processo midiático e o problema do triplo isolamento

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PROCESSO MIDIÁTICO
E O PROBLEMA DO TRIPLO ISOLAMENTO
Pedro Benevides1
Resumo: O artigo decompõe elaborações de Braga, Fausto Neto e Miège para
elencar traços substanciais do processo midiático. Considerando ângulos
problemáticos que compõem a pesquisa em comunicação, o problema do triplo
isolamento demanda reflexão sobre a relação entre processo midiático e processo
social. A periodização e a caracterização do processo midiático destacam a noção
de deslocamento ou declinação para delinear o caráter das mudanças midiáticas
atuais. Por fim, a distinção entre dois âmbitos da midiatização e a combinação de
suas características e incompletudes se colocam como chance de avaliar aspectos
do andamento geral da sociedade a partir do estudo propriamente midiático.
Palavras-Chave: Processo midiático. Midiatização. Campo midiático.
Abstract: The article analyzes elaborations of Braga, Fausto Neto and Miège to
find substantial traces of the mediatic process. Considering problematic angles that
make up the communication research, the problem of triple isolation demands
reflection on the relationship between mediatic process and social process.
Periodization and characterization of the mediatic process highlights the notion of
displacement or declination to delineate the nature of the current mediatic changes.
Finally, the distinction between two spheres of mediatization and the combination of
its character and incompleteness arise as a chance to review aspects of the overall
dynamics of society.
Keywords: Mediatic process. Mediatization. Mediatic field.
1. introdução
A recente institucionalização do campo acadêmico de pesquisa em comunicação
oferece permanência sem eliminar a letargia nem garantir elaboração de grandes teorias
(Braga, 2010). A partir da década de 1990, a centralidade da mídia chama atenção,
implicando novo grau de coesão e demandando novas categorias gerais. Ocorre um
entrelaçamento entre uma nova capacidade institucional de investigação e um objeto
diferenciado, que impele a pesquisa à atualização de formulações. O resultado mais
1
Formado em Jornalismo na UnB, onde cursou o Mestrado em Comunicação. Doutor em Ciências da
Comunicação pela Unisinos, onde atualmente realiza Pós-doutorado, com bolsa CNPq, no âmbito do Projeto
“Afetações da Midiatização sobre o Ofício Jornalístico”, coordenado pelo Dr. Antonio Fausto Neto.
[email protected]
1
proeminente deste encontro talvez seja a ramificação da chamada epistemologia da
comunicação como grupo específico de pesquisa e debate.
O objetivo deste artigo é extrair de análises consolidadas de três autores um conjunto de
traços substanciais que ajudem a compor um quadro de fatores e dinâmicas propriamente
midiáticos.
Tais análises são produto do trabalho de três autores (Braga, Fausto Neto e Miège),
escolhidos por apresentarem elaborações que não se restringem a recortes disciplinares
convencionais e por serem profissionais de pesquisa dedicados ao ofício desde sua pósgraduação nos anos 1970. Em outras palavras, acompanharam de dentro da pesquisa a
transição entre etapas do processo midiático, lapidando seus termos junto a tais mudanças.
O ponto de partida deste artigo é a relação entre a constituição de um processo social
diferenciado, chamado de midiático, e a constituição de ângulos de pesquisa acadêmica, cujos
problemas acumulados podem propiciar a percepção de dinâmicas consistentes. O primeiro
traço substancial indicado é extraído das noções de triplo isolamento e de exterioridade – de
Braga e Miège, respectivamente.
A construção de um quadro de componentes substanciais do processo midiático pode
ser um instrumento auxiliar para nos situarmos num terreno à primeira vista confuso em que
canais se multiplicam, públicos se pulverizam, aparelhos se interligam etc. Tendo o objetivo
cauteloso da prospecção, este quadro pode ser eficaz também para aproveitar alguns dos
estudos mais adensados disponíveis sem recair nos compartimentos disciplinares nos quais a
pesquisa em comunicação no Brasil tradicionalmente se divide e dispersa.
2. Vínculo
Avaliando em 2001 a pesquisa em comunicação no Brasil, Braga identifica a
“objetivação de um espaço de estudos, reflexões e pesquisa percebidos largamente como
relevantes” (Braga, 2011a, p. 63). Esse espaço vem sendo chamado de “Comunicação”,
“Comunicação Social” ou – como passou a ser chamado em fins da década de 1990 –
“Campo da Comunicação”, designação reconhecida sem que isso acarrete consenso sobre a
definição de seus contornos (ibidem, p. 63). Tal institucionalização do campo acadêmico de
pesquisa em comunicação é acompanhada pelo problema da “dispersão – decorrente do fato
de que essa diversidade não se interroga, não produz tensionamento mútuo, não se desafia
2
por perguntas e interpretações concorrentes que exijam reflexão cruzada” (Braga, 2011b, p.
3).
Ao mesmo tempo, foi se concretizando a percepção da ampliação do fenômeno
midiático e de sua penetração social, o que ensejou o termo “centralidade da mídia”, que
Braga explica em termos de um vasto aparato especializado presente nas interações sociais e
as modificando, uma vez que estas se ajustam a ele. A “forte presença do mediático nas
interações sociais contemporâneas” se manifesta em propriedades específicas, como a
inclusividade (capacidade de incluir e captar conteúdos e práticas) e a penetrabilidade
(capacidade de se inserir em práticas e ser acolhido por elas), impondo alterações e
adaptações das práticas e conteúdos incluídos e penetrados (Braga, 2011a, p. 69).
Ocorre então a conjunção entre a constituição de um espaço de preocupações e a
incontornável incidência de um poderoso aparato midiático sobre as relações sociais. Situado
entre estes fatores, Braga sistematiza quatro ângulos problemáticos da pesquisa em
comunicação, vigentes no início dos anos 2000. Um deles pode ser chamado de holismo: a
comunicação estaria presente em todas as dimensões humanas, sendo tão ampla que se torna
inapreensível – “tudo é comunicação” (ibidem, p. 65). Um segundo ângulo, muito debatido
em fins de 1990, é o da interdisciplinaridade, termo que frequentemente designa um terreno
vazio onde todas as ciências humanas teriam algo a dizer (ibidem, pp. 63-64). Braga valoriza
os estudos de interface, nos quais percebe potencial para conhecimento, ao passo que o
acolhimento indiscriminado da diversidade estimula a postura “interdisciplinarista frouxa”
(ibidem, p. 74), o que também pode ser entendido como ecletismo. O terceiro ângulo é aquele
que enquadra a comunicação a partir de disciplinas das ciências humanas e sociais, que
tendem a negligenciar especificidades midiáticas em favor de categorias já consolidadas na
disciplina original (ibidem, p. 69). O quarto ângulo é chamado por Braga de reducionista:
trata-se do recorte de “objetos específicos identificadores da área”, numa segmentação do
objeto em questões tecnológicas, jurídico-políticas, expressivo-interpretativas, profissionaisprodutivas, relativas à recepção, entre outras escolhidas a partir da especialidade ou da
preferência do pesquisador (ibidem, pp. 65-69). Nesse caso, mesmo que sejam reunidos
múltiplos enfoques, “fica uma certa sensação de que outros processos sociais, que não
comparecem em relação de contiguidade imediata com a mídia, estariam nos escapando à
observação e portanto ao trabalho do conhecimento” (ibidem, p. 65).
3
O questionamento destas quatro perspectivas incide sobre as polêmicas em torno da
definição de objeto ou da demarcação do campo de pesquisa. Segundo Braga, os meios de
comunicação não constituem objeto de pesquisa, sendo eles “apenas o fenômeno empírico – e
como tal não correspondem propriamente a um ângulo ou preocupação de busca de
conhecimento” (ibidem, p. 69). O problema não se resolve pelo recorte dos meios de
comunicação em termos de política, economia, administração, tecnologia, produção
profissional, discursos ou recepção. Tais enfoques, se exclusivos, tendem a isolar fragmentos,
“seja de sua realidade social, seja de sua substância significativa, seja das suas condições de
existência e produção” (ibidem, p. 69).
Cabe fixar essa noção de um triplo isolamento como marcante dos estudos de mídia. A
noção não acarreta um veto à observação de fenômeno parcial ou a investigação de objeto
recortado. Também não é solução meramente relacionar um objeto midiático ao contexto
social geral, ao contexto mais próximo das condições de produção e à sua substância.
Abstraindo a preferência de Braga pelas interações, a questão que ele coloca em 2001 é
“examinar o fragmento sem destacá-lo das relações que entretém” (ibidem, p. 69).
Existe afinidade entre esta percepção e a noção de ancoragem das técnicas de
informação – comunicação (TIC), de Bernard Miège, com quem cabe uma aproximação.
Segundo ele, as TIC são constituídas por uma “dupla mediação”, o que designa a introjeção
de um conjunto de determinações técnicas e sociais. É uma concepção combinada de técnica
e social como esferas distintas e articuladas, implicando que a esfera propriamente técnica
possui uma dupla qualidade – técnica e social (Miège, 2009a, pp. 18; 46-47). Situar o
fragmento num conjunto de relações externas e internalizadas é justamente um modo de
compreender as TIC, o que põe Miège em diálogo com a noção de triplo isolamento.
É neste raciocínio que o termo ancoragem é empregado, em contraposição ao termo
inserção, que seria equivocado por “colocar a esfera da técnica numa posição de
exterioridade e mesmo de conquista em relação ao social” (ibidem: 55-56; cf. também p. 22).
Trata-se de se distanciar de elaborações atreladas a termos como difusão, papel, efeitos,
impacto, função, entre tantos outros disseminados na pesquisa acadêmica em comunicação e
que carregam o fardo das relações dicotômicas entre comunicação e sociedade. As
ocorrências mais flagrantes deste problema são as formulações cibernéticas e funcionalistas.
A corrente funcionalista, desde seus cinco Qs até o ajuste de 1973 acerca de o que as pessoas
fazem com a mídia, sempre pressupõe uma “ligação em que a mídia tem uma relação de
4
exterioridade aos grupos sociais” (Miège, 2009b, p. 10). Na cibernética, que assume o
modelo emissor–receptor e o adapta à noção de efeito de retroação (ibidem, p. 11), encontrase uma exterioridade similar.
Assim, é possível destacar o triplo isolamento, segundo Braga, e a exterioridade,
segundo Miège, como limitações contundentes marcando o conjunto da pesquisa em
comunicação. Convertendo os limites em problemas, os dois autores oferecem formulações
que exprimem uma questão similar: a do vínculo entre parte e todo. O problema pede
resposta, que pode ser armadilha, uma vez que a solução não é apenas de conteúdo (recorte
“correto” e contextualização), nem pode ser contemplada pelas disciplinas já estabelecidas,
cujos conceitos não se construíram na relação com a preocupação midiática. A noção de
relações entretidas que encontramos em Braga e de combinação de relações externas e
internalizadas em Miège sugerem dinâmicas específicas, para as quais os conceitos
disponíveis oferecem recaídas nos obstáculos acima indicados.
3. processo midiático
Em 2001, Braga escreve que a definição de objeto é “o primeiro problema que
assombra o pesquisador em Comunicação” (Braga, 2011a, p. 65). Para o autor, o fantasma
não deve ser perseguido, mas compreendido. Comentando suas formulações 10 anos depois,
Braga reitera: o termo “mídia” leva a equívocos ao sublinhar aspectos temáticos (os recortes
já
mencionados),
enquanto
que
a
expressão
“midiatização”
implica
processos
comunicacionais e suas lógicas internas, articulados a processos de comunicação não
diretamente midiatizados mas inscritos no fluxo comunicacional (ibidem, p. 70). A ênfase no
processo, com alusão à pesquisa acumulada, é diretamente compartilhada por Fausto Neto,
segundo quem a midiatização “transcende aos meios e as mediações, [estando] no interior de
processualidades” (Fausto Neto, 2006b, p. 10). Indiretamente, a preocupação pode ser
encontrada em Miège: ainda que exista uma “concepção de TIC”, tratá-las como um objeto
“parece neste caso impróprio”, já que elas não se restringem a aparelhos mas sim envolvem
mercantilização ao nível produtivo e de consumo, cumprem múltiplas funções e incitam
praticas privadas, públicas e profissionais, além de participarem de conflitos de interesses
estratégicos (Miège, 2009a, p. 21). Sem que o termo “processo” seja colocado, aqui também
existe um conjunto de dinâmicas que se sobrepõem aos fenômenos e às fixações temáticas.
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Assim, os enfoques de cada um destes autores – interações em Braga, enunciações e
afetações em Fausto Neto e ancoragem da técnica em Miège – geraram elaborações que
possuem um certo denominador comum, que pode ser traduzido como a sugestão de reflexão
sobre o vínculo entre processo midiático e processo social. Braga e Fausto Neto destacarão o
termo midiatização, que avança para formulações específicas. O termo “processo midiático”
é uma ferramenta de prospecção, um operador analítico que visa articular diferentes análises
acadêmicas, acolher o senso comum (que consagrou o termo “mídia”), se referir a um
fenômeno atual que mobiliza preocupações e se distanciar deste fenômeno. O termo não
explica – ele pede explicação, já oferecendo certa orientação, que incorpora dificuldades
acumuladas no campo de pesquisa, que acima foram sumariamente indicadas. O que cabe
fixar aqui é a ideia de que processo midiático pressupõe o questionamento da relação
necessária entre parte e todo, sem a qual o objeto recortado não só se isola do contexto mas
de sua própria substância, que pode ser entendida como processo social introjetado. Colocar o
processo em primeiro plano é priorizar a busca pelas dinâmicas fundamentais de um certo
conjunto hipoteticamente balizado pelos termos processo midiático e o processo social.
4. passagem
A periodização é um problema frequente na pesquisa em comunicação, mesmo que
implícito, já que a comparação entre presente e passado se impõe nas caracterizações das
mudanças correntes da mídia. Do ângulo aqui considerado, trata-se de reconhecer que houve
uma mudança significativa e daí tentar definir uma passagem entre duas etapas do processo
midiático.
A percepção dessa transição foi amadurecendo em meados dos anos 2000, e se
manifestando em termos como “bios midiático”, de Muniz Sodré, e “nova ambiência”, de
Pedro Gomes, entre outros dos quais Fausto Neto se alimenta para explicitar em 2008 a
“emergência da midiatização”, que envolve certas mudanças basilares (Fausto Neto, 2008,
pp. 92-94). A primeira é a conversão de tecnologias em meios: a convergência de fatores
sócio-tecnológicos, nas três últimas décadas, transformando certas tecnologias em meios de
produção, circulação e recepção de enunciados. A segunda é o atravessamento e a
capilarização: a perda de ênfase da centralidade, autonomia relativa e distinção dos meios de
comunicação como especialistas no trabalho de intermediação dos campos sociais, em favor
de que pressupostos e operações midiáticas atravessem e permeiem práticas, interações e
6
campos sociais, gerando zonas de afetação em vários níveis sociais, envolvendo inclusive os
grandes produtores, que se encontram com os consumidores em novos fluxos. A terceira está
para além dos campos, uma vez que a própria organização social se faz tomando como
referência as lógicas e operações midiáticas; em outras palavras, a lógica midiática se torna
“uma referência engendradora no modo de ser da própria sociedade” (Fausto Neto, 2008b, p.
93).
Fica assim subentendida uma periodização, englobando pelo menos 30 anos. Outra
perspectiva é apresentada em 2006 por José Luiz Braga, que sobrepõe duas periodizações. A
primeira é uma espécie de sequência de três grandes referências interacionais: a oralidade, a
escrita e a midiatização, com esta ganhando primazia hoje. A segunda periodização é
especificamente midiática e distingue três etapas, num trajeto de autonomização: meios de
comunicação são criados para serem usados como instrumentos para atingir fins externos;
esses meios desenvolvem operações, métodos e estrutura visando objetivos próprios; e
atualmente os meios geram lógicas midiáticas inerentes que se autoalimentam. Ao longo
dessas fases que culminam na geração interna de lógicas midiáticas, emerge a midiatização
como um direcionador na construção da realidade social. O autor aponta, em termos gerais,
que essa virada se dá ao longo do século XX, como etapa posterior à consolidação da cultura
escrita na Europa da instauração burguesa (Braga, 2006, pp. 2-6).
5. Instauração do campo midiático
As mudanças que começam a ser concebidas na mídia ao longo dos anos 1990 até
meados de 2000 e que ensejam o termo midiatização também incitam a busca de um termo de
comparação que melhor expusesse a transformação midiática em andamento. Daí o resgate da
ideia de “campo dos média”, de Adriano Rodrigues, indiretamente confirmada pela
observação de Fausto Neto sobre o jornalismo como construtor de seus próprios postulados
dentro de “fronteiras internas” (Fausto Neto, 2010a, p. 5). Campo midiático e centralidade da
mídia são concepções afins que se distinguem da caracterização atual do processo midiático,
no qual já não se dá a “cessão de mediações pelos outros campos ao campo mediático”
(Braga, 2012a, p. 43).
Braga aborda o campo midiático a partir de Bourdieu e Rodrigues para entender os
campos sociais como marcados por uma autonomia relativa, manifesta na capacidade de
refração de demandas externas, e por uma coexistência mútua que coloca exigências de
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legitimidade e visibilidade entre eles. A mediação que cada campo exerce para se relacionar
com os demais se autonomiza e é delegada a um campo específico, o da mídia, que passa
então a executar a mediação geral daquela coexistência entre campos sociais. A legitimidade
do campo da mídia depende da qualidade dessa execução. Assim se daria “a instauração do
‘campo dos media’ na sociedade”, colocação “pertinente para o que se percebia ao final da
década dos 80” (ibidem, p. 42).
Fausto Neto também se apoia na caracterização do “campo dos médias” feita por
Rodrigues, que identifica protocolos comunicacionais organizados por um campo específico,
que assim ganha papel regulatório em relação aos demais campos. Essa tarefa organizadora e
reguladora é que concede à mídia uma relativa centralidade, enquanto campo mediador, um
ponto de articulação entre segmentos sociais, exercendo a uma espécie de superintendência
de outros campos (Fausto Neto, 2008b, pp. 90-91). Seriam assim traços típicos da sociedade
midiática o poder mediador da mídia e a sua capacidade de tematização pública e de
publicização do debate entre especialistas (Fausto Neto, 2006b, p. 7). Nessa etapa, o
jornalismo teria também essa função mediadora, realizada por “peritos”, traduzindo para
leigos as lógicas de outros campos (Fausto Neto, 2010c, p. 4). Essas formulações se alinham
à ideia de Giddens, de 1991, de meios de comunicação como tradutores de problemáticas
para os indivíduos, um trabalho mediador, construtor de elos de confiança e de segurança
(Fausto Neto, 2008b, p. 90).
Além disso, Fausto Neto recupera autores da etapa anterior para demarcar o estatuto do
jornalismo, que na fase atual está em transformação. Darnton demarca nos limites da cultura
jornalística as possibilidades de construção da notícia, enquanto Mouillaud pensa a produção
da notícia como uma matriz que impõe sentido aos textos. Ambos compartilham a noção de
“jornalismo como uma prática social regida por certos postulados internos à cultura dessa
matriz de produção de sentido” (Fausto Neto, 2007a, p. 80). São compreensões marcantes
sobre o jornalismo, afins aos traços acima atribuídos ao campo midiático.
6. Deslocamento do campo midiático
Observados alguns traços da etapa passada, podemos inicialmente encontrar a fase atual
do processo midiático a partir de três análises pontuais feitas por Fausto Neto (2006a; 2007a;
2012) a respeito de intervenções em fluxos midiáticos de três agentes: o Primeiro Comando
da Capital (PCC), um delegado da polícia federal e o Instituto Lula. Destes estudos podemos
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depreender quatro dinâmicas combinadas. Em primeiro lugar, destaca-se a apropriação de
saberes e instrumentos midiáticos e a execução de ações midiáticas por agentes que na etapa
anterior se reduziam a fontes ou objetos. Em segundo lugar, coloca-se uma variedade de
agentes que realizam a apropriação – de organizações a indivíduos. Esse leque indica uma
apropriação generalizada, o que por sua vez exige a consideração pelo fator da competência,
para além da mera apropriação. O terceiro fator é a alternância de posições entre produtor e
receptor, num conjunto de posições voláteis. Em quarto, encontra-se uma assimetria
reformulada entre diversos agentes e o campo midiático: a apropriação que aqueles acionam é
limitada, enquanto é alta a capacidade de reapropriação dos grandes veículos especializados,
dos quais dependem aqueles agentes não especializados – o delegado tateia na negociação
com jornalistas e comete a ingenuidade de não supor que está sendo gravado; o PCC tem
maior controle inicial, mas no segundo momento a mídia em bloco de volta contra ele, numa
grande operação de distração.
Não estou sugerindo que a etapa atual se reduza a estes termos. A alternância e o
deslocamento existem, mas articulados ao poderio midiático empresarial que exerce graves
limites ao deslocamento – mesmo sob a pressão do sequestro, a Globo edita o comunicado do
PCC. A volatilidade se impõe, sem ultrapassar a força de manejo dos agentes que possuem
capacidade de elaborar estratégia, que por definição não fica no curto prazo, ao passo que o
próprio planejamento deve se dobrar a oscilações. Em outras palavras, é um conjunto de
movimentos cuja qualidade resiste a sínteses.
Ainda assim, as forças atuantes podem ser decompostas. É de se destacar que
apropriações e alternâncias se combinam a novas inclinações ao controle e à centralização. O
reposicionamento do espectador pode ser entendido como uma espécie de cogestão de
conteúdos compondo um “suposto regime de simetrias” cujas regras de inclusão permanecem
no quadro estipulado pelos produtores (Fausto Neto, 2008b, p. 101). Num caso específico
estudado por Fausto Neto, a Folha de São Paulo se viu levada a destituir seu ombudsman,
cuja posição mediadora a própria empresa havia antes delegado diante do desconforto
causado pela ausência de avaliação, sistemas de respostas e regulação externa (Fausto Neto,
2008a). Existe aqui uma dinâmica combinada de apropriação e deslocamento, dependência e
reafirmação.
Segundo Antonio Fausto Neto, é um equívoco compreender essas relações a partir do
próprio campo midiático. Esta perspectiva é midiacêntrica, no sentido específico de que
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acusa “uma espécie de protagonismo midiático” (Fausto Neto, 2010a, p. 8). Braga está de
acordo: “resistimos à perspectiva de que a mediatização da sociedade seja simplesmente
decorrente da ‘ação dos meios’ ” (Braga, 2012a, p. 43). Para que essas características se
afirmem, concorrem iniciativas vindas de diversas instâncias sociais (ibidem, pp. 38-40), que
podem ser agrupadas em dois conjuntos. Um deles é composto por atores estratégicos, que
são as empresas e os Estados que disponibilizam e oferecem redes e ferramentas. Outro
conjunto envolve o terceiro setor, inúmeros participantes sociais mais ou menos organizados,
chegando até agentes individuais, que realizam experimentações com aquelas redes e
ferramentas, sem necessariamente seguir os protocolos planejados pelo primeiro grupo.
Temos assim dois movimentos que se combinam e expandem o espaço de interações e
enunciações midiáticas.
Sem que essa expansão anule os polos de produção e de recepção, passa a ganhar
ênfase a dimensão de circulação, contribuindo para que as relações entre aqueles polos, antes
reguladas pelos chamados contratos de leitura, ganhem o teor de “zonas de pregnâncias”,
entendidas como “novas zonas de produção de sentido” instauradas em dinâmicas de
desdobramentos, bifurcações e acoplamentos (Fausto Neto, 2010b, p. 93-94; 2010a, p. 63;
2007b). Essas ações obrigam a reposicionamentos imprevistos, uma vez que, a despeito de
intenções originais, daquelas iniciativas decorre a geração de uma “circulação em fluxo
contínuo”, resultado involuntário de ações deliberadas. Essa circulação gera reações por parte
dos atores, como o “contrafluxo de escuta”, que visa se antecipar ao fluxo sob a condição de
incorporá-lo (Braga, 2012a), que é ação deliberada internalizando plenamente a nova
dinâmica.
Em meio a novas relações sociais, o jornalismo é afetado de modo mais evidente pelo
“enfraquecimento do trabalho de exclusividade do ‘guardião do contato’, enquanto sua
principal atividade” (Fausto Neto, 2010a, p. 9). Aqui também há uma variedade de
imbricações. Instalam-se “zonas de contatos” nas quais outros campos, grupos e indivíduos
se apropriam dos meios jornalísticos (idem ibidem). Em certos casos, protocolos jornalísticos
“são impregnadas por outras enunciações”; eles também migram com equipes de
especialistas para outros campos sociais, que disputam com o jornalismo tradicional as
definições de notícia (Fausto Neto, 2010a, pp. 4-5).
Bernard Miège também indica um trajeto de consolidação de características midiáticas
que hoje estariam se deslocando – ou, nos termos do autor, estariam sendo declinadas. Miège
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delineia a mídia em etapas passadas, usando a categoria de modelo comunicacional, que pode
ser entendido como um conjunto de características midiáticas substanciais. Tomando como
eixo o que ele chama de imprensa generalista de massa e mídias audiovisuais de massa,
Miège atribui os seguintes componentes definidores à mídia: unicidade de dispositivos;
regularidade na emissão e recepção de conteúdos; modelo econômico diferenciado;
organização produtiva específica; programação, cuja dupla finalidade é forjar e consolar
espectadores (visando oferecê-los a anunciantes); estabilização de públicos (Miège, 2009a,
pp. 110 e 118-123). O termo declinação foi usado repetidas vezes por Miège em seu
seminário de 2012, no qual recebeu mais ênfase do que no livro de 2009: “como identificar e
ler as declinações atuais desses modelos”, perguntava o resumo da quinta conferência.
Tomando então os traços constitutivos dos modelos midiáticos anteriores, eles agora sofrem
uma inflexão, mudando de características mas ainda sendo reconhecíveis como traços
herdados da etapa anterior: a unicidade se combina aos dispositivos interligados que podem
oferecer o mesmo conteúdo, sem eliminar seus conteúdos próprios; a regularidade se
entrelaça ao ritmo imposto pelos consumidores a partir de suas práticas, mudando a
dependência do espectador em relação à programação, que não desaparece; a economia está
em plena reelaboração (ibidem: 142), naquilo que se costuma chamar de modelo de negócios,
objeto de alta polêmica entre executivos (e os acadêmicos que os acompanham); e a
organização específica produtora de programas convive com a concorrência de firmas de
indústrias de redes e de serviços informáticos, ou de novos participantes, como os start ups do
início dos 2000 (ibidem: 118), sofrendo alterações como por exemplo a integração de
redações jornalísticas. A declinação é um modo abstrato de organizar mudanças que na
verdade formam vertentes inesperadas e variadas. Assim, “o deslocamento das fronteiras
mediáticas constitui para eles [os meios estabelecidos] uma ameaça forte, os espectadores que
podem doravante se dividir frente a uma oferta extensa” (ibidem: 121).
7. Diferenciação midiática de segundo grau
Miège caracteriza a midiatização como uma das sete lógicas sociais de enraizamento. A
definição oferecida por Miège para a midiatização é a de interposição de dispositivos nas
relações entre diversos agentes sociais – indivíduos, grupos, organizações etc. Trata-se da
“multiplicação dos objetos e dispositivos se interpondo doravante entre os interlocutores nas
trocas sociais ou profissionais, e/ou daqueles que permitem difundir os programas
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informacionais e culturais” (ibidem: 14). A midiatização se coloca em relações profissionais,
privadas e públicas, podendo ser interna a grupos e organizações, ou se dirigir destes ao
público externo, disponibilizando conteúdos ou proporcionando interações (ibidem: 83; 100105). Miège concebe a midiatização num certo âmbito que vai de organizações a indivíduos.
Se retirarmos as TIC do centro das atenções e elegermos como foco o processo
midiático em sua relação com o processo social, a midiatização pode ser entendida como um
processo que se dá em dois âmbitos. Segundo José Luiz Braga, podemos diferenciar dois
níveis de midiatização, um no qual processos sociais específicos incorporam lógica midiática
e um outro em que a própria sociedade se midiatiza. No primeiro nível, ocorre a mediatização
de diversas instâncias sociais, como a política, o entretenimento, a aprendizagem etc. No
segundo, o processo midiático atinge a condição de processualidade interacional de
referência, isto é, de “direcionadores na construção da realidade social” (Braga, 2006, p. 2).
De acordo com essa ideia, Fausto Neto afirma que a cultura midiática deixa a posição
auxiliar, tornando-se uma “espécie de ‘sujeito’ dos processos e das dinâmicas de interação
social” (Fausto Neto, 2008b, p. 94) e passando a ser referência engendradora, como já vimos.
Esta não é a percepção de centralidade midiática, uma vez que a dinâmica midiática passa a
interferir na própria constituição social, transcendendo os meios de comunicação, o campo
midiático e o próprio âmbito das práticas institucionais que antes incorporaram as dinâmicas
midiáticas. “Já não se trata mais de reconhecer a centralidade dos meios na tarefa de
organização de processos interacionais entre os campos sociais (...) [a cultura da mídia] se
converte na referência sobre a qual a estrutura sóciotécnica-discursiva se estabelece” (ibidem,
pp. 92-93).
A meu ver, os artigos de Braga e Fausto Neto carregam uma hipótese geral, que pode
ser construída a partir do cruzamento das suas análises, a saber, está em andamento um
processo social específico, uma espécie de diferenciação midiática de segundo grau, distinta
daquela instauração como campo. A diferenciação aqui destacada compreende certos termos
fundamentais, que incorporam a centralidade do campo midiático e vão além. A instauração
do campo midiático pode ser entendida como um primeiro grau de diferenciação midiática,
no qual o campo midiático ganha a coesão que o distingue dos meios de comunicação que o
originam. A diferenciação de segundo grau se afirma como uma espécie de externalização da
dinâmica midiática em relação ao campo midiático e também ao âmbito geral dos campos
12
sociais. Esta dinâmica passa a atuar em conjunto com forças amplas de constituição da
sociedade.
8. Processo midiático e ilegitimidade social
Se é pertinente a ideia de internalização de forças sociais externas, é plausível a
existência de uma dimensão social implícita no processo midiático. Assim como o social se
introjeta na técnica, segundo Miège, podemos aventar a hipótese de que uma sondagem da
dinâmica social pode ser executada a partir da análise de fatores internos à dinâmica
midiática. Trata-se de buscar o todo dentro da parte – uma espécie de desentranhamento
invertido, em relação ao que propõe Braga (2010).
Essa inversão pode ser esboçada tratando de modo combinado duas partes do artigo de
Braga de 2006 que nele se encontram separadas: os ângulos de prospecção e os processos
lacunares. Um trecho do texto aborda oito características ou marcas especiais da
midiatização, na intenção de apresentar perspectivas para pesquisa de particularidades desse
processo. Em seguida, Braga estuda seis tópicos de requisitos não atendidos “cobrados por
sua própria lógica [a da midiatização] enquanto processo interacional” (Braga, 2006, p. 14).
O deslocamento de campos pode ser reencontrado dentro do campo midiático em três
traços constitutivos analisados por Braga: a descontextualização, o enquadramento de
diferentes contextos e a tradução de padrões especializados (ibidem, p. 10-14). Estas são
características da midiatização que exprimem a capacidade de reenquadramento de práticas,
conteúdos e lógicas de outros campos sociais em termos midiáticos próprios. Eles podem ser
entendidos como fatores internos ao midiático do “vasto processo de rearranjo e construção
de campos” (ibidem, p. 18). Em outras palavras, a relação externa que aparece como
rearranjo ou deslocamento de campos é também um conjunto de fatores internos ao campo
midiático. O deslocamento que o campo midiático impôs aos demais ao se instaurar é parte
anterior do mesmo processo geral que atualmente faz o campo midiático ser deslocado ou
declinado por sua vez, dentro de uma dinâmica em que o conjunto dos campos parece ser
marcado por indefinições e instabilidade.
O rearranjo de campos implica o problema geral da legitimidade, que também se
manifesta como articulações mal sedimentadas entre mídia, escrita e oralidade (ibidem, pp.
20-21). São tendências gerais que se especificam como o problema da credibilidade para
grandes
veículos
jornalísticos
e o das
experimentações
para
participantes
não
13
profissionalizados, como as apropriações, redirecionamentos e desencontros inseridos em
processos mais inclusivos e penetrantes, nos termos de Braga (ibidem, p. 21).
Em relação ao caráter diferido e difuso da midiatização, é possível entender que ele se
construiu concretamente entrelaçado ao grau específico de preparação exigido pelas
interações midiáticas, dispensando “longas formações” (ibidem, p. 22). Em outras palavras, a
variedade, a abrangência e a incidência do processo midiático encontra afinidade com as
competências midiáticas existentes, que por sua vez se mostram insuficientes quando se
confrontam com parâmetros de complexidade interpretativa (ibidem, p. 21). A obstrução
desta complexidade pode ser entendida como compensação aos questionamentos à autoridade
potencializados pelo deslocamento de campos. Assim, é eficaz para a manutenção do
processo que a interatividade se reduza a interações pontuais diretas que puxam o usuário
para o hiperfluxo (ibidem, p. 11), pois assim ela serve como contrapeso importante à
ilegitimidade geral e seus correlatos midiáticos (obstáculos à inteligibilidade e mudança de
padrão de credibilidade jornalística).
Existem assim ângulos que permitem perceber a incompletude como fator social
internalizado no processo midiático, que colabora com a sustentação tanto do processo
midiático quanto do processo social, cuja ilegitimidade de fundo não redunda
necessariamente em ameaça aos fundamentos do processo nem pede correções substanciais,
dados os contrapesos e compensações oferecidas. Isso pode indicar que características e
lacunas se alimentam mutuamente num conjunto relativamente coerente. A aceleração e
ampliação do processo midiático, assim como seu caráter diferido e difuso, podem ser assim
entendidas como progresso em sentido conservador.
9. Observações finais
Partindo de uma avaliação ampla dos ângulos problemáticos que compõem a pesquisa
em comunicação e daí destacando os problemas do triplo isolamento e da exterioridade, é
possível explicitar a questão não resolvida do vínculo entre parte e todo, como primeiro traço
substancial aqui elencado.
A polêmica sobre demarcação de campo e recorte de objeto impele a ênfase de Fausto
Neto e de Braga no caráter processual da mídia, que por si mesma não passaria de fenômeno.
Esse raciocínio foi aqui tomado como orientação para traduzir aquela relação entre parte e
todo em termos de processo midiático e processo social, respectivamente. Demandado pelo
14
próprio diagnóstico do campo de pesquisa, o termo “processo midiático” se coloca como
baliza geral para a extração dos demais traços substantivos.
A frequente comparação entre as mudanças atuais do processo e a etapa passada impõe
a concepção de uma passagem entre dois períodos. Além de colocar a exigência de
perspectiva histórica e atenuar a forte inclinação das pesquisas para a análise de curto prazo,
a caracterização desta transição também pode contribuir para colocar em questão uma
travessia que normalmente é tida como dada, como um resultado natural de avanços
econômicos e tecnológicos.
A distinção entre instauração e deslocamento dá corpo aos períodos antes aventados e
sua caracterização oferece outras dinâmicas consistentes para a composição do quadro. Os
traços substantivos aqui são variados, mas se agregam em torno da noção de deslocamento ou
declinação, que por sua vez pondera percepções precipitadas sobre a ruptura da mídia atual
em relação a seu passado.
A noção de passagem já indicava o processo midiático se dinamizando em duas trilhas:
de um lado, atravessando campos, numa dinâmica que desloca o campo midiático; de outro
lado, superando o campo midiático que lhe deu origem e atuando num grau superior aos
campos, incidindo sobre dinâmicas mais profundas do processo social. Nesse sentido, a
distinção entre dois âmbitos da midiatização é traço substancial, do qual decorre a orientação
de que se persiga fenômenos e concepções que considerem e ao mesmo tempo superem o
âmbito dos campos, dos atores estratégicos e das práticas de usuários.
Por fim, a combinação entre características e incompletudes pode ser uma chance de
reencontrar o social dentro do midiático e avaliar aspectos do andamento geral da sociedade a
partir do estudo propriamente midiático.
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