X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 AS CONCEPÇÕES DE EULER E CAUCHY PARA O CONCEITO DE FUNÇÃO CONTÍNUA NA PERSPECTIVA DE PIERRE BOUTROUX Geslane Figueiredo da Silva Santana1 Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT [email protected] Michael Friedrich Otte2 Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT [email protected] Resumo: O presente artigo tem por objetivo estudar a evolução da matemática no século XIX, com foco no desenvolvimento do conceito de função. Esta investigação se resume à obra: O ideal Científico dos Matemáticos. Segundo a percepção do matemático, filósofo e historiador Pierre Boutroux (1880-1922). Na visão de Boutroux a matemática até o século XIX era sintética, e após, este período torna-se analítica. Podese identificar através da definição do conceito de função contínua estabelecida por Euler, que era baseado em signos e fórmulas, a concepção sintética da matemática, enquanto que, por meio da definição de Cauchy, fundamentada em conceitos, nota-se o ideal analítico dos matemáticos. O ponto decisivo foi a clara distinção entre um conceito e suas representações, uma distinção que foi percebida com maior clareza apenas no século XIX. Para o avanço desta análise emprega-se o método histórico, desenvolvendo-se assim uma pesquisa histórico-bibliográfica. Espera-se contribuir com a Educação Matemática, apresentando um trabalho que possa auxiliar o professor em sua didática, fortalecendo o espírito da criatividade na matemática. Palavras-chave: História da Matemática; Filosofia da Matemática; Epistemologia; Educação Matemática. INTRODUÇÃO No início do século XIX floresce um novo movimento, com um conhecimento composto por novos objetos trazidos para o pensamento, e a partir desses são gerados novos conhecimentos. O conceito de função foi uma peça fundamental, para que todas essas idéias afluíssem, Otte afirma que este conceito “representa o verdadeiro núcleo da famosa „revolução do rigor‟, introduzida em 1821 pelo Cours d’Analyse, de Cauchy. Tentava-se reduzir o conceito de função ao discreto, à aritmética dos números naturais, e assim eliminar a continuidade” (OTTE, 1993, p. 223). 1 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação – UFMT. a Prof . Dra. do Programa de Pós-Graduação em Educação – Orientador – UFMT. Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Pôster 1 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 Essa transformação pode ser observada por meio da dificuldade que se apresentou no desenvolvimento do conceito de função contínua, principalmente através de como Euler o definiu. O conceito de função contínua é a peça fundamental para se entender o desenvolvimento da matemática e as suas principais mudanças no século XIX. Para o matemático Pierre Boutroux “um dos mais importantes conceitos da análise moderna é o conceito de função matemática” (BOUTROUX, 1920, p. 164). O autor ainda escreve: Na própria análise: temos antes todo o trabalho da concepção de função y(x), isto é dizer, uma intuição da lei matemática após a qual, quando escolhemos um valor arbitrário de x, encontra-se certo valor de y para o mesmo desígnio, só depois esforçamo-nos para obter equações que exprimam o menor mal possível desta estranha relação das duas variáveis x e y. (BOUTROUX, 1920, p. 206) Segundo Boutroux (1920) o mais difícil para entender era exatamente o fato que entre dois termos variando simultaneamente existe uma relação constante. A dificuldade é sempre distinguir entre representação, fato ou objeto representado. Atualmente, para os matemáticos é mais fácil aceitar o conceito de função contínua, entretanto, no ensino esses problemas permanecem, pois o professor é seduzido a ensinar através de exemplos, porém um exemplo só pode ser usado à base de uma representação, por isso, nos dias atuais tem sido difícil concordar com esta concepção abstrata do conceito de função, que transforma logo de início o próprio conceito num objeto completamente desconhecido. Como afirma Boutroux: “a correspondência matemática não é uma conseqüência das operações algébricas, mas é o próprio objeto que as determinam” (BOUTROUX, 1920, p. 206). Ou seja, existe uma relação objetiva, que não deveria ser confundida com uma representação, mas que mesmo assim pode ser introduzida na atividade matemática através de uma representação particular Para Boutroux (1920) na virada do século XIX a matemática deixa de ser sintética e torna-se analítica, o autor ainda explica que a noção central da ciência de Descartes e Leibniz era o signo ou o símbolo, onde a álgebra e a análise algébrica eram uma arte simbólica, principalmente por este motivo é que atualmente a notação do Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Pôster 2 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 Cálculo de Leibniz é mais utilizada do que a de Newton, pois a simbolização à torna mais importante. Analisando por este prisma, tanto a matemática de Descartes e Leibniz do século XVII e XVIII quanto à de Euler e Lagrange são baseadas na combinação de signos, ou seja, uma matemática sintética, enquanto a matemática pura dos séculos XIX e XX como a de Cauchy é uma ciência de conceitos, ou melhor, uma matemática analítica. A DISTINÇÃO ENTRE ANALÍTICO E SINTÉTICO NA CONCEPÇÃO DE PIERRE BOUTROUX O matemático francês Pierre Boutroux (1880-1922), foi historiador e filósofo da matemática, o mesmo era sobrinho do matemático Henri Poincaré e filho do filósofo Émile Boutroux. O foco das pesquisas de Boutroux é a evolução do pensamento matemático em sua época. Em 1920, escreveu o livro O ideal Científico dos Matemáticos, neste trabalho o autor defende a tese que houve não apenas uma revolução, mas também uma ruptura na história da matemática ocorrida no final do século XVIII, que apresentou como base dois eventos. No primeiro evento, a matemática deixa de ser uma ciência sintética e torna-se uma ciência analítica, no segundo, houve uma quebra da harmonia entre os meios e os objetos da matemática. Segundo a visão de Boutroux (1920), a matemática dos séculos XVII e XVIII era propriamente sintética, os matemáticos se preocupavam com o caminho para se chegar aos resultados e se interessavam pela maneira ou pelo método. Enquanto que a concepção analítica da matemática nos séculos XIX e XX não está preocupada com o caminho, a tarefa ou a demonstração, mas com o próprio objeto. Boutroux deixa bem claro isto quando afirma: O que costumava ser mais interessante, era a demonstração, que foi os processos e o sucesso dos cálculos; os resultados e as combinações obtidas podendo evidentemente divergir em todos os sentidos e ser multiplicado ao infinito, não se tinha lugar para atar um grande valor a sua enumeração; a unidade que perseguia a ciência não podia ser uma unidade de método. Atualmente, ao contrário, isto é que conta é o resultado que dá ao trabalho sua unidade; os artifícios da demonstração são apenas trabalhos de arte sem os quais, nós que não Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Pôster 3 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 sabemos voar, estaríamos fora do estado de superar as dificuldades e os acidentes do terreno que se encontram sobre nosso caminho (...). As verdades matemáticas são fatos objetivos, independente de nós e que descobrimos e analisamos, de certa maneira, exteriormente (...). Inclinamo-nos, por outro lado, a ver na demonstração o instrumento e não o fim da ciência. (BOUTROUX, 1920, p. 211-212) Boutroux (1920) ainda exemplifica esta mudança quando relata sobre a teoria das equações algébricas de grau n: anxn + an-1xn-1 + ... + ax + a0 = 0, onde a resolução de equação de grau superior à quatro não tinha solução. Até que Abel concluiu ser impossível representar as raízes da equação geral de quinto grau, em termos de radicais. Mas, foi graças ao trabalho de Galois que a teoria das equações repercutiria em novas direções, para Galois “foi suficiente transmitir este impulso de modificar o enunciado do problema posto, e „atacar de lado‟ a dificuldade que ele não podia abordar de frente” (BOUTROUX, 1920, p. 186); desta forma, Galois não buscou uma expressão algébrica, contudo procurou isolar certas famílias ou classes de equações tais que as raízes das equações de uma mesma classe se exprimem por meio de fórmulas algébricas em função umas das outras, assim todas as equações de uma classe seriam resolvidas ao mesmo tempo. Segundo Boutroux (1920), o objetivo do matemático da modernidade é: “compor, a partir de elementos simples, a união cada vez mais complexa e construir a partir das peças, sua própria indústria, o edifício da ciência, esta parece ser a tarefa do matemático de agora em diante” (BOUTROUX, 1920, p. 182). Onde os objetos da matemática se tornaram o próprio conceito. A CONCEPÇÃO SINTÉTICA DE EULER Leonhard Euler (1707-1783) nasceu na Suíça, em vida publicou cerca de 530 trabalhos entre artigos e livros. Otte afirma que Euler foi “o maior matemático do século XVIII, uma personalidade como cientista que se sobressai na história da ciência pela variedade e quantidade de sua produção científica” (OTTE, 1993, p. 228). Euler foi o construtor das notações mais bem sucedidas em todos os tempos, entre estas se encontra uma importante notação, que é a de f(x) usada para uma função de x (BOYER, 1996). Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Pôster 4 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 Para as exigências da matemática do século XIX Euler não pensava em função de um modo formal, mas na verdade confundiu a função com suas representações, sejam essas uma curva traçada à mão livre sobre um plano ou “qualquer expressão analítica formada daquela quantidade variável e de números ou quantidades constantes” (BOYER, 1996, p. 306). Este matemático escreveu um brilhante trabalho intitulado por Introduction in Analysin Infinitorum (Introdução à Análise Infinitesimal) em 1748; que nos dias atuais define a estrutura inicial da matemática nas universidades. Nesta obra Euler chamou de quantidades constantes as iniciais do alfabeto a, b, c, etc. E de quantidades variável as últimas letras do alfabeto z, y, x etc.(EULER, 1748). Na referida obra Euler explica a diferença entre função contínua e função descontínua segundo a sua visão, que logicamente, era baseada nos signos e na combinação de signos e em fórmulas relacionadas à matemática de sua época. Para ele, uma função é contínua quando é formada por uma única expressão analítica. Enquanto as funções formadas por mais de uma expressão analítica, mesmo que o gráfico fosse formado por apenas uma curva, eram consideradas como funções descontínuas (PALARO, 2006). A CONCEPÇÃO ANALÍTICA DE CAUCHY No século XIX Augustin-Louis Cauchy (1789-1857), era considerado um grande matemático da década de 1820-30. Estudou na École Polytechnique e na Écola des Ponts et Chaussées, formou-se em engenharia civil. Cauchy seguiu a tradição de Lagrange se interessando por provas rigorosas e pela matemática pura em forma elegante (BOYER, 1996). O século XIX é considerado como: “o período do rigor na matemática” (BOYER, 1996, p. 358); e Cauchy apresentando-se como matemático do século XIX, que buscava o rigor, escreveu na introdução do Cours d‟Analyse de L‟Ècole Royale Polytechnique: “Quanto aos métodos eu procurei lhes dar todo o rigor que se exige na geometria, de maneira a jamais recorrer a argumentos deduzidos da generalidade da álgebra”(CAUCHY, 1821, p. ij); Cauchy destaca-se como o matemático que forneceu Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Pôster 5 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 uma definição satisfatória para o conceito de função contínua, ele definiu função da seguinte forma: Quando quantidades variáveis estão ligadas entre si, de tal modo que, sendo fornecido o valor de uma delas, pode-se obter os valores de todas as outras, concebe-se normalmente estas diversas quantidades expressas por meio de uma dentre elas, que recebe, então, o nome de variável independente; e as outras quantidades, expressas por meio da variável independente, são as que se chamam de funções desta variável. (CAUCHY, 1821, p. 31) Após definir função, Cauchy expõe uma definição para o conceito de limite e infinitésimos, somente depois apresenta uma definição coerente para continuidade de uma função, o próprio Cauchy relata: “Falando da continuidade das funções, eu não pude deixar de apresentar as propriedades principais das quantidades infinitamente pequenas, propriedades que servem de base ao cálculo infinitesimal” (CAUCHY, 1821, p.ij). Cauchy apresenta a definição de continuidade como segue: Seja f(x) uma função da variável x, e suponhamos que, para cada valor de x intermediário entre dois limites dados, esta função admita constantemente um valor único e finito. Se, partindo de um valor x compreendido entre estes limites, atribui-se à variável x um acréscimo infinitamente pequeno α, a própria função receberá por acréscimo a diferença f(x+α)-f(x),que dependerá, ao mesmo tempo, da nova variável α e do valor de x. Isto posto, a função f(x) será, entre os dois limites atribuídos à variável x, função contínua desta variável, se, para cada valor de x intermediário entre limites, o valor numérico da diferença f(x+α)-f(x),decresce indefinidamente com aquele de α. Em outros termos, a função f(x) permanecerá contínua em relação a x entre os limites dados, se entre estes limites, um acréscimos infinitamente pequeno dado, a variável produzir sempre um acréscimo infinitamente pequeno da própria função. Diz-se ainda que a função f(x) é, na vizinhança de um valor particular atribuído à variável x, função contínua dessa variável, todas as vezes que ela é contínua entre dois limites de x, mesmo muito próximos, que contém o valor do qual se trata. (CAUCHY, 1821, p. 43) Cauchy destaca que: “Segundo a definição de Euler (...) uma simples mudança de notação será suficiente, para transformar uma função contínua em descontínua e vice versa (...). Assim, a característica da continuidade de funções proposta sobre o ponto de Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Pôster 6 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 vista ao qual, os geômetras abordaram, é uma característica vaga e indeterminada” (CAUCHY, 1844, p. 116-117). Neste texto, Cauchy mostrar ter total clareza de que o modo como Euler definia função contínua era incoerente (PALARO, 2006). Um perfeito exemplo da distinção de idéias a respeito da continuidade de função entre Euler e Cauchy é apresentado por Belhoste: A função definida em para por para e é descontínua no sentido de Euler, porque ela é definida por várias expressões analíticas diferentes sobre , mas ela é contínua no sentido de Cauchy. (BELHOSTE, 1985, p. 62) Cauchy não se satisfaz com o conceito de função de Euler baseado em símbolos, ele pensa em função contínua a base do próprio conceito de contínuo, para tanto ele escreveu uma definição para função contínua, totalmente por meio de conceitos. CONSIDERAÇÕES A concepção de analítico e sintético é largamente discutida na história e filosofia da matemática; é relevante observar que cada pensador aplica uma definição e aponta características na matemática que fornecem suporte a sua teoria, contudo, este artigo procura delinear a posição de Pierre Boutroux. Uma das principais características da concepção matemática analítica destacada por Boutroux (1920) é exatamente a criatividade, ou seja, as várias maneiras utilizadas para solucionar um problema, quando não se podia resolvê-lo de um modo, a criatividade entrava em ação e um novo método se desvendava, Boutroux afirma: Isto que nos aparece primeiramente quando comparamos a matemática de nosso tempo com aquela da época anterior, é a extraordinária diversidade e o aspecto imprevisto das vias e dos rodeios onde esta ciência está empregada esta desordem aparente dentro da qual ela executa suas marchas. (BOUTROUX, 1920, p. 184) Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Pôster 7 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 Uma das necessidades básicas da Revolução Industrial foi a formação de engenheiros, neste contexto coube aos matemáticos a incumbência de ensinar não apenas para um ou dois alunos, mas para turmas de engenheiros com vários alunos, tendo assim que ampliar sua criatividade. REFERÊNCIAS BELHOSTE, Bruno. Cauchy: um mathématicien légitimiste au XIXe siècle. Paris: Berlim, 1985. BOUTROUX, Pierre. L’Idéal Sientífique des Mathématiciens: dans l‟antiquité et dans les temps modernes. Paris: F. Alcan, 1920. 274p. BOYER, Carl. História da Matemática. São Paulo: Edgard Blücher Ltda, 1996. 496p. CAUCHY, Augustin-Louis. Cours d‟Analyse de L‟École Royale Polytechnique. Paris, 1821. (re-impresso em Ouvres Completès, série 2, v.3. Paris: Gauthier-Villars, 1899). CAUCHY, Augustin-Louis. Mémoire sur les fonctions continues. In: C. R. Acad. Sci., v. 18, p.116, 1844. (re-impresso em Ouvres Completès, série 1, v.8. Paris). EULER, Leonhard. (1748). Intruduction in Analysin Infinitorum. Reprint Springer Heidelberg, 1980. OTTE, Michael. A Realidade das Idéias: uma perspectiva epistemológica para a Educação Matemática. Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso (no prelo) 2009. 149p. OTTE, Michael. O Formal, o Social e o Subjetivo: uma introdução à Filosofia e à didática da Matemática. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1993. 323p. OTTE, Michael. Complementarity, sets and numbers. In: Educational Studies in Mathematics, v.58, p.203-228. 2003. PALARO, Luzia. A Concepção de Educação Matemática de Henri Lesbegue. 2006. 242f. Tese (Doutorado em Educação Matemática). Área de concentração: Matemática – Programa Pós-Graduação em Educação Matemática, PUC, São Paulo. Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Pôster 8