A DESIGUALDADE SOCIAL NO ESPAÇO PEDAGÓGICO

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A DESIGUALDADE SOCIAL NO ESPAÇO PEDAGÓGICO
Lindomar Wesler Boneti 1- PUCPR
Grupo de Trabalho - Políticas Públicas, Avaliação e Gestão do Ensino Superior
Agência Financiadora: não contou com financiamento
Resumo
Neste texto busco visualizar um conjunto de fatores que se entrelaçam e agem como
determinantes na produção da desigualdade social, especialmente como isto se revela dentro do
espaço escolar. Analisaremos o papel da concepção etnocêntrica, inserida nos fundamentos
teóricos das ações de intervenção social das instituições públicas, como é o caso da escola, e do
próprio imaginário social, na produção da desigualdade. Buscamos pensar a relação existente
entre o trato antidiferencialista dispensado pelas instituições públicas às singularidades, com a
produção da desigualdade social. Partimos da hipótese de que o tratamento epistemológico
dispensado pelas políticas e instituições públicas aos bens sociais, reais e simbólicos, em poder
de segmentos pobres da população, como é o caso de bens reais, hábitos culturais, valores e
habilidades, explica o “mau” desempenho na trajetória escolar das pessoas oriundas de
segmentos pobres, portanto, a desigualdade tem origem de uma dinâmica de Poder e
Dominação, mas ela em si recria este poder e esta dominação a partir das formulações
simbólicas. Não apenas a Universidade sabe que por trás do estabelecimento de um parâmetro
da condição social existe um processo de dominação econômica que diferencia os diversos
segmentos sociais. Esta reflexão nos mostrou que o reconhecimento apenas formal do poder
existente dos segmentos dominantes sobre os dominados significa considerar que existe uma
consciência implícita (que em certas circunstâncias diz respeito à consciência de classe) dos
segmentos dominados em relação à fragilidade e à inutilidade do valor simbólico dos bens
culturais, habilidades e demais bens reais em poder dos segmentos dominantes o que os mantém
nesta condição. Como estes elementos interferem nas políticas sociais e transformam as
singularidades em desigualdades? Os bens reais e simbólicos ganham atribuição de mais valor
na medida em que se aproxima do centro. Isto significa dizer que a valorização dos bens reais
e simbólicos mais distantes do centro transformam os segmentos sociais seus proprietários em
1
Possui Graduação em Ciências Sociais (licenciatura plena) pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(1982); Mestrado em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1987); Doutorado (PhD) em
Sociologia pela Université Laval Québec Canadá (1995) e Pós-Doutorado no Departamento de Ciências da
Educação da Université de Fribourg Suiça (2008). Atualmente atua como Professor e Pesquisador do Curso de
Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Educação da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná PUCPR. Pesquisador associado da Associação Internacional de Sociólogos de
Língua Francesa, no Comitê de Pesquisa Identidade, Desigualdades e Laços Sociais, Professor visitante da
Université Catholique de l´Oest - França. Seus temas preferidos de estudos, pesquisas e docência, nos quais reúne
experiências são: Teoria sociológica, Políticas Públicas, Direitos Humanos, Cidadania, Exclusão e Inclusão social.
E-mail: [email protected]
ISSN 2176-1396
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potencialmente pobres. É com este raciocínio que as políticas sociais de combate à pobreza, por
exemplo, implementam suas ações.
Palavras-chave: Desigualdade Social. Educação e Desigualdade. Espaço Pedagógico.
Introdução
Neste texto buscamos visualizar um conjunto de fatores que se entrelaçam e agem como
determinantes na produção da desigualdade social, especialmente como isto se revela dentro do
espaço escolar. Particularmente, analisaremos o papel da concepção etnocêntrica, inserida nos
fundamentos teóricos das ações de intervenção social das instituições públicas, como é o caso
da escola, e do próprio imaginário social, na produção da desigualdade. Buscamos pensar a
relação existente entre o trato antidiferencialista dispensado pelas instituições públicas às
singularidades, com a produção da desigualdade social. Partimos da hipótese de que o
tratamento epistemológico dispensado pelas políticas e instituições públicas aos bens sociais,
reais e simbólicos, em poder de segmentos pobres da população, como é o caso de bens reais,
hábitos culturais, valores e habilidades, explica o “mau” desempenho na trajetória escolar das
pessoas oriundas de segmentos pobres.
A construção social da desigualdade
No dia a dia das relações sociais, a desigualdade é sempre lembrada. A desigualdade é
lembrada porque ela existe e ela se origina a partir de uma realidade concreta que se estabelece
na dinâmica das relações sociais, tanto no que se refere ao processo da construção da vida
material, quanto na construção do imaginário social. Dizendo isto é preciso afirmar que
atribuímos um papel cultural que age na construção da desigualdade, de igual peso que o da
dinâmica das relações sociais de produção. Em outras palavras, podemos afirmar que a
desigualdade se constitui de uma interseção entre imaginário e realidade, para o qual a noção
da diferença tem um papel expressivo.
Portanto, pensar sobre desigualdade implica pensar a condição social; pensar sobre a
condição social traz à tona a noção da diferença. A diferença aparece sempre como uma espécie
de parâmetro de determinação da condição. É assim no senso comum, e é assim também na
academia. A diferença explicita a singularidade, aquela condição social, aquele
comportamento, aquele modo de produção da vida, etc. que foge ao padrão convencional.
Portanto, a diferença, no senso comum ou na academia, apesar de se constituir num instrumento
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de determinação da desigualdade, é vista de uma forma positiva enquanto que a noção da
desigualdade aparece sempre a com conotação negativa.
Esta negatividade imbuída na noção da desigualdade nasce dos parâmetros que se
estabelecem para determinar uma condição social julgada digna para o sujeito social. Neste
caso, a desigualdade estaria associada a uma condição social dita inferior, o desigual seria o
pobre e não o rico, mesmo que o pobre se apresente na maioria. A condição social de um ou
de outro sujeito social acaba sendo associado, tanto pelo imaginário social quanto pelas
instituições públicas, como o ser do sujeito em lugar do estar. Isto é, deixa de ser uma condição
do sujeito social para se constituir numa qualidade, ou até numa racionalidade. É deste princípio
que nasce aquilo que conhecemos como discriminação.
Esta construção social da noção da desigualdade, faz dos iguais os desiguais. Por
exemplo, se na feira livre feirantes e fregueses são iguais, gente humilde que se vestem iguais,
que igualmente todos têm aperto no orçamento com uma condição social similar, uma pessoa
que apenas visita a feira de automóvel luxuoso e vestindo-se diferentemente de todos, torna-se
ela sozinha a igual, porque o padrão dela é o utilizado pelo conjunto social como referencial
para se estabelecer parâmetros de definição da condição social. Os demais, feirantes e fregueses,
de camisetas e chinelas de dedo, se tornam, perante ela, os desiguais. Por quê? Porque a
igualdade não se estabelece pela maioria, mas a partir do conceito do padrão, que na nossa
sociedade capitalista, é imposta pelas classes dominantes. Trata-se de uma construção social
originada de um processo histórico de dominação.
A busca da raiz deste problema sempre envolve uma discussão que dicotomiza
formulações teóricas, como que, as ideias, as construções sociais, a simbologia, etc. podem ser
explicadas unicamente a partir de uma fonte teórica. Certamente, a formulação marxista
segundo a qual as ideias, as ideologias, o imaginário, as construções sociais (o que Marx chama
de superestrutura) têm origem na estrutura da produção real da vida a qual em si é constituída
de uma relação de dominação, consegue fornecer elementos explicativos suficientes para a
abrangência da problemática em questão. Isto porque entendemos que o caráter materialista das
formulações teóricas de Marx, ao atribuir papel determinante da estrutura sobre a infraestrutura,
não deixa de considerar o papel das ideias, da cultura e da construção simbólica como
importantes elementos na construção do processo da dominação. Mas, para drenar um pouco a
formulação marxista em relação a origem da desigualdade, é importante ressaltar a expressiva
contribuição da obra de Foucault (1995 e 2008) nesta análise, sobretudo textos como “As
palavras e as coisas” e a “Arqueologia do saber”.
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Em outras palavras, estamos dizendo que além da desigualdade originada na vida real,
a construção das ideias estabelece parâmetros de delimitação da condição social envolvendo
relações de dominação, que faz florescer a desigualdade. Portanto, existe uma relação de
dominação até mesmo na utilização dos parâmetros para delimitar as condições sociais. Estes
parâmetros partem de critérios valorativos, que envolvem bens reais, simbólicos e habilidades
normalmente em poder de segmentos sociais dominantes. A atribuição de um valor simbólico
a certos bens culturais, resultados do trabalho e habilidades acompanha uma lógica de
mercadoria, o que isenta a obrigatoriedade de ter função social explícita. Portanto, não se aplica
a teoria da função social creditando valor real e simbólicos aos bens culturais, habilidades,
atitudes e objetos a partir da sua real utilidade social. A forma de se vestir, de se pentear, de
falar, etc. da senhora dito rica que compareceu à feira, têm uma valoração simbólica maior para
os feirantes, embora eles sabem que esta senhora possivelmente sequer trabalha, que a
contribuição de suas habilidades têm menor importância social que as dos feirantes.
Uma outra questão a se tratar no discurso da desigualdade diz respeito ao imaginário
que se constrói a partir da relação entre o dito igual e o dito diferente ou na relação entre o
dominador e o dominado. Este imaginário faz florescer uma certa distinção dos ditos inferiores
com os ditos superiores. Esta distinção aparece claramente na reação dos feirantes ao receber a
visita da senhora dito rica parece ter origem no reconhecimento formal ao caráter dominante do
seu jeito de ser. Os segmentos sociais ditos diferentes, mesmo em maioria, que são os de
condições sociais “inferiores” admitem que os segmentos sociais mais abastados têm poder
constituído, formal sobre eles, os pobres. Isto resulta no atendimento diferenciado, no respeito
formal que os feirantes dispensam à senhora dito rica que lá comparece, oferecendo-lhe ajuda,
etc. Portanto, a desigualdade tem origem de uma dinâmica de Poder e Dominação, mas ela em
si recria este poder e esta dominação a partir das formulações simbólicas.
O reconhecimento apenas formal do poder existente dos segmentos dominantes sobre
os dominados significa considerar que existe uma consciência implícita (que em certas
circunstância diz respeito à consciência de classe) dos segmentos dominados em relação à
fragilidade e à inutilidade do valor simbólico dos bens culturais, habilidades e demais bens reais
em poder dos segmentos dominantes o que os mantém nesta condição. Veja por exemplo que
existe um desdém no meio desta relação. Isto é um indicativo que o imaginário social reconhece
que existe uma relação de dominação que envolve a formulação da noção de desigualdade
social, como também da própria desigualdade. Não apenas a academia sabe que por trás do
estabelecimento de um parâmetro da condição social existe um processo de dominação
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econômica que diferencia os diversos segmentos sociais. Neste caso, a reação de desdém depois
que a nobre senhora se retira significa um certo desprezo a esta condição de dominação. Se
lembrarmos as estórias pitorescas que o imaginário social criou ao longo da história da
humanidade, dicotomizando os lados na diferenciação social, podemos até imaginar que às
vezes, a única alternativa que existe para o imaginário social é tornar herói o diferente. As
aventuras de Pedro Malazart, as inúmeras estórias envolvendo a figura do rei (o poder
dominador) e o servo (dominado) candidato a casar-se com a filha do rei. Estas estórias, criadas
pelo imaginário social, na maioria das vezes dá ao dominado um dote de inteligência (beleza
ou esperteza) que supera a do dominador. Trata-se, na verdade, de uma superação imaginária
da condição social abrindo critérios novos para esguiar-se dos já existentes no processo da
dominação na perspectiva da superação da condição de dominação existente. É o caso das
estórias da Cinderela. Explorada pela madrasta malvada, até que um dia, graças a sua
graciosidade, desperta interesse de um príncipe, justamente o pretendente das duas filhas
legítimas, o qual pede-a em casamento, etc. etc. Isto é, a graciosidade foi mais forte e superou
a dominação formal e legitimada pela sociedade que existia entre a pobre moça e a sua madrasta.
Outro exemplo diz respeito ao caso da imaginação brasileira criada em torno da história da
nossa colonização pelos portugueses. No imaginário social criou-se estórias ressaltando a
inteligência dos brasileiros em relação aos portugueses como estratégia de superação da
dominação portuguesa. São estórias que, no geral, os brasileiros ganham dos portugueses graças
a diferença de inteligência em favor dos brasileiros. Isto significa dizer que o imaginário social
reconhece a dominação e que esta se dá a partir de critérios elaborados pelo dominador. Neste
caso, o imaginário do dominado cria novos critérios (e, na maioria das vezes atribui ao
dominado o papel de herói) para apresentar-se livre da dita dominação.
Em síntese, mesmo no senso comum o entendimento da desigualdade implica na
utilização de alguns elementos essenciais, como é o caso da diferença, do poder e da relação de
dominação.
A origem da desigualdade segundo a academia
Na academia a noção da desigualdade não tem se distanciado daquela elaborado pelo
senso comum, conservando, basicamente, os mesmos elementos. A lembrança mais próxima
em relação aos estudos da desigualdade continua sendo aquela elaborada por Marx ao ressaltar
a relação de integração entre o capital e o trabalho, assentada na desigualdade. Isso nos faz
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lembrar que, de fato, a teorização do modo de produção capitalista e, por que não dizer, da
própria modernidade, feita por Marx (1988), tem como base justamente o papel dialético da
desigualdade. A desigualdade representa, no modo de produção capitalista, a integração e a
desintegração, o fundamento da alienação do trabalhador e, consequentemente, a ideia da
perpetuação da relação desigual, a base fundamental da luta de classe e o motor do conflito que
propicia mudança. A desigualdade entre as pessoas proprietárias dos meios de produção e as da
força de trabalho é fundamentada sobre a exploração de classe, pois se trata de classes
diferentes. É uma relação desigual, assentada na exploração e, portanto, conflituosa. Trata-se
de um conflito paradoxal: ambos os lados dependem um do outro para a sua perpetuação.
Contudo, o significado histórico da desigualdade faz com que eles lutem pela eliminação da
parte opositora.
O sentido que Marx (1988) dá ao seu estudo sobre a desigualdade é o que a desigualdade
nasce, fundamentalmente, das relações de produção. Segundo Marx a desigualdade é produto
de uma relação essencialmente capitalista, de dominação de classe, e que, neste caso, não cabe
discutir se ela tem ou não um sentido negativo. Isto porque a desigualdade é, na verdade, o
fundamento do próprio sistema de produção, ainda mais, do conflito, o motor das
transformações. Mas, como dissemos em páginas anteriores, através da formulação da
superestrutura de Marx podemos ler a importância das ideias no processo da construção das
desigualdades sociais. É com esta perspectiva que buscamos resgatar em Rousseau o papel da
concepção etnocêntrica na produção a desigualdade.
Julgamos que Rousseau (1991) foi o pensador que melhor resgatou os elementos que
compõem a noção de desigualdade originada no senso comum trazendo-os para a academia. Na
sua obra “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre homens”, Rousseau,
mesmo carregando uma conotação de valores morais, considera que ao falar de desigualdade,
supõe existir uma relação de dominação (ou de opressão) de alguns segmentos sociais sobre
outros, uma relação de exploração. Diferente de Marx (1988), a dominação e a opressão têm
origem dos valores morais e não nas relações de produção. O foco central da questão, segundo
Rousseau, não é exatamente o sistema social, a estrutura social, mas o homem, a condição
humana. Neste sentido que se justifica a sua análise centralizar-se sobre comportamentos
morais e valorativos do ser humano.
Rousseau diz (1991, p.235):
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concebo, na espécie humana, dois tipos de desigualdades: uma que chamo de natural
ou física, por ser estabelecida pela natureza e que consiste na diferença das idades, da
saúde, das forças do corpo e das desigualdades do espírito e da alma; a outra, que se
pode chamar de desigualdade moral ou política, porque depende de uma espécie de
convenção e que é estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos
homens. Esta consiste nos vários privilégios de gozam alguns em prejuízo de outros,
como os serem mais ricos, mais poderosos e homenageados do que estes, ou ainda por
fazerem-se obedecer por eles.
Podemos dizer que a principal preocupação de Rousseau é justamente com o segundo
tipo de desigualdade concebido por ele. Na obra acima citada, Rousseau sugere uma lógica
evolucionista para a espécie humana, distinguindo o homem natureza do da organização da
sociedade civil, considerando que a desigualdade aparece com a propriedade privada e a
organização política da sociedade. Isto é, o aparecimento da propriedade originou a sociedade
civil e é nela que se encontra a origem das desigualdades entre os homens. É sobre este aspecto
que Rousseau relaciona a desigualdade à questão moral e valorativa. Depois de descrever a
esplendorosa condição de vida do homem natural, Rousseau (1991) começa a Segunda parte da
sua obra “discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, dizendo:
o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cerca de um
terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples
para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não
pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso,
tivesse gritado aos seus semelhantes: ‘defendei-vos de ouvir este impostor; estareis
perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a guerra não pertence a
ninguém (ROUSSEAU, 1991, p. 259).
O conceito de diferença em Rousseau para o estudo da desigualdade se faz importante
porque somente assim é possível se compreender o papel do etnocentrismo na produção da
desigualdade. Em Rousseau etnocentrismo e desigualdade têm interelação.
entre os textos importantes para exeme destes conceitos estão os dois Discursos, o
Ensaio sobre a origem das línguas, o Contrato e a Carta a d’Alembert. Em relação a
desigualdades, pode-se inicialmente dizer que não é de se estranhar – tendo em vista
o contexto conceitual do Segundo Discurso – que se possa lê-lo no sentido forte em
que aí se instala. Estranho seria não considerar como o conceito de diferença aí se
apresenta. Quando se lê desigualdade neste texto, vêm à mente termos como:
propriedade, riqueza, opressão, dominação, tirania. De outro lado, o termo diferenças
comparece nos contextos em que se faz apropriado para designar possibilidades
efetivas ou virtuais do indivíduo singular, ou do homem em suas relações sociais
(GARCIA, 1999, p. 68).
Noutra passagem do seu texto Garcia (1999, p. 67-68) complementa: “E se o conceito
de desigualdades jamais desaparece do horizonte do pensamento de Rousseau que com bastante
clareza e estridência marca a sua negatividade, o mesmo não ocorre em relação ao termo
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diferenças e afins, os quais, nos seus vários contextos de uso, são reconhecidos e valorizados
positivamente”. Rousseau realça o caráter positivo da diferença (enquanto singularidade)
justamente para fundamentar a sua crítica ao etnocentrismo, enquanto que a desigualdade é
sempre considerada negativa.
de início é preciso considerar que, embora o termo etnocentrrismo (de acordo com a
definição atual dos dicionários ou dos textos dos experts (nota explicando a definição),
não constasse entre os verbetes da Enciclopédia, os elementos conceituais importantes
da concepção etnocêntrica ou de sua crítica se insinuavam, no entanto, fortemente nos
escritos próximos aos do século XVIII. É nos escritos desse tempo que os vários
elementos conceituais são articulados e produzem tanto as distintas versões do
etnocentrismo como os primeiros ensaios de crítica a essa idéia. Interessa, pois,
observar nesse horizonte elementos importantes da concepção de Rousseau a respeito
dos valores morais e das diferenças de costumes entre os povos (GARCIA, 1999, p.
47).
A crítica de Rousseau tinha endereço. Tratava-se da época da construção das ideias
mestras da ciência moderna nas quais pouco a pouco infiltravam-se concepções etnocêntricas.
A busca iluminista da razão indicava como caminho que todos os homens, nos vários cantos do
universo, fossem contaminados pelos princípios universalistas da ciência. Mas, como diz
Garcia (1999, p. 50):
[...] para conhecer o homem é necessário sacudir o jugo dos preconceitos e descrever
as diferenças entre eles, e isso não pode implicar nem a idéia de relativização absoluta
dos valores, nem a construção de um universal que não leve em conta as diferenças.
[...] Se nesses termos é possível anotar a crítica rousseauniana ao etnocentrismo, é
preciso, contudo, ressaltar suas diferenças em relação às reivindicações tanto das
versões do relativismo absoluto, quanto do universalismo cientifista à la Sant-Simon.
A lógica etnocêntrica é utilitarista do discurso da razão
É interessante observar que no discurso da razão construído pelos iluministas aparece
sempre a preocupação com o chamado desenvolvimento humano. Entre os iluministas, a ideia
de abandonar Deus na perspectiva de se construir uma sociedade científica era justificada pela
necessidade de se implementar um processo de desenvolvimento humano. Esta palavra
desenvolvimento aparece inúmeras vezes nos escritos dos mais expressivos representantes da
razão iluministas, como Francis Bacon, Saint-Simon, Augusto Comte, etc. E esta ideia perdura
até mesmo dentro da escola hoje, atribuindo à escola um papel instrumental.
Com o aparecimento do método experimental e o avanço da ciência do domínio da
natureza, a física parece ser o primeiro ingrediente a se integrar no processo da formação das
ciências humanas. A economia política foi constituída na Inglaterra no decorrer da Revolução
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Industrial e da glória de Newton, quando se tinha uma influência considerável da epistemologia
positivista. A partir de então, grandes teóricos das ciências do desenvolvimento econômico,
como Adam Smith, Walras, Pareto e Saint-Simon desejavam ser o Newton da mecânica social
da produção e do consumo de riquezas (GRINEVALD, 1975, p. 40).
A ideia que associa o progresso da humanidade à força e à energia pode ter sua origem
na física, particularmente na termodinâmica. Em síntese, o pensamento de Newton cruzou as
fronteiras do mundo natural para o social. Assim, Saint-Simon, um dos precursores da ciência
do desenvolvimento, foi um dos primeiros teóricos do desenvolvimento a associar o progresso
humano a ideia da força e da energia. Esta interpretação dava origem não apenas à ideia segundo
a qual o desenvolvimento social está condicionado ao desenvolvimento industrial (o sinônimo
do capitalismo), mas a que não existe singularidade no que se refere ao desenvolvimento social.
Como o da indústria, a força que impulsiona o desenvolvimento não nasce do mesmo corpo
(comunidade, por exemplo), mas de uma força externa. É mesmo que dizer que existe um centro
no qual as ideias dito científicas se encontram e dele nascem e impõem um padrão homogêneo
a partir do qual devem se adaptar as singularidades. Isto é mesmo que dizer que comunidades
ou pessoas que utilizam modelos singulares de produção jamais podem se desenvolver
socialmente a partir das suas próprias experiências, mas dependem de ideias e tecnologias
externas.
Outro aspecto importante a ressaltar, presente na teoria do desenvolvimento é que a ideia
do científico (a razão) impõe a sua universalidade de forma automática e infalível. A técnica,
por ser fruto da ciência, é infalível. Saint-Simon dizia que a industrialização da sociedade se
inscreve no contexto daquilo que ele chamava de “lei superior do progresso” que se impõem,
quer o homens queiram ou não. Os homens não são nada mais dessa lei que seus instrumentos.
Segundo Saint-Simon, esta “lei superior do progresso” deriva de nós, mas não está mais sob o
nosso controle, não se tem mais condições de controlar a sua ação. Tudo o que se pode fazer é
obedecer esta lei, prestando a atenção à sua marcha (ANSART, 1970, p. 33).
Augusto Comte, discípulo de Saint-Simon, por sua vez, desempenhou um papel
importante na formação da ideologia do desenvolvimento. Ele reuniu os principais ingredientes
nascidos com os iluministas, como a de associar as ciências humanas às ciências naturais
(sobretudo no que se refere ao método de investigação, a ideia da termodinâmica e os preceitos
básicos do positivismo clássico) e os sistematizou, dando uma conotação mais contemporânea
à ideologia do desenvolvimento, aparecendo com maior nitidez a concepção etnocêntrica. Nas
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ideias de Augusto Comte (2000), por exemplo, aparece como preocupação central a
universalização de um padrão tecnológico e a vulgarização de um saber clássico e universal.
O segundo aspecto, o de considerar conhecimento científico aquele que é útil,
encontramos a origem deste pensamento nos iluministas, especialmente nas palavras de Francis
Bacon:
o saber que é poder não conhece nenhuma barreira, nem na escravidão da criatura,
nem na complacência em face dos senhores do mundo... A técnica é a essência desse
saber, que não visa conceitos e imagens, nem o prazer do discernimento, mas o
método, a utilização do trabalho dos outros, o capital... O que os homens querem
aprender da natureza é como empregá-la para dominar completamente a ela e aos
homens. Nada mais importa [...] O que importa não é aquela satisfação, que para os
homens, se chama ‘verdade’, mas ‘operacion’, o procedimento eficaz [...]”
(ADORNO; HORKHEIMER, 1986, p. 20)
Seria possível então se afirmar que a noção de saber e de conhecimento é associada à
utilidade e à alguma coisa já existente socialmente aceita como verdade? A lógica da similitude,
como analisa Foucault (1995) em “As palavras e as coisas”, abriria caminho ao etnocentrismo?
A razão etnocêntrica do instituído, a escola...
Mas como deriva a ideia da similitude, seria pela maioria numérica entre os iguais? Se
voltarmos ao exemplo da feira concluiremos que não e que a similitude se constitui a partir de
um padrão socialmente construído, imaginado, criado. Neste caso, a razão das coisas instituídas,
como é o caso da escola, traz uma carga “genética” histórica de considerar o certo e o errado a
partir de um padrão socialmente criado: o centro
O utilitarismo e o etnocentrismo, são utilizados hoje pelas instituições públicas como
fundamento de intervenção na realidade social e florescem no imaginário social sobretudo como
parâmetro de delimitação da condição social. Isto se dá em duas instâncias interligadas: a
institucional (ressaltando o papel do Estado) e a sócio cultural (ou simbólica). Trata-se de fato,
de uma relação de uso do poder, de dominação. Neste ponto, Marx e Rousseau não divergem,
a divergência pode estar na origem desta dominação. No caso de Marx, esta dominação pode
ser entendida como dominação de classe.
Em relação à primeira, podemos dizer que no que se refere às instâncias burocráticas do
Estado (bem como outras instituições solidamente constituídas na sociedade de hoje, como é o
caso da escola, das instituições administrativas do Estado, etc.), a utilização de alguns princípios
como é o caso da infalibilidade da ciência e da técnica e a concepção etnocêntrica, se faz de
forma mecânica. Por exemplo, recentemente, realizamos um estudo buscando compreender a
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relação existente entre os parâmetros utilizados para a determinação da condição social e a
gestão das políticas sociais de combate à pobreza. Para isso, analisamos os parâmetros oficiais
e os de diversos segmentos sociais. A conclusão que chegamos foi a de que o critério utilizado
pelas instituições públicas para a delimitação da condição social parte de alguns parâmetros
valorativos normalmente vinculados a valores simbólicos ou reais próprios das classes
dominantes, como é o caso de habilidades técnicas, hábitos culturais (incluindo o consumo),
etc. e que isto dá ao segmento pobre da população uma condição de ser e não de estar. Isto seria
dizer que a pobreza teria origem e é explica pela existência de uma “racionalidade” de pobre.
Esta mesma concepção aparece nas entrevistas realizadas com os segmentos mais abastados
(classe média e alta), mas não aparece em segmentos considerados pobres. Em síntese, os
critérios adotados pelas instituições públicas assim como aqueles utilizados por segmentos
sociais originados de classes sociais média e alta partem de resultados, como é o caso do ter
instrução, capacidade técnica, índices em geral, etc. Os segmentos considerados pobres assim
se consideram quando dizem não ter acesso (à escola, ao trabalho, ao lazer, ao transporte
coletivo, aos serviços de saúde, etc.) Na prática os parâmetros que partem dos resultados e não
do processo, suplantam habilidades e demais bens sociais próprios dos segmentos pobres e com
isso faz com que o pobre se transforme mais pobre pela condição de ser que a ele é atribuída,
no lugar da condição de estar e, portanto, com capacidade de deixar esta condição.
Isto é, concluímos que a construção da condição social elaborada a partir de parâmetros
racionalistas e cientificistas de instâncias burocráticas do Estado se materializa, no meio social,
pela construção de identidades coletivas, aos moldes como Manuel Castells (1999, p.22-25)
pensa. Ou seja, a instância burocrática do Estado poderia determinar a construção da condição
social através do que Manuel Castells chama de “identidade legitimadora’, introduzida pelas
instituições dominantes da sociedade, no intuito de expandir e racionalizar sua dominação em
relação aos atores sociais...”. Isto explica o fato que alguns segmentos sociais, como as classes
médias e altas, utilizam os mesmos parâmetros de delimitação da condição social daqueles
utilizados pelas instituições públicas. Além desta “identidade legitimadora” da qual fizemos
referência, podemos considerar que a utilização de critérios racionalistas e etnocêntricos por
alguns segmentos sociais na delimitação da condição social igual aqueles utilizados pelas
instâncias burocráticas do Estado tem origem também na construção histórica de uma
racionalidade, como aquela pensada por Max Weber, que dá fundamentos a uma construção
imaginária e até cultural da condição social.
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Portanto, argumentamos que em nossos dias as instituições públicas, assim como o
próprio imaginário social, são fundamentadas por uma racionalidade etnocêntrica e utilitarista
que se expressam, fundamentalmente, em três principais esferas do contexto social: a produção
da cultura e do imaginário social; a produção econômica e a gestão política (a organização das
relações políticas que envolvem o Estado, as políticas públicas). Na prática, esta racionalidade
determina o aparecimento de uma leitura irreal da condição social e alguns segmentos sobre
outros e, ainda, a utilização de métodos inadequados de intervenção pelas instituições
burocráticas do Estado, o que poderia ser entendido como exploração de classe e não apenas
como uma fala de conduta humana como diria Rousseau.
Uma forma de visualizar o papel do etnocentrismo na sociedade e o seu poder de
dominação (a serviço de alguns segmentos sociais) e de produção das desigualdades seria o uso
de uma metáfora: a da esfera.
O centro da esfera pode ser físico (geográfico) como pode ser uma abstração de verdade.
No imaginário social o centro físico (ou geográfico) de um espaço determinado encontra-se
acumulada maior verdade, ou, o centro (abstração) da verdade.
A ideia do centro funciona como uma atribuição real ou simbólica que se entrelaçam.
Isto porque o real vira simbólico e vice-versa. O centro real é a parte de um espaço geográfico
que congrega bens reais e simbólicos para onde é atraída a periferia. O centro simbólico são as
construções sociais elaboradas a partir da ideia de que a verdade se encontra no centro. De igual
forma, a elaboração do conhecimento científico, tecnológico e habilidades têm maior valor real
e simbólico na medida em que se aproxima do centro, perdendo sucessivamente na medida em
que se afasta em direção à periferia. É científico tudo que for útil; o útil está no centro.
Conclusão
Se a escola busca se constituir numa instituição verdadeiramente democrática não basta
revisar a sua metodologia, receber a pobreza com carinho, etc. mas fazer uma revisão
epistemológica
O espaço da escola é constituído de alguns elementos básicos criados a partir de
interpretações epistemológicas de ciência, saber, verdade, os quais se materializam nas normas
e regras do espaço escolar, como a dicotomização do certo e do errado, o cumprimento do
horário, etc. Isto tudo não é consonante com o mundo real do segmento pobre, para o qual a
verdade é relativizada, a divisão do dia não é feita com o mesmo horário convencional, etc.
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Existe uma graduação do ser diferente de conformidade com a aproximação do centro
envolvendo uma combinação de elementos: hábitos culturais, hábitos de consumo, habilidades,
etc. Em outras palavras, quando se fala em diferença, não se trata de considerar o fora ou o
dentro, ou até mesmo repensar o entendimento de “o que se localiza fora do padrão referencial
do momento, quer seja do ponto de vista cultural, linguístico ou de capacidade técnica para o
exercício do trabalho de conformidade com as exigências atuais” (BONETI, 2000, p. 23),
conforme dizíamos em outra oportunidade. Mas devemos considerar que a diferença se gradua
na média em que se afasta do centro.
Como estes elementos interferem nas políticas sociais e transformam as singularidades
em desigualdades?
A concepção etnocêntrica impregnada no racionalismo científico clássico, a qual deu
base para a construção da ideia da razão única e universal, dá conta que a verdade está no centro
e que ela pode chegar na periferia, mas o deslocamento se dá do centro em direção à periferia
e nunca em direção contrária. Isso significa dizer que as atribuições de valores aos bens reais e
simbólicos variam de conformidade com a aproximação do centro. Os bens reais e simbólicos
ganham atribuição de mais valor na medida em que se aproxima do centro. Isto significa dizer
que a valorização dos bens reais e simbólicos mais distantes do centro transformam os
segmentos sociais seus proprietários em potencialmente pobres. É com este raciocínio que as
políticas sociais de combate à pobreza, por exemplo, implementam suas ações.
REFERÊNCIAS
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Lindomar W. (Org.). Educação, exclusão e cidadania. 2.ed. Ijuí: Editora Unijuí, 2000. p.
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In: La pluralité des mondes – Cahier de l’I.E.D. 1. Genebra e Paris: P. U. F, 1975. p. 40-65.
MARX, Karl. O capital: critica da economia política. Livro 3. São Paulo: Bertrand,
1988.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade
entre os homens. Tradução de Lourdes Santos Machado, introdução e notas de Paul
Arbousse-Bastide e Lourival Gomes Machado. 5. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
(Coleção Os Pensadores, 6).
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