A DESIGUALDADE SOCIAL NO ESPAÇO PEDAGÓGICO Lindomar Wesler Boneti 1- PUCPR Grupo de Trabalho - Políticas Públicas, Avaliação e Gestão do Ensino Superior Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo Neste texto busco visualizar um conjunto de fatores que se entrelaçam e agem como determinantes na produção da desigualdade social, especialmente como isto se revela dentro do espaço escolar. Analisaremos o papel da concepção etnocêntrica, inserida nos fundamentos teóricos das ações de intervenção social das instituições públicas, como é o caso da escola, e do próprio imaginário social, na produção da desigualdade. Buscamos pensar a relação existente entre o trato antidiferencialista dispensado pelas instituições públicas às singularidades, com a produção da desigualdade social. Partimos da hipótese de que o tratamento epistemológico dispensado pelas políticas e instituições públicas aos bens sociais, reais e simbólicos, em poder de segmentos pobres da população, como é o caso de bens reais, hábitos culturais, valores e habilidades, explica o “mau” desempenho na trajetória escolar das pessoas oriundas de segmentos pobres, portanto, a desigualdade tem origem de uma dinâmica de Poder e Dominação, mas ela em si recria este poder e esta dominação a partir das formulações simbólicas. Não apenas a Universidade sabe que por trás do estabelecimento de um parâmetro da condição social existe um processo de dominação econômica que diferencia os diversos segmentos sociais. Esta reflexão nos mostrou que o reconhecimento apenas formal do poder existente dos segmentos dominantes sobre os dominados significa considerar que existe uma consciência implícita (que em certas circunstâncias diz respeito à consciência de classe) dos segmentos dominados em relação à fragilidade e à inutilidade do valor simbólico dos bens culturais, habilidades e demais bens reais em poder dos segmentos dominantes o que os mantém nesta condição. Como estes elementos interferem nas políticas sociais e transformam as singularidades em desigualdades? Os bens reais e simbólicos ganham atribuição de mais valor na medida em que se aproxima do centro. Isto significa dizer que a valorização dos bens reais e simbólicos mais distantes do centro transformam os segmentos sociais seus proprietários em 1 Possui Graduação em Ciências Sociais (licenciatura plena) pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (1982); Mestrado em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1987); Doutorado (PhD) em Sociologia pela Université Laval Québec Canadá (1995) e Pós-Doutorado no Departamento de Ciências da Educação da Université de Fribourg Suiça (2008). Atualmente atua como Professor e Pesquisador do Curso de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná PUCPR. Pesquisador associado da Associação Internacional de Sociólogos de Língua Francesa, no Comitê de Pesquisa Identidade, Desigualdades e Laços Sociais, Professor visitante da Université Catholique de l´Oest - França. Seus temas preferidos de estudos, pesquisas e docência, nos quais reúne experiências são: Teoria sociológica, Políticas Públicas, Direitos Humanos, Cidadania, Exclusão e Inclusão social. E-mail: [email protected] ISSN 2176-1396 13268 potencialmente pobres. É com este raciocínio que as políticas sociais de combate à pobreza, por exemplo, implementam suas ações. Palavras-chave: Desigualdade Social. Educação e Desigualdade. Espaço Pedagógico. Introdução Neste texto buscamos visualizar um conjunto de fatores que se entrelaçam e agem como determinantes na produção da desigualdade social, especialmente como isto se revela dentro do espaço escolar. Particularmente, analisaremos o papel da concepção etnocêntrica, inserida nos fundamentos teóricos das ações de intervenção social das instituições públicas, como é o caso da escola, e do próprio imaginário social, na produção da desigualdade. Buscamos pensar a relação existente entre o trato antidiferencialista dispensado pelas instituições públicas às singularidades, com a produção da desigualdade social. Partimos da hipótese de que o tratamento epistemológico dispensado pelas políticas e instituições públicas aos bens sociais, reais e simbólicos, em poder de segmentos pobres da população, como é o caso de bens reais, hábitos culturais, valores e habilidades, explica o “mau” desempenho na trajetória escolar das pessoas oriundas de segmentos pobres. A construção social da desigualdade No dia a dia das relações sociais, a desigualdade é sempre lembrada. A desigualdade é lembrada porque ela existe e ela se origina a partir de uma realidade concreta que se estabelece na dinâmica das relações sociais, tanto no que se refere ao processo da construção da vida material, quanto na construção do imaginário social. Dizendo isto é preciso afirmar que atribuímos um papel cultural que age na construção da desigualdade, de igual peso que o da dinâmica das relações sociais de produção. Em outras palavras, podemos afirmar que a desigualdade se constitui de uma interseção entre imaginário e realidade, para o qual a noção da diferença tem um papel expressivo. Portanto, pensar sobre desigualdade implica pensar a condição social; pensar sobre a condição social traz à tona a noção da diferença. A diferença aparece sempre como uma espécie de parâmetro de determinação da condição. É assim no senso comum, e é assim também na academia. A diferença explicita a singularidade, aquela condição social, aquele comportamento, aquele modo de produção da vida, etc. que foge ao padrão convencional. Portanto, a diferença, no senso comum ou na academia, apesar de se constituir num instrumento 13269 de determinação da desigualdade, é vista de uma forma positiva enquanto que a noção da desigualdade aparece sempre a com conotação negativa. Esta negatividade imbuída na noção da desigualdade nasce dos parâmetros que se estabelecem para determinar uma condição social julgada digna para o sujeito social. Neste caso, a desigualdade estaria associada a uma condição social dita inferior, o desigual seria o pobre e não o rico, mesmo que o pobre se apresente na maioria. A condição social de um ou de outro sujeito social acaba sendo associado, tanto pelo imaginário social quanto pelas instituições públicas, como o ser do sujeito em lugar do estar. Isto é, deixa de ser uma condição do sujeito social para se constituir numa qualidade, ou até numa racionalidade. É deste princípio que nasce aquilo que conhecemos como discriminação. Esta construção social da noção da desigualdade, faz dos iguais os desiguais. Por exemplo, se na feira livre feirantes e fregueses são iguais, gente humilde que se vestem iguais, que igualmente todos têm aperto no orçamento com uma condição social similar, uma pessoa que apenas visita a feira de automóvel luxuoso e vestindo-se diferentemente de todos, torna-se ela sozinha a igual, porque o padrão dela é o utilizado pelo conjunto social como referencial para se estabelecer parâmetros de definição da condição social. Os demais, feirantes e fregueses, de camisetas e chinelas de dedo, se tornam, perante ela, os desiguais. Por quê? Porque a igualdade não se estabelece pela maioria, mas a partir do conceito do padrão, que na nossa sociedade capitalista, é imposta pelas classes dominantes. Trata-se de uma construção social originada de um processo histórico de dominação. A busca da raiz deste problema sempre envolve uma discussão que dicotomiza formulações teóricas, como que, as ideias, as construções sociais, a simbologia, etc. podem ser explicadas unicamente a partir de uma fonte teórica. Certamente, a formulação marxista segundo a qual as ideias, as ideologias, o imaginário, as construções sociais (o que Marx chama de superestrutura) têm origem na estrutura da produção real da vida a qual em si é constituída de uma relação de dominação, consegue fornecer elementos explicativos suficientes para a abrangência da problemática em questão. Isto porque entendemos que o caráter materialista das formulações teóricas de Marx, ao atribuir papel determinante da estrutura sobre a infraestrutura, não deixa de considerar o papel das ideias, da cultura e da construção simbólica como importantes elementos na construção do processo da dominação. Mas, para drenar um pouco a formulação marxista em relação a origem da desigualdade, é importante ressaltar a expressiva contribuição da obra de Foucault (1995 e 2008) nesta análise, sobretudo textos como “As palavras e as coisas” e a “Arqueologia do saber”. 13270 Em outras palavras, estamos dizendo que além da desigualdade originada na vida real, a construção das ideias estabelece parâmetros de delimitação da condição social envolvendo relações de dominação, que faz florescer a desigualdade. Portanto, existe uma relação de dominação até mesmo na utilização dos parâmetros para delimitar as condições sociais. Estes parâmetros partem de critérios valorativos, que envolvem bens reais, simbólicos e habilidades normalmente em poder de segmentos sociais dominantes. A atribuição de um valor simbólico a certos bens culturais, resultados do trabalho e habilidades acompanha uma lógica de mercadoria, o que isenta a obrigatoriedade de ter função social explícita. Portanto, não se aplica a teoria da função social creditando valor real e simbólicos aos bens culturais, habilidades, atitudes e objetos a partir da sua real utilidade social. A forma de se vestir, de se pentear, de falar, etc. da senhora dito rica que compareceu à feira, têm uma valoração simbólica maior para os feirantes, embora eles sabem que esta senhora possivelmente sequer trabalha, que a contribuição de suas habilidades têm menor importância social que as dos feirantes. Uma outra questão a se tratar no discurso da desigualdade diz respeito ao imaginário que se constrói a partir da relação entre o dito igual e o dito diferente ou na relação entre o dominador e o dominado. Este imaginário faz florescer uma certa distinção dos ditos inferiores com os ditos superiores. Esta distinção aparece claramente na reação dos feirantes ao receber a visita da senhora dito rica parece ter origem no reconhecimento formal ao caráter dominante do seu jeito de ser. Os segmentos sociais ditos diferentes, mesmo em maioria, que são os de condições sociais “inferiores” admitem que os segmentos sociais mais abastados têm poder constituído, formal sobre eles, os pobres. Isto resulta no atendimento diferenciado, no respeito formal que os feirantes dispensam à senhora dito rica que lá comparece, oferecendo-lhe ajuda, etc. Portanto, a desigualdade tem origem de uma dinâmica de Poder e Dominação, mas ela em si recria este poder e esta dominação a partir das formulações simbólicas. O reconhecimento apenas formal do poder existente dos segmentos dominantes sobre os dominados significa considerar que existe uma consciência implícita (que em certas circunstância diz respeito à consciência de classe) dos segmentos dominados em relação à fragilidade e à inutilidade do valor simbólico dos bens culturais, habilidades e demais bens reais em poder dos segmentos dominantes o que os mantém nesta condição. Veja por exemplo que existe um desdém no meio desta relação. Isto é um indicativo que o imaginário social reconhece que existe uma relação de dominação que envolve a formulação da noção de desigualdade social, como também da própria desigualdade. Não apenas a academia sabe que por trás do estabelecimento de um parâmetro da condição social existe um processo de dominação 13271 econômica que diferencia os diversos segmentos sociais. Neste caso, a reação de desdém depois que a nobre senhora se retira significa um certo desprezo a esta condição de dominação. Se lembrarmos as estórias pitorescas que o imaginário social criou ao longo da história da humanidade, dicotomizando os lados na diferenciação social, podemos até imaginar que às vezes, a única alternativa que existe para o imaginário social é tornar herói o diferente. As aventuras de Pedro Malazart, as inúmeras estórias envolvendo a figura do rei (o poder dominador) e o servo (dominado) candidato a casar-se com a filha do rei. Estas estórias, criadas pelo imaginário social, na maioria das vezes dá ao dominado um dote de inteligência (beleza ou esperteza) que supera a do dominador. Trata-se, na verdade, de uma superação imaginária da condição social abrindo critérios novos para esguiar-se dos já existentes no processo da dominação na perspectiva da superação da condição de dominação existente. É o caso das estórias da Cinderela. Explorada pela madrasta malvada, até que um dia, graças a sua graciosidade, desperta interesse de um príncipe, justamente o pretendente das duas filhas legítimas, o qual pede-a em casamento, etc. etc. Isto é, a graciosidade foi mais forte e superou a dominação formal e legitimada pela sociedade que existia entre a pobre moça e a sua madrasta. Outro exemplo diz respeito ao caso da imaginação brasileira criada em torno da história da nossa colonização pelos portugueses. No imaginário social criou-se estórias ressaltando a inteligência dos brasileiros em relação aos portugueses como estratégia de superação da dominação portuguesa. São estórias que, no geral, os brasileiros ganham dos portugueses graças a diferença de inteligência em favor dos brasileiros. Isto significa dizer que o imaginário social reconhece a dominação e que esta se dá a partir de critérios elaborados pelo dominador. Neste caso, o imaginário do dominado cria novos critérios (e, na maioria das vezes atribui ao dominado o papel de herói) para apresentar-se livre da dita dominação. Em síntese, mesmo no senso comum o entendimento da desigualdade implica na utilização de alguns elementos essenciais, como é o caso da diferença, do poder e da relação de dominação. A origem da desigualdade segundo a academia Na academia a noção da desigualdade não tem se distanciado daquela elaborado pelo senso comum, conservando, basicamente, os mesmos elementos. A lembrança mais próxima em relação aos estudos da desigualdade continua sendo aquela elaborada por Marx ao ressaltar a relação de integração entre o capital e o trabalho, assentada na desigualdade. Isso nos faz 13272 lembrar que, de fato, a teorização do modo de produção capitalista e, por que não dizer, da própria modernidade, feita por Marx (1988), tem como base justamente o papel dialético da desigualdade. A desigualdade representa, no modo de produção capitalista, a integração e a desintegração, o fundamento da alienação do trabalhador e, consequentemente, a ideia da perpetuação da relação desigual, a base fundamental da luta de classe e o motor do conflito que propicia mudança. A desigualdade entre as pessoas proprietárias dos meios de produção e as da força de trabalho é fundamentada sobre a exploração de classe, pois se trata de classes diferentes. É uma relação desigual, assentada na exploração e, portanto, conflituosa. Trata-se de um conflito paradoxal: ambos os lados dependem um do outro para a sua perpetuação. Contudo, o significado histórico da desigualdade faz com que eles lutem pela eliminação da parte opositora. O sentido que Marx (1988) dá ao seu estudo sobre a desigualdade é o que a desigualdade nasce, fundamentalmente, das relações de produção. Segundo Marx a desigualdade é produto de uma relação essencialmente capitalista, de dominação de classe, e que, neste caso, não cabe discutir se ela tem ou não um sentido negativo. Isto porque a desigualdade é, na verdade, o fundamento do próprio sistema de produção, ainda mais, do conflito, o motor das transformações. Mas, como dissemos em páginas anteriores, através da formulação da superestrutura de Marx podemos ler a importância das ideias no processo da construção das desigualdades sociais. É com esta perspectiva que buscamos resgatar em Rousseau o papel da concepção etnocêntrica na produção a desigualdade. Julgamos que Rousseau (1991) foi o pensador que melhor resgatou os elementos que compõem a noção de desigualdade originada no senso comum trazendo-os para a academia. Na sua obra “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre homens”, Rousseau, mesmo carregando uma conotação de valores morais, considera que ao falar de desigualdade, supõe existir uma relação de dominação (ou de opressão) de alguns segmentos sociais sobre outros, uma relação de exploração. Diferente de Marx (1988), a dominação e a opressão têm origem dos valores morais e não nas relações de produção. O foco central da questão, segundo Rousseau, não é exatamente o sistema social, a estrutura social, mas o homem, a condição humana. Neste sentido que se justifica a sua análise centralizar-se sobre comportamentos morais e valorativos do ser humano. Rousseau diz (1991, p.235): 13273 concebo, na espécie humana, dois tipos de desigualdades: uma que chamo de natural ou física, por ser estabelecida pela natureza e que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das desigualdades do espírito e da alma; a outra, que se pode chamar de desigualdade moral ou política, porque depende de uma espécie de convenção e que é estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens. Esta consiste nos vários privilégios de gozam alguns em prejuízo de outros, como os serem mais ricos, mais poderosos e homenageados do que estes, ou ainda por fazerem-se obedecer por eles. Podemos dizer que a principal preocupação de Rousseau é justamente com o segundo tipo de desigualdade concebido por ele. Na obra acima citada, Rousseau sugere uma lógica evolucionista para a espécie humana, distinguindo o homem natureza do da organização da sociedade civil, considerando que a desigualdade aparece com a propriedade privada e a organização política da sociedade. Isto é, o aparecimento da propriedade originou a sociedade civil e é nela que se encontra a origem das desigualdades entre os homens. É sobre este aspecto que Rousseau relaciona a desigualdade à questão moral e valorativa. Depois de descrever a esplendorosa condição de vida do homem natural, Rousseau (1991) começa a Segunda parte da sua obra “discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, dizendo: o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cerca de um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado aos seus semelhantes: ‘defendei-vos de ouvir este impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a guerra não pertence a ninguém (ROUSSEAU, 1991, p. 259). O conceito de diferença em Rousseau para o estudo da desigualdade se faz importante porque somente assim é possível se compreender o papel do etnocentrismo na produção da desigualdade. Em Rousseau etnocentrismo e desigualdade têm interelação. entre os textos importantes para exeme destes conceitos estão os dois Discursos, o Ensaio sobre a origem das línguas, o Contrato e a Carta a d’Alembert. Em relação a desigualdades, pode-se inicialmente dizer que não é de se estranhar – tendo em vista o contexto conceitual do Segundo Discurso – que se possa lê-lo no sentido forte em que aí se instala. Estranho seria não considerar como o conceito de diferença aí se apresenta. Quando se lê desigualdade neste texto, vêm à mente termos como: propriedade, riqueza, opressão, dominação, tirania. De outro lado, o termo diferenças comparece nos contextos em que se faz apropriado para designar possibilidades efetivas ou virtuais do indivíduo singular, ou do homem em suas relações sociais (GARCIA, 1999, p. 68). Noutra passagem do seu texto Garcia (1999, p. 67-68) complementa: “E se o conceito de desigualdades jamais desaparece do horizonte do pensamento de Rousseau que com bastante clareza e estridência marca a sua negatividade, o mesmo não ocorre em relação ao termo 13274 diferenças e afins, os quais, nos seus vários contextos de uso, são reconhecidos e valorizados positivamente”. Rousseau realça o caráter positivo da diferença (enquanto singularidade) justamente para fundamentar a sua crítica ao etnocentrismo, enquanto que a desigualdade é sempre considerada negativa. de início é preciso considerar que, embora o termo etnocentrrismo (de acordo com a definição atual dos dicionários ou dos textos dos experts (nota explicando a definição), não constasse entre os verbetes da Enciclopédia, os elementos conceituais importantes da concepção etnocêntrica ou de sua crítica se insinuavam, no entanto, fortemente nos escritos próximos aos do século XVIII. É nos escritos desse tempo que os vários elementos conceituais são articulados e produzem tanto as distintas versões do etnocentrismo como os primeiros ensaios de crítica a essa idéia. Interessa, pois, observar nesse horizonte elementos importantes da concepção de Rousseau a respeito dos valores morais e das diferenças de costumes entre os povos (GARCIA, 1999, p. 47). A crítica de Rousseau tinha endereço. Tratava-se da época da construção das ideias mestras da ciência moderna nas quais pouco a pouco infiltravam-se concepções etnocêntricas. A busca iluminista da razão indicava como caminho que todos os homens, nos vários cantos do universo, fossem contaminados pelos princípios universalistas da ciência. Mas, como diz Garcia (1999, p. 50): [...] para conhecer o homem é necessário sacudir o jugo dos preconceitos e descrever as diferenças entre eles, e isso não pode implicar nem a idéia de relativização absoluta dos valores, nem a construção de um universal que não leve em conta as diferenças. [...] Se nesses termos é possível anotar a crítica rousseauniana ao etnocentrismo, é preciso, contudo, ressaltar suas diferenças em relação às reivindicações tanto das versões do relativismo absoluto, quanto do universalismo cientifista à la Sant-Simon. A lógica etnocêntrica é utilitarista do discurso da razão É interessante observar que no discurso da razão construído pelos iluministas aparece sempre a preocupação com o chamado desenvolvimento humano. Entre os iluministas, a ideia de abandonar Deus na perspectiva de se construir uma sociedade científica era justificada pela necessidade de se implementar um processo de desenvolvimento humano. Esta palavra desenvolvimento aparece inúmeras vezes nos escritos dos mais expressivos representantes da razão iluministas, como Francis Bacon, Saint-Simon, Augusto Comte, etc. E esta ideia perdura até mesmo dentro da escola hoje, atribuindo à escola um papel instrumental. Com o aparecimento do método experimental e o avanço da ciência do domínio da natureza, a física parece ser o primeiro ingrediente a se integrar no processo da formação das ciências humanas. A economia política foi constituída na Inglaterra no decorrer da Revolução 13275 Industrial e da glória de Newton, quando se tinha uma influência considerável da epistemologia positivista. A partir de então, grandes teóricos das ciências do desenvolvimento econômico, como Adam Smith, Walras, Pareto e Saint-Simon desejavam ser o Newton da mecânica social da produção e do consumo de riquezas (GRINEVALD, 1975, p. 40). A ideia que associa o progresso da humanidade à força e à energia pode ter sua origem na física, particularmente na termodinâmica. Em síntese, o pensamento de Newton cruzou as fronteiras do mundo natural para o social. Assim, Saint-Simon, um dos precursores da ciência do desenvolvimento, foi um dos primeiros teóricos do desenvolvimento a associar o progresso humano a ideia da força e da energia. Esta interpretação dava origem não apenas à ideia segundo a qual o desenvolvimento social está condicionado ao desenvolvimento industrial (o sinônimo do capitalismo), mas a que não existe singularidade no que se refere ao desenvolvimento social. Como o da indústria, a força que impulsiona o desenvolvimento não nasce do mesmo corpo (comunidade, por exemplo), mas de uma força externa. É mesmo que dizer que existe um centro no qual as ideias dito científicas se encontram e dele nascem e impõem um padrão homogêneo a partir do qual devem se adaptar as singularidades. Isto é mesmo que dizer que comunidades ou pessoas que utilizam modelos singulares de produção jamais podem se desenvolver socialmente a partir das suas próprias experiências, mas dependem de ideias e tecnologias externas. Outro aspecto importante a ressaltar, presente na teoria do desenvolvimento é que a ideia do científico (a razão) impõe a sua universalidade de forma automática e infalível. A técnica, por ser fruto da ciência, é infalível. Saint-Simon dizia que a industrialização da sociedade se inscreve no contexto daquilo que ele chamava de “lei superior do progresso” que se impõem, quer o homens queiram ou não. Os homens não são nada mais dessa lei que seus instrumentos. Segundo Saint-Simon, esta “lei superior do progresso” deriva de nós, mas não está mais sob o nosso controle, não se tem mais condições de controlar a sua ação. Tudo o que se pode fazer é obedecer esta lei, prestando a atenção à sua marcha (ANSART, 1970, p. 33). Augusto Comte, discípulo de Saint-Simon, por sua vez, desempenhou um papel importante na formação da ideologia do desenvolvimento. Ele reuniu os principais ingredientes nascidos com os iluministas, como a de associar as ciências humanas às ciências naturais (sobretudo no que se refere ao método de investigação, a ideia da termodinâmica e os preceitos básicos do positivismo clássico) e os sistematizou, dando uma conotação mais contemporânea à ideologia do desenvolvimento, aparecendo com maior nitidez a concepção etnocêntrica. Nas 13276 ideias de Augusto Comte (2000), por exemplo, aparece como preocupação central a universalização de um padrão tecnológico e a vulgarização de um saber clássico e universal. O segundo aspecto, o de considerar conhecimento científico aquele que é útil, encontramos a origem deste pensamento nos iluministas, especialmente nas palavras de Francis Bacon: o saber que é poder não conhece nenhuma barreira, nem na escravidão da criatura, nem na complacência em face dos senhores do mundo... A técnica é a essência desse saber, que não visa conceitos e imagens, nem o prazer do discernimento, mas o método, a utilização do trabalho dos outros, o capital... O que os homens querem aprender da natureza é como empregá-la para dominar completamente a ela e aos homens. Nada mais importa [...] O que importa não é aquela satisfação, que para os homens, se chama ‘verdade’, mas ‘operacion’, o procedimento eficaz [...]” (ADORNO; HORKHEIMER, 1986, p. 20) Seria possível então se afirmar que a noção de saber e de conhecimento é associada à utilidade e à alguma coisa já existente socialmente aceita como verdade? A lógica da similitude, como analisa Foucault (1995) em “As palavras e as coisas”, abriria caminho ao etnocentrismo? A razão etnocêntrica do instituído, a escola... Mas como deriva a ideia da similitude, seria pela maioria numérica entre os iguais? Se voltarmos ao exemplo da feira concluiremos que não e que a similitude se constitui a partir de um padrão socialmente construído, imaginado, criado. Neste caso, a razão das coisas instituídas, como é o caso da escola, traz uma carga “genética” histórica de considerar o certo e o errado a partir de um padrão socialmente criado: o centro O utilitarismo e o etnocentrismo, são utilizados hoje pelas instituições públicas como fundamento de intervenção na realidade social e florescem no imaginário social sobretudo como parâmetro de delimitação da condição social. Isto se dá em duas instâncias interligadas: a institucional (ressaltando o papel do Estado) e a sócio cultural (ou simbólica). Trata-se de fato, de uma relação de uso do poder, de dominação. Neste ponto, Marx e Rousseau não divergem, a divergência pode estar na origem desta dominação. No caso de Marx, esta dominação pode ser entendida como dominação de classe. Em relação à primeira, podemos dizer que no que se refere às instâncias burocráticas do Estado (bem como outras instituições solidamente constituídas na sociedade de hoje, como é o caso da escola, das instituições administrativas do Estado, etc.), a utilização de alguns princípios como é o caso da infalibilidade da ciência e da técnica e a concepção etnocêntrica, se faz de forma mecânica. Por exemplo, recentemente, realizamos um estudo buscando compreender a 13277 relação existente entre os parâmetros utilizados para a determinação da condição social e a gestão das políticas sociais de combate à pobreza. Para isso, analisamos os parâmetros oficiais e os de diversos segmentos sociais. A conclusão que chegamos foi a de que o critério utilizado pelas instituições públicas para a delimitação da condição social parte de alguns parâmetros valorativos normalmente vinculados a valores simbólicos ou reais próprios das classes dominantes, como é o caso de habilidades técnicas, hábitos culturais (incluindo o consumo), etc. e que isto dá ao segmento pobre da população uma condição de ser e não de estar. Isto seria dizer que a pobreza teria origem e é explica pela existência de uma “racionalidade” de pobre. Esta mesma concepção aparece nas entrevistas realizadas com os segmentos mais abastados (classe média e alta), mas não aparece em segmentos considerados pobres. Em síntese, os critérios adotados pelas instituições públicas assim como aqueles utilizados por segmentos sociais originados de classes sociais média e alta partem de resultados, como é o caso do ter instrução, capacidade técnica, índices em geral, etc. Os segmentos considerados pobres assim se consideram quando dizem não ter acesso (à escola, ao trabalho, ao lazer, ao transporte coletivo, aos serviços de saúde, etc.) Na prática os parâmetros que partem dos resultados e não do processo, suplantam habilidades e demais bens sociais próprios dos segmentos pobres e com isso faz com que o pobre se transforme mais pobre pela condição de ser que a ele é atribuída, no lugar da condição de estar e, portanto, com capacidade de deixar esta condição. Isto é, concluímos que a construção da condição social elaborada a partir de parâmetros racionalistas e cientificistas de instâncias burocráticas do Estado se materializa, no meio social, pela construção de identidades coletivas, aos moldes como Manuel Castells (1999, p.22-25) pensa. Ou seja, a instância burocrática do Estado poderia determinar a construção da condição social através do que Manuel Castells chama de “identidade legitimadora’, introduzida pelas instituições dominantes da sociedade, no intuito de expandir e racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais...”. Isto explica o fato que alguns segmentos sociais, como as classes médias e altas, utilizam os mesmos parâmetros de delimitação da condição social daqueles utilizados pelas instituições públicas. Além desta “identidade legitimadora” da qual fizemos referência, podemos considerar que a utilização de critérios racionalistas e etnocêntricos por alguns segmentos sociais na delimitação da condição social igual aqueles utilizados pelas instâncias burocráticas do Estado tem origem também na construção histórica de uma racionalidade, como aquela pensada por Max Weber, que dá fundamentos a uma construção imaginária e até cultural da condição social. 13278 Portanto, argumentamos que em nossos dias as instituições públicas, assim como o próprio imaginário social, são fundamentadas por uma racionalidade etnocêntrica e utilitarista que se expressam, fundamentalmente, em três principais esferas do contexto social: a produção da cultura e do imaginário social; a produção econômica e a gestão política (a organização das relações políticas que envolvem o Estado, as políticas públicas). Na prática, esta racionalidade determina o aparecimento de uma leitura irreal da condição social e alguns segmentos sobre outros e, ainda, a utilização de métodos inadequados de intervenção pelas instituições burocráticas do Estado, o que poderia ser entendido como exploração de classe e não apenas como uma fala de conduta humana como diria Rousseau. Uma forma de visualizar o papel do etnocentrismo na sociedade e o seu poder de dominação (a serviço de alguns segmentos sociais) e de produção das desigualdades seria o uso de uma metáfora: a da esfera. O centro da esfera pode ser físico (geográfico) como pode ser uma abstração de verdade. No imaginário social o centro físico (ou geográfico) de um espaço determinado encontra-se acumulada maior verdade, ou, o centro (abstração) da verdade. A ideia do centro funciona como uma atribuição real ou simbólica que se entrelaçam. Isto porque o real vira simbólico e vice-versa. O centro real é a parte de um espaço geográfico que congrega bens reais e simbólicos para onde é atraída a periferia. O centro simbólico são as construções sociais elaboradas a partir da ideia de que a verdade se encontra no centro. De igual forma, a elaboração do conhecimento científico, tecnológico e habilidades têm maior valor real e simbólico na medida em que se aproxima do centro, perdendo sucessivamente na medida em que se afasta em direção à periferia. É científico tudo que for útil; o útil está no centro. Conclusão Se a escola busca se constituir numa instituição verdadeiramente democrática não basta revisar a sua metodologia, receber a pobreza com carinho, etc. mas fazer uma revisão epistemológica O espaço da escola é constituído de alguns elementos básicos criados a partir de interpretações epistemológicas de ciência, saber, verdade, os quais se materializam nas normas e regras do espaço escolar, como a dicotomização do certo e do errado, o cumprimento do horário, etc. Isto tudo não é consonante com o mundo real do segmento pobre, para o qual a verdade é relativizada, a divisão do dia não é feita com o mesmo horário convencional, etc. 13279 Existe uma graduação do ser diferente de conformidade com a aproximação do centro envolvendo uma combinação de elementos: hábitos culturais, hábitos de consumo, habilidades, etc. Em outras palavras, quando se fala em diferença, não se trata de considerar o fora ou o dentro, ou até mesmo repensar o entendimento de “o que se localiza fora do padrão referencial do momento, quer seja do ponto de vista cultural, linguístico ou de capacidade técnica para o exercício do trabalho de conformidade com as exigências atuais” (BONETI, 2000, p. 23), conforme dizíamos em outra oportunidade. Mas devemos considerar que a diferença se gradua na média em que se afasta do centro. Como estes elementos interferem nas políticas sociais e transformam as singularidades em desigualdades? A concepção etnocêntrica impregnada no racionalismo científico clássico, a qual deu base para a construção da ideia da razão única e universal, dá conta que a verdade está no centro e que ela pode chegar na periferia, mas o deslocamento se dá do centro em direção à periferia e nunca em direção contrária. Isso significa dizer que as atribuições de valores aos bens reais e simbólicos variam de conformidade com a aproximação do centro. Os bens reais e simbólicos ganham atribuição de mais valor na medida em que se aproxima do centro. Isto significa dizer que a valorização dos bens reais e simbólicos mais distantes do centro transformam os segmentos sociais seus proprietários em potencialmente pobres. É com este raciocínio que as políticas sociais de combate à pobreza, por exemplo, implementam suas ações. REFERÊNCIAS ADORNO, T. W., HORKHEIMER, Max. Dialética do conhecimento. 2. Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1986. ANSART, Pierre. Sociologie de Sant-Simon. Paris: Presses Universitaires de France, 1970. BONETI, Lindomar W. Políticas Públicas, Educação e Exclusão Social. In:BONETI, Lindomar W. (Org.). Educação, exclusão e cidadania. 2.ed. Ijuí: Editora Unijuí, 2000. p. 13-38. CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. COMTE, Augusto. Synthèse subjective ou système universel des conceptions propres a l’état normal de l’Humanité. Paris: Fayard, 2000. GARCIA, Claudio Boeira. As cidades e suas cenas. Ijuí: Editora Unijuí, 1999. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Montes, 1995. 13280 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves, 7.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. GRINEVALD, J. 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