A SÚMULA VINCULANTE NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO1 Cinthia Emilia Passos2 Débora Carvalho Fioratto3 SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 2 – AS SÚMULAS NO DIREITO BRASILEIRO; 3 – PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E A LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA; 4 – A INDEPENDÊNCIA DOS MAGISTRADOS; 5 – A GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS; 6 – O EXCESSO DE PROCESSOS NO JUDICIÁRIO; 7 – CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. RESUMO A súmula vinculante, introduzida pela Emenda Constitucional nº. 45 de 2004 no ordenamento jurídico brasileiro, é tema de profundas discussões doutrinárias em relação à eficácia de seu efeito vinculante para a superação da “crise do Poder Judiciário” no Estado Democrático de Direito. Tendo como marco teórico os direitos e garantias constitucionais conquistados e positivados na Constituição Federal de 1988, desenvolvemos nosso trabalho através de uma análise crítica direcionada ao efeito vinculante da súmula e a possível violação de princípios, direitos e garantias constitucionais,_como o princípio da separação de poderes, da democracia, da independência dos magistrados, do devido processo legal, da celeridade processual; como o direito à jurisdição, à ampla defesa e ao contraditório_ quando da sua aplicação. PALAVRAS CHAVES: SÚMULA VINCULANTE; EMENDA CONSTITUCIONAL 45/2004; ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. 1 Artigo orientado pelo Prof. Dr. José Luiz Quadros de Magalhães. 2 Estudante de Direito da Puc – Minas, membro do grupo de estudos de pesquisa em direito constitucional da Professora Cármen Lúcia Antunes Rocha, e com trabalhos de análise desenvolvidos no ambiente empresarial sobre a LGT (Lei Geral de Telecomunicações). Estudante de Direito da Puc – Minas, membro do grupo de estudos de pesquisa em direito constitucional da Professora Cármen Lúcia Antunes Rocha e membro do grupo de estudos de pesquisa em direito processual da Professora Flaviane de Magalhães Barros, estudante de Letras da UFMG, membro fundadora do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Seccional Minas Gerais. 3 THE BRAZILIAN STARE DECISIS IN A STATE OF LAW ABSTRACT The Brazilian Stare Decisis was introduced by the Constitutional amendment nº45, in 2004. It has been arising hard doctrine discussions about how effective its vinculative effect can be to overcome the crisis of our judicial power, as we live in a State of Law. We lean on the constitutional rights and enactments conquered and disposed in our Federal Constitution in 1988. From this, we developed our work through a critical analysis on how effective can be the Stare Decisis effect and if it is possible that this can be a tool against constitutional principles, rights and also constitutional enactments_ such as the separation of powers principle (legislative, executive and judicial), democracy , judges independence, due process of law, processual celerity; the right to reach the judicial power, the right to always defend yourself, and, the last, but not least, the right to contradict your opponent_ whenever it is applicable. KEY WORDS: STARE DECISIS; CONSTITUTIONAL AMENDMENT 45/2004; STATE OF LAW. INTRODUÇÃO “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito”, que tem como fundamento precípuo a dignidade da pessoa humana. Nas palavras de José Afonso da Silva, sobre a caracterização do Estado Democrático de Direito: A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos (art. 1º, parágrafo único); participativa, porque envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos de governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de idéias, culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses diferentes da sociedade; há de ser um processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício. [...] O princípio da legalidade é também um princípio basilar do Estado Democrático de Direito. É da essência do seu conceito subordinar-se à Constituição e fundar-se na legalidade democrática. Sujeita-se, como todo Estado de Direito, ao império da lei, mas da lei que realize o princípio da igualdade e da justiça não pela sua generalidade, mas pela busca da igualização das condições dos socialmente desiguais. (SILVA, 2005, p. 119, 120 e 121) O Estado Democrático de Direito consagra como direitos e garantias constitucionais, dentre outros, o acesso à justiça; a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação; o devido processo legal; o contraditório e a ampla defesa. O direito à jurisdição se desenvolve em três momentos: primeiramente, deve-se existir a possibilidade de se ter o acesso à justiça, ou seja, de se ter seu caso reconhecido; em um segundo momento deve-se haver a eficácia da resposta, ou seja, a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação e a existência de um devido processo legal; e finalmente, a efetividade da decisão, qual seja, o seu cumprimento. Segundo Fazzalari, processo “é um procedimento do qual participam (são habilitados a participar) aqueles em cuja esfera jurídica o ato final é destinado a desenvolver efeitos: em contraditório, e de modo que o autor não possa obliterar as suas atividades” (FAZZALARI, 2006, p. 118 e 119). E acrescenta que: A legitimação para agir no processo se baseia no provimento jurisdicional que se originará do referido processo, e, por conseqüência, é com base no provimento jurisdicional que se define quem serão as partes no processo, pois são elas as responsáveis pela realização dos atos relativos à garantia do contraditório. Assim, para se definir quem serão as partes em um processo, em concreto, deve-se analisar o provimento jurisdicional requerido e os sujeitos que serão afetados pelo respectivo provimento. (FAZZALARI apud PELLEGRINI, 2003) O devido processo legal, garantido constitucionalmente, é uma base principiológica, _ um esquema mínimo, unitário, presente em qualquer processo _ na qual o processo se desenvolverá. Nessa base principiológica, se encontra o princípio do contraditório, da ampla defesa e da fundamentação das decisões. Fazzalari citado por Gonçalves explicita o que se entende por contraditório. “O contraditório é a igualdade de oportunidade no processo, é a igual oportunidade de igual tratamento, que se funda na liberdade de todos perante a lei” (FAZZALARI apud GONÇALVES, 2001, p.127). A ampla defesa é a ampla argumentação realizada pelas partes afetadas pela decisão, de produzir provas necessárias a sua defesa. A fundamentação das decisões proferidas é a garantia de que o processo se realizou nos moldes prescritos pela Constituição Federal. Não obstante, a positivação dos direitos e garantias constitucionais, pela Constituição Federal, não foi suficiente para a efetivação do acesso à justiça. Logo, era notável a necessidade de uma reforma do Poder Judiciário. Essa reforma veio com a Emenda Constitucional n. 45, de 08.12.2004, publicada em 31.12.2004, que teve como uma das alterações, a instituição da súmula vinculante. Como estabelece o art. 103-A: Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. § 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. § 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade. § 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso. A súmula vinculante foi introduzida com o intuito de dar maior celeridade aos processos, desafogando o Poder Judiciário e garantindo ao povo a tão almejada “justiça”. Entretanto, ela enfrenta profundas discussões doutrinárias quanto à sua real eficácia na solução célere dos processos e quanto à sua possível violação de direitos, princípios e garantias constitucionais no Estado Democrático de Direito. Conforme expõe Streck: Com o passar dos anos, transitou em julgado a tese de que a solução para os problemas da justiça brasileira passa, necessariamente, pela adoção do efeito vinculante das súmulas do Supremo Tribunal Federal. Esquece-se com isto, que o problema da efetividade das decisões judiciais e da assim denominada morosidade da justiça não serão resolvidos mediante um ataque à funcionalidade do ordenamento ou do sistema, mas, sim, a partir de uma profunda mudança na estrutura do Poder Judiciário e das demais instituições encarregadas de aplicar a justiça, além da superação do paradigma epistemológico da filosofia da consciência, que pré-domina o imaginário dos juristas. (STRECK, 2005, p. 102 e 103) Logo, diante do exposto, mister se faz um estudo aprofundado sobre a súmula vinculante, e a conseqüência de seus efeitos no Estado Democrático de Direito, instituída pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004. 2. AS SÚMULAS NO DIREITO BRASILEIRO A Proposta de Emenda à Constituição nº. 45 de 2004, depois de aprovada pela Câmara e pelo Senado, tendo como função precípua a “Reforma do Poder Judiciário”, instituiu a súmula com efeito vinculante no ordenamento jurídico brasileiro, como uma forma de efetivar o direito à jurisdição, garantido constitucionalmente. O direito está em constante mutação e deve sempre germinar a idéia de justiça que tenha o povo em um determinado momento histórico. Coulanges expõe que: Não está na natureza do direito ser absoluto e imutável. O direito modificase e evolui, como qualquer obra humana. Cada sociedade tem seu direito, com ela se formando e se desenvolvendo, com ela se transformando e, enfim, com ela seguindo sempre a evolução de suas instituições, de seus costumes e de suas crenças. (COULANGES apud SILVA, 1998, p. 17) O povo sempre teve o direito à jurisdição garantido constitucionalmente; Entretanto, esse direito por não ser eficaz, fez com que o povo deixasse de “sentir” a realização da justiça, descrendo na prestação jurisdicional. Logo, era urgente e necessária uma reforma no Poder Judiciário para garantir a efetividade dos direitos e das garantias constitucionais e, principalmente, garantir a efetividade da prestação da jurisdição. É importante ressaltar que toda e qualquer alteração constitucional deve ser feita através da emenda constitucional. “[...] E essa não apenas tem competência única no sistema hoje adotado no Brasil, como tem um processo de elaboração previamente traçado no art. 60, da Lei Fundamental da República” (ROCHA, 1996). Em toda Proposta de Emenda à Constituição, a súmula vinculante sempre foi um dos temas controvertidos. Logo, mister se faz uma análise do histórico das súmulas no Brasil. Em 1963, o ministro Victor Nunes Leal menciona pela primeira vez a “Súmula de Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal”, que teria como finalidade apenas servir de orientação aos demais magistrados, “para que o STF possa cumprir o seu mister de definir o direito federal, eliminando ou diminuindo os dissídios de jurisprudência” (RDPC, vol. 5, p. 77). Em 1964, o professor Alfredo Buzaid apresenta ao Congresso Nacional um anteprojeto de reforma do Código de Processo Civil, onde propõe: A possibilidade que o STF ou qualquer dos Tribunais de Justiça, em processo para uniformização de jurisprudência, possam fixar interpretação da norma jurídica, baixando em seguida, com força de lei, a contar de 45 dias após sua publicação. (Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 12, p. 147) Apesar de não aprovado, é importante ressaltar que a uniformização de jurisprudência “não é um fenômeno singular do nosso Direito. A idéia – herdada do Direito português – tem sensíveis implicações e conseqüências no Direito moderno.” (STRECK, 1998, p. 93). Logo, a uniformização de jurisprudência decorreu do instituto dos “assentos” portugueses. Segundo Cármen Lúcia Antunes Rocha: Os antecedentes portugueses do Direito brasileiro é que por primeiro dão notícia dos assentos, que eram firmados pela Casa de Suplicação, nos termos das Ordenações Manuelitas, com a finalidade precípua de extinguir dúvidas jurídicas suscitadas em causas submetidas a julgamento. As soluções dadas aos casos que se constituíssem objeto de dúvida por aquela Casa e definidas nos assentos convertiam-se em normas, tendo sido adotada essa figura pelas Ordenações Filipinas. Se entre os juízes da Casa de Suplicação não se chegasse a uma deliberação quanto à dúvida em razão de sua extensão a todos eles, a matéria seria encaminhada para a solução do Rei, que a sanaria mediante lei, alvará ou decreto. (ROCHA, 1996) A finalidade da uniformização de jurisprudência é “a busca de maior segurança nas decisões e a otimização destas, evitando-se o desnecessário exame de casos idênticos já anteriormente decididos, e fundamentalmente a necessidade em manter o controle político sobre a atividade jurisdicional” (STRECK, 1998, p. 93). A PEC 96/92 propunha uma “reforma constitucional na parte alusiva ao Poder Judiciário” (MANCUSO, 2002, p. 324), colocando a possibilidade de se incluir no texto constitucional as súmulas vinculantes. Entretanto, essa proposta veio a ser posteriormente modificada pela PEC 54/95, de autoria do Senador Ronaldo Cunha Lima, que ao comentar seu projeto, explicou como fundamentos: Harmonizar a jurisprudência a partir da jurisdição constitucional_ o que é diferente de formá-la; permitir o acesso à justiça a quem, mesmo não dispondo de recursos processuais, não os consegue à falta de recursos financeiros; e desafogar o Supremo Tribunal Federal, do excesso de causas que lhe são postas a exame_ cerca de 30 mil processos/ano. (REVISTA DA PROCURADORIA GERAL DO INSS, 1998, p.10) As ações declaratórias de constitucionalidade foram introduzidas no ordenamento jurídico brasileiro pela Emenda Constitucional nº. 3 de 1993, proposta pelo Presidente Fernando Collor de Mello e endossada, devido ao impeachment, pelo Presidente Itamar Franco. O art. 102 §2º, já previa o seu efeito vinculante: As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo. Com a instituição da ação declaratória de constitucionalidade (ADC), questionamentos foram feitos quanto à sua constitucionalidade. O jurista Marcelo Figueiredo defende que: Com a introdução da ação declaratória de constitucionalidade, atritou-se o princípio da separação de Poderes, e, via de conseqüência, a competência do Legislativo. A nova previsão desfigura a idéia e função do Poder Legislativo, órgão naturalmente vocacionado a apreciar previamente a constitucionalidade. Em uma palavra, tal como vazada a ação declaratória, é autorizado o intérprete a obter a seguinte leitura global da ação: declarar a constitucionalidade, nos moldes previstos na ação, é, em última análise, legislar. Instaura-se uma espécie de dependência entre o Legislativo e Judiciário, pois o mesmo fará a lei sob condição; aguarda-se a chancela, o crivo do Judiciário. Acaso a possibilidade não fere o equilíbrio de Poderes? (FIQUEIREDO apud STRECK, 1998. p. 138) Apesar de severas críticas feitas às ações declaratórias de constitucionalidade e seu efeito vinculante, em 2004, foi aprovada a Emenda Constitucional nº 45, que introduziu a súmula vinculante, pela qual “O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.” Com a adoção do efeito vinculante à súmula, essa passou a ter verdadeiro efeito de norma constitucional, obrigatória a todos. 3. PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E A LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA A Constituição de 1988 em seu art. 2º estabelece que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.” Como afirma José Afonso da Silva (2005), independentes uma vez que no exercício de suas funções típicas não necessitam do consentimento ou de autorização dos demais poderes, sendo livres para organizarem a prestação de seus serviços devendo somente se submeter às normas constitucionais e a legislação infraconstitucional. Todos os três poderes têm prerrogativas e faculdades, e o respeito mútuo e a colaboração entre eles é a definição de poderes harmônicos entre si. Entretanto, deve-se ressalvar que esta independência não é absoluta, já que cada poder tem função, fixada pela Constituição, de fiscalização, visando a efetivar o bem estar da coletividade e impedir o arbítrio de um dos poderes. Carlos Mário Velloso expõe sobre o princípio da separação dos poderes e do sistema de freios e contrapesos: No presidencialismo, as funções estatais – legislativa, administrativa e jurisdicional – são exercidas por órgãos distintos e independentes, mas harmônicos entre si. Essa harmonia é conseguida na medida em que se pratica a doutrina que os norte-americanos denominam de checks and balances, freios e contrapesos, doutrina que institui colaboração entre os poderes e da qual resulta uma fiscalização mútua, para o fim de realizar justamente aquilo que Montesquieu propugnava: a limitação do poder pelo poder. A doutrina dos freios e contrapesos, que a Constituição brasileira consagra, realiza o controle do Poder Judiciário, sem, entretanto, violar as garantias concedidas a esse Poder. (VELLOSO, 2004, p. 15) Com a instituição da súmula vinculante no ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da separação dos poderes passou a ter profunda repercussão doutrinária, uma vez que a titularidade do poder, dada pela Constituição ao povo, deixa de existir. O parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal estabelece que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”, e o art. 14 estabelece que “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: plebiscito, referendo e iniciativa popular”, ou seja, o povo é o titular do poder, e pode sempre exercer esse poder, mas com a uniformização da jurisprudência com efeito vinculante, o povo deixa de participar e exercer esse poder, já que a legitimidade para editar a súmula vinculante será somente do Supremo Tribunal Federal, sem a participação popular. Segundo Cármen Lúcia Antunes Rocha: A instituição da súmula vinculante não tem: a fonte legítima da representação popular; o respeito à possibilidade constitucionalmente prevista como direito fundamental do cidadão de participar da formação do Direito (art. 14); nem a garantia do processo legislativo democrático, discutido, aberto e participativo (arts. 59 e seguintes) para a criação de norma jurídica. (ROCHA, 1996) A legitimidade democrática para criar leis é do poder Legislativo, de acordo com o que estabelece a Constituição Federal. “O Congresso Nacional é eleito pelo povo, na forma do art. 1° parágrafo único, e o é para o exercício da sua função precípua – a de criar o Direito a ser acatado pela sociedade” (ROCHA, 1996). Logo, a conseqüência advinda da adoção da súmula vinculante, seria a não participação do cidadão na sua elaboração, conforme expõe Cármen Lúcia Antunes Rocha: O cidadão não terá como participar, direta ou indiretamente, da elaboração da norma contida na súmula, vendo-se marginal do processo de sua formação e positivação e sendo-lhe retirado, assim, um dos direitos fundamentais, qual seja, o de poder vir a participar diretamente, inclusive, pela iniciativa popular, do processo de sua elaboração. (ROCHA, 1996) A reforma do Judiciário, principalmente a introdução da súmula vinculante, com o intuito de superação de uma crise acabou por demonstrar uma afronta aos princípios constitucionais e garantias fundamentais como expõe Cármen Lúcia Antunes Rocha: A adoção da “súmula vinculante” rompe tradição constitucional republicana brasileira, princípios constitucionais atuais brasileiros, tolhe direitos dos cidadãos, compromete o princípio da legitimidade democrática e o princípio da separação de poderes, segundo o modelo adotado na Lei Fundamental da República, afronta o princípio da independência do juiz, sem o qual o direito fundamental à jurisdição vê-se restringido e não é dado como certo para correção de rumos na eficiente e tempestiva prestação jurisdicional que é buscada. (ROCHA, 1996) O Supremo Tribunal Federal tem como competência precípua a guarda da Constituição, ou seja, é ele quem tem nas mãos em última instância a Constituição, é a ele que cabe tornar efetiva a aplicação e interpretação do direito constitucional positivo. A palavra final, no que diz respeito à Constituição, cabe a ele, STF. Conseqüentemente, ao editar súmulas com efeito vinculante, a matéria tratada será de norma constitucional. Logo, “a súmula não terá apenas “força de lei”, mas “força de norma constitucional” somente modificável pelo Poder Legislativo por emenda constitucional” (ROCHA, 1996). A Constituição Federal estabelece as competências de cada órgão e outorga a cada um dos poderes _ Judiciário, Legislativo e Executivo _ funções típicas e atípicas que devem realizar. A Constituição fixou que “ao Poder Judiciário compete uma das atuações que a salvaguarda de atentados e de fraudes, qual seja, a de exercício do controle da constitucionalidade” (ROCHA, 1996). Entretanto, não há referência à competência do STF para criar lei, logo não é dada a ele a legitimidade democrática de criá-la. “Entrega-se, contudo, a outro dos poderes do Estado, e ainda assim por um processo específico e rígido, o processo de sua modificação, qual seja, a emenda constitucional pela qual se veicula a sua reforma” (ROCHA, 1996). O art. 60 dispõe sobre a Proposta de Emenda à Constituição e estabelece em seu § 4º as cláusulas pétreas, ou seja, as matérias que não podem ser abolidas nem restringidas da Constituição Federal. O princípio da separação dos poderes, conseqüentemente, está resguardado no inc. III, como cláusula pétrea. Com a introdução da súmula vinculante, o Supremo Tribunal Federal passa a ter função do Poder Legislativo, de criar Lei, colidindo com o princípio da separação dos poderes, que é cláusula pétrea, matéria intocável na Constituição. Ao afrontar o princípio da separação dos poderes, não seria a súmula vinculante inconstitucional? Streck faz referência e críticas ao acúmulo de funções do STF: Com o poder de editar súmulas, os Tribunais passam a ter um poder maior do que o Legislativo. Se se impedir que – das decisões exaradas em conformidade com as súmulas – sejam interpostos recursos, o Poder Judiciário estará acumulando as duas funções (legislativa e judiciária), petrificando o sentido do texto (e da norma exsurgente desse texto.) Daí que, examinando o sistema jurídico brasileiro como um paradoxo, é possível dizer que, do ponto de vista autopoiético, a vinculação sumular reforça o poder da auto reprodução do sistema. Com a vinculação, o STF “fecha” o sistema. (STRECK, 2005, p.113). A Constituição de 1988 passou a denominar o Estado de Estado Democrático de Direito, ou seja, o Estado Democrático seria o Estado da legitimidade dada pelo povo, e o Estado de Direito seria o Estado da legalidade assegurada pela Constituição Federal. Entretanto, a Constituição Federal não legitimou o STF com a função legislativa, de criar o Direito, e sim com a função de salvaguardar a Constituição. Logo, a súmula vinculante seria uma afronta não só aos princípios e garantias fundamentais, mas também ao Estado Democrático de Direito. Cármen Lúcia Antunes Rocha explica essa afronta à Constituição: O Supremo Tribunal Federal terá sido erigido à condição de órgão reformador da Constituição, com a possibilidade de criar normas constitucionais, sem qualquer participação do cidadão, sem qualquer possibilidade sequer de sua mudança pelo processo legislativo infraconstitucional. [...] A “súmula vinculante” torna o Poder Judiciário não mais apenas autor de uma pretensa “para-legislação”, a que se referia José Pereira Lira, mas autor de uma “legislação”. (ROCHA, 1996) Diante do exposto, podemos afirmar que ainda não alcançamos um verdadeiro Estado Democrático de Direito e que são necessárias profundas mudanças no sistema jurídico, para se efetivar a democracia, os direitos e garantias fundamentais e a participação popular. Segundo Marcão, “a realidade revela uma inegável crise de identidade do Estado que, ora pela abdicação de suas funções, ora por extrapolá-las, ainda não encontrou o caminho da independência e harmonia que deve reinar entre os Poderes” (MARCÃO, 2005, p. 49). 4. A INDEPENDÊNCIA DOS MAGISTRADOS O juiz goza de garantias constitucionais como a liberdade de exercício das suas funções, não podendo vincular suas decisões a nada além da sua análise fundamentada e consciência jurídica. O juiz deve decidir em regime de liberdade, pois, caso contrário, perderia completamente sua independência garantida constitucionalmente. A importância da decisão do juiz de primeira instância ficou claramente demonstrada na fala do Senador Roberto Freire: Com o efeito vinculante, retira-se muito a capacidade de se discutir os fatos, que não são iguais, podem ter semelhanças, analogia, mas são distintos. E o juiz, na primeira instância, discute fatos. No momento que se tem a interpretação, a hermenêutica dos tribunais superiores, através de efeitos vinculantes, determinando como se resolver, estamos diminuindo a capacidade de os juízes interpretarem a realidade dos fatos. (FREIRE apud SILVA, 1998, p.82.). Cabe ao juiz decidir cada caso concreto de acordo com a realidade dos fatos construídos durante o processo, garantia constitucional do devido processo legal. Logo, a sentença deve ser construída a partir dos fatos de cada caso concreto e das convicções que formarão a consciência do juiz. “A justiça de cada caso concreto não se obtém com métodos de cima para baixo. O contrário é que é verdadeiro. O saber sistemático (generalizador) está dando lugar para o saber problemático (cada caso é um caso)” (GOMES apud MARCÃO, 2005, p. 51). Como ficarão os conhecimentos, os anos de experiência do juiz, a sua consciência jurídica, no caso de ter apenas que aplicar a súmula vinculante, sem apreciar o caso concreto? Cada caso é um caso, portanto, a sentença deve ser construída nos moldes do devido processo legal, não bastando apenas a aplicação da sentença de forma arbitrária. De acordo com o exposto pela norma do art. 103-A da Constituição Federal, os magistrados deverão acatar a súmula vinculante e aplicá-la de forma inerte, contrariando o princípio constitucional da independência do juiz, e conseqüentemente, engessando o Judiciário e tornando-o refém da súmula vinculante. As garantias constitucionais são uma forma de o cidadão ter a certeza de que sua pretensão, sua lide será decidida com independência, sem interferências. Como fica o cidadão se a matéria por ele pleiteada já estiver previamente decidida? Não estaremos podando um ato de democracia da população que pretende ver seu caso apreciado e decidido conforme as garantias do devido processo legal? Cármen Lúcia Antunes Rocha expõe que: O art. 95 da Constituição da República dispõe que os juízes gozam das seguintes garantias: vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos. Tais garantias são postas para que o cidadão possa ter a segurança de ter a sua situação jurídica posta a exame e decisão de juízes que exercem o seu mister com independência. Para tanto vê-se ele desembaraçado de submissão ao pensamento, raciocínio ou interpretação de outrem, caso em que já não mais se teria, na hipótese, independência, mas também que não se teria o juiz a emitir o juízo decisório, mas a repetir julgamento feito por outro órgão judicial e aplicável à causa sem o acesso aos dados de cada ação. (ROCHA, 1996) A súmula vinculante representa uma estagnação da jurisprudência, uma vez que nos casos por ela abrangidos não haverá sequer a apreciação dos fatos para construção da sentença, posto que a matéria já fora decidida. O ministro Sepúlveda Pertence, citado por José de Anchieta, posicionou-se da seguinte forma: O efeito vinculante implicaria uma redução, quando não uma eliminação, da independência jurídica do juiz e levaria à paralisia da jurisprudência. Não nego seriedade a essas críticas nem riscos de sua procedência se a redisciplina e a prática do efeito vinculante não forem cercados de cuidados. (PERTENCE apud SILVA, 1998, p.83) A independência do juiz para decidir em cada caso concreto conforme os fatos apresentados durante o processo é uma garantia constitucional precípua, com a função de resguardar a sociedade de possíveis interferências do Estado, segundo manifesta o ministro Celso de Melo: Mais que a própria instituição judiciária, é a sociedade quem efetivamente necessita de juízes livres e independentes. [...] a independência do juiz, para decidir com autonomia as controvérsias, traduz uma prerrogativa destinada à proteção da coletividade contra eventuais interferências ilegítimas do poder estatal. (MELO apud SILVA, 1998, p.83.) A súmula vinculante tolhe a independência de decisão do magistrado, sua liberdade de análise e de interpretação. Cármen Lúcia Antunes Rocha acrescenta: Note-se que o que se tem com a “súmula vinculante” não é uma restrição, é a exclusão da independência do magistrado, pois não é sobre matérias afetas exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal que se impõe o não pensar em interpretação diversa, mas a qualquer matéria que seja submetido ao seu julgamento. Ao contrário da maior facilidade do trabalho da jurisprudência, pretendida com a criação da súmula, o que se busca com a súmula vinculante é a supressão da jurisprudência criadora atingida pelo silêncio imposto ao juiz. (ROCHA, 1996) 5. A GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Os direitos fundamentais são direitos que nascem e se substanciam na soberania popular. Fazem parte hoje do texto constitucional e são aplicados em prol da dignidade, liberdade e igualdade da pessoa humana. O povo, principal beneficiário desses direitos, luta para que a efetivação de seus direitos fundamentais seja garantida e consolidada. Não basta, no entanto, termos os direitos fundamentais expressos no texto constitucional, é importante assegurar que tais direitos sejam efetivados e aplicados eficazmente, pois, situações há em que não são respeitados. Ruy Barbosa sabiamente dizia que: “uma coisa são os direitos, outra as garantias” (BARBOSA apud SILVA, 2004, p.186). O art. 5º traz os direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição Federal de 1988. Dentre eles, é importante ressaltar o princípio da igualdade, que somente existe em uma democracia, pois nela se busca a paridade entre os desiguais, para se alcançar o direito à uma vida digna. Cármen Lúcia Antunes Rocha expõe que: Igualdade constitucional é mais que uma expressão de Direito; é um modo justo de se viver em sociedade. Por isso é princípio posto como pilar de sustentação e estrela de direção interpretativa das normas jurídicas que compõem o sistema jurídico fundamental. (ROCHA apud SILVA, 2004, p. 214) É baseado no princípio da igualdade que a Constituição assegura o direito à jurisdição e ao devido processo legal, em seu art. 5º inciso XXXV e LIV, respectivamente. “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.” O Estado, devido à atribuição constitucional, com o seu poder soberano, deveria atuar de forma que todos pudessem ter acesso ao Judiciário de forma igualitária, garantindo, assim, em nome do povo, o devido processo legal e a construção de uma sentença justa. Segundo Fernando Jayme, “só faz sentido falarmos em democracia se assegurados os direitos fundamentais da liberdade e igualdade, e o instrumento para garanti-los seria o devido processo legal. Este só estará devidamente caracterizado quando respeitado o contraditório” (C.f. JAYME, Obra inédita). O devido processo legal só se torna efetivo, válido, se respeitados os princípios constitucionais. O processo deve se desenvolver à sombra dos pressupostos constitucionais. Não bastassem os direitos constitucionalmente garantidos pelo Direito interno, temos ainda a garantia da Declaração Universal dos Direitos do Homem que em seu art.10 estabelece: Toda pessoa tem direito, em condições de plena igualdade, a ser ouvida publicamente e com justiça por um tribunal independente e imparcial, para a determinação de seus direitos e obrigações ou para o exame de qualquer acusação contra ela de matéria penal. Dentre os direitos fundamentais asseguradores do devido processo legal, destacamos o contraditório e a ampla defesa. O processo como “procedimento realizado em contraditório” só é possível em um sistema democrático que disponha dos meios necessários para efetivá-lo e que tenha como fundamento precípuo assegurar a dignidade da pessoa humana através do processo. Ao conceituar processo, Aroldo Plínio expõe que: O processo é um procedimento, mas não qualquer procedimento, é o procedimento de que participam aqueles que são interessados no ato final, de caráter imperativo, por ele preparado, mas não apenas participam; participam de uma forma especial, em contraditório entre eles, porque seus interesses são opostos. (GONÇALVES, 1992, p.68.) A presença do contraditório significa que as partes serão ouvidas e participarão em igualdade de armas para a formação da convicção do juiz e, conseqüentemente, participarão da construção do provimento final. Aroldo Plínio ressalta: o contraditório como direito de participação em simétrica paridade, como oportunidade de participação, como direito, revestido de proteção constitucional” [...] “uma garantia não é uma imposição, é uma liberdade protegida, não pode ser coativamente oferecida e não se identifica como instrumento de sujeição. Garantia (GONÇALVES, 1992, p.132) é uma liberdade assegurada. O contraditório é a garantia de participação em simétrica paridade durante todo o processo, ou seja, é a igualdade de tratamento dado às partes. Logo, é um dever do estado garanti-lo e efetiva-lo. É importante ressaltar que os direitos fundamentais em um Estado Democrático traçam todas as diretrizes desse Estado e por isso, devem ser efetivos e eficazes. A EC/45 ampliou o conceito de devido processo legal, assegurando, a todos, “a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” art. 5º, LXXVIII, ou seja, a população agora tem direito positivado e, portanto, constitucionalmente garantido, a um processo sem dilações indevidas. Uma vez não cumprido tal recomendação constitucional, poderá o Estado ser obrigado a reparar possíveis danos que tenham sido causados, caso o prejudicado venha a requerer. A celeridade processual, garantida como direito fundamental, não obsta o cumprimento de outros direitos fundamentais, ou seja, não deverá este direito ser garantido em detrimento de outros. O professor Ronaldo Brêtas expõe a questão da seguinte forma: [...] é importante ressaltar que a exigência constitucional de se obter a prestação da atividade jurisdicional em tempo útil ou prazo razoável, o que significa adequação temporal da jurisdição, mediante processo sem dilações indevidas, não permite impingir o estado ao povo a aceleração dos procedimentos pela diminuição das demais garantias processuais constitucionais, por exemplo, suprimir o contraditório, proibir a presença do advogado no processo, eliminar o duplo grau de jurisdição, abolir a instrumentalidade das formas, restringir o direito das partes à produção de provas lícitas ou dispensar o órgão jurisdicional de fundamentar racionalmente suas decisões. A restrição de qualquer dessas garantias processuais constitucionais [...] revela-se inconstitucional e antidemocrática, [...] deslavada e grosseira agressão ao princípio constitucional do Estado Democrático de Direito. (DIAS, 2005, p.233) Estariam, pois os direitos à jurisdição e ao devido processo legal garantidos com a adoção da súmula vinculante? “É preciso, sim, agilizar a prestação jurisdicional com máxima urgência, contudo, sem colocar em xeque os princípios constitucionais e as garantias democráticas conquistadas ao longo da história” (MARCÃO, 2005, p. 51). O devido processo legal caracterizado pela construção do provimento final, desenvolvido como procedimento realizado em contraditório, deve sempre ter seu pressuposto básico, o contraditório, satisfeito. A súmula vinculante acarretará repetições de uma mesma decisão, e podemos afirmar certamente que, essa repetição, sem a apreciação dos fundamentos e fatos jurídicos alegados pelas partes, não é feita em contraditório. Logo, a adoção da súmula vinculante que apenas repete a mesma decisão para casos semelhantes não garante a apreciação pelo Poder Judiciário de lesão ou ameaça a direito, nem a garantia ao contraditório e a ampla defesa, pelo contrário, os viola abertamente. 6. O EXCESSO DE PROCESSOS NO JUDICIÁRIO A Reforma do Judiciário, dentre outros objetivos, teve também o de garantir aos cidadãos a previsão trazida no art.5º, inciso LXXVIII: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Carlo Mário da Silva Veloso lembra que muitas instituições brasileiras passam por uma situação de crise, e o Poder Judiciário não está fora disso: “O problema maior da Justiça brasileira é a lentidão, a demora na entrega da prestação jurisdicional” (VELOSO, 2004, p. 13). A introdução da súmula vinculante na Constituição tem como premissa diminuir ou desafogar o Judiciário de processos. Com a adoção da súmula vinculante haveria uma considerável diminuição no volume de processos e em seus recursos, garantindo a todos uma razoável duração do processo. Carlos Mário da Silva Veloso acredita ser a súmula vinculante uma ferramenta judicial que eliminaria uma grande quantidade de recursos: [...] a eficácia erga omnes e o efeito vinculante são considerados modos de aperfeiçoamento do sistema judicial, porque eliminam a massa inútil de recursos repetidos e impedem a eternização das demandas judiciais. O Supremo Tribunal federal tem recebido grande número de recursos que repetem questões já decididas mais de uma centena de vezes. Isso não é racional e não ocorreria se existente a súmula vinculante. (VELOSO, 2004, p. 13) Processos que se arrastam por muito tempo, às vezes por muitos anos, acabam não efetivando a “justiça”, que é o seu objetivo primordial. Tais processos produzem sentenças vazias, uma vez que passado por tão longo período sem solução da lide, a sentença acaba sendo inútil às partes. A súmula vinculante, para alguns doutrinadores, é tida como a solução para o amontoado de processos no Judiciário, e é vista também como forma de superação da crise que esse Poder enfrenta, além de garantir segurança jurídica. No entanto muitos não acreditam ser a súmula vinculante solução para a “crise” do Poder Judiciário, dentre eles Cármen Lúcia Antunes Rocha: Isso não é solução de crise. Isso é extermínio de direitos. O cidadão brasileiro vai muito pouco a juízo. Quem abusa dos meios de indagação judicial e de pleitos repetidos não é o cidadão, mas o próprio Estado. E a ele que se deve dirigir a solução, é contra os excessos não de demanda do Poder Judiciário, mas de pedidos e recursos do Poder Executivo especialmente que se tem que orientar. A “súmula vinculante” constrange mais o cidadão que a própria entidade pública, pois este, mesmo que se veja impedido de questionar a decisão judicial, pode praticar novos atos com outra roupagem que venham a ter que ser objeto de demanda judicial. Dai porque, à primeira indagação, é de se responder negativamente. Não é a “súmula vinculante” uma resposta eficaz socialmente para a denominada “crise (do excesso de serviço) do Poder Judiciário” para os brasileiros, mas uma amputação de possibilidades judiciais que se deve voltar, direta e objetivamente, ao próprio Poder do Estado. (ROCHA, 1996) O objetivo da súmula está claramente delineado no art.103-A, §1º, “A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica”. A súmula vinculante será aplicada com o objetivo de garantir a segurança jurídica quando os processos versarem sobre questão idêntica. Entretanto, questões idênticas implicam em fatos controvertidos idênticos, em processos distintos, o que não necessariamente dá aos litigantes segurança jurídica, afinal a ocorrência dessas questões idênticas é muito difícil. As partes são distintas e os fatos narrados dificilmente serão idênticos. Os juízes terão que identificar quais casos estarão sujeitos à aplicação da súmula vinculante, o que nada mais é que uma interpretação. Esta decisão do juiz poderá fazer com que as partes aleguem que a súmula vinculante não se aplica ao caso proposto, acarretando novamente um atraso na solução da lide, ao invés de lhe dar celeridade. Sentindo-se ameaçado em seu direito, o cidadão deve ter um instrumento para que possa ir ao Judiciário pleiteá-lo, uma vez que está previsto na Constituição, dentre os direitos fundamentais, que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Deve-se ressaltar que o direito à jurisdição é garantia constitucional e não pode ser abolido, por se tratar de cláusula pétrea, matéria intocável, conforme estabelece a Constituição Federal em seu art. 60, § 4º, IV. O próprio texto constitucional prevê a reclamação ao Supremo Tribunal Federal, _toda vez que o “ato administrativo ou decisão judicial contrariar súmula aplicável ou indevidamente a aplicar” _ que poderá julgando a reclamação procedente anular o ato administrativo ou cassar a decisão judicial reclamada, determinando que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso. Lenio Luiz Streck sobre a reclamação expõe: Como contraponto, vale referir que não nos deve impressionar o argumento esgrimido pelos juristas que apóiam a tese vinculatório-sumular de que as súmulas podem ser revistas pelo Tribunal que a instituiu (aliás, sempre puderam...). Desnecessário dizer que até que haja a revisão, ela surtirá efeitos similares às das leis (ou até mais). Ora, as leis também podem ser revistas pelo Parlamento e nem por isso se nega a possibilidade da existência de recursos de decisões que contrariem as leis... Ou seja, vingando a tese reformista, chagaremos ao seguinte paradoxo: os juízes podem contrariar as leis; se o fizerem caberá recurso. O que os juízes não podem fazer é ousar contrariar súmulas. Neste caso, conforme a Emenda à Constituição, não caberá recurso, e sim reclamação... Ou seja, em terrae braisilis a lei não vincula; a súmula sim! (STRECK, 1998, p.106) Ora, não estaríamos sujeitos então a uma enxurrada de “reclamações” dirigidas ao Supremo Tribunal Federal, ficando o Judiciário novamente com um enorme volume de processos a decidir? Iria a súmula vinculante de fato reduzir o volume de processos no Judiciário? Talvez fosse o caso de se utilizar outros meios para promover a celeridade processual como aprimorar, modernizar e estruturar corretamente e eficazmente os órgãos jurisdicionais de forma que os juízes pudessem em condições adequadas cumprir os prazos e garantir um processo sem dilações indevidas e com razoável duração. A própria aplicação correta do Código de Processo Civil, utilizando os mecanismos por ele colocados à disposição dos julgadores, já garantiria uma maior celeridade e uma diminuição no excesso de processos que se tem hoje no Judiciário. Não bastam novas normas para que se consiga promover uma maior celeridade processual, mas também uma mudança no comportamento atual. O Professor Ronaldo Brêtas expõe que: A eficiência da função jurisdicional, mediante um processo de razoável duração, sem dilações indevidas [...], significando direitos e garantias fundamentais do povo, jamais serão conseguidos pelo Estado sem realizações concretas e modificações estruturais em seus órgãos, não bastando a existência de normas em tal sentido, que apenas servem para aformosear ou embelezar o texto constitucional. (DIAS, 2005, p.239) Um melhor dimensionamento do número de juízes por processo, a informatização, a qualificação e a disponibilização de mão-de-obra, bem como recursos financeiros, se bem administrados e geridos, podem possibilitar a prestação de um serviço público de qualidade, eficiente, apto a proporcionar às partes um resultado útil, eficiente e eficaz. A esse respeito o professor Ronaldo Brêtas defende que: A eficiência da função jurisdicional só será conseguida com a reforma de mentalidade e com a melhoria da formação técnica dos operadores do direito, com a adequada infra-estrutura física, material e pessoal dos órgãos jurisdicionais e com a introdução de métodos e técnicas racionais de trabalho”. (DIAS, 2005, p.239) 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS A crise no Poder Judiciário já vem se arrastando há muito, “se se atentar, é de se verificar que nos últimos cento e vinte anos, vale dizer, desde as últimas décadas do Império Brasileiro, o Poder Judiciário tem sido considerado inadequado à prestação da jurisdição como esperado, necessitado e desejado pela sociedade” (ROCHA, 1996). Há muito se reclama da dificuldade de acesso à jurisdição e quando se consegue tal acesso existe ainda a demora na prestação jurisdicional, na solução da lide, no provimento final. É dever do Estado a prestação do serviço público jurisdicional em prazo razoável e em tempo útil. A emenda constitucional nº 45 de 2004 introduziu no sistema jurídico brasileiro a súmula vinculante com o objetivo de sanar quaisquer controvérsias sobre normas que possam acarretar grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questões idênticas. A edição de súmula vinculante afrontará princípios constitucionais e direitos fundamentais. Dentre outros, o princípio da independência dos magistrados ficará comprometido, uma vez que o magistrado se tornará, nos casos em que a súmula vinculante for aplicável, mero aplicador da mesma. Não mais decidirá qualquer questão. Isso implicará ainda estagnação da jurisprudência, da atividade criadora e interpretativa do magistrado, todas essas primordiais em um Estado Democrático de Direito. A interpretação agora será no sentido de definir quais casos estarão sujeitos à aplicação da súmula vinculante, o que poderá acarretar uma série de reclamações dirigidas ao STF. Essa interpretação necessária para definir em quais casos a súmula vinculante será aplicável, implicará na não resolução do problema da insegurança jurídica e na multiplicação de processos. Tudo isso, reflete sentido oposto tão sonhada celeridade processual. A restrição e a agressão a princípios constitucionais são antidemocráticas. O que dizer então do princípio da separação de poderes? A súmula vinculante ao ser editada pelo STF, fará com que o próprio Poder Judiciário, crie o Direito para ele mesmo aplicar. A característica do Poder Judiciário é a de julgar ao ser provocado, não de criar normas, muito menos sem a participação do cidadão. O princípio da separação de poderes não pode ser abolido, nem por emenda constitucional, por se tratar de matéria intocável na Constituição Federal (art. 60, §4º, inciso III). Outros meios há, que não a súmula vinculante, para resolver o problema do excesso de processos no Judiciário. A súmula vinculante não resolverá o problema da morosidade do Judiciário, nem é a melhor solução para resolver a questão da demora na solução dos processos. É considerada uma afronta a princípios constitucionais e direitos fundamentais, já que limita, tolhe a autonomia dos juízes. É antidemocrática, uma vez que agride o princípio da separação de poderes e o próprio Estado Democrático de Direito. Enfim, a súmula vinculante é um alerta ao povo, de que ainda não alcançamos um verdadeiro Estado Democrático de Direito e que devemos continuar lutando pela democracia e pela efetivação dos nossos direitos fundamentais. Cármen Lúcia Antunes Rocha sobre a súmula vinculante escreve: Tanto quanto ao cidadão, a “súmula vinculante” compromete, enrijece e tolhe o próprio Poder Judiciário, tomado na inteireza de sua composição. O momento é de crescimento responsável do Poder Judiciário, não de seu tolhimento. O momento é de cidadania, não de mordaça. A Justiça, tenho dito, fala pelo juiz. Calar o magistrado silencia o homem. O bom juiz, disse antes, mal abre a voz, a Justiça fala. A “súmula vinculante” é, no Direito, o “silêncio obsequioso” imposto nas religiões sem democracia. E o momento não é dos mudos. A palavra é a senha do Direito. O silêncio, a sua morte. (ROCHA, 1996) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Direito à jurisdição eficiente e garantia da razoável duração do processo na reforma do judiciário. Revista da Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte, v. 8, n. 15, p. 230-240, 2005. FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual. Trad. Elaine Nassif. 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