
julgamento da Justiça. Ou seja,
o hábito de interpretar e aplicar
as leis aos fatos concretos,
para que, assim, se decidam as
causas. (Vocabulário Jurídico –
De Plácido e Silva)
Em segundo lugar, é pacífica a jurisprudência dos tribunais superiores
quanto à inexistência de direito adquirido a regime jurídico por parte
dos servidores públicos ocupante de cargo público. Diz-se, nestes casos,
que a relação jurídica que o servidor mantém com o Estado é legal ou
estatutária, ou seja, objetiva, impessoal e unilateralmente alterável
pelo Poder Público. A disciplina geral da função pública é considerada
inapropriável pelo servidor público e, portanto, tida como sujeita à
modificação com eficácia imediata tanto no plano constitucional quanto
infraconstitucional.
O tema é complexo e obriga a recordar noções fundamentais sobre a
função pública. Na doutrina, por todos, confira-se a lição sintética e precisa
de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO sobre o tema:
"Em tempos, pretendeu-se que o vínculo jurídico entre o Estado e o
funcionário fosse de natureza contratual. De início, entendido como
contrato de direito público, afinal, prevaleceu o entendimento correto, que
nega caráter contratual à relação e afirma-lhe natureza institucional.
134
Isto significa que o funcionário se encontra debaixo de uma situação legal,
estatutária, que não é produzida mediante um acordo de vontades, mas
imposta unilateralmente pelo Estado e, por isso mesmo, suscetível de ser,
a qualquer tempo, alterada por ele sem que o funcionário possa se opor à
mudança das condições de prestação de serviço, de sistema de retribuição,
de direitos e vantagens, de deveres e limitações, em uma palavra de regime
jurídico." (Regime Constitucional dos Servidores da Administração Direta e
Indireta, 2ª ed., revista, atual., São Paulo, Ed. RT, 1991, p. 19).
Na jurisprudência do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL é abundante a coleção
de acórdãos que adotam a mesma orientação de recusar a existência de
direito adquirido a regime jurídico pelos servidores públicos estatutários.
Podem ser referidos alguns julgados:
"Constitucional Funcionário Público. Regime de tempo integral.
Pela natureza estatutária das relações do funcionário público com a
Administração, pode tal regime ser modificado por lei, sem que isto ofenda
o principio constitucional da garantia ao direito adquirido" (STF, RE 99.592,
Rel. Min. DÉCIO MIRANDA, RTJ 108/382, j. em 7/10/1983).
"A garantia constitucional do direito adquirido não faz intangível o regime
jurídico de um servidor do Estado, sujeito ao estatuto especial ante a edição
da lei complementar que o modifica" (STF, RE 99.594, Rel. Min. FRANCISCO
REZEK, RTJ 108/785)
"Funcionalismo. Proventos de aposentadoria. Se a lei extingue vantagem
ou gratificação que serviu de base ao cálculo de proventos do funcionário
aposentado, sem redução dos mesmos, não há ofensa a direito adquirido,
uma vez que a garantia constitucional não abrange o regime jurídico" (STF,
RE 99.955, Rel. Min. CARLOS MADEIRA, RTJ 116.1065).
"Lei nova, ao criar direito novo para o servidor público, pode estabelecer,
para o cômputo do tempo de serviço, critério diferente daquele
determinado no regime jurídico anterior. Não há direito adquirido a regime
jurídico" (S.T.F, R.E n. 99.522, Rel. Min. MOREIRA ALVES, RDA 153/110-113,
j. em 1/03/1983).
"O funcionário tem direito adquirido a, quando se aposentar, ter seus
proventos calculados em conformidade com a lei vigente ao tempo em
que preencheu os requisitos para a aposentadoria. Não possui, contudo,
direito adquirido ao regime jurídico relativo ao cargo, o qual pode ser
135
modificado por lei posterior.(...) (S.T.F, R.E. n. 92.638, Rel. Min. MOREIRA
ALVES, RDA 145/56-61, j. em 6/06/1980).
"Vencimentos: reajuste: direito adquirido Inexistência. Segundo a
jurisprudência do STF- que reduz a questão à inexistência de direito
adquirido a regime jurídico -, as leis ainda quando posteriores à norma
constitucional de sua irredutibilidade - que modificam sistemática de
reajuste de vencimentos ou proventos são aplicáveis desde o início de sua
vigência. Ressalva do entendimento do relator, expresso no julgamento
do MS 21.216.(Gallotti, RTJ 134/1.112)" (STF, R.E. n. 185.966-1, Rel. Min.
SEPÚLVEDA PERTENCE, DJU de 22.09.1995, Seção I., p.30632).
"Decreto-Lei nº 2.335/87. Plano Verão. Reajuste de 26, 05%. Direito adquirido.
Inconstitucionalidade. 1- O Plenário da Corte reiterou o entendimento de
que não há direito adquirido a vencimentos de funcionários públicos,
nem direito adquirido a regime jurídico instituído por lei. Em se tratando
de norma de aplicação imediata, esta não alcança vencimentos já pagos,
ou devidos "pro labore facto"(...)" (STF, RE-199753-MG, Rel. Min. MAURÍCIO
CORREIA, DJU de 07-06-1996, pp. 19843, j. em 30/04/1996).
Emenda – no sentido
legislativo, a emenda possui
significado de substitutivo, ou
seja, a proposta para alterar
ou modificar parte ou todo
o teor de um projeto de lei.
(Vocabulário Jurídico – De
Plácido e Silva)
“Ementa: CONSTITUCIONAL. PREVIDENCIÁRIO. ART. 2º E EXPRESSÃO
8ª DO ART. 10, AMBOS DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 41/2003.
APOSENTADORIA. TEMPUS REGIT ACTUM. REGIME JURÍDICO. DIREITO
ADQUIRIDO: NÃO-OCORRÊNCIA.
1. A aposentadoria é direito constitucional que se adquire e se introduz no
patrimônio jurídico do interessado no momento de sua formalização pela
entidade competente.
2. Em questões previdenciárias, aplicam-se as normas vigentes ao tempo
da reunião dos requisitos de passagem para a inatividade.
3. Somente os servidores públicos que preenchiam os requisitos
estabelecidos na Emenda Constitucional 20/1998, durante a vigência das
normas por ela fixadas, poderiam reclamar a aplicação das normas nela
contida, com fundamento no art. 3º da Emenda Constitucional 41/2003.
4. Os servidores públicos, que não tinham completado os requisitos para
a aposentadoria quando do advento das novas normas constitucionais,
passaram a ser regidos pelo regime previdenciário estatuído na Emenda
Constitucional n. 41/2003, posteriormente alterada pela Emenda
Constitucional n. 47/2005.
5. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente.”
(STF, ADI n.º 3104/DF, Rel. Ministra Cármen Lúcia)
“EMENTA: Agravo regimental em agravo de instrumento. 2. Desacerto
136
da decisão não demonstrado. 3. Direito adquirido a regime jurídico.
Inexistência. Irredutibilidade de vencimentos. Não–ocorrência.
Precedentes. 4. Reenquadramento de servidores ativos em nova carreira.
Princípio da isonomia. Súmula 339 do STF. Extensão à pensionista.
Impossibilidade. Precedentes. 5. Agravo regimental a que se nega
provimento.”
(STF, Agravo Regimental em Agravo de Instrumento n.º 423.652/RS, Rel.
Ministro Gilmar Mendes)
No SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, de outra parte, orientação idêntica é
adotada nos seguintes acórdãos:
"(...) O regime público estatutário, que disciplina o vínculo entre o servidor
público e a Administração, não tem natureza contratual, em razão do que
inexiste direito a inalterabilidade do regime remuneratório, sendo passível
de modificação quando em desacordo com a ordem constitucional. (...).(STJ,
ROMS 6756-PB, Sexta Turma, Rel. Min. VICENTE LEAL, DJ 18/11/1996, p.
44928, j. em 15/10/1996).
"(...) O regime jurídico estatutário, que disciplina o vinculo entre o servidor
público, ativo e inativo, e a Administração, não tem natureza contratual, em
razão do que inexiste direito a inalterabilidade do regime remuneratório,
sendo passível de modificação quando em desacordo com o teto limite
constitucional. Esta colenda Corte consagrou o entendimento de que a
pensão especial submete-se a incidência da legislação que determina
novos critérios de fixação de seu percentual, não se encontrando imune
a incidência do redutor, que deve ser calculado tomando-se como valor
limite a remuneração referência do Poder a que esta vinculado o benefício.
Recurso Especial conhecido e provido". (STJ, RESP 113698-SC, Sexta Turma,
Rel. Min. VICENTE LEAL, DJ 01/09/1997, j. em 24/06/1997).
"(...) Militares da reserva - Pretensão de serem promovidos ao posto
imediatamente superior - Tese sustentada no fato de terem ingressado
no serviço público quando vigia norma que assim permitia, embora outra,
existente por ocasião da passagem da inatividade, vedasse tal benefício. Inexistência de direito adquirido. (....) Militar que entra em serviço ativo, dentro
de determinada norma, não tem direito adquirido ao mesmo regime jurídico
se outra passa a vigorar no decorrer de sua atividade. (....)" (STJ, RMS 4261-DF,
Terceira Seção, Rel. ANSELMO SANTIAGO, DJ 08/09/1997, j. em 13/08/1997).
Como se vê, desde que sob o regime estatutário o Estado não firma
137
contrato com seus servidores, mas para eles estabelece unilateralmente
regime de trabalho e de retribuição por via estatutária, lícito lhe é, a todo
tempo, alterar esse regime jurídico e, assim, as condições de serviço e
de pagamento, desde que o faça por lei, sem discriminações pessoais,
visando às conveniências da Administração. Contudo, da alteração do
regime jurídico não pode advir redução da remuneração, pois a garantia
da irredutibilidade protege o montante dos ganhos4.
Convém lembrar que o regime previdenciário hoje consagrado na
Constituição, especialmente após a Emenda Constitucional n.º 41/2003,
que alterou o art. 40, § 3º, da CF, tem caráter contributivo, mas traz
incorporado um princípio antes previsto apenas para o regime geral da
previdência: o princípio da solidariedade. É o que está expressamente
previsto no art. 40 da CF:
"Art. 40. Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações,
é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e solidário,
mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e
inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio
financeiro e atuarial e o disposto neste artigo.
§ 3º Para o cálculo dos proventos de aposentadoria, por ocasião da sua
concessão, serão consideradas as remunerações utilizadas como base para
as contribuições do servidor aos regimes de previdência de que tratam
este artigo e o art. 201, na forma da lei".
Por força do princípio da solidariedade, o financiamento da previdência não
tem como contrapartida necessária a previsão de prestações específicas
ou proporcionais em favor do contribuinte. A manifestação mais evidente
desse princípio é a sujeição à contribuição dos próprios inativos e
pensionistas, em que a Magna Corte afastou qualquer modalidade de
inconstitucionalidade dessa cobrança, apesar de ter sido levantado o
argumento do direito adquirido a não tributação desses servidores.
Assim, essa orientação doutrinária e jurisprudencial, específica quanto
ao tema da revisão do regime jurídico do servidor público, não impede a
consolidação de vantagens ou a formação de direitos adquiridos frente à
inovação legislativa na relação do servidor com o Estado.
4 - STF, RTJ 138/324; RE 183.700,
DJU 17.6.96; RE 205.481, DJU
13.4.99.
Não se admite, porém, direito adquirido à mera sobrevivência no tempo do
138
regime jurídico regulador da função pública, em benefício de indivíduos
determinados, pois foi vencida no plano das ideias e na história a concepção
patrimonial da função pública (quando os cargos públicos eram bens
negociados, comprados ou doados, e integravam o patrimônio pessoal
do seu titular). Atualmente, os cargos adotam o regime legal da função
pública, estando à disposição do legislador, nos limites da Constituição,
repelindo-se a ideia de que o regime jurídico regulador do exercício da
função, em si mesmo considerado, possa ser incorporado ao patrimônio
jurídico dos servidores ou da Administração.
Portanto, não se olvide afirmar que direito adquirido é todo aquele que
preenche os requisitos legais ao seu tempo, postergando-se o seu exercício.
Melhor expõe o mestre Rubens Limongi França (A irretroatividade das leis e
o direito adquirido, 5.ed: Ed. Saraiva, 1998), quando traduz os ensinamentos
de Carlos Francesco Gabba:
“É adquirido todo direito que:
a) é consequência de um fato idôneo a produzi-lo, em virtude da lei do
tempo no qual foi consumado, embora a ocasião de fazê-lo valer não se
tenha apresentado antes da atuação de uma lei nova sobre o mesmo;
b) nos termos da lei sob cujo império se entabulou o fato do qual se origina,
entrou imediatamente a fazer parte do patrimônio de quem o adquiriu”.
Vê-se, nitidamente, que há dúplice condição para que se tenha por
adquirido o direito: o adimplemento das condições previstas na lei (fatto
cumpiuto) enquanto ainda vigente, mesmo que seu gozo venha a ser
diferido no tempo. Logo, volto a dizer: não há que se falar em direito
adquirido a regime jurídico, sendo o direito adquirido uma situação
fático-jurídica, e não uma posição de vantagem jurídica inadvertida no
tempo. Utiliza-se a voz do Min. Sepúlveda Pertence (ADI n.º 2.087-1/AM)
para melhor dizer o que se pretende:
“O direito adquirido, quando seja o caso, pode ser oposto com êxito à
incidência e à aplicação de norma superveniente às situações subjetivas
já constituídas, mas nunca à alteração em abstrato do próprio regime
anterior”.
Um bom exemplo ocorreu no curso de tramitação da reforma
administrativa (Emenda Constitucional n.º 19/1998). Diversas emendas
139
foram apresentadas visando declarar, mediante enunciado expresso, a ideia
da validade de direitos adquiridos face às novas alterações constitucionais.
Nenhuma das propostas foi admitida. Na verdade importavam uma
contradição lógica e uma contradição jurídica.
Contradição lógica, em primeiro lugar, pois as emendas enunciavam
expressamente, geralmente para uma ou duas matérias, o que se admitia
como regra geral. De um lado, se as emendas eram consideradas necessárias
para garantia do direito adquirido, obviamente nenhuma garantia prévia
era considerada suficiente, bastante por si para a tutela destes direitos,
com o que indiretamente se negava a eficácia do art. 5º, inciso XXXVI, da
Constituição Federal face ao poder de reforma constitucional. De outro,
ao enunciarem a garantia para uma ou duas matérias, "a contrario sensu",
as emendas terminavam por excluir da garantia que enunciavam diversas
outras matérias também objeto de alteração específica. Nenhum desses
efeitos parece congruente com as intenções dos autores das emendas
ou com a justificativa que apresentavam segundo a qual "existe direito
adquirido contra a reforma da Constituição".
Contradição jurídica, porque as emendas enunciavam a inaplicabilidade
a todos os atuais servidores das alterações operadas no regime jurídico
de institutos jurídicos inteiros, como a estabilidade, quando se sabe que
direito adquirido atina com situações jurídicas individuais e vantagens
incorporadas no patrimônio individual. Parece evidente que a persistência
no tempo do sistema de desligamento existente no regime jurídico anterior
à reforma não conforma autêntica vantagem individual incorporável
ao patrimônio jurídico de servidores públicos. É estranho ao conceito
jurídico de direito adquirido a ideia de imunidade a alterações normativas
abstratas, pois essa garantia não impede a modificação abstrata de
institutos jurídicos, não visa bloquear a reforma legislativa. De frisar, por
fim, que o regime da estabilidade, antes como depois da reforma, não
constitui disciplina imutável ou absoluta, mas deixa margem à inovação
do próprio legislador infraconstitucional em matéria de definição de novas
faltas graves como hipóteses de perda de cargo.
As emendas dos parlamentares sobre o tema dos direitos adquiridos, no
entanto, inegavelmente tiveram o mérito de abrir na sociedade o debate
sobre os limites ou o alcance da garantia dos direitos adquiridos. De certo
modo, alargaram o próprio debate parlamentar, tornando mais conhecido
um problema técnico árduo, considerado por todos um dos problemas
140
mais complexos da ciência do direito. A questão dos direitos adquiridos,
no entanto, sempre aberta a novas abordagens e concretizações, parece
encontrar solução adequada apenas quando é considerada caso a caso
pelo Magistrado, a quem cabe em última instância precisar o limite de
aplicação de todo direito novo.
Assim, algumas situações, se analisarmos sob um prisma crítico, podem
parecer-nos injustas, mas foram obras do legislador, que está acima
dessas questões, e que tem atributos para alterar o ordenamento
jurídico, caso obtido o consenso necessário no Congresso Nacional
e/ou na Assembleia Legislativa para a promulgação das emendas
constitucionais e leis ordinárias.
Há de se ressaltar que a Lei estadual n.º 5.352/2008 teve origem em Projeto
de Lei enviado à Assembleia Legislativa pelo Executivo, que, após aprovado
pelo Poder Legislativo, retornou ao Chefe do Executivo que o sancionou,
obedecendo, assim, ao processo legislativo ditado pela Constituição
Estadual.
Ademais, a Lei supracitada foi objeto de controle de constitucionalidade
preventivo, realizado pela Comissão de Constituição e Justiça da
Assembleia Legislativa, “cuja função precípua é analisar a compatibilidade
do projeto de lei ou proposta de emenda constitucional apresentados com
o texto da Constituição Federal”5.
Lembremos que em diversos casos os servidores possuíam uma situação
jurídica que foi alterada em decorrência de novas emendas constitucionais
ou leis ordinárias, que modificaram o ordenamento jurídico vigente.
Quantos servidores inativos consideram injusto recolher contribuição
previdenciária após a inatividade? Quantos servidores consideraram
injusta a criação de “pedágio" para lograr uma aposentadoria?
Lei Estadual 2565/1996 –
Revoga a Lei de Incorporações
de Funções de Confiança e dá
outras providências.
Imaginemos a situação de servidores que, à beira da publicação da Emenda
de Constitucional n.°20/98, estavam prestes a aposentar-se e tiveram que
trabalhar mais anos para preencher os novos requisitos. E os servidores
que percebiam remuneração superior ao teto previsto na Emenda
Constitucional n.°41/2003 e tiveram redução remuneratória, adequando
os seus vencimentos a essa nova regra!
Idealizemos, também, quantos servidores entendem que tiveram suas
expectativas frustradas com a promulgação da Lei estadual n.º 2.565/96,
141
5 - Alexandre de Moraes,
Direito Constitucional
21ª Ed., p. 681.
que extinguiu o instituto da incorporação de cargos em comissão e/ou
funções gratificadas no sistema jurídico administrativo do Estado.
Ante todas as exposições teóricas e fáticas constantes deste voto, as
conclusões são as seguintes:
1. – O art. 35, em seu texto original, da Lei estadual n.º 5.260/08, não existe
mais no mundo jurídico desde 19.12.2008, uma vez que foi textualmente
alterado pelo art. 1º da Lei estadual n.º 5.352/08;
2. – O art. 1º da Lei estadual n.º 5.352/08, bem como o novel art. 35 da Lei
n.º 5.260/08, estão em plena vigência;
3. – No que tange apenas aos casos de aposentadorias cujos requisitos já se
concluíram antes da inovação legal ora em exame, nada mudou quanto ao
seu tratamento legal, visto que afetas à outra metodologia;
4. – Para aquelas concessões cujos requisitos foram (e serão) concluídos
após 19.12.2008, data da publicação da Lei estadual n.º 5.352/08, aplica-se
o novo art. 35 da Lei n.º 5.260/08, lembrando que tal dispositivo trata do
cálculo de proventos referentes à regra atual (média prevista no art. 1º da
Lei federal n.º 10.887/04);
5. – Nas concessões com fundamento no art. 6º da Emenda Constitucional
n.º 41/03 e no art. 3º da EC n.º 47/05, os proventos devem ser calculados com
base na remuneração do cargo efetivo. Portanto, para estas modalidades
de aposentadoria, com o fito de fundamentar as parcelas que compõem
a fixação de proventos, deve ser utilizado o inciso IV, do art. 11 da Lei
estadual n.º 5.260/08 – desde que, obviamente, o dispositivo legal que
trata do Plano de Carreiras do respectivo órgão não discipline a respeito da
matéria –, combinado, evidentemente, com os dispositivos legais que as
criaram e estabeleceram suas formas de concessão e cálculo.
E, consequentemente, sendo o voto acatado pelo Pleno, este será o
posicionamento deste Tribunal de Contas.
Por fim, não podemos olvidar que tanto a CONCESSÃO quanto a
DENEGAÇÃO DO REGISTRO dos atos de aposentadoria pelo TCE/RJ são
deliberações INTANGÍVEIS ou INDISPONÍVEIS para a Administração.
Logo, nunca é tautológico lembrar: o controle da legalidade das
142
aposentadorias jamais é subtraído dos Tribunais de Contas, pouco
importando o que entenda o jurisdicionado. Dizendo em outros termos,
no âmbito administrativo a última palavra sobre a eficácia do ato de
inativação é, irrefragavelmente, do Tribunal de Contas.
Dessarte, ante todo o até aqui exposto e o que dos autos consta, posicionome parcialmente de acordo com a sugestão do Corpo Instrutivo e com o
parecer do Ministério Público Especial
VOTO:
I – Pelo REGISTRO dos atos em exame.
II – Pela COMUNICAÇÃO, nos termos da Lei Complementar n.º 63/90, ao
responsável pela Diretoria de Direitos e Vantagens da Secretaria Estadual
de Educação, para que tome ciência do inteiro teor deste voto.
III – Pela EXPEDIÇÃO DE OFÍCIO, com destino ao RIOPREVIDÊNCIA, na
pessoa de seu respectivo titular, CIENTIFICANDO-LHE desta Decisão.
IV – Pela CIÊNCIA deste voto à SUP.
143
144
Aloysio Neves Guedes
Convênio
Trata o presente Processo 112.212-7/10 de Convênio nº 016/10 celebrado
entre a Secretaria de Estado de Turismo, Esporte e Lazer e o Instituto Superar,
tendo como objeto a viabilização do evento “Athina Onassis International
Horse Show – 7ª Etapa do Global Champions Tour”, no valor de R$ 2.000.000,00.
Na sessão de 31/05/111 , este E. Plenário decidiu, nos termos do voto por
mim prolatado, pela comunicação à Secretária de Estado de Turismo,
Esporte e Lazer, para que remetesse a esta Corte de Contas os elementos
apontados na instrução do Corpo Instrutivo2.
Em razão da mencionada decisão, a Jurisdicionada encaminhou a esta
Corte de Contas documentos que consubstanciaram o Doc. TCE nº
022.764-1/113 .
O Corpo Instrutivo, após análise, sugere notificação da responsável, nos
termos abaixo transcritos4:
A análise da
economicidade,
no caso, deve ser
realizada com um
olhar prospectivo,
deve ser diferida
no tempo, vez que
não é aconselhável
que seja feita
isoladamente
tomando como
parâmetro apenas
o custo do evento
em si, mas,
sobretudo, a partir
de uma avaliação
qualitativa
que considere
os resultados
alcançados.
1. NOTIFICAÇÃO pessoal, com base no disposto no art. 6º, § 2º da
Deliberação TCE – RJ nº 204/96, à Senhora Márcia Beatriz Lins Izidoro,
Secretária de Estado de Esporte e Lazer, para que apresente razões de
defesa para o seguinte:
1.1. escolha do Instituto Superar para realização de atividades para as quais
não possuía habilitação, em afronta ao artigo 30 da Lei 8.666/93;
1.2. contratação de prestadora de serviços – LUFTHANSA CARGO –
através de interposta pessoa – Instituto Superar – com burla ao princípio
da obrigatoriedade de habilitação, em desacordo com o artigo 37 da
Constituição Federal;
1.3. celebração do presente convênio sem autorização do Governo
do Estado, conforme determinado pelo art. 1º do Decreto Estadual nº
41.528/08 e por esta Corte no processo TCE/RJ nº 112.266-3/09;
1.4. pagamento de “honorários assessoria” no valor de R$260.235,00, em
desacordo com a natureza jurídica do Convênio, além de vedado pelo
Decreto nº 41.528/08, artigo 8º, II;
1.5. realização, por meio deste Convênio, de despesa com desvio de
finalidade, conforme vedação do Decreto nº 41.528/08, artigo 8º, IV.
2. DETERMINAÇÃO para que a Secretaria de Estado de Esporte e Lazer
encaminhe a prestação de contas do Convênio nº 016/2010 a esta Corte.
O Ministério Público Especial5 concorda com a instrução.
1 - Fls. 74/77.
2 - Fls. 55/61-verso.
3 - Fls. 83/154.
4 - Fls. 159/163.
5 - Fls. 73.
*Voto aprovado com
declaração de voto do Cons.
Aluisio Gama de Souza
É o relatório.
145
Antes de qualquer análise acerca do mérito do presente processo, é
importante discorrer, ainda que em poucas linhas, sobre a importância
de se prestigiar e extrair dos argumentos carreados aos autos pelos
jurisdicionados, em suas peças de defesas, toda e qualquer informação
que possa contribuir na busca da verdade real, pois a esta Corte de
Contas compete, na realização de sua missão, verificar a regularidade
dos procedimentos e com um olhar equidistante, das partes envolvidas,
perquirir a justiça quanto aos atos praticados por seus jurisdicionados.
Neste contexto, insta assinalar que a responsável, devidamente comunicada
nos autos, não se quedou inerte, ao contrário, prestou os esclarecimentos
requeridos, trazendo ao feito elementos que, no entender deste julgador,
são capazes de instrumentalizar um juízo de certeza acerca de seu mérito,
tornando despicienda a notificação sugerida. Vejamos.
Preliminarmente, cumpre-me registrar que, cotejando as informações
contidas no artigo 4º do Estatuto do Instituto Superar com as demais
peças contidas nos autos, em especial aquela presente à fl. 876, afasto a
argumentação de que a escolha do citado Instituto tenha, de algum modo,
afrontado o artigo 30 da Lei de Licitações.
Isso porque, resta cristalino nos autos que o objeto do mencionado
Instituto se coaduna com o papel por ele desempenhado na 7ª Etapa do
Global Champions Tour, edição de 2010, bem assim que o citado Instituto,
em conjunto, com a Aktuell e Atto Sports são coorganizadores do Athina
Onassis International Horse Show.
Acerca da contratação da LUFTHANSA CARGO, entendo que não houve
burla ao princípio da obrigatoriedade de licitação pelo fato da mencionada
prestadora de serviços ter sido contratada pelo Instituto Superar. Mais
uma vez me valho das informações trazidas aos autos para firmar meu
entendimento. A este respeito merece transcrição a justificativa de fls.
88/89, senão vejamos:
6 - Item 6 das informações
prestadas pela Jurisdicionada
que esclarece acerca do papel
desempenhado pelo Instituto
Superar na organização do
Athina Onassis International
Horse Show – 7ª Etapa do
Global Champions Tour,
edição de 2010.
7 - Grifos como no original.
“Em que pese não possuir, a Lufthansa, o atestado previsto no inciso
I do artigo 25 da Lei nº 8.666/93, esta empresa é a única que possui um
Animal Lounge com capacidade para 42 cavalos no aeroporto de Frankfurt
(...). Além disso, a empresa tem 8 voos semanais regulares para o Brasil,
possibilitando a utilização de voos regulares pagando apenas o desvio dos
voos que normalmente pousam em São Paulo para o Rio de Janeiro. Com
esta capacidade e quantidade de voos por semana tornou-se possível fazer
o transporte com um risco infinitamente menor de acidentes e com um
custo muito mais baixo do que utilizar voos charter7”.
Como se depreende da simples leitura do texto acima transcrito,
a Jurisdicionada reconhece que a Lufthansa não era detentora da
146
exclusividade pretendida pela norma, contudo assegura que a prestadora
de serviços é a única que possui a logística necessária para a realização
do fim pretendido. A este respeito, merecem destaque os seguintes
esclarecimentos apresentados8:
“Além da regularidade dos voos permitir transportar mais de 70 cavalos
em vários voos numa mesma semana, sem o acúmulo de animais num
mesmo voo, a experiência da Lufthansa e a adequação de suas aeronaves
e principalmente a qualidade de suas baias de transportes de cavalos dão a
certeza de que nenhuma outra companhia aérea tem a mesma capacidade
para prestar este serviço9”.
Some-se a isso a declaração prestada pelo Gerente Executivo de Convênios
da Secretaria de Estado de Turismo, Esporte e Lazer, in verbis10:
“Declaro, outrossim, em relação aos valores destinados à empresa
Lufthansa Cargo, não ter sido possível a pesquisa de mercado, tendo em
vista que a mesma é a única com expertise no Brasil para transporte de
animais de grande porte11”.
Dessa forma, a exigência contida na norma, qual seja, no art. 25, I da Lei nº
8.666/93, não deve ser afastada, porém, in casu, apenas mitigada a ponto
de se aceitar às justificativas trazidas aos autos.
Analisando a economicidade da avença, é incontroverso, nos autos, que
se houvesse a necessidade da contratação de um voo charter – diante da
contratação de outro serviço que não dispusesse da mesma logística da
LUFTHANSA-, haveria um incremento nos custos.
Ainda sobre esta questão, considero importante trazer à baila o
pronunciamento da Coordenadoria de Estudos e Análises Técnicas – CEA
que, instada a se manifestar, assim se pronunciou12:
“A concessão em tela visa, precipuamente, alavancar setores da economia
turística e afins, e, ainda, projetar a imagem do Estado, bem como do
Brasil ao resto do país e do exterior, concernente a negócios, turismo,
cultura etc, como podemos constatar nas justificativas da proposição à
fl. 18. Neste contexto, ainda que o orçamento estimado a ser suportado
pela Administração vinculado ao Plano de Trabalho anexado ao
Convênio, tenha base em pesquisa de mercado fidedigna, a concepção
de economicidade para convênios desse tipo (de patrocínio) não deve
ser vista estritamente mediante a análise das despesas realizadas para a
consecução do evento imediato, mas sim uma série de acontecimentos
futuros, mediatos, estes sim, que representam o objeto precípuo do
pacto. A economia, então,abarca a avaliação do custo-benefício maior, de
efetividade econômica, que somente será cabível a médio e longo prazo.
147
8 - Fl.89.
9 - Sem grifos no original.
10 - Fl. 19.
11 - Sem grifos no original.
12 - Fls. 157/158-verso.
Além do mais, não se pode esquecer que a parte cabível ao ente privado
também deve ser considerada, ou seja, a relação custo benefício ao Estado
se modificaria sobremaneira caso o ente público realizasse o evento direto
e integralmente”.
Como bem salientado pela CEA, a análise da economicidade neste tipo de
Convênio deve ser realizada com um olhar prospectivo, deve ser diferida no
tempo, vez que não é aconselhável que seja feita isoladamente tomando
como parâmetro apenas o custo do evento em si, mas, sobretudo a partir
de uma avaliação qualitativa que considere os resultados alcançados.
Neste diapasão, a própria justificativa técnica, da lavra da titular da pasta
à época dos fatos, acostada aos autos13, apontam os benefícios que o dito
evento trouxe para a cidade do Rio de Janeiro e, consequentemente, para
o Estado como um todo, assim vejamos:
“Pelo segundo ano consecutivo, será realizado, no próximo mês de agosto,
na Sociedade Hípica, o evento ‘Athina Onassis Internacional Horse Show,
trazendo para o Rio de Janeiro, as principais estrelas do hipismo mundial.
Ressalte-se que a primeira edição do evento foi transmitida, ao vivo, para
todo o território brasileiro, para 59 países do continente europeu e para
os Estados Unidos. Desta forma, além de inúmeras pessoas nacionais e
estrangeiras, aficcionadas pelo hipismo, que tiveram oportunidade de
conhecer as potencialidades de uma das mais lindas cidades do mundo, a
mídia espontânea e as transmissões ao vivo certamente foram importante
fator de atração de novos turistas. (...) Em face dos reflexos positivos que
poderão advir da realização do evento para o Estado do Rio de Janeiro,
não poderia a Secretaria de Estado de Turismo, Esporte e Lazer deixar de
prestar seu apoio à iniciativa”.
Acerca da alegação de que o Convênio, ora em análise, teria sido celebrado
sem a competente autorização governamental, insta apontar o teor do
documento de fl. 151, vide:
“AUTORIZO, por competência estabelecida no artigo 1º, § 1º do Decreto
nº 41.528/2008, de acordo com o que consta no processo administrativo
nº E-30/661/2010, louvado nas razões expostas pela Secretaria de Estado
de Esporte, Turismo e Lazer, e desde que atendidas as recomendações
formuladas pela Secretaria Jurídica desta Casa Civil, a celebração de
convênio entre o Estado do Rio de Janeiro, por intermédio da Secretaria de
Estado Turismo e Lazer, e o Instituto Superar”.
Destarte, fica a todo modo evidente que houve a autorização governamental
para a celebração do Convênio, que ora se avalia.
13 - Fl. 18.
Prosseguindo na análise do presente processo, estou convencido que
148
o pagamento realizado a título de “honorários assessoria”, em favor da
sociedade empresária Feat – Transportes Internacionais, não afrontou a
natureza jurídica do Convênio. Tal pagamento foi realizado em decorrência
da prestação de serviços para assessoria aduaneira, tanto na chegada,
quanto na saída do evento.
Os serviços visaram à emissão de Certificado Internacional para
cumprimento às exigências sanitárias brasileiras, assessoria junto ao
Ministério da Agricultura para emissão da Autorização de Importação,
plantão 24 h no embarque/desembarque, liberação documental e física
dos animais e assessoria junto a INFRAERO, Receita Fazendária do Estado
do Rio de Janeiro e Receita Federal no Aeroporto Internacional Antonio
Carlos Jobim.
Importante destacar que a previsão para tal contratação já constava do
Plano de Trabalho14 que, durante a marcha processual, foi detidamente
analisado pela Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado de Esporte
e Lazer, pelo Escritório de Gerenciamento de Projetos - EGP-Rio e pela
Assessoria Jurídica da Casa Civil. Vejamos o que nos diz esta última acerca
do Plano de Trabalho15:
“É de conhecimento comum, e até mesmo intuitivo que a análise do plano
de trabalho é matéria de ordem técnica. No presente caso, sua apreciação
é incumbência dos órgãos técnicos competentes da pasta de origem e do
EGP-Rio. Neste sentido, as únicas ressaltas tecidas no Plano de Trabalho
dizem respeito à ausência de aprovação pelo concedente, o que deverá
ocorrer antes da assinatura do termo do convênio e ao cronograma de
desembolso, que deverá ser ajustado, haja vista a impossibilidade de
despesa pretérita à celebração do convênio”.
Ademais, a Cláusula Sétima do Instrumento de Convênio já previa a
possibilidade da contratação de terceiros pelo beneficiário, vejamos16:
“A celebração de contrato entre o BENEFICIÁRIO e terceiros, para a
execução de serviços vinculados ao objeto deste Convênio, não acarretará
a solidariedade direta, solidária ou subsidiária do CONCEDENTE, bem como
não constituirá vínculo funcional ou empregatício, ou a responsabilidade
pelo pagamento de encargos civis, trabalhistas, previdenciários, sociais,
fiscais, comerciais, assistenciais ou outro de qualquer natureza”.
A corroborar o entendimento acima, é preciso esclarecer que a hipótese em
comento – contratação de assessoria –, não encontra vedação no Decreto
Estadual17 citado pelo Corpo Instrutivo que veda, apenas, a contratação de
consultoria.
A princípio, numa análise rasa, os termos podem suscitar dúvidas, contudo
149
14 - Fls. 106/107.
15 - Fls. 34 do documento de
fls. 26/40.
16 - Fls. 04/16.
17 - “Art. 8º - Será vedada
a inclusão, tolerância ou
admissão, nos convênios, sob
pena de nulidade do ato e
responsabilidade do agente,
de cláusulas ou condições que
prevejam ou permitam:
I - realização de despesas a
título de taxa ou comissão
de administração, de
gerência ou similar; II pagamento de gratificação,
consultoria, assistência
técnica ou qualquer espécie
de remuneração adicional
a servidor que pertença aos
quadros de órgãos ou de
entidades das Administrações
Públicas Federal, Estaduais,
Municipais ou do Distrito
Federal; III - aditamento
prevendo alteração do objeto;
IV - utilização dos recursos
em finalidade diversa da
estabelecida no respectivo
instrumento, ainda que em
caráter de emergência; V realização de despesas em
data anterior ou posterior à
sua vigência; VI - atribuição
de vigência ou de efeitos
financeiros retroativos. (...)”.
é preciso estabelecer suas diferenças. Na consultoria o foco do serviço é
definir a melhor alternativa e apoiar na tomada de decisão estratégica.
Na assessoria o foco do serviço é ajudar a fazer determinada tarefa. Então
na consultoria o trabalho é de orientação e na assessoria o trabalho é de
ajudar (auxiliar) na execução. Neste sentido, o trabalho contratado além
de encontrar amparo no instrumento celebrado, não encontra vedação no
Decreto Estadual nº 41.528/08, mais especificamente em seu art, 8º, inciso
IV como apontado pelo Corpo Instrutivo.
Filio-me, contudo, a sugestão de remessa da prestação de contas do
aludido convênio, pois entendo que esta Corte de Contas pode requisitar
este tipo de documento a qualquer momento, para verificar a adequada
aplicação dos recursos públicos.
Assim, considerando o criterioso exame dos autos, parcialmente com o
Corpo Instrutivo e com o parecer do Ministério Público Especial;
VOTO:
I - Pelo CONHECIMENTO do presente Convênio.
II - Pela COMUNICAÇÃO à atual Secretária de Estado de Esporte e Lazer, nos
termos da Lei Complementar nº 63/90, para que, no prazo legal, remeta a
esta Corte de Contas a documentação constante do item 2 da instrução de
fls. 159/163, transcrita no relatório deste Voto, a saber:
- A prestação de contas do Convênio nº 016/10.
III – Pelo posterior ARQUIVAMENTO do processo.
150
151
PARECERES
TERMO ADITIVO
BARCAS S. A. - TRANSPORTES MARÍTIMOS
PA R E C E R
Terceiro Termo Aditivo a Contrato de Concessão de Serviços Públicos de
Transporte Aquaviário. Supressão do fornecimento do serviço no período
da madrugada.
Déficit informacional. Ausência de elementos imprescindíveis à adequada
apreciação da legalidade, legitimidade, e economicidade do aditivo. Necessidade de apresentação de documentos e remessa de esclarecimentos
por parte da Secretaria de Transportes Públicos e da AGETRANSP.
Aparente inobservância de decisões proferidas no âmbito da Ação Civil Pública nº 2008.001.391010-8. Ordem de restabelecimento do serviço público
no período mencionado.
Necessidade de sustação cautelar dos efeitos do termo aditivo em exame,
para restabelecer o serviço noturno de barcas. Art. 71, IX, CRFB, art. 124,
VIII, CERJ, arts. 3º, XXIII, e 42, Lei Complementar Estadual nº 63/90, e arts. 4º,
XXIII, e 512, RI-TCE/RJ.
Pela COMUNICAÇÃO, EXPEDIÇÃO DE OFÍCIOS, DETERMINAÇÃO e CHAMAMENTO AO PROCESSO.
Egrégio Tribunal:
Versam os autos sobre o terceiro Termo Aditivo ao Contrato de Concessão
de Serviços Públicos de Transporte Aquaviário, celebrado entre o Estado
do Rio de Janeiro na qualidade de poder concedente, com a Barcas S. A. Transportes Marítimos, na qualidade de concessionária.
O aditivo em exame, celebrado em 17.03.2011, teve por objeto a alteração
das normas de operação de transporte aquaviário, suprimindo a obrigação
da concessionária de prestar os serviços entre as 24 (vinte e quatro) horas e
as 5 (cinco) horas, período no qual a paralisação serviria, entre outros, para
manutenção e limpeza das embarcações.
O Corpo Instrutivo desta Corte sugere o conhecimento e arquivamento do
termo aditivo, conforme instrução de fls. 27 / 28.
Sendo este o breve RELATÓRIO, passamos ao exame da matéria, salientando
desde já discordância com a conclusão alcançada pelo corpo técnico, pelas
razões que passamos a aduzir.
155
ALINE PIRES CARVALHO
ASSUF
Procuradora do Ministério
Público Especial junto ao
Tribunal de Contas
I – Supressão do serviço de transporte aquaviário no
período da madrugada: Histórico
Como se disse, trata-se de termo aditivo celebrado a contrato de
concessão de serviço público de transporte aquaviário, celebrado com a
finalidade de suprimir a obrigação da concessionária de fornecer o serviço
público concedido no período da madrugada, entre meia-noite e cinco
horas da manhã. O aditivo foi pactuado diretamente entre ESTADO e
CONCESSIONÁRIA, sem interveniência da Agência Reguladora de Serviços
Públicos Concedidos de Transporte Aquaviários, Ferroviários, Metroviários
e de Rodovias do Estado do Rio de Janeiro – AGETRANSP.
Apesar os autos estarem instruídos com poucos documentos (em suma,
constam deste processo o próprio Termo Aditivo e o Anexo V – fls. 03 /
08-, a publicação do extrato do mesmo – fls. 09 – e o parecer da Assessoria
Jurídica da Secretaria de Estado de Transportes, de lavra do Procurador de
Estado RENAN MIGUEL SAAD – fls. 16 / 24), trata-se de questão de elevada
complexidade e de relevantíssimo interesse público, eis que o aditivo
promoveu modificação significativa no contrato de concessão de serviço
público de transporte aquaviário celebrado com a BARCAS S. A., com
impacto direto tanto na equação econômico-financeira inicial do pacto
concessório, quanto no interesse público primário, eis que a supressão
do serviço durante a madrugada reduz significativamente as opções de
transporte da população entre os Municípios de Rio de Janeiro e Niterói
em tal momento do dia.
1 - Considerando que o
parecer da Assessoria Jurídica
da Secretaria de Estado de
Transportes do Rio de Janeiro
refere-se a pronunciamentos
sobre o tema oriundos da
douta Procuradoria-Geral
do Estado que examinaram
a questão de fundo nestes
autos – a possibilidade de
suspensão/supressão da
operação dos serviços de
transporte aquaviário entre
Rio de Janeiro-Niterói no
período da madrugada – ,
diligenciamos junto a este
último órgão para obtenção
dos pareceres exarados sobre
a matéria, os quais anexamos
a esta manifestação, por
entendê-los indispensáveis
para a formação do
entendimento desta Corte
de Contas na apreciação do
termo aditivo em exame.
Vê-se, igualmente, que discussão relativa à possibilidade, ou não, de
supressão do serviço no período da madrugada pelo Terceiro Termo Aditivo
ora em exame não foi, absolutamente, inaugurada com este instrumento:
muito ao revés, foi precedida de longo histórico que data do ano de 2008,
que buscaremos aqui retratar1, com base no relato contido nos poucos
documentos a que este órgão ministerial teve acesso.
Extrai-se do parecer da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado de
Transportes que, pelos atos de fls. 177 / 178 e 191 do Processo Administrativo
E-10/387/2008, o Senhor Secretário Estadual de Transportes, em ato
administrativo, de caráter precário e provisório, autorizou a suspensão dos
horários da madrugada da Linha Praça XV – Niterói pelo prazo de 180 (cento
e oitenta) dias, determinando inicialmente à concessionária BARCAS S. A.
que disponibilizasse ônibus com ar condicionado para atender eventuais
156
usuários no período durante o horário de suspensão do serviço; retificando
o despacho em ato posterior, para obrigar outra concessionária, a VIAÇÃO
MAUÁ S. A., à manutenção da referida alternativa de transporte.
Estes atos foram objeto do Parecer ASA/PSP nº 12/09, exarado pela PGERJ nos autos do Processo Administrativo E-10/387/2008, de lavra do
ilustre Procurador de Estado ALEXANDRE DOS SANTOS ARAGÃO, o qual
ora anexamos aos autos. O pronunciamento (aprovado in totum tanto
pelo Procurador-Chefe da Procuradoria de Serviços Públicos FLÁVIO DE
ARAÚJO WILLEMAN, quanto pela Procuradora-Geral de Estado, LUCIA LÉA
GUIMARÃES TAVARES) concluiu, in verbis de seu último visto:
“Pela remessa dos autos ao Exmo. Sr. Governador do Estado, para que, no
exercício da direção superior da Administração, decidir acerca da adoção
das seguintes medidas:
(i) Declaração de nulidade dos atos administrativos de fls. 177 / 178 e 191,
que suspenderam o transporte aquaviário noturno, tal como previsto
originariamente no contrato de concessão, bem assim, permitiram que os
passageiros fossem transportados por empresa de ônibus;
(ii) Determinação à AGETRANSP que promova o cálculo do valor total com
o qual, financeiramente, a concessionária BARCAS S/A foi desonerada
durante o período no qual os atos administrativos nulos, acima referidos,
produziram efeitos;
(iii) Quanto à posição do Estado na Ação civil pública que tem por objeto a
anulação dos atos que autorizaram a interrupção do serviço noturno, deve
se aguardar a decisão do Exmo. Sr. Governador de Estado sobre os pontos
acima.” (grifos nossos – Parecer em anexo)
Os atos em comento também foram objeto da Ação Civil Pública nº
2008.001.391010-82, em trâmite perante a 8ª Vara de Fazenda Pública,
ajuizada pela Comissão de Defesa do Consumidor da Assembleia
Legislativa do Estado do Rio de Janeiro – ALERJ, tendo por réus a BARCAS S.
A. e a Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos de Transporte
Aquaviários, Ferroviários, Metroviários e de Rodovias do Estado do Rio de
Janeiro – AGETRANSP.
Cumpre destacar a concessão liminar naquele feito, determinando à
Concessionária o restabelecimento do serviço no período em questão, a
qual transcreveremos na íntegra:
“Cuidam os autos de Ação Civil Pública proposta pela Comissão de Defesa
157
2 - Andamentos atualizados
e íntegra das decisões
transcritas neste Parecer são
obteníveis através do sítio de
internet do TJ-RJ (http://www.
tj.rj.gov.br).
do Consumidor da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro em
face da Agência Reguladora de Serviços Públicos concedidos e de Barcas
S/A ao argumento de que a segunda ré suspendeu unilateralmente, desde
o dia 13 de novembro de 2008, o serviço aquaviário do Rio à Niterói, e
no sentido contrário, entre 0h e 5h, substituído temporariamente por
ônibus que, de toda sorte, deixarão de circular em breve. Sustenta que
a suspensão está em confronto com diversos dispositivos do Código
do Consumidor e da Lei Geral de Serviços Públicos Concedidos, razão
pela qual requer-se a antecipação de tutela para determinar à ré que
restabeleça o transporte suspenso. É o relatório. A prova da suspensão
está no documento de fls. 26, que se supõe verdadeiro. Quanto à questão
de direito, todavia, não penso que haja nada no ordenamento jurídico que
defina, a priori, a frequência de determinado serviço público ou impeça
a suspensão durante determinadas horas do dia. É o que acontece com
o Metrô do Rio de Janeiro e de quase toda cidade do mundo, que não
funciona após determinado limite, quando o fluxo de passageiros não é
suficiente para o custeio do aparato necessário à prestação do serviço. Por
isto, deve ser a frequência fixada caso a caso, pelos termos da concessão,
que por sua vez levará em conta estudos de viabilidade aos quais terão os
concorrentes na licitação acesso no momento de oferecer sua proposta.
No que toca ao transporte de passageiros do Rio a Niterói, este detalhe foi
disciplinado, aparentemente, no anexo V do contrato, constante de fls. 82,
segundo o qual, entre 0h e 6h deve haver balsas com intervalo mínimo
de 60min, com oferta de lugares mínima de 100 passageiros entre 0h e
4h, e de 300 passageiros, das 4h às 6h. Nota-se, destarte, evidente sinal
de descumprimento dos termos da concessão, em prejuízo dos cidadãos
de Niterói e de São Gonçalo, que não encontram sucedâneo equivalente
no transporte de ônibus, motivo pelo qual concedo a liminar para que o
serviço seja restabelecido no prazo de dez dias, a contar da intimação,
pena de multa diária de R$ 30.000,00. Neste mesmo prazo poderá a
ré justificar a suspensão e apresentar seus argumentos, comprovando,
eventualmente, a existência de permissão da Agência Reguladora Estadual,
ainda que esta não se mostre definitiva ante os termos do contrato. Rio de
Janeiro, 25 de março de 2009.” (grifos nossos).
A decisão acima transcrita foi mantida quando do exame pelo juízo de
pedido de reconsideração, in verbis:
“Tendo em vista as peças trazidas pela ré com pedido de reconsideração da
liminar deferida às fls.103/104, passo à análise dos argumentos expostos
como fundamento da suspensão do transporte de passageiros pela Baía
158
de Guanabara durante o período da madrugada, em contravenção ao
texto do contrato firmado entre o Estado do Rio de Janeiro e a empresa
concessionária. Segundo a ré, sua decisão foi amparada por prévio ato da
Agência Reguladora de Serviços Públicos de Transportes Aquaviários, que
por sua vez tomou por razão de decidir estudos vários comprovando o
desequilíbrio econômico-financeiro do contrato, que chegou a uma taxa
interna de retorno negativa de -4,7%, conforme fls.136. Como causa da
frustração das expectativas de retorno, alude-se, às fls. 199, sobretudo,
ao impacto das gratuidades concedidas aos estudantes e ao super
dimensionamento das expectativas de demanda apresentadas no edital,
para o que são propostas diversas soluções, a saber: a) ressarcimento da
gratuidade de estudantes; b) reajuste das tarifas; c) isenção de ICMS sobre
as tarifas e combustíveis; d) otimização dos horários e adoção de trajeto
triangular para servir simultaneamente as linhas de Rio-Paquetá e RioRibeira; e) eliminação do horário da madrugada e aumento para 60min
do intervalo máximo nos fins de semana na linha Rio-Niterói. Quanto
à possibilidade de alteração bilateral das obrigações assumidas nos
contratos administrativos, não parece haver dúvidas doutrinárias. É o que
diz Marcos Juruena Vilela Souto (Direito Administrativo das Concessões,
pág. 230): ´Atendido o interesse público e mediante prévia aprovação
do poder concedente, poderá ser determinada a alteração da designação,
do número, do itinerário e dos pontos terminais de qualquer linha ou
tráfego de transporte coletivo, comum ou especial, respeitado o princípio
de ser mantida a estabilidade financeira da prestação de serviço.´ No
mesmo sentido explica Celso Antonio Bandeira de Melo (Curso de Direito
Administrativo, 15ª ed, pág. 576): ´Cogita de modificação do regime de
execução ou modo de fornecimento para melhor adequação técnica,
modificação de forma de pagamento, por imposições de circunstâncias
supervenientes, mantido o valor inicial, para substituir a garantia de
execução ou para restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro inicial
afetado por fatos imprevisíveis ou previsíveis, mas de consequências
incalculáveis...´ Pois a razão pela qual se optou pela suspensão do período
noturno está no fato, exposto às fls. 137, de ser esta parte do dia responsável
por 12% das viagens realizadas, que por sua vez beneficiavam apenas
2% dos passageiros transportados. Embora seja incontestável o poder
da Administração Pública de rever os termos da concessão, poder este
que configura verdadeiro dever de restabelecer o equilíbrio econômicofinanceiro do contrato, estou convencido de que as alternativas postas
à disposição do poder concedente não são ilimitadas ou arbitrárias,
porquanto condicionadas pelo Princípio da Razoabilidade e pelo dever de
tutela do consumidor, qual disposto expressamente pela Carta de 1988 em
159
seu art. 5º, XXXII, que eleva a proteção do destinatário dos serviços a direito
fundamental do cidadão. Com efeito, no caso concreto, é justo dispor para
o horário da madrugada, em virtude do fluxo de passageiros, freqüência de
barcas inferior àquela empregada ao longo do dia. Mais do que ser justo,
aliás, trata-se de regra evidente, utilizada em toda e cada área do serviço
público, em obséquio aos recursos sempre limitados da Administração.
Mas esta modulação não pode chegar ao ponto de suprimir o serviço
quando, pelas características de fato envolvidas no problema, assuma
ele foros de essencialidade. À guisa de exemplo, ninguém cogitará de
fechar as emergências dos hospitais à noite ao argumento único de que
neste período é menor a procura por atendimento médico, se comparado
ao horário da tarde. Porque mesmo que funcionando deficitariamente, o
que no caso os hospitais não se aplica pela natureza gratuita do serviço,
é indubitável o imperativo de abertura no período noturno como única
solução para aqueles que dele necessitam nesta parte do dia. É o que
ocorre em relação ao serviço de barca. Embora óbvio que o número
de passageiros após às 24h seja menor do que a freqüência diurna,
interromper por completo o serviço implicaria em isolar as duas cidades,
ou transferir os passageiros para meios não equivalentes, em detrimento
da interpenetração que existe entre os dois centros urbanos e aquele de
São Gonçalo, especificamente. Há enorme contingente de pessoas, ainda
que menor do que aquele existente durante o dia, que transita de um
centro a outro por razões de trabalho, estudo e lazer, de modo que por esta
peculiaridade dos vínculos entre os dois pólos populacionais não é dado ao
Poder Público chegar ao extremo, dentre as alternativas para reequilíbrio
da equação financeira, de simplesmente interromper o serviço, a menos
que ficasse demonstrado, e isto não está claro da impugnação ou dos
documentos que pude ler, que o ínfimo número de pessoas transportadas
no horário em questão não justifica a prestação de serviço em termos
absolutos, e não em termos relativos, como se faz pela comparação entre
os diversos horários do dia. Por tais razões mantenho a liminar concedida.
Rio de Janeiro, 14 de abril de 2009.” (grifos nossos)
Necessário destacar que a decisão foi alvejada por recurso de Agravo de
Instrumento (Proc. 2009.002.14684), a que inicialmente foi concedido
efeito suspensivo por decisão publicada em 28.04.2009, com posterior
restabelecimento da decisão impugnada, em razão do desprovimento
do recurso em 28.04.2010, publicada em 24.05.2010. Ante esta decisão,
foram opostos dois Embargos de Declaração (o segundo dos quais foi
considerado meramente procrastinatório, inclusive com aplicação de
sanção ao embargante), Recurso Especial, que restou inadmitido (Proc.
160
nº 0024723-69.2009.8.19.0000), e Agravo de Instrumento em REsp ao STJ
(Proc. nº 0024723-69.2009.8.19.0000), além de Suspensão de Liminar e
Sentença no âmbito do STJ (Proc. nº 1297-RJ).
A despeito de todos estes incidentes processuais, a antecipação de tutela
concedida não foi revertida até a presente data, ao menos do que se
pode extrair dos andamentos e decisões disponíveis nos sítios de internet
do TJ-RJ e do STJ.
Nova decisão sobre o assunto foi prolatada posteriormente, em 30.08.2010,
ante a aparente recusa da ré em cumprir a determinação judicial. Veja-se:
“A contumácia da parte ré em cumprir a determinação judicial não só
demonstra a sua desorganização administrativa como impõe injustificado
prejuízo à população do estado do Rio de Janeiro, que se encontra
desprovida do fornecimento de serviço essencial de acordo com o
estipulado no contrato de concessão e a determinação da Agência
Reguladora competente. Dispõe o artigo 14, V do CPC que são deveres das
partes cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar
embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória
ou final. Com efeito, o ordenamento jurídico elevou à condição de ato
atentatório ao exercício da jurisdição todo e qualquer embaraço criado pela
parte à efetivação das decisões judiciais, podendo o Juízo, sem prejuízo das
sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa
em montante a ser fixado de acordo com a gravidade de sua conduta
(artigo 14, parágrafo único, CPC). Consoante sedimentado entendimento
doutrinário, o dispositivo legal em questão consagrou na ordem positiva o
instituto do contempt of court, oriundo do direito anglo-saxão, podendose defini-lo como sendo ‘a prática de qualquer ato que tenda a ofender um
juiz ou tribunal na administração da justiça, ou a diminuir sua autoridade
ou dignidade, incluindo a desobediência a uma ordem’ (in Grinover, Abuso
do processo e resistência às ordens judiciárias: o contempt of court´,
apud ´Código de Processo Civil Comentado´, Nelson Nery Junior e
Rosa Maria de Andrade Nery, Ed. Revista dos Tribunais, pg. 179). Assim
é que entendo que o caso dos autos revela a resistência injustificada ao
cumprimento de uma ordem judicial, sendo imperiosa a incidência do
disposto no artigo 14, parágrafo único do CPC, sem prejuízo da apuração
das infrações criminais praticadas pela parte ou seu representante legal.
Firme nessas razões, determino seja renovada a diligência de intimação
pessoal da parte BARCAS S/A para que seja restabelecido o serviço de
acordo com o Anexo V do contrato de concessão, qual seja, transporte de
161
barcas no horário compreendido entre 0h e 06h, com intervalo mínimo
de 60 minutos e oferta de lugares mínima de 100 passageiros entre 0h
e 04h, e de 300 passageiros, das 04h às 06h, no prazo de 72h, sob pena
de MULTA PESSOAL DO SEU REPRESENTANTE LEGAL, no valor diário que
ora fixo em R$10.000,00, o que faço com arrimo no artigo 14, parágrafo
único do Código de Processo Civil. Destaco desde já que a penalidade
acima referida decorre da caracterização do ato atentatório ao exercício
da jurisdição, sendo totalmente independente da astreinte fixada às fls.
104 por dia de descumprimento, bem como da responsabilidade criminal
do representante legal da parte ré. Assim, decorrido o prazo ora fixado,
sem restabelecimento do serviço, expeça-se novo mandado, agora de
prisão, em desfavor do presidente da BARCAS S/A, devendo o SR. OJA
conduzir o representante legal da empresa à autoridade policial para
lavratura de termo circunstanciado, diante da caracterização do crime de
desobediência. Intimem-se e cumpra-se, com urgência. Tudo cumprido,
ao MP.” (grifos nossos. Destaque-se que a decisão, no ponto relativo à
expedição de ordem de prisão ao presidente das BARCAS S. A., foi objeto
de dois Habeas Corpus, Procs. nº 0044080-98-2010-8-19-0000 e 004456076.2010.8.19.0000, com concessão da ordem neste último feito para cassar
a ordem de prisão em desfavor dos pacientes, conforme informação obtida
via andamento processual na internet).
Permanece, portanto, em pleno vigor a decisão determinando à
concessionária BARCAS S. A. que restabeleça de imediato a prestação de
serviço de transporte aquaviário durante a madrugada.
Neste contexto, insere-se ainda o Parecer nº 04/2010-PPCM-PSP, exarado
pela PGE-RJ nos autos do Processo Administrativo nº E-10/152/2010, de
lavra da ilustre Procuradora de Estado PATRÍCIA PERRONE CAMPOS MELLO,
e aprovado in totum pelas instâncias revisoras. Naquele pronunciamento,
examinou-se consulta sobre a possibilidade de supressão do serviço de
transporte aquaviário em horário noturno, concluindo a PGE-RJ como
abaixo se transcreve:
“Como bem ressaltado no parecer ora aprovado, a supressão do serviço
de transporte aquaviário no horário noturno depende de juízo de
conveniência e oportunidade do Poder Público, à luz do interesse público
e considerando as necessidades reais da população.
Entretanto, são condições para a decisão a ser adotada pelo Poder
Público acerca da supressão do serviço noturno do transporte aquaviário,
mediante celebração de termo aditivo ao contrato de concessão:
162
a) a realização de estudo específico sobre as consequências da não
prestação do serviço noturno e de sua substituição por serviço de transporte
rodoviário, inclusive no que respeita ao adequado atendimento aos usuários,
como recomendado pela AGETRANSP;
b) a definição de contrapartida contratual da concessionária em favor do
Estado, equivalente à redução de encargos da concessionária, ou redução
proporcional do valor da tarifa, para evitar o desequilíbrio econômico e
financeiro do contrato de concessão em favor da concessionária;
c) a consideração das decisões proferidas nos autos da Ação Civil Pública
nº 2008.001.391010-8, proposta pela Comissão de Defesa do Consumidor
da Assembleia Legislativa em face da AGETRANSP e da concessionária,
especialmente a decisão no Agravo de Instrumento nº 2009.002.14684, que
manteve a liminar que determinava o restabelecimento do serviço noturno
pela concessionária.” (os grifos pertencem ao original – parecer em anexo).
Em exame às condições acima transcritas, a Assessoria Jurídica da Secretaria
de Estado de Transportes considerou-as todas atendidas (juízo formado com
base nos elementos acostados aos Processos Administrativos E-10/387/2008
e seus apensos E-10/469/2006, E-04/079.231, E-10/132.610/2002,
E-10/729/2009 e E-10/152/2010, nenhum dos quais encontra-se acostado
aos presentes autos) e teve por possível a supressão do serviço noturno de
transporte aquaviário através da celebração do aditivo ora em exame.
Este o contexto em que se inseriu a celebração do aditivo ora em exame,
em muito apertada síntese do que se encontra delineado nos poucos
documentos a que este órgão ministerial teve acesso.
II – Impossibilidade de exame de legalidade do aditivo com
base nos elementos acostados a estes autos: necessidade
de juntada de novos documentos
Como resta evidente do item I deste Parecer, os 03 (três) Pareceres dos
órgãos de consultoria jurídica que se pronunciaram a respeito da matéria
ventilada nestes autos (os dois oriundos da PGE-RJ, e aquele elaborado
pela Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado de Transportes) delineiam
diversos requisitos a condicionar a legalidade do termo aditivo em exame.
Todavia, a escassez de elementos que acomete os presentes autos
impede a aferição do preenchimento de tais requisitos – obstaculizando
sobremaneira o encargo de exame de legalidade, legitimidade e
economicidade do termo aditivo em exame por parte desta Corte.
163
3 - In verbis dos
“considerandos” do aditivo a
fls. 03 / 05, cumpre destacar a
“existência de uma demanda
reprimida exclusivamente de
passageiros apenas entre 5
(cinco) horas da manhã e a 22
(vinte e duas) horas”, os “autos
(sic) custos de operação do
transporte aquaviário entre
as 23 (vinte e três) horas e
as 5 (cinco) horas, para uma
pública e notória ociosidade
das embarcações”, o “dever
do ESTADO (de) primar pela
eficiência do serviço público,
com vista à desoneração dos
custos da CONCESSIONÁRIA,
de forma a permitir o princípio
da modicidade tarifária”, que
“os usuários do serviço de
transporte de passageiros
entre Rio de Janeiro e
Niterói, no horário noturno,
já vêm sendo atendidos
adequadamente pelo modal
rodoviário”, o “processo
regulatório, que se encontra
em tramitação perante à (sic)
AGETRANSP, com vista à (sic)
se apurar o desequilíbrio
econômico-financeiro entre
2003 e 2008, e, por via de
consequência, a nova tarifa de
equilíbrio”, que “os estudos
regulatórios irão considerar os
custos da operação associado
ao retorno dos investimentos
para se alcançar a tarifa de
equilíbrio”, e que “a exclusão
dos custos da operação do
horário noturno irá aproximar
a tarifa atualmente praticada
com a tarifa de equilíbrio, em
benefício dos usuários e do
ESTADO”.
4 - Conforme ensinamento do
mestre DIOGO DE FIGUEIREDO
MOREIRA NETO, “motivo é
o pressuposto de fato e de
direito que determina ou
possibilita a edição do ato
administrativo”. Destaca o
ilustre professor que a teoria
dos motivos determinantes
“reconhece a automática
vinculação do ato aos motivos,
mesmo discricionários, sempre
que hajam sido declinados
pelo agente”. Nesta toada,
“a motivação, possibilitando
a visibilidade intencional do
ato e facilitando sua plena
sindicabilidade, é, sobretudo,
pedagógica, pois põe em
evidência que a sede do poder
não reside na autoridade
do agente, mas na da lei”
Com efeito, revela-se de caráter imprescindível, a nosso sentir, não apenas
a juntada de elementos que evidenciem inequivocamente o atendimento
integral das condições declinadas no visto da Procuradora-Geral de
Estado ao Parecer nº 04/2010-PPCM-PSP. É de idêntica imperatividade que
sejam acostadas aos autos cópia integral dos Processos Administrativos
E-10/387/2008 e seus apensos E-10/469/2006, E-04/079.231,
E-10/132.610/2002, E-10/729/2009 e E-10/152/2010, bem como de outros
eventuais processos e documentos que versem sobre a matéria ora
ventilada, tudo de maneira a que esta Corte possa averiguar com plena
segurança a adequação do termo em exame à ordem jurídica.
Apenas isto possibilitará a verificação inquestionável não apenas das
condições designadas pela PGE-RJ, como também acerca da pertinência
de cada um dos motivos listados pelo jurisdicionado para a alteração
realizada no pacto concessório (listadas nos extensos “considerandos” do
termo aditivo3, e ligadas, em apertada síntese, ao alto custo de operação
do serviço no período noturno aliada à pouca demanda, o atendimento
da população através do modal rodoviário, o desequilíbrio econômicofinanceiro do contrato e necessidade de desoneração da concessionária
com fito de permitir o respeito à modicidade das tarifas) – cuja verificação
de efetiva ocorrência, pela tradicional teoria dos motivos determinantes4,
vincula a legalidade do ato administrativo bilateral que ora se sindica.
Adicionalmente, cumpre indagar ao jurisdicionado as razões determinantes
da ausência da AGETRANSP na condição de interveniente quando da
celebração do aditivo ora em exame. Considerando que uma das condições
designadas pela PGE-RJ foi oriunda de recomendação daquela agência, e
que cabe à mesma, salvo engano e dentre outras importantes atribuições,
examinar tecnicamente, entre outros aspectos da concessão, a importante
questão do equilíbrio econômico-financeiro do pacto5 (aduzido como
razão principal para a supressão do serviço noturno), afigurar-se-ia natural
que a entidade participasse das negociações e efetiva implementação de
alteração no pacto concessório promovida por este aditivo.
A AGETRANSP, aliás e como já mencionado, figura como Ré no âmbito
da Ação Civil Pública nº 2008.001.391010-8, aparentemente de maneira
incorreta, eis que o ato impugnado pelo Autor não é de lavra daquela
entidade, mas sim do Sr. Secretário de Estado de Transportes. Do que se
extrai da leitura do Parecer nº 04/2010-PPCM-PSP, a AGETRANSP inclusive
apresentou oposição à suspensão temporária do serviço noturno,
tornando sobremaneira relevante conhecer as razões da entidade para
164
assim se manifestar, promovendo-se, para tanto, juntada do Processo
Administrativo E-14/024295/2009, mencionado no Parecer citado como
fonte desta informação, e de quaisquer outros feitos que tenham tramitado
na AGETRANSP acerca do tema.
Ante o exposto, este órgão ministerial solicitará, quando da conclusão deste
pronunciamento, a COMUNICAÇÃO à Secretaria de Estado de Transportes
e à AGETRANSP, para que as mesmas providenciem a remessa a esta Corte
de elementos aptos a adequadamente instruir o feito.
III – Da aparente inobservância das decisões proferidas no
âmbito da Ação Civil Pública nº 2008.001.391010-8
Em que pese o déficit informacional mencionado, os elementos a que
este órgão ministerial teve acesso levam a crer que, ao contrário do que
se supõe no Parecer da douta Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado
de Transporte, especificamente a fls. 23 / 24 destes autos, a supressão do
serviço noturno de barcas, ainda que através da celebração de termo
aditivo, importa, sim, em descumprimento das decisões até o momento
prolatadas no âmbito da citada Ação Civil Pública nº 2008.001.391010-8, as
quais se encontram transcritas no item I deste Parecer.
Com efeito, o MM. Juízo da 8ª Vara de Fazenda Pública concedeu a liminar
pleiteada naquele feito para que seja restabelecida a operação do serviço
no prazo que menciona. A ordem foi dirigida à Concessionária BARCAS
S. A., foi mantida quando da apreciação de pedido de reconsideração,
e, a despeito de suspensa durante o período em que se aguardava o
julgamento do Agravo de Instrumento oposto contra o decisum, foi
plenamente restabelecida com o desprovimento deste recurso (ao que
seguiu a interposição de dois Embargos de Declaração, o último dos quais
foi tido como manifestamente protelatório com aplicação de sanção). Com
isto, não resta qualquer dúvida sobre o vigor e aplicabilidade da decisão
citada.
Em que pese o feito impugnar especificamente ato administrativo unilateral
de lavra do Sr. Secretário de Estado de Transportes que promoveu a supressão
do serviço de transporte aquaviário noturno6 – e não questionar o posterior
ato bilateral entre o Poder Concedente e a Concessionária pactuando
idêntica supressão -, este parquet destaca que o conteúdo da ordem contida
na decisão antecipatória de tutela determina a BARCAS S.A. o imediato
restabelecimento do serviço noturno.
165
(MOREIRA NETO, Diogo de
Figueiredo. Curso de Direito
Administrativo. 14ª Edição.
Editora Forense. Rio de Janeiro,
2006. Página 140).
5 - Nos termos da Lei Estadual
nº 4.555, de 06.06.2005, a
AGETRANSP é “autarquia
especial, com plena autonomia
administrativa, técnica e
financeira” (art. 1º), tendo por
finalidade “exercer o poder
regulatório, acompanhando,
controlando e fiscalizando as
concessões e permissões de
serviços públicos concedidos
de transporte aquaviário,
ferroviário e metroviário e de
rodovias nos quais o Estado
figure, por disposição legal
ou pactual, como o Poder
Concedente ou Permitente”
(art. 2º) e competindo-lhe
“I - zelar pelo fiel cumprimento
da legislação e dos contratos
de concessão ou permissão
de serviços públicos relativos
à esfera de suas atribuições”;
II - dirimir, como instância
administrativa definitiva,
conflitos envolvendo o Poder
Concedente ou Permitente,
os concessionários ou
permissionários de serviços
públicos concedidos de
transporte aquaviário,
ferroviário e metroviário e
de rodovias e respectivos
usuários; III - decidir, como
instância administrativa
definitiva, em tempo hábil,
em obediência aos contratos,
os pedidos de revisão de
tarifas de serviços públicos
concedidos ou permitidos;
IV - fiscalizar, diretamente
ou mediante delegação, os
aspectos técnico, econômico,
contábil e financeiro, sempre
nos limites estabelecidos em
normas legais, regulamentares
ou pactuais, os contratos
de concessão ou permissão
de serviços públicos,
aplicando diretamente
as sanções cabíveis; V expedir deliberações e
instruções tendo por objeto
os contratos submetidos a
sua competência, inclusive
fixando prazos para
cumprimento de obrigações
por parte das concessionárias
e permissionárias,
voluntariamente ou quando
instada por conflito de
interesses; VI - determinar
diligências junto ao Poder
Concedente, concessionários,
permissionários e usuários
dos serviços, podendo para
tanto ter amplo acesso
aos dados e informações
relativos aos contratos de sua
competência; VII - promover
estudos sobre a qualidade dos
serviços públicos concedidos
e permitidos com vista à sua
maior eficiência; VIII - contratar
serviços técnicos, vistorias,
estudos, auditorias ou exames
necessários ao exercício das
atividades de sua competência
com entes públicos ou
privados; IX - dar publicidade
às suas decisões; X - aprovar
seu regimento interno, bem
assim a proposta de seu
orçamento, a ser incluída no
Orçamento Geral do Poder
Executivo; XI - receber, por
intermédio da Ouvidoria,
sugestões e reclamações
de usuários de serviços
públicos concedidos ou
permitidos sob seu controle,
para submissão à apreciação
do Conselho-Diretor, com
vista à adoção e julgamento
das medidas que entender
cabíveis; XII – respeitar
integralmente os prazos legais
quanto à apreciação dos
pedidos das concessionárias
de retomada de equilíbrio
físico-financeiro, reajuste
tarifário e revisão contratual;
XIII – interagir com as
autoridades federais, estaduais
e municipais responsáveis pela
regulamentação e fiscalização
dos serviços públicos de
transporte, bem como por
outras atividades que afetem
esses serviços; XIV – deliberar,
na esfera administrativa,
quanto à interpretação das
normas legais e contratuais,
no que se refere a serviços
públicos de transporte,
fixando a orientação a ser
adotada nos casos omissos;
XV – estabelecer padrões de
serviço adequado, garantindo
ao usuário regularidade,
continuidade, eficiência,
segurança, atualidade,
generalidade, cortesia na sua
prestação e modicidade das
tarifas; XVI – exigir, conforme
previsto nos contratos de
concessão ou permissão, a
expansão e a modernização
dos serviços delegados,
de modo a buscar a sua
universalização e melhoria
dos padrões de qualidade,
Igualmente, a se apontar que o Estado do Rio de Janeiro, Poder Concedente,
não figura nos autos da Ação Civil Pública citada, e que por isto não está
vinculado ao que resta ali decidido, há que se responder que é insuscetível
de dúvida que a BARCAS S. A., Concessionária, responde ao Processo na
condição de ré, e deve obediência às determinações ali exaradas.
A incidência impeditiva do decidido nos autos da Ação Civil Pública
não escapou à astúcia da PGE-RJ quando da lavratura do Parecer nº
04/2010-PPCM-PSP. Com efeito, salientou a ilustre Procuradora de Estado
PATRICIA PERRONE CAMPOS MELLO:
“Por fim, eventual decisão pela supressão do serviço deverá considerar
as decisões vigentes, proferidas no bojo da ação civil pública nº
2008.001.391010-8 e o estado do processo na ocasião. Como já esclarecido,
o objetivo desta ação é, justamente, impedir a extinção do serviço noturno,
e foi deferida liminar em seu bojo, mantida, até o momento, em segundo
grau (pendente de julgamento de embargos de declaração em agravo de
instrumento)7.
O Estado não integra a relação processual, ainda, e em razão de erro da
Autora quanto à autoridade que deferiu a autorização para a interrupção
do serviço. No entanto, os fatos e as considerações de direito já tecidas
pelos magistrados não mudam em razão do autor do ato e revelam o
entendimento do Judiciário sobre o tema. Além disso, a solução aventada
neste processo para a alegada recomposição do equilíbrio econômicofinanceiro é consensual, dependendo de aditivo contratual, com a
concordância de Barcas S/A, que é parte no feito e que indubitavelmente
de (sic) sujeita às decisões nele proferidas. Ainda que se viesse a cogitar
de alteração unilateral do Estado, a existência de tal ação e as decisões em
vigor constituem risco substancial de se gerar contencioso em desfavor
do ente público.”
O entendimento foi reforçado no visto de lavra do douto Procurador de
Estado Chefe da Procuradoria de Serviços Públicos, FLÁVIO DE ARAÚJO
WILLEMAN:
“No caso em análise, chamo a atenção para um fato que reputo importante
para embasar a decisão administrativa que responderá ao pleito de Barcas
S/A. Conforme bem destacou a Dra. Patrícia Perrone, há decisão judicial
proferida em ação civil pública (...), em que se decidiu não ser a supressão
do serviço noturno de Barcas a melhor forma (à luz do princípio da
razoabilidade) de se reequilibrar o contrato de concessão, na eventualidade
166
de se comprovar o desequilíbrio econômico e financeiro. (...)
Percebe-se, assim, que há decisão judicial entendendo que o contrato de
concessão de Barcas não pode ser objeto de revisão para fins de reequilíbrio
econômico e financeiro com a supressão do serviço noturno, sob pena de
violação do princípio constitucional da razoabilidade.” (grifos nossos)
Outra não foi a razão pela qual a conclusão do mencionado Parecer,
concretizada no visto da ilustre Procuradora-Geral de Estado LUCIA LÉA
GUIMARÃES TAVARES, condicionava a celebração de um eventual aditivo à
consideração das decisões proferidas nos autos daquele feito, em especial
à decisão proferida no âmbito do Agravo de Instrumento, que manteve a
decisão a determinar o restabelecimento do serviço (como transcrito no
item I do presente pronunciamento).
Nesta toada, e com a devida vênia, parece temerário que o Estado (cuja
ignorância acerca do conteúdo da decisão liminar exarada na Ação Civil
Pública não se pode alegar, eis que a mesma é mencionada e minudenciada
em todos os três pareceres jurídicos ora citados) autorize – sob qualquer
roupagem jurídica – a cessação de um serviço que o MM. Juízo da 8ª Vara
de Fazenda Pública determinou peremptória e insistentemente que fosse
restabelecido.
A justificar a autorização, aponta-se no Parecer da Assessoria Jurídica da
Secretaria de Estado de Transportes trecho de decisão que apreciou e
negou provimento aos primeiros Embargos de Declaração opostos pela
BARCAS S. A., em que asseverou o Exmo. Desembargador FRANCISCO
DE ASSIS PESSANHA que “se a embargante, em tese, tem direito à
aplicabilidade de cláusula contratual relativa a equilíbrio econômicofinanceiro, assim como qualquer outro eventual direito, as alegações
em referência devem ser restabelecidas e buscadas através de aditivo ao
respectivo contrato de concessão” – trecho de acórdão transcrito pelo
parecerista como se o julgado houvesse de fato reformado a decisão
liminar impugnada pelo agravo.
Ante a interpretação conferida, há que destacar seu flagrante equívoco,
ante a constatação óbvia de que os recursos que impugnaram a decisão de
antecipação de tutela tiveram todos provimento integralmente negado.
Isso significa que a decisão do juízo de primeiro grau está mantida.
Em se entender que a decisão antecipatória da tutela jurisdicional estaria
sendo modificada pelo acórdão, para estabelecer que a supressão do
167
ressalvada a competência do
Estado quanto à definição
das políticas setoriais e seu
caráter de intermodalidade;
XVII – firmar convênios
com agências correlatas de
âmbito federal para exercer
fiscalização de atividades no
território do Estado do Rio de
Janeiro; XVIII – resguardar os
direitos garantidos pela Lei nº
8.078/90 – Código de Defesa
do Consumidor” (art. 4º).
6 - Circunstância cuja verdade
não tivemos oportunidade de
aferir, posto que não houve
acesso à cópia da petição
inicial do feito, nem tampouco
a suas principais peças.
7 - À época da confecção do
Parecer nº 04/2010-PPCM-PSP,
os Embargos de Declaração
ainda pendiam de julgamento,
situação atualmente superada
conforme andamento
processual obtenível através
de consulta ao andamento
processual do Agravo de
Instrumento no sítio de
internet do TJ-RJ.
serviço deveria ser revertida, a não ser que fosse pactuada através de termo
aditivo ao contrato de concessão, então teria sido o caso de provimento
parcial tanto do Agravo de Instrumento quanto dos Embargos Declaratórios
para conferir à antecipação de tutela este desenho, constando este novo
contorno da parte dispositiva do suposto julgado reformador. Muito ao
contrário, em se havendo negado provimento a ambos os recursos, o
decisum oriundo do MM. Juízo da 8ª Vara de Fazenda Pública mantémse com seu delineamento original e de maneira integral – impedindo,
outrossim, a interrupção de prestação do serviço de transporte aquaviário
noturno por parte das BARCAS S. A.
Ademais, como já se afirmou, sequer a circunstância descrita pelo Exmo.
Desembargador Relator dos Embargos (e que o mesmo, diga-se, por
pertinente, apenas cogitou em tese com base nas alegações da embargante
para rejeitar seu pedido recursal, jamais atestando-a, até porque não este
assunto não poderia ser o escopo dos recursos sob sua apreciação) resta
comprovada aqui – ou seja, que a Concessionária embargante tem direito à
cláusula contratual relativa a equilíbrio econômico-financeiro ou qualquer
outro eventual direito.
Necessário, em tal diapasão, que se oficie o MM. Juízo da 8ª Vara de Fazenda
Pública, de maneira a informá-la acerca da celebração do aditivo em exame,
com todos os elementos acostados a estes autos. Além disto, cumpre
solicitar àquele MM. Juízo o obséquio de fornecer, para instruir a formação
de vontade desta Corte de Contas acerca da legalidade, legitimidade e
economicidade do aditivo ora em exame, cópias das principais peças da
causa posta em juízo, em especial, a petição inicial, as principais decisões
proferidas em relação ao mérito e o estado em que se encontra o feito.
8 - Sobre o tema do poder
cautelar de que dispõem as
Cortes de Contas, trazemos
à baila lição da ilustre
Procuradora MARIANNA
MONTEBELLO WILLEMAN, em
que opina que “o Supremo
Tribunal Federal tem admitido,
com base na teoria dos
poderes implícitos, o exercício
do poder geral de cautela por
parte dos Tribunais de Contas,
permitindo a expedição de
medidas cautelares visando
a garantir a eficácia de suas
decisões finais e prevenir
lesão ao patrimônio público”.
Nesta toada, veja-se a decisão
prolatada no MS 24.210-DF,
oriundo do Excelso Pretório.
Igualmente, em se tratando de descumprimento de determinação judicial,
com risco de contencioso para o ente federativo ora jurisdicionado –
como bem apontado no citado pronunciamento da ilustre Procuradora de
Estado PATRÍCIA PERRONE CAMPOS MELLO – , e do decorrente dano ao
erário cuja prevenção revela dever constitucional desta Corte, bem assim
considerando envolver a supressão do serviço de transporte aquaviário
noturno relevante interesse público, com impacto significativo e direto
sobre a vida rotineira de inúmeras pessoas que dependem das barcas
para se locomover entre as cidades de Rio de Janeiro e Niterói, revela-se
necessário adotar de imediato providências de caráter cautelar8 para
restabelecer a prestação do serviço, na forma tantas vezes determinada,
sem sucesso, pelo MM. Juízo da 8ª Vara de Fazenda Pública.
168
Para tanto, cumpre determinar ao ESTADO DO RIO DE JANEIRO, na
qualidade de Poder Concedente, a adoção de providências necessárias à
sustação de efeitos do Terceiro Termo Aditivo ao Contrato de Concessão
de Serviços Públicos de Transporte Aquaviário, restabelecendo-se
imediatamente a operação do serviço no período noturno, em respeito à
decisão oriunda do MM. Juízo da 8ª Vara de Fazenda Pública, tudo com
fundamento no art. 71, IX, da Constituição da República, do art. 124, VIII, da
Constituição do Estado do Rio de Janeiro, dos arts. 3º, inciso XXIII, e 42 da
Lei Complementar Estadual nº 63/90, e arts. 4º, XXIII, e 512, do Regimento
Interno desta Corte, no prazo a ser delineado por esta Corte de Contas na
forma dos dispositivos citados.
Ainda, em se tratando de ato bilateral a afetar a espera jurídica da
Concessionária BARCAS S. A., necessário que seja implementado o seu
CHAMAMENTO AO PROCESSO, para que, em respeito aos princípios da
ampla defesa e do contraditório, seja-lhe oportunizada a defesa de seus
interesses no presente feito.
IV – Da Conclusão
Ante os motivos aduzidos, o MINISTÉRIO PÚBLICO junto ao Tribunal de
Contas do Estado do Rio de Janeiro opina:
(1) pela COMUNICAÇÃO à Secretaria de Estado de Transportes, para que
remeta a esta Corte:
a) cópia integral de documentos comprobatórios evidenciando de forma
inequívoca o atendimento às circunstâncias condicionantes descritas pela
PGE-RJ no Parecer 04/2010-PPCM-PSP;
b) cópia integral dos Processos Administrativos nº E-10/387/2008 e seus
apensos E-10/469/2006, E-04/079.231, E-10/132.610/2002, E-10/729/2009
e E-10/152/2010;
c) cópia de todos os demais Processos Administrativos ou documentos
que versem acerca do tema tratado no Termo Aditivo, eventualmente
pertinentes para a apreciação do mesmo no âmbito desta Corte;
d) justificativa para a pactuação do aditivo em exame a despeito da oposição
da AGETRANSP, noticiada no Parecer nº 04/2010-PPCM-PSP, esclarecendo,
inclusive, as razões pelas quais a entidade não figurou como interveniente
169
quando da celebração do Termo Aditivo, haja vista as competências por ela
titularizadas em relação à concessão do serviço de transporte aquaviário e
sua interpenetração em relação aos motivos e teor veiculados no aditivo;
(2) pela COMUNICAÇÃO à Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos
de Transportes Aquaviários, Ferroviários, Metroviários e de Rodovias do Estado
do Rio de Janeiro – AGETRANSP, para que remeta a esta Corte:
a) cópia integral do Processo Administrativo E-14/024295/2009, e de
quaisquer outros processos, estudos, ou documentos que versem ou
esclareçam a respeito do tema relativo à recomposição do equilíbrio
econômico-financeiro do contrato de concessão aqui tratado, bem como
da supressão da operação noturna do serviço;
b) esclareça as razões de não haver a AGETRANSP figurado como
interveniente quando da celebração do Termo Aditivo ora em exame;
c) esclareça sua posição nos autos da Ação Civil Pública nº 2008.001.3910108, juntando as razões de defesa eventualmente apresentadas e demais
petições pertinentes à apreciação do presente termo aditivo;
(3) pela EXPEDIÇÃO DE OFÍCIO ao MM. Juízo da 8ª Vara de Fazenda Pública,
para:
a) fornecer cópia integral dos presentes autos, informando aquele MM.
Juízo acerca da celebração do aditivo ora em exame, bem como dos
questionamentos realizados por esta Corte de Contas;
b) solicitar ao MM. Juízo o obséquio de fornecer, para instruir a formação
de vontade desta Corte de Contas acerca da legalidade, legitimidade e
economicidade do aditivo ora em exame, cópias das principais peças da
causa posta em juízo, em especial, a petição inicial, as principais decisões
proferidas em relação ao mérito e o estado em que se encontra o feito;
(4) pela EXPEDIÇÃO DE OFÍCIO à Procuradora-Geral de Estado, com
cópia integral do feito em exame, para solicitar o envio a esta Corte de
quaisquer pareceres, processos ou documentos que tramitem ou hajam
tramitado no órgão acerca do tema ora ventilado, bem como para adote as
eventuais providências de sua competência, especialmente considerando
a verificação acerca da observância das condicionantes de legalidade
descritas no Parecer nº 04/2010-PPCM-PSP;
170
(5) pela DETERMINAÇÃO ao ESTADO DO RIO DE JANEIRO, para que
providencie, na qualidade de Poder Concedente, a adoção de providências
necessárias à sustação cautelar de efeitos do Terceiro Termo Aditivo ao
Contrato de Concessão de Serviços Públicos de Transporte Aquaviário,
restabelecendo-se imediatamente a operação do serviço no período
noturno, em respeito à decisão oriunda do MM. Juízo da 8ª Vara de
Fazenda Pública, pelas razões acima aduzidas, tudo com fundamento no
art. 71, IX, da Constituição da República, do art. 124, VIII, da Constituição do
Estado do Rio de Janeiro, dos arts. 3º, inciso XXIII, e 42 da Lei Complementar
Estadual nº 63/90, e arts. 4º, XXIII, e 512, do Regimento Interno desta Corte,
no prazo a ser delineado por esta Corte de Contas na forma dos dispositivos
citados;
(6) CHAMAMENTO AO PROCESSO da Concessionária BARCAS S.A. –
TRANSPORTES MARÍTIMOS, para que, em respeito aos princípios da ampla
defesa e do contraditório, seja-lhe oportunizada a defesa de seus interesses
no presente feito.
Rio de Janeiro, 04 de abril de 2012.
Decreto 41528/08 –
Estabelece os procedimentos a
serem adotados na celebração
e execução de convênios
que impliquem dispêndio
financeiro por órgãos e
entidades da Administração
Pública do Estado do Rio
de Janeiro e dá outras
providências.
171
172
INSPEÇÃO ORDINÁRIA
Relatório de Inspeção Ordinária. Agência Reguladora. Aplicação de multa
a integrantes do Conselho Diretor da Agência Reguladora em razão da
obstrução ao livre exercício de Inspeção Ordinária determinada pelo
Tribunal. Conduta dos membros da Diretoria supostamente arrimada
em precedente da Procuradoria-Geral do Estado, reafirmado no âmbito
da própria Agência Reguladora. Conduta que caracteriza o denominado
contempt of court no âmbito do controle externo.
Fase recursal. Recurso de Reconsideração e embargos declaratórios.
Conhecimento e desprovimento.
Considerações adicionais a respeito da matéria de fundo versada nestes
autos. Possibilidade de exercício de controle externo, pelos Tribunais
de Contas, no âmbito de atividade finalísticas das agências reguladoras.
Doutrina e jurisprudência a respeito da matéria.
Expedição de ofício à AGETRANSP e à PGE/RJ, para ciência a respeito do
posicionamento assumido pelo TCE/RJ sobre o tema.
Egrégio Tribunal:
“But what is government itself, but the greatest of all reflections on human
nature? If men were angels, no government would be necessary. If angels were
to govern men, neither external nor internal controls on government would
be necessary. In framing a government which is to be administered by men
over men, the great difficulty lies in this: you must first enable the government
to control the governed; and in the next place oblige it to control itself. A
dependence on the people is, no doubt, the primary control on the government;
but experience has taught mankind the necessity of auxiliary precautions.”1
Versa o presente administrativo sobre Relatório de Inspeção Ordinária
realizada no âmbito da AGETRANSP, encontrando-se o processo, atualmente,
em fase de apreciação dos recursos de reconsideração e de embargos
declaratórios manejados contra a decisão desse Egrégio Plenário, datada
de 24 de junho de 2011, por meio da qual foi aplicada multa sancionatória
aos recorrentes e a outros membros integrantes do Conselho-Diretor da
referida agência reguladora, em razão da obstrução ao livre exercício da
atividade de controle externo por esse Tribunal de Contas.
Trata-se, com efeito, de postura do Conselho-Diretor da referida agência
reguladora que se aproxima do denominado contemp of court2 no exercício
da função jurisdicional, configurando ato atentatório ao exercício de
173
MARIANNA
MONTEBELLO
WILLEMAN
Procuradora do Ministério
Público Especial junto ao
Tribunal de Contas
1 - HAMILTON, Alexander;
JAY, John; MADISON, James.
The Federalist Papers, n. 51.
1788. Disponível em: <http://
www2.hn.psu.edu/faculty/
jmanis/poldocs/fed-papers.
pdf>. Acesso em 20 de março
de 2012. Ressalva-se que
inexiste informação segura
quanto à autoria do artigo
federalista n. 51, se atribuída a
James Madison ou a Alexander
Hamilton.
2 - Como se sabe, o contempt
of court caracteriza a ofensa
ao órgão judiciário ou à pessoa
do magistrado, mediante o
comportamento da parte
processual de acordo com suas
próprias conveniências, sem
respeitar a ordem emanada
da autoridade judicial. (ASSIS,
Araken de. O Contempt of
court no direito brasileiro.
Disponível em: <http://www.
abdpc.org.br/abdpc/artigos/
Araken%20de%20Assis(4)%20
-%20formatado.pdf>. Acesso
em 1º de junho de 2012).
Transpondo a noção para os
processos de controle, tem-se
que o contempt of court
caracteriza-se pela ofensa à
dignidade e autoridade do
Tribunal de Contas ou de seus
servidores, gerando obstáculo
ou obstrução à sua atividade.
competência constitucionalmente estabelecida, razão por que foi imposta
a multa sancionatória aos integrantes do Conselho, os quais se negaram a
providenciar o acesso dos técnicos dessa Corte a documentos e processos
necessários à realização do escopo da Inspeção.
Sendo esse o breve relatório do feito, passo ao exame da matéria.
Preliminarmente, em relação à análise do recurso de reconsideração e dos
embargos declaratórios – objeto de apreciação na atual fase processual
–, o Ministério Público reporta-se integralmente à manifestação das
instâncias instrutivas no que tange ao atendimento dos seus requisitos
de admissibilidade. Por tal razão, opina o Parquet pelo conhecimento dos
recursos, uma vez que atendidos os requisitos de admissibilidade.
De outro lado, no que diz respeito ao mérito recursal, melhor sorte não
assiste aos recorrentes.
De início, a partir da leitura atenta dos elementos constantes dos autos
administrativos, verifica-se que a base da linha de argumentação
desenvolvida pelos recorrentes em justificativa à conduta que obstruiu
o exercício do controle externo fundamenta-se em posição jurídica da
douta Procuradoria-Geral do Estado, datada de 1998, a qual se afigura
extremamente restritiva das competências dessa Corte de Contas.
Segundo o entendimento daquele Órgão Central do Sistema Jurídico
do Estado, os Tribunais de Contas seriam órgãos auxiliares do Poder
Legislativo, que não poderiam exercer, no tocante às agências reguladoras,
qualquer fiscalização que exorbitasse a apreciação de natureza contábil,
financeira ou orçamentária, envolvendo recursos públicos. Além disso,
ainda segundo o entendimento firmado ao final da década de 1990
no âmbito da Procuradoria-Geral do Estado, os Tribunais de Contas não
poderiam invadir a esfera de reserva administrativa de agência reguladora
de serviços públicos para perquirir o mérito de suas decisões políticoadministrativas, interferindo com sua atividade finalística.
Com a devida vênia, trata-se de linha de pensamento que não tem como
prosperar à luz de uma interpretação republicana e democrática do
sistema de controle externo estabelecido na Constituição de 1988 para
os Tribunais de Contas. Além disso, tal posicionamento negligencia por
completo a competência para o controle operacional atribuído às Cortes
de Contas pela Carta da República.
174
Como se passa a demonstrar, não assiste razão e, portanto, não pode ser
invocado como justificativa para a obstrução ao exercício do controle
externo parecer exarado no âmbito da Procuradoria-Geral do Estado que
simplesmente “esvazia” as competências constitucionais das Cortes de
Contas, indo de encontro à sua vocação republicana de tutela da gestão
eficiente, eficaz e econômica dos recursos públicos.
Pois bem. O artigo 15 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do
Cidadão de 1789 – verdadeiro marco simbólico da queda do absolutismo
e do ideal do poder estatal limitado – dispõe que a sociedade tem o direito
de pedir conta a todo agente público quanto à sua administração. Trata-se,
como de conhecimento convencional, do dever primário de prestação de
contas inerente à atuação de todo e qualquer agente público e de observância
inafastável em um regime republicano3.
O Tribunal de Contas situa-se no ordenamento jurídico-constitucional como
órgão público especializado e independente que colabora com o Poder
Legislativo no exercício do controle da atividade financeira pública, prestandolhe auxílio técnico4. Cuida-se do denominado controle externo que, à luz do
artigo 70 da Constituição da República de 1988, visa a resguardar a probidade
da Administração e a regularidade da guarda e do emprego dos bens, valores
e dinheiros públicos, assim como a fidelidade na execução do orçamento.
O perfil constitucional dos Tribunais de Contas encontra-se delineado,
essencialmente, no capítulo destinado à fiscalização contábil, financeira
e orçamentária – artigos 70 e seguintes da Constituição da República.
Através de tais dispositivos, as atribuições e competências do Tribunal
de Contas da União foram substancialmente dilatadas, atingindo, por
simetria, também os Tribunais de Contas dos Estados, Municípios e Distrito
Federal. De fato, nunca haviam as Cortes de Contas concentrado em
suas mãos leque tão abrangente de competências, sendo a atual Carta
Constitucional responsável por operar uma evolução de cento e oitenta
graus na sistemática do controle externo a cargo de tais colegiados.
A perspectiva inaugurada com a Constituição da República de 1988
acerca das atribuições das Cortes de Contas vai ao encontro do caráter
democrático e moralizador do novo Texto Constitucional, em franca ruptura
com o modelo autoritário. Priorizam-se os deveres do administrador de
transparência e retidão no trato da coisa pública. Qualificam-se as Cortes
de Contas, nas palavras de José Joaquim Gomes Canotilho, como instâncias
dinamizadoras do princípio republicano5.
175
3 - O dever de prestação de
contas é considerado princípio
constitucional sensível cuja
inobservância legitima a
intervenção federal, nos
termos do artigo 34, inciso VII,
alínea “d” da Constituição da
República.
4 - Os Tribunais de Contas não
são, absolutamente, órgãos
auxiliares do Poder Legislativo.
Ao contrário, a partir da
interpretação sistemática dos
dispositivos que disciplinam
tais instituições, percebe-se
facilmente que a Constituição
de 1988 inaugurou um
verdadeiro mecanismo de
colaboração e cooperação
mútua e integrada no que diz
respeito ao controle externo
da atividade financeira
estatal. O Supremo Tribunal
Federal (STF) reconhece, sem
qualquer dificuldade, que os
Tribunais de Contas são órgãos
de extração constitucional
dotados de autonomia e
independência em relação aos
demais Poderes da República.
Sobre o tema, é bastante
elucidativa a decisão adotada
pelo Plenário do STF nos
autos da ADI 4.190/DF (STF,
ADI 4.190/DF, Pleno, Relator
Ministro Celso de Mello,
julgado em 10.03.2010).
5 - CANOTILHO, José Joaquim
Gomes. Tribunal de Contas
como instância dinamizadora
do princípio republicano.
Revista do Tribunal de Contas
de Portugal. Lisboa, n.49, p.2339, jan./jun. 2008.
Conjugando-se os artigos 70 e 71 da Carta Política de 1988, resulta que
o Congresso Nacional, com o auxílio dos Tribunais de Contas, exerce a
fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da
União e das entidades da administração direta e indireta, mediante controle
externo. Seguindo as lições do Professor DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA
NETO6, o controle financeiro é o gênero, destinando-se à fiscalização da
disposição administrativa dos recursos públicos, envolvendo o controle
contábil, em seus termos técnicos. O controle orçamentário, por seu turno,
importa em assegurar a observância das leis orçamentárias (artigo 165
da CRFB) quando da disposição das verbas públicas. Quanto ao controle
operacional, destina-se à supervisão das atividades administrativas
em cotejo com os resultados por elas alcançados (busca da eficiência
administrativa em prol do bem-estar social). Finalmente, o controle
patrimonial objetiva à fiel observância das normas reguladoras da
disposição jurídica do patrimônio mobiliário e imobiliário do Estado.
O caput do artigo 70 da Constituição da República deixa claro, outrossim,
que a controlabilidade ali prevista transcende a apreciação da legalidade
formal da gestão dos valores públicos, estendendo-se, necessariamente,
aos aspectos de legitimidade e economicidade.
Ora, percebe-se, sem maiores esforços, que limitar a atuação dos Tribunais
de Contas em relação ao controle das atividades finalísticas das agências
reguladoras é simplesmente desconsiderar, por completo, que a atividade
de controle atribuída a tais Cortes não se exaure na mera apreciação formal
de regularidade financeira, contábil e orçamentária da atuação do EstadoAdministração.
A fiscalização a cargo das Cortes de Contas no Brasil vai muito além
do confronto ou da análise de conformidade de atos de execução
orçamentária. Ao estabelecer como parâmetros de controle a legalidade,
a legitimidade e a economicidade, a própria Carta Constitucional aponta
decisivamente para novos padrões de controle e supervisão. Além disso,
também de maneira inovadora, a Constituição de 1988 amplia o objeto de
controle dos Tribunais de Contas, cuja atividade fiscalizadora incide não
apenas sobre a gestão financeira, contábil, patrimonial e orçamentária,
mas abrange, igualmente, a gestão operacional do Estado.
6 - Curso de Direito
Administrativo. Rio de Janeiro:
Forense, 11ª edição, 1997,
p. 440
De fato, é precisamente a previsão de controle da gestão operacional
do Estado pelos Tribunais de Contas o intransponível fundamento
constitucional que legitima o exercício do controle externo sobre a atuação
176
finalística das agências reguladoras. Trata-se, precisamente, do vetor
constitucional de controle dos resultados e da performance da atividade
auditada. A definição de FERNANDO MOUTINHO RAMALHO BITTENCOURT
é precisa sobre o tema:
Assim, a auditoria operacional pode ser definida como a modalidade de
auditoria que tem por objetivo examinar a ação da entidade ou atividade
auditada quanto aos aspectos de economicidade, eficiência e eficácia,
examinando para tanto: (a) como a entidade adquire, protege e utiliza
seus recursos; (b) as causas práticas e antieconômicas; (c) o cumprimento
das metas previstas; (d) a obediência aos dispositivos legais aplicáveis aos
aspectos da economicidade, eficiência e eficácia da gestão7.
Nesse mesmo sentido, BENJAMIN ZYMLER extrai da competência
constitucional de avaliação da gestão operacional pelos Tribunais de
Contas o fundamento para o exercício do controle externo sobre a ação
finalística de tais entes regulatórios8. Em suas palavras:
A auditoria de natureza operacional, portanto, não deve verificar a
regularidade de atos orçamentários, a correção da gestão financeira,
orçamentária ou patrimonial dos órgãos/entidades federais. Para isso
a Carta Política previu modalidades específicas de auditoria. Quando
o Tribunal, no exercício de sua competência constitucional, realiza
auditoria operacional, intenta verificar se os resultados obtidos estão de
acordo com os objetivos do órgão ou entidade, consoante estabelecidos
em lei. Tem por fim examinar a ação governamental quanto aos aspectos
da economicidade, eficiência e eficácia.
Especificamente em relação às agências, busca o Tribunal, ao realizar
auditoria operacional, verificar se estão sendo atingidas as finalidades
decorrentes de sua criação. Se os resultados esperados estão sendo
atingidos. Isso abrange a avaliação do cumprimento de sua missão
reguladora e fiscalizadora.
(...).
Aliás, não se está a tratar de poder do Tribunal, mas de verdadeiro dever
constitucional que consiste na fiscalização da execução dos contratos de
concessão. Evidente que tal controle não deve importar sobreposição de
atribuições. Nesse sentido, uma análise superficial identificaria redundância
das esferas de controle, uma vez que uma das atribuições das agências é
exatamente fiscalizar os contratos de concessão e de permissão e os atos
de autorização de serviços públicos.
Entretanto, fica claro que o TCU exerce uma atividade fiscalizatória de
177
7 - Os critérios de auditoria e
auditoria operacional. Revista
do Tribunal de Contas da
União. Brasília: v. 31, n. 83, jan/
mar 2000, p. 13.
8 - Confira-se, a respeito da
jurisprudência do Tribunal de
Contas da União em matéria
de auditorias operacionais
realizadas em agências
reguladoras federais, o
Acórdão Plenário n. 344/2003,
de relatoria do Ministro
Ubiratan Aguiar, no qual o TCU
questiona o enquadramento
realizado pela autarquia
para os consumidores de
baixa renda (típica atividade
regulatória) e o Acórdão
Plenário n. 1.778/2004, a
respeito da universalização dos
serviços de telecomunicações.
A análise pormenorizada de
tais decisões foi objeto de
estudo por DANIEL VIÉGAS,
em monografia intitulada
“O controle das atividades
finalísticas das agências
reguladoras pelos Tribunais
de Contas”, sob a orientação
desta Procuradora, no âmbito
da conclusão do curso de
Graduação em Direito na
Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro,
monografia defendida em
junho de 2011.
segundo grau, que busca identificar se as agências estão bem e fielmente
cumprindo seus objetivos institucionais, dentre os quais o de fiscalizar a
prestação de serviços públicos. Deve a Corte de Contas, no desempenho
de sua competência constitucional, atestar a correção da execução
destes contratos. Ressalte-se, todavia, que esta ação não visa a controlar
a empresa concessionária em si, mas apenas examinar se as agências
estão fiscalizando de forma adequada os contratos por elas firmados.
– Os grifos não são do original –
9 - SPECK, Bruno Wilhelm.
A fiscalização dos recursos
públicos pelos Tribunais de
Contas. In: SPECK, Bruno
Wilhelm (Coord.). Caminhos
da transparência: análise dos
componentes de um sistema
nacional de integridade. São
Paulo: Editora da UNICAMP, p.
227-257, 2002.
10 - Guillermo O’Donnell
identifica a accountability
horizontal como a “existência
de agências estatais que têm
o direito e o poder legal e
que estão de fato dispostas e
capacitadas para realizar ações,
que vão desde a supervisão
de rotina a sanções legais ou
até o impeachment contra
ações ou emissões de outros
agentes ou agências do Estado
que possam ser qualificadas
como delituosas”. Ainda
segundo o próprio autor, os
mecanismos de accountability
horizontal incluem as
instituições clássicas do
Executivo, do Legislativo e do
Judiciário, “mas nas poliarquias
contemporâneas, também se
estende por várias agências
de supervisão, como os
ombudsmen e as instâncias
responsáveis pela fiscalização
das prestações de contas.”
(O’DONNELL, Guillermo.
Accountability horizontal e
novas poliarquias. Revista Lua
Nova. São Paulo: CEDEC, n. 44,
p. 27-54,1998).
11 - Agências Reguladoras
e a Evolução do direito
administrativo econômico. 2ª
edição. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 340/341.
Vê-se, portanto, que os Tribunais de Contas no Brasil ostentam um
perfil normativo que efetivamente os eleva à categoria de Instituições
Superiores de Controle9 aptas à instrumentalização de uma accountability
horizontal10 de reforço do direito fundamental à boa administração
pública, especificamente na vertente do direito à gestão eficaz, eficiente,
econômica e legítima dos recursos públicos.
E, notadamente no que tange ao controle das atividades finalísticas das
agências reguladoras, se é verdade que os Tribunais de Contas não podem
se substituir, pura e simplesmente, à autarquia especial (autarquia dotada
de autonomia reforçada) no que diz respeito a uma série de decisões
que, por sua essência, são regulatórias de determinados segmentos de
prestação de serviço público ou de exploração de atividade econômica,
é igualmente certo que em inúmeras outras hipóteses, em estando em
jogo a própria gestão eficiente, eficaz e econômica dos recursos públicos,
os Tribunais de Contas não só podem, mas têm, em verdade, a missão
constitucional de controlá-los.
Essa mesma linha de pensamento é compartilhada por ALEXANDRE
SANTOS DE ARAGÃO, que assim se pronuncia sobre o tema:
Ao nosso ver, o Tribunal de Contas pode realmente controlar tais atos de
regulação, uma vez que, imediata ou mediatamente, os atos de regulação
e de fiscalização sobre os concessionários de serviços públicos se refletem
sobre o erário. Por exemplo, uma fiscalização equivocada pode levar a
não aplicação de uma multa; a autorização indevida de um aumento de
tarifa leva ao desequilíbrio econômico-financeiro favorável à empresa, o
que entre outras alternativas, deveria acarretar na sua recomposição pela
majoração do valor da outorga devida ao Poder Público etc11.
No mesmo sentido, GUSTAVO BINEMBOJM, preconizando a teoria do
diálogo institucional entre Tribunais de Contas e Agências Reguladoras,
178
vislumbra perfeitamente possível e salutar o controle finalístico das
atividades regulatórias pelas Cortes de Contas, desde que, por óbvio, o
Tribunal não pretende se substituir ao ente regulador na formulação das
políticas aplicáveis a determinado segmento. Em suas próprias palavras:
De um lado, o TCU deve reconhecer, prudencialmente, que não lhe cabe
formular escolhas regulatórias em lugar das agências, especialmente no
que toca a aspectos técnicos inerentes ao mercado regulado. Sendo a
agência a entidade erigida pela lei, por sua expertise e experiência, para
realizar opções técnicas dentre as alternativas juridicamente possíveis, não
terá a Corte de Contas legitimidade para julgar tais escolhas, desde que
suficientemente fundamentadas.
De outro lado, as agências não podem pretender invocar uma suposta
imunidade ao controle e à fiscalização exercidos pelo TCU. A uma, porque as
competências da Corte de Contas decorrem diretamente da Constituição,
não havendo exceção constitucional que imunize as agências. A duas,
porque o TCU atua sob rigorosos parâmetros jurídicos e econômicos,
construídos pela sua jurisprudência e por seu valoroso corpo técnico,
que permitem o exercício de suas competências de maneira previsível,
transparente e segura. A três, porque em um Estado democrático de
direito, a nenhuma instituição é dado subtrair-se ao controle informado
por padrões externos de juridicidade. Em uma palavra: as agências não
são entidades soberanas.
Um bom exemplo de interação institucional, nos moldes ora propostos,
ocorreu entre o TCU e a Anatel, no que se refere ao mercado de TV a
cabo. Provocado pelo Ministério Público, o tribunal, por intermédio do
ministro José Jorge, apontou vícios jurídicos em proposta de regulação
que está sendo gestada no âmbito da Anatel para o setor. Com efeito, o
TCU condenou a pretensão da Anatel de afastar o dever legal de realizar
licitações para a seleção de novos operadores, a inobservância de critérios
econômicos para a definição de preços de outorga do serviço e a abertura
incondicionada do mercado às concessionárias de telecomunicações, em
claro descompasso com a vedação constante da Lei do Cabo (Lei nº 8.977,
de 1995).
Ademais, registrou o relator a existência de projeto de lei em avançada
tramitação no Senado (PLC 116), o qual traria substanciais alterações para
a disciplina da TV a cabo no País. Daí mais uma razão a recomendar que
a Anatel não pretendesse se antecipar à discussão travada no Congresso
Nacional. (...)12.
– Os grifos não são do original –
179
12 - Disponível em: < http://
www.senado.gov.br/noticias/
senadoNaMidia/noticia.
asp?n=560032&t=1>. Acesso
em 1º de junho de 2012.
Com efeito, não parece possível definir-se, de maneira apriorística e
estanque, todas as hipóteses em que cabível o controle externo dos
Tribunais de Contas sobre atividades finalísticas regulatórias. Igualmente,
não se revela possível elencar todas as hipóteses em que, ao contrário, tal
controle implicaria uma invasão indevida de competência regulatória. Mas
o que absolutamente não se compatibiliza com o princípio republicano
e, mais ainda, com a lógica de uma Administração Pública pautada pela
busca de resultados eficientes, é pura e simplesmente inviabilizar, de
pronto, o controle externo sobre tal atividade finalística que, não raro,
repercute diretamente sobre a gestão de recursos públicos.
Alguns exemplos importantes podem ser extraídos de processos
que já tramitaram perante este próprio Ministério Público Especial.
Assim, a título ilustrativo, nos autos TCE 106.743-2/2010, o Tribunal
de Contas do Estado foi provocado pela ALERJ a se pronunciar a
respeito de decisão proferida pela própria AGETRANSP, em processo
de natureza eminentemente regulatória – mais precisamente, exercício
de resolução de conflitos instaurados entre Poder Concedente e
Concessionária –, em que a agência reguladora reconheceu o direito,
por parte de concessionária ROTA 116 (Concessionária da RJ 116), de
receber indenização de aproximadamente oito milhões de reais do
Poder Concedente, in casu, do Estado do Rio de Janeiro.
Com a devida vênia, é fora de dúvida que se trata de decisão regulatória
que envolve a gestão de recursos públicos no âmbito da apreciação da
equação econômico-financeira de um contrato de concessão. Sustentarse que o Tribunal de Contas, ao apreciar a legalidade, a legitimidade e a
economicidade de tal atuação da AGETRANSP estaria a exorbitar suas
competências constitucionais significa interpretá-las de molde a esvaziar
a dimensão republicana do controle externo.
Igualmente, no âmbito do presente processo de Inspeção Ordinária,
buscou-se exercer o controle externo sobre a atuação da AGETRANSP
em relação à concessão do serviço de transporte público metroviário,
com inúmeras questões regulatórias pendentes de apreciação por parte
dessa Corte de Contas, relacionadas à revisão quinquenal do contrato de
concessão, aos valores da outorga devida pela concessionária ao Poder
Concedente, ao inventário dos bens reversíveis etc. Todas essas questões,
nada obstante essencialmente regulatórias, dizem respeito diretamente
à eficiência na prestação do serviço público concedido e à gestão de
recursos do erário e, portanto, são plenamente sindicáveis pelos Tribunais
180
de Contas. Trata-se, a toda evidência, da valorização do resultado como
paradigma fundamental da atividade do Estado-Administração,
plenamente controlável pelos Tribunais de Contas.
A esse respeito, é precisa a lição de DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO:
Em suma, está no resultado quiçá o paradigma contemporâneo mais
significativo, pois, na prática, é através dele que se pode lograr uma
efetiva atuação do amplo sistema de controle posto constitucionalmente
à disposição da cidadania: o controle administrativo, o controle de contas,
o controle político, o controle social, o controle pela imprensa e, na cúpula,
o controle jurisdicional13.
Como se percebe, não se justifica, à luz das competências constitucionais
outorgadas aos Tribunais de Contas, qualquer posição jurídica que, de
maneira apriorística, inviabilize o controle, por tais órgãos, das atividades
finalísticas regulatórias exercidas pelas Agências Independentes.
Nesse sentido, não merece prosperar, sob qualquer prisma que se pretenda
analisar a matéria versada nestes autos, a pretensão dos recorrentes de
justificar a sua conduta – repita-se, conduta essa que caracteriza, de forma
inequívoca, o contempt of court no âmbito do exercício do controle
externo – à luz do posicionamento assumido, na década de 1990, pela
Procuradoria-Geral do Estado, que simplesmente eleva as agências
reguladoras – autarquias especiais integrantes da Administração
Indireta do Estado – a entidades infensas ao controle externo de índole
constitucional.
Em conclusão, portanto, o Ministério Público corrobora a análise realizada
pelas instâncias instrutivas no que tange ao recurso de reconsideração
e aos embargos declaratórios, pugnando por seu CONHECIMENTO e, no
mérito, por seu DESPROVIMENTO, mantendo-se íntegra a decisão de 14 de
junho de 2011, que aplicou multa sancionatória por obstrução ao controle
externo aos membros integrantes do Conselho Diretor da AGETRANSP
(nomeados às fls. 719 destes autos).
Em acréscimo, tendo em vista a relevância do tema de fundo versado
nestes autos, bem como a existência de parecer jurídico exarado no
âmbito do Órgão Central do Sistema Jurídico Estadual (PGE/RJ) no
sentido do esvaziamento das competências dessa Corte de Contas,
pugna o Ministério Público pela expedição de ofício ao Excelentíssimo
181
13 - MOREIRA NETO, Diogo de
Figueiredo. Quatro Paradigmas
do Direito Administrativo
Pós-Moderno. Belo Horizonte:
Fórum, 2008
Senhor Presidente da AGETRANSP e das demais agências reguladoras
deste Estado, bem assim ao Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral
do Estado, visando a dar-lhes ciência da competência constitucional
desse Tribunal para exercer, no que couber, especialmente no âmbito da
realização de auditorias operacionais, controle finalístico das atividades
exercidas pelas agências reguladoras sempre que sua atividade
regulatória produzir, mediata ou imediatamente, reflexos na gestão
eficiente, eficaz e econômica de recursos públicos.
182
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