Volume 3, Número 3, Ano 3, Setembro 2010 Revista Pesquisa em Foco: Educação e Filosofia ISSN 1983-3946 A EPISTEMOLOGIA HISTÓRICA DE GASTON BACHELARD Raimundo Nonato Araujo Portela Filho RESUMO: Abordagem da epistemologia histórica de Gaston Bachelard. Para compreender o seu projeto epistemológico é preciso que se situe o seu pensamento no contexto histórico em que se constroem as ciências atualmente. A sua obra epistemológica está marcada por uma reflexão sobre as filosofias implícitas nas práticas efetivas dos cientistas, de modo que ele considera que o filósofo deve ser contemporâneo à ciência de sua época, que o empirismo de tradição baconiana assim como o racionalismo idealista não podem dar conta da prática científica real e efetiva, além de a ciência ser essencialmente um fato histórico. Palavras-chave: Gaston Bachelard. Epistemologia Histórica. Filosofia Francesa. ABSTRACT: Approach of Gaston Bachelard‟s historical epistemology. In order to understand his epistemological project it is necessary to situate his thinking in the historical context in which sciences are nowadays constructed. His epistemological work is marked by a reflexion about implicit philosophies in effective practice of scientists so that he considers philosopher must be contemporary to the science of his time, empiricism of baconian tradition as well as idealist rationalism are not able to deal with real and effective scientific practice, besides science to be essentially a historical fact. Key words: Gaston Bachelard. Historical Epistemology. French Philosophy Este artigo foi apresentado como Comunicação Oral no Colóquio Internacional de Filosofia Francesa e Cultura, Mesa Temática Filosofia Francesa e Racionalidade Científica, no dia 24.09.2009, em São Luís-MA. Professor Mestre, Adjunto, do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), tendo como principais áreas de interesse: Epistemologia, Filosofia da Ciência, Lógica, Filosofia da Linguagem e Filosofia da Mente. 101 Volume 3, Número 3, Ano 3, Setembro 2010 Revista Pesquisa em Foco: Educação e Filosofia ISSN 1983-3946 1 INTRODUÇÃO A obra do filósofo, epistemólogo e historiador das ciências francês Gaston Bachelard (1884-1962) possui uma dupla vertente: uma científica e uma poética. Aborda-se neste trabalho somente sua contribuição à primeira vertente. Para compreender o seu projeto epistemológico, é preciso que se situe o seu pensamento no contexto histórico em que se constroem as ciências a partir do século XX. A sua obra epistemológica está marcada por uma reflexão sobre as filosofias implícitas nas práticas efetivas dos cientistas. Bachelard dizia constantemente, em seus cursos na Sorbonne, que a epistemologia consistia, no fundo, na história da ciência como ela deveria ser feita. Ele queria dizer com isso que toda reflexão efetiva, capaz de estabelecer o verdadeiro estatuto das ciências formais ou abstratas (lógica e matemática) e das ciências empíricas (ciências naturais e sociais), deve ser necessariamente histórica. Todavia, para que esta história possa fornecer uma autêntica inteligibilidade, é imprescindível que seja regressiva, isto é, para compreender-se uma ciência do passado, deve-se ir do presente para o passado. Bachelard não queria construir uma epistemologia a priori, dogmática, impondo autoritariamente dogmas aos cientistas. Neste sentido, opõe-se ao positivismo, doutrina fundada pelo filósofo francês Augusto Comte (1798-1857), sobretudo quando este pretendeu coordenar as diversas ciências e apontar-lhes os caminhos definitivos a seguir. Para Bachelard, as ciências nascem e evoluem em circunstâncias históricas bem determinadas. Por isso, a epistemologia deverá interrogar-se sobre as relações suscetíveis de existir entre a ciência e a sociedade, entre a ciência e as diversas instituições científicas ou entre as várias ciências.O relevante é a descoberta da gênese, estrutura e funcionamento dos conhecimentos científicos. Daí a importância de questões, tais como: devem as ciências impor-se por si mesmas? Devem afirmar clara e triunfalmente seus resultados? São elas as verdades das sociedades atuais? Que necessidade temos de nos interrogar sobre a sua significação? Se tais questões são atualmente válidas é porque o positivismo do século XIX as considerava desnecessárias. Este concebia as ciências, em sua forma e em seu conteúdo, como constituindo a própria verdade. Elas não poderiam ser julgadas, pois justificavam-se a si mesmas. 102 Volume 3, Número 3, Ano 3, Setembro 2010 Revista Pesquisa em Foco: Educação e Filosofia ISSN 1983-3946 Note-se que a doutrina positivista de Augusto Comte teve profunda influência na ciência ulterior. Ela é retomada frequentemente sob novas formas. Pode ser expressa de um ponto de vista filosófico, pela confiança exacerbada que a sociedade industrial teve na ciência experimental. Ainda que pretenda negar toda a filosofia, a doutrina positivista elabora uma filosofia da ciência cujos princípios podem ser sintetizados nas seguintes assertivas: a) as únicas verdades a que podemos e devemos nos referir são as proposições das ciências experimentais, que são verdades claras, unívocas e imutáveis; b) todo e qualquer outro tipo de proposição deve ser abandonado como sendo filosófico ou teológico; c) a função das ciências experimentais não é a de explicar os fenômenos, mas sim a de prevê-los para dominá-los; o que importa não é saber o porquê, porém o como das ciências; d) o aparecimento da ciência esboçaria, para a humanidade, um mundo inteiramente novo, possibilitando-lhe viver na “ordem” e no “progresso”. Por conseguinte, segundo Comte, o papel da filosofia ficaria reduzido a uma função de síntese vulgarizadora e de pregação moral. No entanto, não tardou a serem mostradas as limitações filosóficas do positivismo. A primeira reação foi a das teorias espiritualistas, que tentaram estabelecer um modus vivendi: a filosofia admitia a validade da atividade científica como conhecimento e como dominação da natureza. Contudo, a filosofia se reservaria outra parte, considerada muito mais nobre, que seria a determinação dos fins em função do conhecimento bem mais profundo que ela pretendeu fornecer da natureza humana e da espiritualidade real. 2 A CONTRIBUIÇÃO BACHELARDIANA À EPISTEMOLOGIA No entender de Bachelard, a epistemologia emergiu como produto da ciência, criticando-se a si mesma, de modo que a verdadeira questão diz respeito, para ele, à força e aos poderes da ação racionalista. Conforme Bachelard, não é contemplando, mas construindo, criando, produzindo, retificando, que o espírito chega à verdade. É por retificações contínuas, por críticas, por polêmicas, que a Razão descobre e faz a verdade. Para a Ciência, o verdadeiro é o retificado, aquilo que foi tornado verdadeiro por ela, aquilo que foi constituído segundo um procedimento de autoconstituição. É por isso que a racionalidade científica só pode ser regional e é por um lento processo de integração, pontilhado pelas revoluções científicas, que se constitui o império da Razão. 103 Volume 3, Número 3, Ano 3, Setembro 2010 Revista Pesquisa em Foco: Educação e Filosofia ISSN 1983-3946 O conhecimento, ao deixar de ser contemplativo, torna-se operativo. Ele é uma operação. A ciência cria seus objetos próprios pela destruição dos objetos da percepção comum, pela destruição dos conhecimentos imediatos. E a ciência é eficaz porque é ação. Devemos passar pela ciência para agirmos sobre o mundo e transformá-lo. O progresso do espírito científico se efetiva por rupturas com o senso comum, com as opiniões primeiras, com os pré-conceitos, com as pré- noções, com os pré-juízos de nossa filosofia espontânea. A ciência é intervencionista. Ela deve então ser realizada numa comunidade de pesquisas e de críticas, para não se tornar totalitária. Neste sentido, Bachelard substitui o Cogito cartesiano por um Cogitamus. Com a sua obra “Ensaio sobre o Conhecimento Aproximado” , tradução brasileira de 2004, Bachelard funda a epistemologia como “ciência” respeitada, através do estudo sistemático do modo como os conceitos de “verdade” e de “realidade” deveriam receber um sentido novo. Ele propõe uma dialética do não. Nesta, a negatividade identifica-se com o movimento de generalização reorganizadora do saber, por intermédio da qual as contradições são superadas como ilusões de oposição. Entretanto, a ilusão de oposição conceitual é um conflito real na prática histórica dos cientistas. A verdade é o resultado da negação mútua de opiniões num conflito entre os produtores de idéias, não uma qualidade que pertenceria a esta ou àquela opinião em particular. O traço característico da epistemologia bachelardiana consiste em ser ela polêmica. O princípio dessa polêmica deve ser buscado nos contratempos e dificuldades pelos quais passa a história das ciências. Seu objetivo principal é a reformulação do saber científico e a reforma das noções filosóficas. Ao dar-se por objeto, o conhecimento em seu movimento, em seu devir, a epistemologia se interessa pela lógica da descoberta científica da verdade como polêmica contra o erro e como esforço para submeter a uma retificação permanente as verdades aproximadas da ciência e os métodos que ela usa. Dito de outro modo, uma disciplina que toma o conhecimento científico como objeto de inquirição, deve levar em consideração a historicidade desse objeto. Além disso, a epistemologia deverá voltar-se não mais à natureza e ao valor do conhecimento, à ciência feita, realizada e tida como verdadeira, da qual se deveria 104 Volume 3, Número 3, Ano 3, Setembro 2010 Revista Pesquisa em Foco: Educação e Filosofia ISSN 1983-3946 somente descobrir as condições de possibilidade, de coerência ou a sua legitimidade, porém às ciências em vias de se construírem e em suas condições reais de crescimento. A filosofia, enquanto admite uma teoria do conhecimento, deve definir-se por seu lugar em relação ao conhecimento científico. Bachelard critica as filosofias que utilizaram certos conceitos, tais como realidade, espaço, tempo, como se as ciências nada tivessem dito sobre eles. Por outro lado, ele nota que a filosofia , quando toma a ciência por objeto, visa uma ciência ideal, muito diversa das que existem efetivamente. A essência da filosofia só pode ser determinada do ponto de vista do eixo, isto é, de um ponto de vista não-filosófico, ou seja, é o eixo que dá à filosofia um conteúdo e determina a sua natureza. A obra bachelardiana encontra-se no contexto da revolução científica promovida no início do século XX pela física quântica bem como pela teoria da relatividade formulada pelo físico alemão Albert Einstein. O seu trabalho acadêmico procurou estudar o significado epistemológico desta ciência então nascente, buscando fornecer-lhe uma filosofia compatível com a sua novidade. Segundo Bachelard: Várias vezes, nos diferentes trabalhos consagrados ao espírito científico, nós tentamos chamar a atenção dos filósofos para o caráter decididamente específico do pensamento e do trabalho da ciência moderna. Pareceu-nos cada vez mais evidente, no decorrer dos nossos estudos, que o espírito científico contemporâneo não podia ser colocado em continuidade com o simples bom senso.1 Com efeito, o novo espírito científico acha-se em descontinuidade, em ruptura com o senso comum, o que aponta para uma distinção, na nova ciência, entre o universo no qual se localizam as opiniões, os preconceitos, o senso comum e o universo das ciências, algo imperceptível nas ciências anteriores, fundamentadas geralmente nos limites do empirismo, em que a ciência representava uma continuidade com o senso comum do ponto de vista epistemológico. A ruptura epistemológica entre a ciência contemporânea e o senso comum é um traço característico da teoria bachelardiana. Ocorre também o mesmo no âmbito da história das ciências, de acordo com Bachelard. Para ele, o conhecimento não pode ser avaliado em termos de acúmulos ao longo da história, mas de rupturas, de retificações , num processo dialético em que o conhecimento científico é construído através da constante análise dos erros anteriores. Conforma suas palavras: 1 BACHELARD, Gaston. Conhecimento comum e conhecimento científico. Tempo Brasileiro . São Paulo, n.28, p.27, jan./mar. 1972. 105 Volume 3, Número 3, Ano 3, Setembro 2010 Revista Pesquisa em Foco: Educação e Filosofia ISSN 1983-3946 O espírito científico é essencialmente uma rectificação do saber, um alargamento dos quadros do conhecimento. Julga o seu passado condenando-o. A sua estrutura é a consciência dos seus erros históricos. Cientificamente, pensa-se o verdadeiro como rectificação histórica de um longo erro, pensa-se a experiência como rectificação da ilusão comum e primeira. Uma das maiores disputas de Bachelard foi com os defensores do continuísmo, isto é, com aqueles que propugnavam que a ciência é um prolongamento do senso comum, havendo somente uma diferença de profundidade e, consequentemente, continuidade epistemológica, sendo um defensor desta idéia o filósofo francês Émile Meyerson (18591933). Para este, que sustenta uma ontologia realista da ciência, a explicação científica confirmaria um sistema racional prévio e imutável acerca da realidade e esta estaria determinada por relações causais. No entanto, segundo Bachelard, a filosofia das ciências deve progredir em consonância com os avanços das ciências, com os resultados gerais do pensamento científico, que é um pensamento inconcluso, provisório, precário e aberto. Bachelard opõe às ontologias realistas, simplistas, uma teoria do conhecimento aproximado. O real é constituído para o cientista por intermédio de retificações, que formam redes de aproximações cada vez mais precisas. A tarefa ou função da filosofia das ciências é interagir com a realidade mediante retificações e aproximações, ou seja, empreender constantemente revisões e ajustes em suas concepções. No entender de Bachelard, a superação do empirismo ocorre através do racionalismo. Na nova ciência o cientista aproxima-se do objeto não mais através de métodos baseados nos sentidos, mas aproxima-se por meio da teoria. Isto quer dizer que o método científico já não é direto, imediato, porém indireto, mediado pela razão. O vetor epistemológico segue do racional para o real, contrariamente à epistemologia até então prevalecente na história das ciências. De acordo com Bachelard: Entre o conhecimento comum e o conhecimento científico a ruptura nos parece tão nítida que estes dois tipos de conhecimento não poderiam ter a mesma filosofia. O empirismo é a filosofia que convém ao conhecimento comum. O empirismo encontra aí sua raiz, suas provas, seu desenvolvimento. Ao contrário, o conhecimento científico é solidário com o racionalismo e, quer se queira ou não, o racionalismo está ligado à ciência, o racionalismo reclama fins científicos. Pela atividade científica, o racionalismo conhece uma atividade dialética que prescreve uma extensão constante dos métodos. Id. O novo espírito científico. Lisboa: Edições 70, 1996a. p.120. Id. Conhecimento comum e conhecimento científico. Tempo Brasileiro. São Paulo, n.28, p.45, jan./mar.1972. 106 Volume 3, Número 3, Ano 3, Setembro 2010 Revista Pesquisa em Foco: Educação e Filosofia ISSN 1983-3946 O racionalismo bachelardiano possui uma preocupação constante com a aplicação. O racionalismo aplicado é uma marca distintiva do novo espírito científico, atua na dialética entre a experiência e a teoria. “Impõe-se hoje situar-se no centro em que o espírito cognoscente é determinado pelo objeto preciso do seu conhecimento e onde, em contrapartida, ele determina com mais rigor sua experiência.” Um outro aspecto relevante para a compreensão da epistemologia bachelardiana é a sua noção de obstáculo epistemológico. A este respeito argumenta Bachelard: Quando se procuram as condições psicológicas do progresso da ciência, logo se chega à convicção de que é em termos de obstáculos que o problema do conhecimento científico deve ser colocado. E não se trata de considerar obstáculos externos, como a complexidade e a fugacidade dos fenômenos, nem de incriminar a fragilidade dos sentidos e do espírito humano: é no âmago do próprio ato de conhecer que aparecem, por uma espécie de imperativo funcional, lentidões e conflitos. É aí que mostraremos causas de estagnação e até de regressão, detectaremos causas de inércia às quais daremos o nome de obstáculos epistemológicos O conhecimento do real é luz que sempre projeta algumas sombras. Nunca é imediato e pleno. O real nunca é „o que se poderia achar‟ mas é sempre o que se deveria ter pensado. [...] No fundo, o ato de conhecer dá-se contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal estabelecidos, superando o que, no próprio espírito , é obstáculo à espiritualização.5 A noção de obstáculo epistemológico é bastante relevante para o desenvolvimento do conhecimento no âmbito das pesquisas, pois é na superação desses obstáculos que reside o êxito de uma pesquisa científica. Entretanto, condição necessária para a superação dos obstáculos é a consciência por parte dos cientistas de que eles existem e que, se não forem sobrepujados, podem comprometer todo um processo de pesquisa. Na perspectiva bachelardiana deve ser abandonada qualquer filosofia que coloque seus princípios como intangíveis e que afirme suas verdades primeiras como totais e definitivas. O filósofo não pode ser o homem de uma única doutrina: idealista, racionalista ou positivista, visto que a ciência moderna não se deixa enquadrar numa doutrina exclusiva. Bachelard quer dar à filosofia a oportunidade de tornar-se contemporânea das ciências, já que a determinação específica da filosofia deve definir-se por sua relação com as ciências. A filosofia se define nesta e por esta intervenção, buscando descobrir as condições reais e históricas da produção dos conhecimentos científicos. 5 Id. O racionalismo aplicado. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. p.109. Id. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996b. p. 17. 107 Volume 3, Número 3, Ano 3, Setembro 2010 Revista Pesquisa em Foco: Educação e Filosofia ISSN 1983-3946 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Bachelard alicerçou a sua epistemologia numa epistemologia não-cartesiana, que rejeita a asserção de Descartes (1596-1650), segundo a qual o conhecimento deve estar baseado em intuições das primeiras verdades firmemente estabelecidas. No entender de Bachelard, todas as afirmações do conhecimento estão sujeitas a revisão à luz de evidências posteriores. Ele rejeita, outrossim, o realismo ingênuo que define a realidade em termos de dados da experiência comum dos sentidos, ignora as construções ontológicas dos conceitos científicos e a instrumentação. Argumenta Bachelard que a negação desta espécie de realismo não acarreta a aceitação do idealismo, que torna real somente o real mental. Em vez disso, defende um racionalismo aplicado, que reconheça o papel ativo da razão na constituição dos objetos do conhecimento, embora admitindo que todo ato constitutivo da razão deva ser direcionado para um objeto antecedentemente dado. Bachelard é frequentemente incompreendido, aplicando-se-lhe interpretações redutoras. Desse modo, se o chamam de idealista, porque ele aborda a ciência por intermédio de métodos físico-matemáticos, devemos responder: idealismo discursivo, isto é, elaborado, construído e não triunfante, sem conhecer obstáculos. Por outro lado, se o chamam de materialista, porque ele valoriza as experiências de laboratório, devemos responder: materialismo racional, ou seja, construído , não ingênuo, que não recebe passivamente sua matéria, mas que se dá a sua matéria, que a constrói. A ênfase colocada por Bachelard na descontinuidade das mudanças científicas antecipou notavelmente a abordagem do historiador e filósofo da ciência norte-americano Thomas Samuel Kuhn (1922-1996), muitos anos mais tarde, no paradigma de mudança revolucionária ou revolução científica.6 No entanto, diferentemente de Kuhn, Bachelard se manteve fiel a uma sólida noção de progresso científico por meio de descontinuidades revolucionárias. Apesar de cada estrutura científica rejeitar suas predecessoras como sendo fundamentalmente errôneas, as estruturas mais antigas podem incorporar permanentes realizações, que serão preservadas 6 Cf. KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. 8.ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. 108 Volume 3, Número 3, Ano 3, Setembro 2010 Revista Pesquisa em Foco: Educação e Filosofia ISSN 1983-3946 como casos especiais em estruturas subseqüentes. Com efeito, as leis de Newton sobre o movimento, por exemplo, são casos-limite especiais da teoria da relatividade. Bachelard exerceu enorme impacto sobre várias gerações de estudantes de filosofia franceses. Sua epistemologia forneceu relevante alternativa para as correntes filosóficas mais conhecidas e mais na moda na França, a fenomenologia e o existencialismo, tendo exercido influência maior sobre os filósofos franceses Louis Althusser (1918-1990) e Michel Foucault (1926-1984).7 Pierre Jacob8 sustenta que os herdeiros de Bachelard em matéria epistemológica retiveram basicamente as quatro teses seguintes: 1 os instrumentos científicos são teorias materializadas e, portanto, toda teoria é uma prática; 2 todo estudo epistemológico deve ser histórico; 3 há uma dupla descontinuidade: a que ocorre entre o senso comum e as teorias científicas, assim como entre as teorias científicas que se sucedem ao longo da história; 4 nenhuma filosofia tradicional, tomada individualmente ( nem o empirismo, nem o racionalismo, nem o materialismo,nem o idealismo) é capaz de descrever adequadamente as teorias da física moderna. Este é o polifilosofismo ou a filosofia do não. REFERÊNCIAS AUDI, Robert. Dicionário de filosofia de Cambridge. São Paulo: Paulus, 2006. BACHELARD, Gaston. Conhecimento comum e conhecimento científico. Tempo Brasileiro. São Paulo, n.28, jan./mar. 1972. ______. O racionalismo aplicado. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. ______. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996b. ______. O novo espírito científico. Lisboa: Edições 70, 1996a . ______. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. JACOB, Pierre. De Vienne à Cambridge. Paris: Gallimard, 1980. KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. 8.ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. 7 A respeito da influência bachelardiana em filósofos tais como Althusser e Foucault cf., por exemplo, o verbete Bachelard em AUDI, Robert. Dicionário de Filosofia de Cambridge. São Paulo: Paulus, 2006. 8 Cf. JACOB, Pierre. De Vienne à Cambridge. Paris, Gallimard, 1980. 109