SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO........................................................................................................10 2 A MORTE E O MORRER........................................................................................13 2.1 ASPECTOS INTRODUTÓRIOS...........................................................................13 2.2 CONCEITO DE MORTE.......................................................................................14 2.3 ESTÁGIOS DO PROCESSO DE MORTE...........................................................22 2.4 A TRAJETÓRIA DO COMPORTAMENTO HUMANO DIANTE DA MORTE.......26 2.5 MEDICALIZAÇÃO DA MORTE............................................................................33 2.6 DISTINÇÕES CONCEITUAIS – EUTANÁSIA, DISTANÁSIA, MISTANÁSIA, ORTOTANÁSIA E SUICÍDIO ASSISTIDO.........................................38 2.6.1 Aspectos Gerais..............................................................................................38 2.6.2 Eutanásia..........................................................................................................40 2.6.3 Distanásia.........................................................................................................47 2.6.4 Mistanásia........................................................................................................48 2.6.5 Ortotanásia.......................................................................................................50 2.6.6 Suicídio Assistido...........................................................................................52 3 BIOÉTICA, AUTONOMIA PRIVADA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: O TRIPÉ DE SUSTENTAÇÃO DAS QUESTÕES ENVOLVENDO O FINAL DA VIDA...........................................................................................................................54 3.1 NOÇÕES GERAIS...............................................................................................54 3.2 BIOÉTICA.............................................................................................................54 3.2.1 Histórico e Conceito........................................................................................54 3.2.2 Paradigmas bioéticos.....................................................................................58 3.2.3 Matizes culturais da bioética..........................................................................65 3.2.4 Princípios bioéticos........................................................................................68 3.2.4.1 Autonomia......................................................................................................69 3.2.4.2 Não-maleficência............................................................................................70 3.2.4.3 Beneficência...................................................................................................72 3.2.4.4 Justiça............................................................................................................73 3.2.4 Relação com o Biodireito...............................................................................75 3.3 O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PRIVADA E O CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO......................................................................................................77 3.3.1 Definição, antecedentes históricos e conceitos correlatos........................77 3.3.2 O consentimento livre e esclarecido.............................................................82 3.4 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA......................................89 3.4.1 Histórico...........................................................................................................89 3.4.2 Dimensões individual e cultural do princípio da dignidade da pessoa humana........................................................................................................92 3.4.3 Liberdade e autonomia como corolários da dignidade...............................93 4 DIREITO À MORTE DIGNA....................................................................................95 4.1 ASPECTOS GERAIS...........................................................................................95 4.2 DIREITO À VIDA VERSUS DIREITO DE MORRER: COLISÃO DE DIREITOS..96 4.2.1 Critérios para a solução de antinomias........................................................99 4.2.1.1 Insuficiência dos métodos tradicionais...........................................................99 4.2.1.2 Método de ponderação de bens...................................................................101 4.2.2 A dignidade da pessoa humana como guia na ponderação de bens......104 4.2.3 Ortotanásia: a ponderação de interesses no limite da vida......................108 4.3 TRATAMENTO CONFERIDO AO FINAL DA VIDA NO ORDENAMENTO BRASILEIRO ..............................................................................114 4.3.1 A humanização do processo de morte em outros países.........................114 4.3.2 Brasil...............................................................................................................117 4.3.2.1 Eutanásia e suicídio assistido......................................................................118 4.3.2.2 Ortotanásia: atipicidade penal e respeito à ética médica e religiosa...........121 4.4 A ORTOTANÁSIA COMO CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À MORTE DIGNA......................................................................................................................128 5 CONCLUSÃO.......................................................................................................133 REFERÊNCIAS........................................................................................................138 ANEXOS 10 1 INTRODUÇÃO A evolução da medicina tem reflexo direto na área jurídica, e uma vertente desta evolução diz respeito ao prolongamento artificial da vida. Sob a alegação de melhoria da qualidade de vida e bem-estar dos pacientes, os métodos atuais que permitem o adiamento da morte causam, muitas vezes, apenas e tão somente o prolongamento da dor e do sofrimento, em flagrante desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana. Se por um lado o Estado tem o dever de proteger a vida dos cidadãos, considerada, por muitos, como bem absoluto e intangível, por outro, a autonomia da vontade deve ser levada em conta nos últimos momentos da vida. Neste contexto, o Direito não pode fechar os olhos à nova realidade, devendo estabelecer mecanismos capazes de compatibilizar valores em colisão, tendo como premissa básica a dignidade da pessoa humana. Diante desta nova perspectiva, esta pesquisa visa a responder ao seguinte questionamento: em que medida o direito à vida deve-se sobrepor à autonomia da vontade do indivíduo em estado terminal, contrariando, assim, a dignidade da pessoa humana em seu processo de morte? Para tanto, é imprescindível a análise dos fundamentos legais e doutrinários referentes à dignidade da pessoa humana, bem como liberdade e autonomia do paciente em estágio terminal, em contraposição ao prolongamento artificial da vida. A morte, na antiguidade do mundo ocidental, considerada como algo natural, hoje é vista como um tabu, deixando transparecer os medos e angústias que o homem tenta mascarar ao longo da vida. Tal posição diante da morte contribui para que a comunidade científica não se aprofunde no estudo de questões como o prolongamento artificial da vida e, em especial no Brasil, a pesquisa jurídica sobre o assunto seja tão escassa. Ademais, em virtude da rápida evolução da ciência médica nos últimos anos, é imprescindível o estabelecimento de limites éticos e jurídicos à sua atuação. Decorre daí grande relevância do tema, seja social, jurídica e filosófica, pois a um só tempo, abrange algumas das questões que mais atormentam o homem contemporâneo, quais sejam: o direito à saúde e à vida, a preservação da autonomia da vontade e liberdade e a dignidade da pessoa humana. As principais formas de pesquisa apresentadas para o 11 desenvolvimento da temática proposta são a bibliográfica e a documental, mediante comparação de posicionamentos doutrinários, de legislações, inclusive estrangeiras, interpretação crítica de dados coletados para se atingir o objetivo traçado. A pesquisa documental será empreendida recorrendo-se aos códigos, leis, regulamentos brasileiros, bem como legislação estrangeira, além de outras fontes documentais dispersas. A pesquisa bibliográfica será feita com base em materiais já elaborados, constituindo-se de livros, publicações periódicas, artigos científicos, dicionários, bem como textos e artigos publicados em sites da internet, sendo fortemente marcada pelo seu caráter interdisciplinar. A investigação do tema será desenvolvida sobre três pilares: 1) a morte e o morrer; 2) bioética, autonomia e dignidade da pessoa humana: o tripé de sustentação das questões envolvendo o final da vida; 3) o direito à morte digna. No segundo capítulo será feita uma análise sobre o conceito de morte e as suas mais diversas nuances, mostrando as transformações enfrentadas ao longo dos séculos, no intuito de fixar-lhe um critério de definição mais preciso. Far-se-á, também, uma digressão pelos estágios do processo de morrer pelos quais passam não apenas os doentes, mas também aqueles que os acompanham nesta trajetória. Ainda neste capítulo, estudar-se-á a evolução do comportamento humano diante da morte, desde a fase da morte domada, em que o homem era considerado senhor da sua morte até a fase atual de sua medicalização, com o desapossamento dos momentos finais de vida do moribundo e a sua transferência para a solidão dos leitos hospitalares. Este estudo é fundamental para se entender os novos estágios de sobrevivência oportunizados pela evolução tecnológica, sendo necessário traçarse a distinção conceitual de termos comumente confundidos, a exemplo da eutanásia, distanásia e ortotanásia. No capítulo seguinte serão examinados três assuntos que servem de sustentação à argumentação das questões envolvendo o final da vida. Primeiramente será feita uma incursão sobre a bioética, trazendo à baila o seu histórico, conceito, paradigmas, matizes culturais, princípios informadores, com as características centrais de cada um deles, e relação com o biodireito, enfatizando-se a mudança de perspectiva na relação médico-paciente, que vai do paternalismo à autonomia. Posteriormente será realizado um estudo um pouco mais aprofundado sobre o princípio da autonomia e o consentimento livre e esclarecido, dada a 12 relevância adquirida nos últimos anos e a importância que apresenta para o deslinde do tema. Por fim examinar-se-á, detidamente, o princípio da dignidade da pessoa humana, ressaltando a sua importância como fundamento da nossa República, assim como a sua estreita relação com a liberdade humana. No quarto e último capítulo de desenvolvimento serão retomadas as principais idéias trazidas nos capítulos precedentes, com o objetivo de demonstrar se é possível falar-se em um direito à morte digna no Brasil, analisando as perspectivas éticas, religiosas e jurídicas do assunto. Aqui será estudada a técnica de ponderação de interesses e como ela pode ser útil para resolver os conflitos envolvendo o final da vida, notadamente a colisão entre a intangibilidade absoluta do direito à vida e o direito à autonomia, com a liberdade de escolha e recusa a tratamentos médicos considerados inúteis ao paciente. No estudo sobre a ponderação de bens será demonstrada a relevância que o princípio da dignidade humana, e consequentemente também a autonomia, exercem sobre o tema, e de que modo a ortotanásia pode compatibilizar os interesses postos em conflito nas questões envolvendo o fim da vida, concretizando, assim, o direito a uma morte digna. Noutros termos, é imprescindível analisar se a defesa do direito à vida de forma irrestrita, com o seu prolongamento desmedido, pode servir de elemento neutralizador da autonomia humana. Verifica-se, assim, que o tema proposto é extremamente rico e se mostra instigante àqueles que desejam enveredar pelo campo da pesquisa científica, e como tal deve ser encarado pela comunidade jurídica. 13 2 A MORTE E O MORRER 2.1 ASPECTOS INTRODUTÓRIOS O modo como o ser humano passou a lidar com a morte, bem como a sua própria definição, sofreram alterações profundas ao longo dos anos, o que por si só já deixa evidente que ela está intimamente ligada aos princípios culturais vigentes. Antes vista como um fenômeno natural, parte integrante da vida, é hoje vista por muitos como uma falha da medicina. A evolução tecnológica, em especial os avanços da área médica, gerou a falsa crença na possibilidade de cura para todas as enfermidades e até mesmo na imortalidade, transformando a morte num fracasso, e como é da essência humana lutar contra o fracasso, o homem, notadamente os profissionais da área de saúde, passou a se valer de todos os meios disponíveis, ordinários e extraordinários, para vencê-la e sagrar-se vitorioso na batalha vida versus morte. Estes esforços envidados pelos agentes de saúde, entretanto, não são capazes de evitar o inevitável e, na maioria dos casos, geram apenas e tão somente o prolongamento desnecessário do processo de morte, aumentando a dor e o sofrimento dos pacientes e dando azo ao que se convencionou chamar de obstinação terapêutica. A morte é um tema que possui as mais diversas nuances e, por conta disso, fazer um estudo científico sobre ela é tarefa árdua. Daí porque se optou por abordar, primeiramente, o seu conceito e a evolução deste conceito, mesmo que isso implique em percorrer um caminho longo pela linha do tempo, que será, posteriormente, retomado para tratar da trajetória do comportamento do homem diante da morte. Como se observará, o capítulo não segue uma cronologia linear, e por vezes far-se-á incursões sobre o passado com o intuito de entender o presente. Esta estrutura, ainda que à primeira vista possa parecer carente de uma seqüência lógica, foi propositalmente adotada por questões didáticas, haja vista ser inconcebível tratar sobre os estágios da morte e o histórico do comportamento humano dela sem que se tenha noção do que seja efetivamente e a forma como o seu conceito sofreu modificações ao longo dos anos. Feito o esclarecimento sobre o que se entende por morte, analisar-se-á os seus estágios, com base, especialmente, nos estudos de Elisabeth Kubler-Ross. 14 Em seguida será traçada uma trajetória do comportamento humano diante da morte e aqui as lições trazidas pelo antropólogo francês Philippe Ariés são imprescindíveis. As informações sobre o conceito de morte, os seus estágios e a forma como o homem a enfrentou ao longo dos anos é essencial para a análise que se seguirá sobre o seu processo de medicalização, fenômeno que dará azo ao surgimento de conceitos como ortotanásia, distanásia e mistanásia, que se agregarão à eutanásia. Deste breve intróito resta patente que a morte, embora seja um tema árido e capaz de revelar toda a fragilidade humana, gera inúmeras implicações, seja no campo filosófico, ético ou jurídico, e, como tal, deve ser objeto de estudo mais aprofundado. 2.2 CONCEITO DE MORTE Como bem acentuou Jorge Paulet Vanrell1, as coisas mais simples e óbvias são também as mais difíceis de conceituar. Tal é o que ocorre com vida e morte. A morte é vista, frequentemente, como o contraponto da vida. Nestes termos, é mister fazer uma breve digressão do que se entende por vida humana para se fixar uma definição mais exata da morte. Conforme ponderou José Adriano Marrey Neto2, se ousássemos definir a morte, teríamos que nos lembrar do conceito de vida, isto é, das relações opostas entre estes dois eventos. Um deles exclui o outro; todavia, não será possível entendê-los separadamente, tal a necessidade dessas referências antagônicas ou antitéticas. Definir vida, até mesmo do ponto de vista físico e biológico, é uma questão de alta complexidade. Como bem pontuou Erwin Schodinger, “a matéria viva, embora não escape às ‘leis da física’ tal como hoje se encontram 1 VANRELL, Jorge Paulete. Tanatologia. Disponível em: <http://www.periciasforenses.com.br/concmorte.htm>. Acesso em: 04 jan. 2009. 2 MARREY NETO, José Adriano. A morte e seus diagnósticos (aspectos legais). Revista de julgados e doutrina Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, n. 2, p.9-14, abr./jun. 1989, p. 9. 15 estabelecidas, parece envolver ‘outras leis da física’, até aqui desconhecidas [...]”.3 Neste contexto, preciosa é a lição de Lynn Margulis e Doris Sagan, para quem a vida não pode ser vista como algo estático, mas como um verbo. “Ela conserta, sustenta, recria e supera a si mesma.”4 Daí porque uma definição precisa do que seja vida seja tão difícil, senão impossível. Daniel Koshland Júnior5 definiu a vida sustentando-a em sete pilares: o primeiro pilar é efetivado pelo ADN, que codifica os genes; o segundo pilar é a improvisação, entendida como capacidade de modificação; o terceiro pilar é o enclausuramento, que permite que todos os organismos vivos sejam confinados em volumes limitados e envolvidos por uma membrana ou pele; o quarto pilar é a capacidade de receber as energias de fontes exteriores e transformá-las em combustível para o organismo; o quinto pilar é a regeneração, ou seja, a capacidade de compensar as perdas sofridas; o sexto pilar é a adaptabilidade, que impede a repetição de experiências dolorosas; o sétimo e último pilar é o isolamento, que impede que agentes químicos de um processo reativo sejam metabolizados pelos catalisadores de outra reação. De acordo com Maria Auxiliadora Minahim, ainda que estes sete pilares possam dar uma compreensão dos elementos essenciais da vida, não exaurem as questões relativas à vida humana, “porque sendo esta um estado, quando posto em relação ao indivíduo, ela tem começo e fim (característica que permite a determinação da individualidade)”.6 E a compreensão desta individualidade não pode ser feita a priori. Seguindo a mesma esteira de raciocínio, para José Afonso da Silva a vida é um processo “que se instaura com a concepção (ou germinação vegetal), transforma-se, progride, mantendo sua identidade, até que muda de qualidade, deixando, então, de ser vida para ser morte”.7 3 SCHORINGER, Erwin. O que é vida? O aspecto físico da célula viva seguido de Mente e matéria e Fragmentos biográficos. Tradução Jesus de Paula Assis e Vera Kuwajima de Paula Assis. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997, p. 81. 4 MARGULIS, Lynn; SAGAN, Doris. O que é vida? Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002, p. 28. 5 KOSHLAND JÚNIOR apud MINAHIM, Maria Auxiliadora. Direito Penal e biotecnologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. 6 MINAHIM, Maria Auxiliadora. Direito Penal e biotecnologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 66. 7 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 196. 16 O próprio início da vida humana é questão polêmica, podendo-se apontar vários critérios para identificar o início da existência do ser humano8, o mesmo se podendo dizer do seu final. No plano jurídico, a vida é considerada o direito básico, razão de ser de todos os demais. Já do ponto de vista religioso, segundo as religiões monoteístas, a vida é um dom divino temporariamente conferido ao homem, tendo, pois, um caráter sagrado. Não obstante a tentativa de definição do que seja vida nos mais diversos campos da sociedade, o fato é que não existe um conceito unívoco de vida. Ela está fortemente ligada à individualidade e, portanto, variará segundo critérios sócio-culturais. Compreender o significado da vida humana, portanto, vai muito além de abordagens morfofisiológicas, jurídicas ou religiosas, passando pela capacidade de compreender o ser humano como ser inserido no mundo, com sua identidade e história. A vida humana não se resume a seu aspecto biológico, mas também biográfico, levando em conta a vivência, opiniões e autonomia. Assim como o conceito de vida humana, também o da morte varia de acordo com as peculiaridades sócio-culturais vigentes. A sua conceituação pode se dar por diferentes perspectivas e, consequentemente, surgirem definições diversas para um mesmo fenômeno, a saber: morte clínica, morte biológica, morte encefálica, morte cerebral, morte jurídica e morte psíquica9. A morte clínica caracteriza-se pela parada cardíaca, respiratória e midríase paralítica, podendo ser revertida com adequadas medidas de reanimação. Já a morte biológica é a progressão da morte clínica, e caracteriza-se pela sua irreversibilidade, com a destruição celular em todo o organismo. A morte encefálica, atualmente vista como sinônimo de morte biológica, caracteriza-se por técnicas que atestam a lesão encefálica irreversível, com a interrupção de todos os comandos da vida. A morte cerebral é muito confundida com a morte encefálica, mas as duas se diferenciam pela análise da respiração, isto é, no caso de morte cerebral perde-se a consciência da respiração, mas esta continua funcionando de forma automática, o que não se dá com a morte encefálica, haja vista que neste caso o centro respiratório se torna danificado de forma irreversível. A morte jurídica é aquela 8 Os critérios para determinação do início da vida não serão aqui abordados por fugir ao objetivo deste trabalho. 9 BATISTA, Rodrigo Siqueira; SCHRAMM, Fermin Roland. Eutanásia: pelas veredas da morte e da autonomia. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, p. 31-41, 2004. 17 prevista em lei10. No caso brasileiro embora o Código Civil disponha que a morte termina a existência da pessoa natural, não estabelece o seu conceito nem, tampouco, fixa o seu momento, deixando esta tarefa para a área médica11. Por fim, tem-se a morte psíquica, que se caracteriza pela percepção psicológica da morte, ocorrendo, habitualmente, após a tomada de conhecimento acerca da gravidade da enfermidade que acomete o paciente12. No campo filosófico a morte sempre teve lugar cativo, ainda que com visões antagônicas. Heidegger, por exemplo, afirma que o homem é um ser-para-amorte. Para ele, a morte é um fenômeno natural, que está presente em todos os momentos de nossas vidas, já que o ser humano vive para morrer. Em sentido oposto, Sartre afirma que não é a morte que dá sentido à vida; ela, ao contrário, tira a sua significação. Assim, para ele, a morte não seria um evento natural, mas sim, tal qual o nascimento, um absurdo.13 Até mesmo na seara religiosa a morte é vista de maneiras distintas. Para a doutrina espírita, a morte não é um fim, mas uma transição. Já o budismo não se preocupa com o que existe depois da morte, limitando-se a afirmar que vida e morte são coisas complementares, representam a mesma realidade vista, porém, de prismas diversos. O judaísmo não encara a morte como o fim da existência, mas como uma parte natural e lógica da vida. O cristianismo, por seu turno, vê a morte como o ingresso na eternidade. 10 O artigo 6º do Código Civil Brasileiro estabelece que a existência da pessoa natural termina com a morte, e vai além ao tratar dos casos em que a morte se presume. A morte presumida pode-se dar com a declaração de ausência ou sem esta declaração. O primeiro caso ocorre quando uma pessoa desaparece do seu domicílio sem deixar qualquer notícia e, neste caso, o Código Civil reconhece a ausência como morte presumida, em seu artigo 6º, a partir do momento em que a lei autorizar a abertura da sucessão definitiva. No segundo caso, a teor do artigo 7º do Código Civil, pode-se declarar a morte presumida sem decretação de ausência se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida ou se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após o término da guerra. Ambas as hipóteses deverão ser formuladas em procedimento específico de justificação, nos termos da Lei de Registros Públicos. 11 Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho trazem as acepções que a expressão morte pode assumir do ponto de vista jurídico. São elas a morte civil, entendida como a extinção da personalidade em indivíduos reconhecidamente vivos em virtude da condenação a penas perpétuas ou religiosas; a morte presumida, que se dá nos casos previstos nos arts. 6º e 7º do Código Civil, vistos acima; e a morte simultânea ou comoriência, que consiste na presunção de óbito simultâneo naqueles casos de impossibilidade de fixação do instante das mortes de dois ou mais indivíduos que faleceram na mesmo ocasião. [GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: parte geral. V. 1. São Paulo: Saraiva, 2002]. 12 BATISTA, Rodrigo Siqueira; SCHRAMM, Fermin Roland. Eutanásia: pelas veredas da morte e da autonomia. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, p. 31-41, 2004. 13 NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Em defesa da vida: aborto – eutanásia – pena de morte – suicídio – violência/linchamento. São Paulo: Saraiva, 1995 18 Além da fluidez da definição, pode-se acentuar, ainda, que o próprio diagnóstico da morte sofreu profundas alterações com o passar dos tempos, influenciando diretamente no seu conceito. Há quatro séculos, a morte era rejeitada antes da putrefação cadavérica, passando, posteriormente, pelo estado de rigidez e resfriamento do cadáver.14 Após algum tempo, com a descoberta do estetoscópio, passou-se a dizer que a morte ocorria com a perda das funções vitais, evidenciada com a parada cárdio-respiratória. De acordo com esta definição a morte era entendida como um instante, um momento de transição entre estar vivo, com as funções vitais preservadas, e estar morto, quando o coração para de bater e o indivíduo deixa de respirar. Este conceito foi muito criticado, haja vista que a morte não ocorre de um momento para outro, sendo um processo constituído por etapas. Este diagnóstico foi utilizado até a década de 60 para caracterizar a morte. Com a evolução da medicina, contudo, tornou-se possível manter artificialmente as funções cardíacas e respiratórias por períodos indefinidos, carecendo fixar-se um critério mais seguro para definir a morte. Em 1968, um grupo formado por médicos, um advogado, um teólogo e um historiador criou o Comitê de Morte Cerebral de Harvard estabelecendo duas definições de morte: a tradicional cardiopulmonar e a morte cerebral ou encefálica. Nos anos 70 esta definição foi ampliada e em 1981 havia seis diferentes estatutos de morte cerebral nos Estados Unidos, o que evidenciava a necessidade de um consenso entre os médicos. Uma nova comissão foi estabelecida, revisando-se os critérios que determinavam a morte de uma pessoa, criando-se, então, um novo estatuto de pessoa e vida, em que a identidade da pessoa passou a estar centrada na função cerebral ou encefálica. O critério que desde então passou a ser utilizado, persistindo até os dias de hoje e sendo mundialmente aceito, é o de morte encefálica, relacionada ao funcionamento do encéfalo – conjunto formado por cérebro, cerebelo e tronco cerebral15. A utilização do critério de morte encefálica16 como caracterizador da 14 PEREIRA, Victor; MARREY NETO, José Adriano. O momento da morte. Revista dos Tribunais, a. 81, v. 681, p. 435-437, jul. 1992. 15 COUTINHO, Luiz Augusto. Aspectos jurídicos da eutanásia. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, a. II, n. 7, p. 19-37, ago./set. 2005, p. 24. 19 morte surgiu pari passu com o movimento de transplante de tecidos e órgãos, realizado pela primeira vez em 1967, na África do Sul, por Christian Bernard. Era, como ainda é, necessário se definir quando se deu a morte, para que a partir de então fosse autorizado o transplante. A constatação do exato momento da morte é fundamental e deve-se dar o quanto antes, haja vista a imposição de um curto limite de tempo para o aproveitamento de órgãos em transplante. Não obstante o critério de morte encefálica seja o mais aceito para a fixação do exato momento em que se deu a morte e, por conseguinte, do seu conceito, o receio de declaração da morte de pessoas vivas com o fim exclusivo de tráfico de órgão, aliado à descredibilidade da atual relação médico-paciente, faz com que, ainda hoje, este critério seja muito contestado. No Brasil, por exemplo, a Lei 9.434/97, que regulamenta a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante, bem como a resolução 1.480/97 do Conselho Federal de Medicina, que fixa os critérios clínicos e tecnológicos para diagnosticar a morte encefálica, apresentam algumas incoerências que contribuem para o descrédito do critério vigente. Primeiramente insta frisar que a Resolução 1.480/97 dispõe não haver consenso sobre a aplicabilidade do critério de determinação de morte encefálica em crianças menores de sete dias e prematuros. Ocorre que a Resolução 1.346/91, que apenas seis anos antes regulava a matéria, dispunha não haver tal consenso para crianças menores de dois anos. Este fato, por si só, já denota que o critério usado não é tão exato, haja vista que em um breve intervalo de seis anos houve uma flagrante diferenciação de critérios, justificada, possivelmente, pela evolução da medicina. Ademais, a mesma lei que prevê a possibilidade de transplante em pessoas juridicamente incapazes com a autorização de seus representantes legais, se mantém silente quanto aos menores de sete anos e prematuros, o que pode dar lugar ao cometimento de inúmeras arbitrariedades17. Outra incongruência visível na legislação brasileira diz respeito ao fato de que enquanto adota o critério da respiração para configurar o início da pessoa, apregoa a morte encefálica como critério para configurar o fim da pessoa natural. 16 A definição do conceito de morte encefálica teve origem na França, a partir do conceito coma depassé, que se caracterizava como um estado além do coma. Para se evitar confusões com os outros estágios do coma passou-se a utilizar o termo morte encefálica. 17 STANCIOLI, Brunello; CARVALHO, Nara Pereira. A pessoa natural e a morte no direito brasileiro: do romantismo ao biologismo. Revista IOB de Direito Civil e Processual Civil, a. IX, n. 57, p. 51-68, jan./fev. 2009. 20 Além do mais, ao tratar da questão dos recém-nascidos anencéfalos, a Portaria GM/MS nº 487, de 2 de março de 2007, em seu artigo 1º, vaticina que a “retirada de órgãos e/ou tecidos de neonato anencéfalo para fins de transplante, ou tratamento, deverá ser precedida de diagnóstico de parada cardíaca irreversível.” Nota-se, pois, que em caso de anencéfalo o critério de morte encefálica não é suficiente para autorizar o transplante de órgãos e tecidos, o que uma vez mais reforça a fragilidade do critério aceito como mais correto18. Não bastasse isto, de acordo com o que pontua Maria Julia Kovács, os instrumentos utilizados para avaliar a morte encefálica não são tão precisos. O eletroencefalograma, um dos exames clássicos, pode apresentar distorções e a angiografia, outro exame usado, é extremamente invasivo e pode provocar lesões adicionais.19 Assim, como bem asseveram Brunello Stancioli e Nara Pereira Carvalho, “o mesmo critério da morte encefálica, que tenderia a dar maior segurança para médicos, doadores e juristas acerca do fim da pessoa natural, apresenta várias exceções, estando longe de ser uma unanimidade”.20 Vê-se que por mais que a ciência se esforce, é praticamente impossível se chegar a um consenso acerca do que vem a ser vida e morte. A morte é, antes de tudo, um fenômeno cultural sujeito às mais diversas variações no tempo e no espaço, inexistindo uma definição exata e absoluta para a morte. Ainda que seja necessário fixar um conceito para a morte universalmente aceito, como faz a Organização Mundial da Saúde (OMS), sob pena de não o fazendo dar azo a situações esdrúxulas, como, por exemplo, um caso ser tratado como morte em um país e não o ser em outro, o conceito de morte, mais do que um fato, representa um valor, que deve moldar-se à diversidade cultural e à complexidade social. Impor um critério único para configurar a morte, a exemplo da morte encefálica ou qualquer outra, é um atentado a esta diversidade e à própria liberdade humana em inúmeras situações. 18 STANCIOLI, Brunello; CARVALHO, Nara Pereira. A pessoa natural e a morte no direito brasileiro: do romantismo ao biologismo. Revista IOB de Direito Civil e Processual Civil, a. IX, n. 57, p. 51-68, jan./fev. 2009. 19 KOVÁCS, Maria Julia. Bioética nas questões da vida e da morte. Psicologia USP, São Paulo, p. 115-167, 2003. 20 STANCIOLI; CARVALHO, op. cit., p. 64. 21 Neste sentido dispõe Cármen Lúcia Antunes Rocha21 A vida pode começar fora e além, e até mesmo a despeito do homem e da mulher. E pode terminar num tubo de laboratório. Parece haver vida antes da vida, morte antes da morte, e, sempre, a vida peregrina para se viver. Não é um agora fácil. Acho que nunca foi. Mas, hoje, a incerteza é nossa única certeza. E mesmo a morte – a única certeza da vida – ficou meio incerta. Monopolizar nas mãos do médico, ou de algum outro agente de saúde, o poder de dizer o que é morte é extremamente arbitrário e atenta contra a autonomia do paciente. Conceder ao moribundo o direito de definir a sua morte, ao contrário, fixando-lhe o momento, seria a atitude mais correta e justa a ser adotada em alguns casos, afinal o conceito de vida e morte não pode ser dado a priori por um estranho, mas sim no caso concreto, analisando-se as peculiaridades de seu titular. Como bem acentua Luciana Batista Esteves, “a percepção da complexidade da vida em relação à morte, em sua igual complexidade demanda um novo posicionamento do Direito face ao indivíduo”.22 E este novo posicionamento está em deixar para trás uma visão paternalista, levando em conta a autonomia do paciente, uma vez que se “o momento da morte não é mais definido somente por fatos, mas antes por valores, entendemos que cabe à pessoa decidir quais aplicar à sua vida e optar por eles”.23 Até o século XX, a cessação da vida e a morte ocorriam simultaneamente, hoje, todavia, isso não mais ocorre. Como visto, o conceito de vida deve abranger além da vida física ou biológica, a vida formada pelas ações, decisões e acontecimentos, que compõem a biografia da pessoa e lhe confere dignidade. Por fim, vale fazer uma ressalva: não obstante a morte seja frequentemente tratada como o contraponto da vida, estando ambos em lados opostos, não se deve esquecer que a morte está inserida no processo da vida, e, portanto, vida e morte não são conceitos excludentes, mas complementares. Não sendo possível, pois, ver a morte como um momento, um instante exato em que a vida cessa, mas sim como um processo, não há como separá-las 21 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Vida digna: direito, ética e ciência. In: ______ (coord.). O direito à vida digna. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 12. 22 ESTEVES, Luciana Batista. (In) disponibilidade da vida? Revista de Direito Privado, a. 6, n. 24, p.89-111, out./dez. 2005, p. 91. 23 Ibidem, p. 95. 22 em blocos estanques. É preciso entender que a morte, tal qual o nascimento, é parte integrante da vida e assim deve ser encarada. 2.3 ESTÁGIOS DO PROCESSO DE MORTE A morte, não obstante seja um fenômeno natural e integrante da vida, é ocultada e negada pela sociedade contemporânea, que a vê como um mal, ou, nas palavras de Hubert Lepargneur o “último inimigo natural do homem a ser vencido”.24 O ser humano, ao contrário dos outros animais, é marcado por dois grandes temores: o medo da vida e o medo da morte e, como mecanismo de defesa, aprende, desde criança, a mascarar estes medos. Uma das formas mais comuns de fazer isto é reprimindo o conhecimento da própria mortalidade, farsa esta denominada por Ernest Becker25 de mentira vital. O referido autor tenta explicar o mecanismo do medo da morte fazendo uso de duas teorias contrapostas: o argumento da mente sadia e o argumento da mente mórbida. De acordo com a primeira tese, o medo da morte não é algo natural do ser humano, algo que lhe é inerente. Este temor é adquirido ao longo dos anos, devido à sua interação social. Para os mais radicais, o ônus desta ansiedade depende da educação da criança; para os menos radicais, o medo da morte está associado às experiências das crianças com seus pais. Já para a segunda corrente, a que se filia Ernest Becker, o medo da morte é algo natural, instintivo ao homem e que lhe ajuda a autopreservarse. Ainda segundo Ernest Becker, o fato de algumas pessoas não aparentarem medo da morte poderia levar a crer que ele não é algo natural. Ocorre que esta “ausência de medo” está diretamente ligada à eficácia da repressão, entendida como uma técnica para evitarmos a consciência de verdades desagradáveis e perigosas. Este poder de repreender o medo da morte depende daquilo que o psicanalista Leon J. Saul26 chama de “sustentação interna”, que é o sentimento que faz com que as pessoas enfrentem as agruras da vida com mais 24 LEPARGNEUR, Hubert. Lugar atual a morte: antropologia, medicina e religião. São Paulo: Paulinas, 1986, p. 29. 25 BECKER, Ernest. A negação da morte – uma abordagem psicológica sobre a finitude humana. 3. ed. Tradução de Luiz Carlos do Nascimento Silva. Rio de Janeiro: Record, 2007. 26 SAUL, Leon J. apud BECKER, Ernest. A negação da morte – uma abordagem psicológica sobre a finitude humana. 3. ed. Tradução de Luiz Carlos do Nascimento Silva. Rio de Janeiro: Record, 2007. 23 confiança, reduzindo, assim, ou melhor, repreendendo, de forma mais eficaz, o medo da morte. Esta sustentação interna está ligada às experiências de vida, o que acaba por significar que o medo da morte, apesar de ser algo natural, não está desvinculado das experiências vividas27. Vale ressaltar, ainda, um outro traço marcante do ser humano levantado por Ernest Becker quanto ao temor da morte. Segundo ele, temos uma tendência de criar baluartes e heróis contra a morte e esta tendência representa um dos aspectos da transferência, função natural do heroísmo. Transferimos para estes heróis a função de “combater a morte”. Quando estes heróis, contudo, se vão, a farsa resta prejudicada e as pessoas tomam consciência de sua própria mortalidade28. Uma das formas da humanidade transcender o terrível custo cobrado pelo temor da morte é viver plenamente o corpo, sem permitir que qualquer vida não vivida envenene a existência, mine o prazer e deixe resíduos de tristeza29. Afinal, esta atitude de negação da morte só contribui para transformá-la em um tabu e aumentar o sofrimento humano ante a sua iminência. A forma como a morte é encarada atualmente faz com que ela seja cercada de sofrimento, e antes de ser aceita, o paciente passa por alguns estágios muito dolorosos. Elisabeth Kubler-Ross30 foi a pioneira ao traçar os estágios por que passam, em grande parte, as pessoas ante a descoberta de morte iminente, senão vejamos: O primeiro estágio é o da negação e isolamento. Assim que tomam conhecimento da fase terminal de sua doença, é comum os pacientes negarem a veracidade deste fato e irem em busca de outros profissionais da medicina que lhes dêem outro diagnóstico. Esta fase de negação de sua condição fatal funciona como um mecanismo de defesa do paciente ante notícias chocantes e inesperadas e, frequentemente, não dura muito tempo, mas o tempo suficiente para que possa se recuperar da sensação inicial de torpor. Funciona, pois, como uma fase de 27 BECKER, Ernest. A negação da morte – uma abordagem psicológica sobre a finitude humana. 3. ed. Tradução de Luiz Carlos do Nascimento Silva. Rio de Janeiro: Record, 2007. 28 Ibidem. 29 BROWN apud BECKER, Ernest. A negação da morte – uma abordagem psicológica sobre a finitude humana. 3. ed. Tradução de Luiz Carlos do Nascimento Silva. Rio de Janeiro: Record, 2007. 30 KUBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a morte e o morrer: o que os doentes terminais têm para ensinar a médicos, enfermeiras, religiosos e os seus próprios parentes. Traduzido por Paulo Menezes. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 24 adaptação e tomada de consciência de que, em verdade, não somos imortais. 31 O segundo estágio é o da raiva. Após um período inicial de negação, o paciente é tomado por um sentimento de raiva, revolta. Surge, frequentemente, a pergunta: Por que eu? Nesta fase é comum o paciente ser hostil com familiares e integrantes da equipe hospitalar, bem como ser acometido por uma intensa descrença religiosa. Não consegue entender por que Deus está lhe submetendo a tamanha dor e sofrimento e passa a questionar a sua existência e bondade. O terceiro estágio é o da barganha, em que os pacientes tentam fazer acordos para adiar a morte. Prometem bom comportamento com o objetivo de ter adiado o desfecho inevitável. A maioria das barganhas são feitas com Deus, e o paciente traça metas que ainda deseja cumprir em vida. O quarto estágio é o da depressão. Quando o paciente não mais puder negar o seu estado e a raiva se amenizar, será acometido por um sentimento de grande perda. Aqui se faz mister diferenciar a depressão reativa a uma má notícia e uma depressão preparatória para a inevitabilidade da morte. Na primeira, é essencial a acolhida e o conforto dos entes queridos, com o objetivo de amenizar o sofrimento do paciente e ajudá-lo a reorganizar a vida. Já na segunda deve-se respeitar o recolhimento do paciente que se prepara para o inevitável e não deve haver uma tentativa de alteração do seu estado. O silêncio e a calma devem imperar neste momento e o estar próximo e cuidar é muito mais eficiente que qualquer conversa ou gargalhada, sendo contra-indicado o excesso de visitas ou a tentativa de animar o paciente. Enquanto na depressão reativa o paciente se preocupa com as coisas que ficarão para trás; na depressão preparatória o paciente se preocupa com o porvir. Neste estágio, observa-se no paciente uma sensação de esvaziamento e perda. 32 O último estágio é o da aceitação. A aceitação é o momento final de um processo que envolveu a negação, raiva, barganha e depressão. Neste estágio o paciente desiste de lutar contra o seu inimigo invencível e se desliga do mundo, se entrega ao repouso derradeiro antes da longa viagem (decatexia). O paciente quer ficar recolhido, sem receber visitas e não sente vontade de conversar. Isto, todavia, não significa que queira ser abandonado. Ao contrário, é neste instante que se sente 31 KUBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a morte e o morrer: o que os doentes terminais têm para ensinar a médicos, enfermeiras, religiosos e os seus próprios parentes. Traduzido por Paulo Menezes. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 44-47. 32 Ibidem, p. 94. 25 reconfortado se, mesmo sabendo que nada mais pode ser feito, estiver acompanhado. É o momento em que o paciente aceita definitivamente a doença e a morte. Marie de Hennezel33 aponta a importância, em todos os estágios da morte, da haptonomia, ciência da afetividade, que prega o contato afetivo espontâneo entre pessoas, e explica como o toque, o contato físico, é útil no tratamento de pacientes terminais, garantindo-lhes bem estar e segurança. Vale ressaltar que não só os pacientes, mas seus familiares também passam por estágios de adaptação. São eles: choque, realização da situação e da possível perda e reorganização da vida em novos patamares. No primeiro estágio, como o próprio nome já sugere, os amigos e familiares são surpreendidos com a notícia de morte iminente, reagindo com torpor. No segundo estágio passam a ter percepção da veracidade da situação e, assim como ocorre com os pacientes, esta fase pode ser marcada pela raiva, tristeza, culpa, medo e dor. Por fim, no terceiro estágio os familiares passam a reorganizar as suas vidas incluindo a possibilidade de perda34. Maria Julis Kovács35 aponta, ainda, que estes estágios de adaptação por que passam os familiares podem ser agravados por alguns fatores que ela chama de fatores de risco, a exemplo do aparecimento repentino da doença, desunião familiar, problemas econômicos e sentimento de culpa. Um outro aspecto a ser levado em conta diz respeito à postura dos amigos e familiares na fase terminal do paciente. É comum omitir do doente a sua real situação ou até mesmo evitar falar sobre o assunto. É como se a morte fosse motivo de vergonha e o silêncio pudesse torná-la mais distante. Tal conduta, todavia, não é a mais indicada. Segundo Elisabeth Kluber-Ross, prejudicamos mais os pacientes e a nós mesmos omitindo o assunto do que aproveitando e encontrando tempo para sentar à cabeceira, ouvir e compartilhar. Até porque “a morte em si não é um problema para o paciente, mas o medo de morrer nasce do sentimento de desesperança, de desamparo e isolamento que a acompanha”.36 33 HENNEZEL, Marie de. A morte íntima: aqueles que vão morrer nos ensinam a viver. Tradução Olga de Sá. Aparecida, SP: Idéias e Letras, 2004. 34 PARKERS apud KOVÁCS, Maria Julia. Educação para a morte. Temas e reflexões. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. 35 KOVÁCS, Maria Julia. Educação para a morte. Temas e reflexões. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. 36 KUBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a morte e o morrer: o que os doentes terminais têm para ensinar a médicos, enfermeiras, religiosos e os seus próprios parentes. Traduzido por Paulo Menezes. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 273. 26 Quanto a este aspecto vale ressaltar que a doença não é do médico nem dos seus familiares, mas do doente, não sendo justo, pois, privá-lo da realidade do seu destino. Ademais, além do sofrimento causado pela própria doença, o paciente a quem é negada a verdade sofre a angústia da dúvida, pois embora todos lhe digam que o seu caso é reversível e que em breve estará bom, não é isto o que sente cotidianamente. “A mentira também é contagiosa: uma primeira inverdade obriga em geral a entrar numa série. Ao passo que a verdade, sempre ameaçada, deve gerar entendimento universalizável; ela é coerência, saúde do corpo social.”37 Não se pode negar que há, todavia, aqueles pacientes que se recusam em saber a verdade e, nestes casos, cabe aos médicos e familiares terem a sensibilidade de não impô-la a qualquer custo, respeitando, assim, a vontade do moribundo. Isso, no entanto, é uma exceção e pode-se afirmar que a regra é que dizer a verdade é mais benéfico tanto ao paciente quanto aos seus entes queridos. Por fim, pode-se asseverar que os chamados estágios do processo de morte, sejam dos próprios pacientes ou de seus familiares, têm duração variada e seguem ordens diversas a depender da pessoa, mas em todos eles a esperança persiste, mesmo que de forma maquiada. É a esperança aliada à confiança que permitirão o enfrentamento digno e menos doloroso do processo de morte. A morte, apesar de nos dias atuais ser visto como um fenômeno sofrido, pode ser um momento de crescimento e evolução, e é por isto que devemos lutar. 2.4 A TRAJETÓRIA DO COMPORTAMENTO HUMANO DIANTE DA MORTE Diante da morte, o homem pode assumir diferentes posturas, e a forma mais comum do homem enfrentar a finitude da vida é mitologizar a morte pela idéia na existência de outra vida. Evita-se também a idéia da morte afastando-a de nós mesmos, com a crença de que os outros morrem, mas nós somos imortais. Por fim, uma outra postura diante da morte é encará-la como um fato natural.38 A postura humana diante da morte está intimamente relacionada ao tempo e à sociedade em que se vive. Quem melhor traça a trajetória do 37 LEPARGNEUR, Hubert. Lugar atual a morte: antropologia, medicina e religião. São Paulo: Paulinas, 1986, p. 41. 38 ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos – seguido de envelhecer e morrer. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. 27 comportamento do homem diante da morte no mundo ocidental é o historiador francês Philippe Áries. Segundo ele, esta evolução pode ser dividida em quatro fases: morte domada, morte de si mesmo, morte do outro e morte interdita39. Na fase da morte domada, no período da Alta Idade Média, o homem era senhor de sua morte, tomando ele próprio as providências que julgasse necessárias para o fim da sua vida. À época, a morte era fenômeno familiar e o moribundo dava seus últimos suspiros cercado por parentes e amigos, inclusive por crianças. 40 A morte era uma cerimônia pública e organizada. No período da Idade Média a morte era esperada e ritualizada, sendo a morte repentina vergonhosa e não desejada, ao contrário do que ocorre hoje. As características mais marcantes do processo de morte neste período (século V até XVIII) são: simplicidade das cerimônias, publicidade, familiaridade e, associado a esta idéia, a insensibilidade e resignação. Paradoxalmente, embora este período seja caracterizado pela familiaridade com a morte, com o moribundo cercado pelos seus parentes e amigos, o morto deveria ficar o mais longe possível dos vivos, para não perturbá-los. Embora inicialmente os mortos fossem enterrados em igreja, posteriormente foram criados cemitérios, que deveriam estar fora das cidades e os mortos em sepulturas adequadas. Na segunda fase, morte de si mesmo, a partir dos séculos XI e XII, não se verificou uma mudança significativa na atitude do homem diante da morte, mas, neste período, o homem tomou consciência de sua individualidade, contrariando a destinação coletiva que se atribuía à morte até então. “No espelho de sua própria morte, cada homem redescobria o segredo de sua individualidade”41. Nesta época merece destaque a idéia do julgamento final e a salvação da alma, e o morto vira testemunha de sua morte. Com o desenvolvimento industrial, a morte vai se 39 ARIÉS, Philippe. História da morte no Ocidente. Tradução Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. 40 Norbet Elias critica a opinião de Philippe Ariés ao tentar transmitir a idéia de que antigamente as pessoas morriam calmas e serenas. Segundo ele, na Idade Média a morte era menos oculta do que nos dias atuais, o que não significa dizer que fosse menos sofrida, ou menos aterrorizadora, especialmente com a propagação das pestes; o que era reconfortante naquela época era a presença dos familiares e amigos na hora da morte, uma vez que a morte era um evento público, ao contrário do que ocorre hoje, quando os moribundos passam os seus últimos momentos de vida sozinhos em leito de hospitais, como se a morte fosse contagiosa. De acordo com o autor, ainda que a morte não fosse considerada tabu, como é hoje, na Idade Média o medo da morte também estava presente, o que mudava era apenas a forma como este medo era encoberto. [ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos – seguido de envelhecer e morrer. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001]. 41 ARIÉS, op. cit., p. 63. 28 tornando selvagem e reduz-se a publicidade dos eventos fúnebres e, nas artes, ganham destaque os temas macabros, e a morte é pintada como algo horrível. Já na fase da morte do outro, a partir do século XVIII, o homem ocupava-se menos de sua morte e passou a dar maior atenção à morte do outro, cercando-a de emoção e de dramaticidade. “Os sobreviventes aceitam com mais dificuldade a morte do outro do que o faziam anteriormente. A morte temida não era mais a própria morte, mas a do outro”.42 A partir do séc. XIX o modo de encarar a morte sofreu uma grande mudança. A morte era vista como uma possibilidade de fuga para o além e com isso passou a ser desejada e suavizada, recebendo uma visão romântica. Na quarta e última fase, a morte interdita, a partir da segunda metade do século XIX, ocorre a mais drástica mudança no comportamento do homem ocidental perante a morte. A partir de então, deixa de ser algo familiar e aceitável, tornando-se vergonhosa. O doente não mais conduz o seu ritual de morte e a sua vontade não é mais levada em consideração. “A caminho do século XX, a morte não é vista nem como horrível, nem como agradável, torna-se simplesmente ausente”43, é como se ela sequer existisse. Nesta fase a morte torna-se medicalizada, isto é, transferida para os hospitais. Os agentes de saúde adquirem papel de grande relevância neste processo e, com o avanço médico, os interesses pelos sintomas e diagnósticos da doença se sobrepõem aos próprios doentes. A morte deixa de ser romântica, tornando-se “suja”, e a exposição da decadência do corpo traz repugnância, devendo, portanto, ser escondida. Neste contexto, o hospital desenvolve muito bem esta tarefa de ocultamento da morte. A cena do moribundo cercado por seus familiares nos seus últimos instantes de vida é substituída pela solidão de um leito de hospital. “É a morte burocratizada, conveniente a todos, pois não se dá a perceber”44. A própria expressão de luto torna-se mais discreta, sendo causa de constrangimento e a solidão predomina no momento da morte. De acordo com Nobert Elias45, hodiernamente, nos casos em que a morte não se dá de forma instantânea, mas através de um processo longo e 42 ARIÉS, Philippe. História da morte no Ocidente. Tradução Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003, p. 72. 43 KOVÁCS, Maria Julia. Educação para a morte. Temas e reflexões. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003, p. 64. 44 Ibidem, p. 68. 45 ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos – seguido de envelhecer e morrer. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. 29 demorado, o mais difícil é o isolamento dos moribundos, e isso é muito freqüente nas sociedades atuais, em que os vivos acham difícil lidar com aqueles que estão prestes a morrer. Atualmente, tenta-se ajudar o doente promovendo o seu conforto físico, em detrimento do psicológico, o que faz com que os moribundos sintam-se cada vez mais sós nos seus últimos instantes de vida. Esta solidão, entendida como a ausência de significado afetivo para outras pessoas, é agravada pela própria rotina dos hospitais, que embora sejam capazes de oferecer o melhor tratamento biofísico para os seus pacientes, não sabem lidar com os seus sentimentos. Noutros termos, cuida-se de órgão em detrimento das pessoas. “Nunca antes as pessoas morreram tão silenciosa e higienicamente como hoje nessas sociedades, e nunca em condições tão propícias à solidão”.46 Além destes quatro estágios evolutivos de como o homem ocidental passou a se comportar diante da morte ao longo dos anos, traçados por Philippe Ariés, Maria Julia Kovács47 nos traz um novo retrato da morte, comum em nosso século: é a morte escancarada, cujos exemplos mais comuns são a morte violenta e a morte veiculada nos órgãos de comunicação. É tida por escancarada porque invade a vida de todas as pessoas, que não têm como desenvolver mecanismos de defesa contra ela. No caso do Brasil, a trajetória da morte, de acordo com Brunello Stancioli e Nara Pereira Carvalho48, pode ser resumida em três fases: a morte romântica nas mãos da igreja (século XVIII e início do século XIX); higienismo: a morte como desgraça potencial (século XIX); e a morte pelas mãos da medicina: o impacto do desenvolvimento das ciências biológicas e a legislação brasileira hodierna (século XX aos dias atuais). Na primeira fase a morte possuía uma forte conotação religiosa e era impregnada de misticismo. A medicina resumia-se a um cuidado de segunda ordem, que procedia o cuidado espiritual e a ele estava subordinado. Neste período, os mortos eram enterrados nas igrejas, e esta conduta era regulamentada pelas 46 ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos – seguido de envelhecer e morrer. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 98. 47 KOVÁCS, Maria Julia. Educação para a morte. Temas e reflexões. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. 48 STANCIOLI, Brunello; CARVALHO, Nara Pereira. A pessoa natural e a morte no direito brasileiro: do romantismo ao biologismo. Revista IOB de Direito Civil e Processual Civil, a. IX, n. 57, p. 51-68, jan./fev. 2009. 30 Constituições do Arcebispado da Bahia. Esta prática perdurou até o ano de 1856, quando o Brasil foi acometido por uma epidemia de cólera, inaugurando-se, a partir de então, a fase do higienismo. Na segunda fase, a medicina foi oficializada e sofreu um grande avanço, com forte influência do positivismo de Comte e da razão científica. A religião perdeu lugar para a ciência médica, que passou a ter o total controle do organismo humano, ocorrendo um processo de medicalização da morte. Os surtos de cólera e febre amarela, acentuados pela urbanização do país atemorizaram a população e provocaram uma mudança de postura do brasileiro frente à morte. Para evitar o contágio das doenças, o moribundo era conduzido, até mesmo coercitivamente, aos hospitais, onde deveria morrer da forma higienicamente correta. Já a transmissão de doenças foi evitada com a criação de cemitérios distantes das cidades e os enterros deixaram de ser realizados nas igrejas. Neste período a morte é fortemente controlada pela medicina sanitarista. Esta fase vai até meados da década de 1930, quando o desenvolvimento de antibióticos e regras básicas de higiene desarmaram o exército sanitarista. A terceira fase é marcada pela biologização da vida. As técnicas de reanimação cardio-respiratória e o transplante de órgãos alteram o próprio conceito de morte reinante na época, passando-se a adotar o critério legal de morte encefálica como fim da pessoa natural, regulamentado pela Lei 9.434 de 4 de fevereiro de 1997. O processo de morte deixa de ser pessoal para transformar-se em algo alheio à vontade do doente. Nota-se, portanto, que no Brasil, seguindo a cultura ocidental, a morte deixa de ser um fenômeno natural e aceito pela população, transformando-se em algo vergonhoso que deve ser ocultado, sinônimo de fracasso. Neste aspecto, vale ressaltar a diferença de postura dos ocidentais e orientais diante da morte. No Oriente “a morte é vista como um processo que favorece uma evolução do ser humano, e por isto deve-se propor ensinamentos que propiciem crescimento ainda em vida.”49 A morte não representa fracasso ou finitude, mas transição, evolução. “Se pudéssemos resumir em uma palavra o que 49 KOVÁCS, Maria Julia. Educação para a morte. Temas e reflexões. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003, p. 75. 31 traduz a visão da morte, no ocidente seria negação, no oriente preparação.”50 Nada obstante a postura atual dos ocidentais diante da morte seja de temor e negação, vem-se promovendo no mundo uma tentativa de rehumanização da morte, com um retorno à fase da morte domada, em que as pessoas morriam em casa, cercadas por familiares e amigos, e não na solidão de uma Unidade de Terapia Intensiva. Elisabeth Kubler-Ross51 é quem melhor vem desenvolvendo estudos sobre o tema com intuito de re-humanizar o processo de morte, ou seja, prega que a dignidade seja mantida até o último momento. Humanizar significa reconhecer que o outro tem vontade e levar em consideração esta vontade e as necessidades de cada paciente. Exercer autonomia não é sempre fácil, mas faz parte do compromisso com a dignidade do ser humano ajudá-lo a enfrentar suas angústias e seus medos e, livre e esclarecido, a assumir seu viver e seu morrer, não no isolamento do abandono, mas apoiado solidariamente pela equipe hospitalar e pelos amigos e parentes. Mesmo colocando bastante ênfase na autonomia, reconhecemos que a liberdade não é um valor absoluto, mas é um valor que dignifica a pessoa, e a promoção da autonomia do doente precisa ser uma das características fundamentais da humanização hospitalar.52 A busca da rehumanização é fortalecida pelo movimento de cuidados paliativos, cujo desenvolvimento deve-se em grande parte a Cicely Saunders, pioneira do movimento hospice. Os hospices surgiram como uma reação à medicalização da morte, e são instituições destinadas a cuidar de pacientes em fase terminal, haja vista a cura não ser mais possível. A proposta dos cuidados paliativos é oferecer segurança e afeto aos pacientes terminais. Quando do surgimento do movimento dos cuidados paliativos havia uma distinção entre cuidados ativos e paliativos. Os primeiros tinham por objetivo a cura, e os paliativos só tinham lugar quando a cura não era mais possível, buscando a qualidade de vida dos pacientes terminais. Hoje, não ocorre mais esta distinção, e a qualidade de vida é buscada em todos os momentos do tratamento. 50 KOVÁCS, Maria Julia. Educação para a morte. Temas e reflexões. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003, p. 76. 51 KUBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a morte e o morrer: o que os doentes terminais têm para ensinar a médicos, enfermeiras, religiosos e os seus próprios parentes. Traduzido por Paulo Menezes. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 52 MARTIN, Leonard M. A ética e a humanização hospitalar. In: PESSINI, Leo; BERTACHINI, Luciana (org.). Humanização e cuidados paliativos. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 41. 32 Atualmente, o movimento dos cuidados paliativos, embora venha ganhando maior destaque, ainda é desconhecido em grande parte dos países, e isso se deve, de acordo com Marie Mccoughlan53, basicamente, por duas razões. Nos países ricos do Ocidente a morte é ocultada e negada, e, portanto, os cuidados paliativos não têm razão de ser. Já nos países pobres, as prioridades giram em torno das necessidades básicas, e os cuidados paliativos são vistos como artigo de luxo. A palavra paliativo deriva do latim pallium, que significa manta ou coberta. Assim, quando a causa da doença não puder ser curada, os sintomas são cobertos com tratamentos específicos54. A filosofia do movimento de cuidados paliativos é aliviar o sofrimento do paciente, aprimorando a sua qualidade de vida. De acordo com a Organização Mundial de saúde, a sua função é promover o cuidado ativo e total dos pacientes cuja enfermidade não responde mais aos tratamentos curativos. Controle da dor e de outros sintomas, entre outros problemas sociais e espirituais, são da maior importância. O objetivo dos cuidados paliativos é atingir a melhor qualidade de vida possível para os pacientes e suas famílias.55 Vê-se, pois, que o importante para o movimento dos cuidados paliativos é a qualidade de vida, e não a sua quantidade. A sua razão de ser é a dignidade humana. A medicina paliativa é marcada por cinco princípios éticos, a saber: 1) Veracidade, que consiste em um compromisso com a verdade dos fatos; 2) Proporcionalidade terapêutica, segundo o qual se deve observar uma relação de proporção entre os meios empregados e os resultados obtidos; 3) Duplo efeito, ou seja, a prescrição de remédios analgésicos deve ter por objetivo o alívio da dor e não a abreviação da morte que, caso ocorra, não terá sido intencional; 4) Prevenção, que é a implementação de medidas necessárias para prevenir as complicações mais freqüentes de determinada enfermidade; 5) Não-abandono e tratamento da dor, em que o agente de saúde tem o dever ético de não abandonar o 53 MCCOUGHLAN, Marie. A necessidade de cuidados paliativos. In: PESSINI, Leo; BERTACHINI, Luciana (org.). Humanização e cuidados paliativos. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 167180. 54 PESSINI, Leocir. A filosofia dos cuidados paliativos: uma resposta diante da obstinação terapêutica. In: PESSINI, Leocir; BERTACHINI, Luciana (org.). Humanização e cuidados paliativos. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 181-206. 55 MCCOUGHLAN, op. cit., p.169. 33 seu paciente, estabelecendo uma forma de comunicação empática e com vistas a garantir-lhe a dignidade no processo de morrer56. Assim, o processo de humanização da morte, aliado à filosofia dos cuidados paliativos, promovem um retorno à fase da morte domada, aceitando a morte como uma condição inerente do ser humano. A saúde não é vista como mera ausência de doença, mas como bem-estar do paciente e, consequentemente, aqueles doentes sem possibilidade terapêutica de cura merecem ter a sua saúde preservada até o último instante de suas vidas. 2.5 MEDICALIZAÇÃO DA MORTE A evolução da postura do homem diante da morte ao longo dos anos culmina, como visto, com o que se convencionou chamar hoje de medicalização da morte. Noutros termos, não se morre mais em casa, com a presença de familiares e amigos, mas no hospital. Os hospitais adquiriram o status das antigas catedrais, onde se recapitulam todas as fases da vida do ser humano, desde o nascimento até a morte. 57 Para chegar a este estágio, os hospitais sofreram transformações radicais ao longo dos séculos58. Até o século XVIII, o hospital era destinado essencialmente aos doentes pobres, cujas famílias não tinham condições de tratá-los em suas residências. O hospital desempenhava, assim, a função de assisti-los e mantê-los distantes do restante da sociedade, minorando os perigos de contágio. Nesta instituição o objetivo não era a cura, mas a assistência material e espiritual do enfermo que estava na iminência de morrer. O hospital era o local aonde se ia para morrer. Com o passar dos anos e com as inúmeras descobertas científicas, o hospital se profissionalizou e deixou de ser um morredouro para se transformar em um local destinado a promover a cura de enfermidades. “Progressivamente, o 56 PESSINI, Leocir. A filosofia dos cuidados paliativos: uma resposta diante da obstinação terapêutica. In: PESSINI, Leocir; BERTACHINI, Luciana (org.). Humanização e cuidados paliativos. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 181-206 57 Idem. Humanização da dor e do sofrimento humano na área da saúde. In: PESSINI, Leocir; BERTACHINI, Luciana (org.). Humanização e cuidados paliativos. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 11-30. 58 Ibidem. 34 hospital se torna um lugar onde se pratica a medicina curativa e onde o espaço para os desenganados pelos médicos e para os cuidados paliativos se reduz drasticamente.”59 De acordo com Leonardo M. Martin60 esta profissionalização hospitalar desenvolve-se dentro de três paradigmas, muitas vezes conflitantes. São eles: a) o paradigma tecnocientífico. O hospital se transforma em um centro de excelência científica. Nesta senda, os valores primordiais perseguidos são o conhecimento científico e a eficiência técnica e, como conseqüência, a preocupação do profissional de saúde passa a ser a doença e sua cura, e não mais o paciente; b) o paradigma comercial-empresarial. A medicina perde o seu caráter altruísta e se transforma em negócio. Os hospitais tornam-se empresas capazes de gerar enormes lucros e, consequentemente, o paciente vira propriedade da instituição, perdendo-se os laços mais personalizados que humanizavam a tradicional relação médico-paciente; c) paradigma benigno-humanitário. Surge como contraponto dos dois anteriores. Por este paradigma a pessoa é considerada prioridade. Os interesses científicos e econômicos devem estar a serviço do ser humano. Atualmente, o que se tem visto na maioria dos hospitais é a priorização dos paradigmas tecnocientíficos e comercial-empresarial em detrimento do benignohumanitário, o que denota a frieza e impessoalidade com que os pacientes são tratados nestas instituições. Augusto Cury61 faz uma crítica veemente ao modo como a medicina se tornou escrava da tecnologia, sem se preocupar com os sentimentos dos pacientes. Muitos aparelhos, muitos exames, muitos procedimentos, mas pouca sensibilidade para descobrir as causas emocionais e sociais. A ansiedade na gênese dos infartos quase não era levada em conta. O estresse escondido nos bastidores dos cânceres era pouco analisado. Os pensamentos antecipatórios por trás das gastrites, hipertensão arterial, cefaléias, dores musculares raramente eram investigados. 62 Não se pode deixar de reconhecer as vantagens do avanço tecnocientífico da medicina, que descobriu a cura de doenças antes incuráveis e 59 MARTIN, Leonardo M. A ética e a humanização hospitalar. In: PESSINI, Leocir; BERTACHINI, Luciana (org.). Humanização e cuidados paliativos. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 33. 60 Ibidem. 61 CURY, Augusto. O futuro da humanidade: a saga de um pensador. Rio de Janeiro: Sextante, 2005, p. 108. 62 Ibidem, loc. cit. 35 criou aparelhos que reduziram drasticamente o índice de mortalidade nos hospitais. Mas graças também a este avanço o homem foi desapropriado do seu momento de morte, transformando-se em mero depositário de doenças que devem ser curadas a qualquer custo, mesmo que isso represente a privação total da autonomia dos pacientes. Neste processo de medicalização da morte, o cuidar cedeu lugar ao curar. Não se está a dizer que a cura não seja importante, o grande problema, todavia, de uma medicina voltada exageradamente para a cura é que há situações em que ela, apesar de todo o avanço da medicina, não é possível e, nestes casos, a medicina tem mostrado todo o seu despreparo. O papel do médico não deve ser o de curar, unicamente, mas, principalmente aliviar o sofrimento humano. De acordo com Drauzio Varela63, “na medicina, curar é objetivo secundário, se tanto. A finalidade primordial de nossa profissão é aliviar o sofrimento humano.” Segundo o autor, perseguir a cura a qualquer custo, em inúmeros casos, não é a medida mais indicada a ser adotada pelo bom profissional, representando antes a satisfação à vaidade do médico que os interesses do doente. Hoje os médicos são formados para tratar das doenças e não das pessoas. O maior inimigo dos agentes de saúde é a morte, que representa o fracasso da medicina, e, portanto, deve ser combatida com todos os meios, mesmo que para tanto o paciente perca a sua humanidade e seja submetido a tratamentos fúteis e degradantes. Esta postura, comum nos hospitais e na medicina atual, contribui para majorar o sofrimento e a dor do paciente, em suas dimensões psíquica, social e espiritual64, além de desgastar a relação médico-paciente. O que se vê é que a tecnologia substituiu o contato do médico com o paciente. As crescentes especializações dos médicos também contribuem para o afastamento com o paciente e, como se não bastasse, a interposição institucional, pública ou privada, impõe um distanciamento ainda maior entre o doente e o profissional, que, muitas vezes, sequer tem tempo de se apresentar ou de saber o 63 VARELLA, Drauzio. Por um fio. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 147. Aqui vale a pena frisar que o sofrimento e a dor possuem várias dimensões: física, psíquica, social (marcada pelo isolamento) e espiritual (marcada pela perda de esperança). Nada obstante a dor física seja mais facilmente controlada, a medicina atual não se encontra preparada para lidar com as dimensões psíquica, social e espiritual. [PESSINI, Leocir. Humanização da dor e do sofrimento humano na área da saúde. In: PESSINI, Leocir; BERTACHINI, Luciana (org.). Humanização e cuidados paliativos. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006]. 64 36 nome do paciente.65 Com o intuito de resgatar a credibilidade desta relação médicopaciente, outrora tão forte, deve-se primar pelo direito à informação e o direito ao consentimento. Como dito anteriormente, o paciente tem o direito de saber o seu real estado de saúde. A verdade é fundamental, e no ordenamento brasileiro é constitucionalmente assegurado pelo artigo 5º, XIV. Ao lado do direito de informação encontra-se o direito ao consentimento, surgindo daí a expressão consentimento informado, que tem por marca o diálogo e colaboração entre médico e paciente, visando a satisfazer a vontade e os valores deste. O consentimento informado está estritamente vinculado à autonomia privada do paciente, e pode se manifestar de diversos modos. Nos Estados Unidos, por exemplo, em 1º de dezembro de 1991 entrou em vigor uma lei que regula a relação médico-paciente: é o The Patient SelfDetermination Act (PSDA), que reconheceu a autonomia do paciente, inclusive para recusar tratamento médico que considere invasivo66. Corroborando este entendimento, Leonard M. Martin assevera: No contexto da relação profissional de saúde-paciente, há mais dois direitos que, se fossem respeitados, contribuiriam muito para o processo de humanização hospitalar. O primeiro é o direito do doente de saber sobre a realidade da sua situação: diagnóstico, prognóstico, propostas de tratamento, tudo, enfim, que tem a ver com seu bem-estar, sua autonomia e sua dignidade. O segundo é o direito do paciente de decidir sobre sua vida, e de participar no processo de decisão sobre os procedimentos a adotar em relação à sua terapia.67 Não bastasse a mudança sofrida na relação estabelecida entre médico e paciente, com a medicalização da morte, ela deixa de ser o fenômeno natural de outrora para transformar-se em algo vergonhoso. O paciente, por sua vez, deixa de presidir a sua morte, e a sua vontade sequer é levada em conta. O moribundo não morre mais em casa, ao lado de parentes e amigos, mas nos hospitais, tendo por companhia fios, tubos e aparelhos. Graças ao desenvolvimento tecnológico, a morte deixa de ser um momento, e se transforma em um processo, muitas vezes doloroso. Este processo, que deixa de ser natural, pode ser artificialmente prolongado a depender da vontade 65 SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de morrer: eutanásia, suicídio assistido. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. 66 Ibidem. 67 MARTIN, Leonard M. A ética e a humanização hospitalar. In: PESSINI, Leocir; BERTACHINI, Luciana (org.). Humanização e cuidados paliativos. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 49. 37 da equipe médica. “Se a morte não pode ser suprimida pode ser estendida, dando uma falsa idéia de onipotência e de vitória”68. O prolongamento do processo de morte pode chegar ao exagero, dando azo ao surgimento do termo “obstinação terapêutica”, que significa utilizar-se de todos os meios disponíveis para manter o paciente vivo, mesmo que não lhe reste nenhum resquício de vida. Noutros termos, mesmo naqueles pacientes sem qualquer possibilidade de cura, conhecido como pacientes terminais, luta-se por mantê-los vivos a qualquer custo, ao invés de deixálos morrer no momento certo. Esta situação permite uma interferência mais incisiva na vida humana por parte dos profissionais de saúde, levando ao processo de prolongamento artificial da vida e implicando repensar de forma mais apurada temas como a eutanásia e conceitos correlatos. Antes de se adentrar na distinção entre eutanásia e seus conceitos correlatos, contudo, faz-se mister destacar que em algumas situações, graças ao desenvolvimento de técnicas médicas que permitem a manutenção artificial da vida, torna-se extremamente difícil se ter certeza se a barreira da morte foi transposta. Neste aspecto, é imprescindível distinguir morte real, morte aparente e estados intermediários no final da vida. Está-se diante da morte real nos casos de morte encefálica, critério atualmente aceito para caracterizar a morte e já tratado anteriormente. Já a morte aparente é aquela na qual os sinais vitais encontram-se temporariamente deprimidos, o que, com um exame clínico menos apurado, poderia confundir-se com a morte real. A morte aparente, contudo, caracteriza-se por sua reversibilidade e transitoriedade. Os estados intermediários no final da vida, por seu turno, caracterizam-se por serem mais duradouros e, em grande parte dos casos, irreversíveis. São as hipóteses de coma grave, estado vegetativo persistente, paciente sem prognóstico de cura e paciente terminal. O estado de coma é caracterizado por uma alteração no nível de consciência, na sensibilidade e na motricidade voluntária, causado por alguma agressão ao sistema nervoso central (SNC), entretanto, o córtex se mantém globalmente preservado, o que significa que a vida relacional, mesmo que tenha sido interrompida possa ser recuperada. O coma pode ser classificado em estágios 68 KOVÁCS, Maria Julia. Educação para a morte. Temas e reflexões. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003, p. 71. 38 a depender da gravidade dos sintomas. Já o estado vegetativo persistente caracteriza-se pela destruição do córtex cerebral e, portanto, qualquer vida relacional torna-se irrecuperável, ainda que as funções vegetativas estejam preservadas. O paciente em estado terminal, por sua vez, é aquele cuja doença incurável já se encontra em um estágio tal de desenvolvimento que a morte torna-se iminente. Por fim, o paciente sem prognóstico de cura ou com mau prognóstico é aquele que embora seja portador de uma enfermidade incurável, ainda não se encontra em situação de morte iminente69. Nestes casos, embora vivos, o paciente tem sua qualidade de vida bastante reduzida, o que suscita dúvidas éticas quanto às condutas médicas a serem seguidas que, de acordo com Maria Elisa Villas-Bôas, são três: [...] prolongar a existência terminal mediante uso maciço de drogas e aparelhos, embora isso signifique também prolongar e intensificar a agonia; apressar o fim, mediante conduta ativa ou passiva de interrupção da vida; ou promover cuidados paliativos, tencionando tornar os momentos finais menos dolorosos, sem, todavia, investimentos técnico-medicamentosos que visem a conservar, além do tempo natural, uma vida que não se pode mais melhorar70. A depender da conduta adotada, estar-se-á diante de um caso de distanásia, eutanásia ou ortotanásia, como será visto a seguir. 2.6 DISTINÇÕES CONCEITUAIS – EUTANÁSIA, DISTANÁSIA, MISTANÁSIA, ORTOTANÁSIA E SUICÍDIO ASSISTIDO 2.6.1 Aspectos Gerais A evolução tecnológica, com o surgimento de novos recursos, possibilita, como dito, novos estados de sobrevivência que têm suscitado questionamentos sobre a validade ou não de sua manutenção. A distinção entre eutanásia e os conceitos correlatos está intimamente relacionada a estes recursos tecnológicos colocados à disposição do ser humano na fase final da vida. Daí porque antes de se fazer uma conceituação precisa do que seja eutanásia, 69 VILLAS-BÔAS, Maria Elisa. Da eutanásia ao prolongamento artificial: aspectos polêmicos na disciplina jurídico-penal do final de vida. Rio de Janeiro: Forense, 2005. 70 Ibidem, p. 37. 39 distanásia, ortotanásia, mistanásia e suicídio assistido, deve-se estabelecer a diferença entre meios ordinários e extraordinários na manutenção artificial da vida. É comum dizer-se que os meios ordinários são obrigatórios, enquanto os extraordinários são facultativos. A dificuldade, contudo, está em diferenciá-los na prática. Entende-se por meios ordinários aqueles habitualmente disponíveis, pouco dispendiosos e menos agressivos. Já os extraordinários são aqueles mais custosos, limitados, arriscados e restritos a alguns casos específicos71. Ocorre que, atualmente, ante a rápida e desigual evolução tecnológica, o que é extraordinário em alguma localidade e em determinado período, deixa de sê-lo em outro local em um breve espaço de tempo. Daí porque alguns preferem utilizar as expressões medidas proporcionais, entendidas como aqueles que importam efeitos danosos menores do que as vantagens, e desproporcionais, que são aqueles cujos efeitos negativos superam os benefícios.72 Em consequência da utilização destas medidas surgem conceitos de uso corrente na medicina atual, a exemplo de obstinação terapêutica e condutas médicas restritivas. A obstinação terapêutica tem lugar quando, diante da impossibilidade de cura, a vida humana é mantida a qualquer custo, com a utilização de terapias fúteis que não promovem qualquer melhoria no quadro dos pacientes. Já as condutas médicas restritivas dizem respeito às prescrições médicas de omissão ou suspensão de medidas de prolongamento artificial da vida, isto é, omissão ou suspensão do suporte vital, a exemplo do desligamento ou não introdução de aparelhos de ventilação mecânica e de drogas vasoativas, bem como da ordem de não reanimar em caso de parada cardiopulmonar. Estabelecidas as premissas, que serão aprofundadas oportunamente, pode-se, enfim, definir o que se entende por eutanásia, distanásia, mistanásia, ortotanásia e suicídio assistido. 71 Há quem afirme, como Heriberto Brito de Oliveira [OLIVEIRA, Heriberto Brito et. al. Ética e eutanásia. Simpósio medicina e direito, v. 2, n. 3, p. 278-281, 2003] , que medidas de alimentação e hidratação não são recursos extraordinários ou fúteis, mas medidas de conforto, devendo ser adotadas sempre. Por outro lado, há autores, a exemplo de Leo Pessini [PESSINI, Leocir. Eutanásia: Por que abreviar a vida? São Paulo: Edições Loyola, 2004], para quem ainda estes recursos precisam ser analisados à luz da proporcionalidade e do caso concreto, não se podendo dizer, a priori, que se trata de medidas extraordinárias ou ordinárias. 72 VILLAS-BÔAS, Maria Elisa. Da eutanásia ao prolongamento artificial: aspectos polêmicos na disciplina jurídico-penal do final de vida. Rio de Janeiro: Forense, 2005. 40 2.6.2 Eutanásia Etimologicamente o termo eutanásia deriva dos vocábulos gregos eu, que significa bom, bem, e thanatos, que quer dizer morte. Assim, eutanásia significa boa morte, morte doce, suave, sem sofrimento. A expressão foi utilizada pela primeira vez em 1632 por Francis Bacon, em sua obra Historia vitae et mortis.73 A eutanásia, contudo, é muito mais antiga, estando, inclusive, presentes vestígios de sua prática na Bíblia Sagrada, como, por exemplo, na passagem em que o Rei Saul, de Israel, gravemente ferido pede para que um amalecita lhe tirasse a vida, no que não foi atendido. Diante da recusa de seu escudeiro, Saul lançou-se sobre sua espada. Ademais, no livro segundo de Samuel a eutanásia era evocada quando aos condenados à crucificação dava-se uma bebida que provocava letargia capaz de amenizar o sofrimento dos castigos corporais. Na Índia antiga os doentes incuráveis, após terem sua boca e nariz cobertos com lama sagrada, eram jogados no rio Ganges. Entre os brâmanes era comum a morte de crianças de má índole. Em Esparta, os deficientes eram atirados do alto do monte Taijeto. Já os celtas permitiam que filhos matassem os pais quando estes ficassem idosos e não tivessem mais serventia. Na Idade Média, os guerreiros feridos recebiam um punhal fino denominado misericórdia com o objetivo de por fim a suas vidas sem sofrimento e evitar que caíssem em mãos inimigas. Em Roma os Césares voltavam o polegar para baixo autorizando o assassinato dos gladiadores feridos nos circos romanos, como forma de minorar o seu sofrimento. Os esquimós matavam seus parentes quando gravemente enfermos e no Brasil algumas tribos indígenas realizavam práticas semelhantes à eutanásia. Até no campo filosófico a eutanásia era tolerada e encontrava ferrenhos defensores, a exemplo de Sócrates, Plutarco, Morus e Platão74. Platão aconselhava o homicídio dos velhos, dos incuráveis e dos enfermos, cujo pensamento coincidia com Morus, em “Utopia”, no sentido de se 73 Rodrigo Siqueira-Batista e Fermin Roland Schramm afirmam que o termo eutanásia foi utilizado pela primeira vez pelo historiador latino Suetônio, no século II d.C., para descrever a morte doce do imperador Augusto. [BATISTA, Rodrigo Siqueira; SCHRAMM, Fermin Roland. Eutanásia: pelas veredas da morte e da autonomia. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, p. 31-41, 2004]. 74 Em sentido contrário Aristóteles, Pitágoras e Epícuro. 41 conscientizar os professores, para que fizessem saber aos incuráveis, debilóides e outros, que deveriam eliminar-se. Todos os que se sentiam inúteis deveriam auto destruir-se, como um meio de ajudar a sociedade progredir economicamente.75 Foi apenas com o cristianismo, que elevou a vida a valor supremo, que a eutanásia passou a ser combatida, abrindo-se espaço para debates mais calorosos sobre a sua prática. Ao longo dos anos, o próprio significado da eutanásia sofreu distorções. Um exemplo claro ocorreu no apogeu nazista, na segunda guerra mundial, quando foi posto em prática o primeiro programa político da eutanásia, com objetivo de promover uma higienização social, eliminando deficientes físicos, doentes mentais, pacientes terminais, velhos e, principalmente, judeus. O termo eutanásia foi desfigurado, deixando de ser considerada uma morte doce e suave, para configurar-se como um dos mais horrendos atentados cometidos contra a humanidade. O avanço tecnocientífico também contribuiu para promover alterações no conceito de eutanásia. Segundo Roxana Borges76, originariamente a eutanásia não visava à morte ou à sua antecipação, mas apenas e tão somente os cuidados necessários para evitar o sofrimento do moribundo no curso natural da morte. Hoje, entretanto, fala-se em eutanásia como sinônimo de morte provocada, antecipada, por sentimento de piedade e compaixão ao sofrimento do doente. Paulo César Santos Bezerra afirma que a história da eutanásia pode ser dividida em três fases: eutanásia ritualizada, eutanásia medicalizada e eutanásia autonomizada. A primeira fase indica uma morte que clama por rituais e, consequentemente, também as práticas eutanásicas são ritualizadas, seguindo verdadeiros passos tanatológicos. Na segunda fase, que tem como base as idéias de Platão, a função do médico com relação aos doentes era meramente eutanásica, ou seja, afastar os enfermos sem cura ante o reconhecimento da impossibilidade de cura pela medicina. Por fim, a eutanásia autonomizada é pensada a partir da 75 BIZATTO, José Idelfonso. Eutanásia e responsabilidade médica. Porto Alegre: Sagra, 1990, p. 23. 76 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direito de morrer dignamente: eutanásia, ortotanásia, consentimento informado, testamento vital, análise constitucional e penal e direito comparado. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 283-305. 42 autonomia da vontade do paciente.77 Vê-se, portanto, que o sentido do termo eutanásia sofreu modificações profundas ao longo dos anos, sendo utilizada para designar fenômenos bastante distintos. Daí porque ser necessário, antes de se fazer qualquer juízo de valor sobre o tema, fixar o real significado de eutanásia. Hubert Lepagneur78, afirma que a mesma expressão, a depender do conceito adotado e da classificação seguida, pode representar uma atitude louvável ou ser alvo de reprovação social. Embora ainda haja certa divergência quanto a alguns elementos necessários para configurar a eutanásia, é mais ou menos pacífico que se está diante de uma prática eutanásica quando um terceiro, tomado por sentimento de piedade e compaixão provoca ou antecipa a morte de pessoa que sofre diante de uma doença incurável e em estado terminal, com o consentimento desta ou, ante à sua impossibilidade, de pessoa habilitada para tanto. Deste modo, são elementos definidores da eutanásia: 1) a morte é antecipada por terceiro; 2) o ato é guiado por sentimento de compaixão ou piedade; 3) o paciente deve sofrer de enfermidade incurável e estar em estado terminal79; 4) e ainda consentir com a prática do ato80. Há quem acrescente a estes elementos outros, a exemplo da necessidade de realização do ato por um médico81. Este elemento, todavia, é dispensável para se configurar a eutanásia. Basta uma análise perfunctória dos elementos definidores da eutanásia para se concluir que o assassinato de judeus e doentes na Alemanha nazista não pode jamais ser considerado eutanásia, mas homicídio, haja vista não ter sido guiado por sentimentos altruístas. O mesmo se diga quanto à morte de velhos, deficientes e pobres, com o fito de promover um melhoramento da espécie e 77 BEZERRA, Paulo César Santos. O direito à vida à luz de uma questão polêmica: a eutanásia. In: BEZERRA, Paulo César Santos. Temas atuais de direitos fundamentais. 2. ed. rev. e ampl. Ilhéus: Editus, 2007 78 LEPARGNEUR, Hubert. Lugar atual a morte: antropologia, medicina e religião. São Paulo: Paulinas, 1986. 79 Para George Salomão Leite não se deve colocar a terminalidade como elemento definidor da eutanásia, pois isto restringiria demais o conceito, deixando de fora aquelas pessoas que, embora padeçam de grave sofrimento por estarem acometidas de doença incurável, não estão em estado terminal. [LEITE, George Salomão. Direito fundamental a uma morte digna. In: SARLET, Ingo Wolfgang; LEITE, George Salomão (coord.). Direitos fundamentais e estado constitucional: estudos em homenagem a J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009]. 80 Cf. MINAHIM, Maria Auxiliadora. A vida pode morrer? Reflexões sobre a tutela penal da vida em face da revolução biotecnológica. In: BARBOZA, Heloísa Helana; MEIRELLES, Jussara M. L. de; BARRETO, Vicente de Paulo (org.). Novos temas de biodireito e bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 97-131. 81 Cf. NAMBA, Edison Tetsuzo. Manual de bioética e biodireito. São Paulo: Atlas, 2009. 43 diminuir os encargos do Estado. A dificuldade de se precisar o real significado de eutanásia, deve-se, também, em grande parte, à diversidade de critérios de classificação adotados. Os critérios mais aceitos levam em conta a atuação do agente, a intenção do agente, o consentimento do paciente e a finalidade do agente. Quanto à atuação do agente, a eutanásia se divide em ativa, quando o agente pratica um ato com o objetivo de promover a morte do doente; e passiva ou por omissão, quando o agente ou não inicia uma ação médica ou interrompe a utilização de tratamento para abreviar a morte. Este tipo de eutanásia tem sido empregada, por muitos doutrinadores, como sinônimo de ortotanásia82, entretanto, como será visto adiante, os termos possuem algumas distinções, ainda que sutis. Quanto à intenção do agente, a eutanásia pode ser direta, nos casos em que o agente tem a intenção de, com seu ato, abreviar a vida daquele que padece; e indireta ou de duplo efeito, quando o ato é realizado com o objetivo de, unicamente, aliviar o sofrimento, mas gera como conseqüência indireta o apressamento da morte. Quanto ao consentimento do paciente pode ser voluntária, nos casos em que o moribundo expresse a sua vontade de ter sua vida abreviada. Este intento pode ser deixado por escrito pelo paciente. É o caso do testamento vital, que consiste em um testamento feito pelo paciente dizendo o que gostaria que acontecesse quando não tivesse mais condições de fazer escolhas e participar ativamente do seu tratamento de saúde. É muito comum nos Estados Unidos, especialmente quando se trata de ordem de não ressuscitamento. Ao lado da eutanásia voluntária, tem-se a não voluntária, quando a morte é provocada à revelia da vontade do paciente, que se encontra impossibilitado de manifestar o seu desejo e, nestes casos, deve-se levar em conta a opinião de pessoas intimamente ligadas ao moribundo, a exemplo de parentes e amigos; e, ainda, a involuntária, quando a morte é provocada contra a vontade do paciente. Este caso se configura como homicídio, e não eutanásia. Quanto à finalidade do agente, de acordo com a classificação proposta por Jimenez de Asúa, a eutanásia pode ser libertadora/terapêutica, se tem o objetivo 82 Vêem a eutanásia passiva como sinônimo de ortatanásia: Anderson Rohe, Nelson Hungria, Luiz Flávio Gomes, Maria de Fátima Freire de Sá, Maria Helena Diniz, George Salomão Leite, Rachel Sztajn, Paulo Lúcio Nogueira, Orlando Soares, dentre outros. Em sentido contrário, Maria Elisa VillasBôas e Maria Auxiliadora Minahim. 44 piedoso de livrar o doente de um sofrimento insuportável; eliminadora/eugênica/selecionadora, se o intento é promover uma higienização social, eliminando deficientes físicos e mentais, criminosos e portadores de doenças contagiosas, enfim, todos aqueles que não contribuem para o melhoramento da espécie; econômica, muito semelhante à eutanásia eugênica, tem por objetivo eliminar todos aqueles que representam uma carga para o Estado. Nestes dois últimos casos, em verdade, não há que se falar em eutanásia, mas homicídio, haja vista a falta do elemento piedoso que deve guiar o agente da conduta. Ao lado desta classificação, usualmente mais apontada pela doutrina, há outras classificações propostas por autores que, dada a sua relevância, serão aqui mencionadas. Maria Celeste Cordeiro83 divide a eutanásia em: eutanásia propriamente dita (é a morte piedosa dada a alguém que sofre de uma enfermidade incurável, com o objetivo de eliminar a sua agonia); eutanásia lenitiva (quando se empregam meios mitigadores ou eliminadores do sofrimento com a antecipação artificial da morte); eutanásia eugênica (consiste na eliminação indolor de doentes incuráveis, idosos, inválidos e pessoas incapazes de produzir riqueza); eutanásia criminal (é a morte indolor de pessoas socialmente perigosas); eutanásia experimental (morte indolor de pessoas com o fim de experimentação); eutanásia solidarística (visa a salvar a vida de outrem); eutanásia terapêutica (ocorre com emprego ou omissão de meios terapêuticos); eutanásia por omissão, ortotanásia ou paraeutanásia (é a omissão voluntária dos meios terapêuticos com fins eutanásicos); eutanásia teológica (é a morte em estado de graça); eutanásia legal (é aquela permitida por lei); eutanásia-suicídio assistido (ocisão da vida de outrem por razões humanitárias e, geralmente, com o consentimento desta); e eutanásia-homicídio (podendo ser praticada por médico, parente ou amigo). Ricardo Royo Villanova84 propõe a seguinte classificação: eutanásia natural (é representada pela morte natural); eutanásia súbita (representada pela morte repentina); eutanásia teológica (é a morte em estado de graça); eutanásia estóica (é a morte tranqüila conseguida com a exaltação das virtudes do 83 SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Transplante de órgãos e eutanásia: liberdade e responsabilidade. São Paulo: Saraiva, 1992. 84 Villanova apud COUTINHO, Luiz Augusto. Aspectos jurídicos da eutanásia. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, a. II, n. 7, p. 19-37, ago./set. 2005. 45 estoicismo85); eutanásia terapêutica (faculdade dada aos médicos para propiciar uma morte suave); eutanásia eugênica e econômica (é a eliminação dos seres considerados inúteis e degenerados); e eutanásia legal (são os procedimentos autorizados pela lei). Miguel Ângelo Nunez Paz faz as seguintes distinções de eutanásia: eutanásia ativa (realização de um ato de ajuda à morte, podendo ser dividida, de acordo com a intenção do autor, em direta e indireta); eutanásia passiva (é a omissão do tratamento que prolonga artificialmente a vida); eutanásia direta (a ação visa à abreviação da vida); eutanásia indireta (tem por objetivo aliviar o sofrimento, mas indiretamente encurta a vida); e eutanásia pura ou genuína (está inserida no conceito de eutanásia indireta e consiste no emprego de meios paliativos que mitigam o sofrimento e conduzem ao morrer sem o encurtamento da vida).86 O professor baiano Ruy Santos87 classifica a eutanásia em: eutanásiahomicídio (se dá quando alguém realiza um procedimento para terminar com a vida do doente, e se subdivide em eutanásia-homicídio realizada por médico e eutanásiahomicídio realizada por familiar) e eutanásia suicídio (ocorre quando o próprio paciente executa o ato que o leva à morte). No campo religioso, a eutanásia, pelo menos na modalidade ativa, é vista com maus olhos pela maioria das religiões em todo o mundo. No budismo considera-se que a morte perturba o processo de vida dos sobreviventes e não deve ser artificialmente prolongada quando não existe mais possibilidade de recuperação do moribundo, entretanto, também não deve ser apressada. Para os budistas, as drogas que aliviam a dor são permitidas, mesmo que a sua administração leve à morte. Para o islamismo a vida humana é sagrada, e tudo deve ser feito para preservá-la. Daí porque não é permitido tirar a vida de outrem, mesmo que movido por compaixão. Por outro lado, é contra o prolongamento do processo de morte e sofrimento. 85 As virtudes principais do estoicismo são quatro: inteligência, fortaleza, circunspecção e justiça. [SOUSA, Deusdedith. Eutanásia, ortotanásia e distanásia. Revista dos Tribunais, a. 83, v. 706, p. 283-289, ago. 1994]. 86 PAZ apud BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direito de morrer dignamente: eutanásia, ortotanásia, consentimento informado, testamento vital, análise constitucional e penal e direito comparado. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 283-305. 87 SANTOS apud VILLAS-BÔAS, Maria Elisa. Da eutanásia ao prolongamento artificial: aspectos polêmicos na disciplina jurídico-penal do final de vida. Rio de Janeiro: Forense, 2005. 46 De acordo com os preceitos do judaísmo, a morte não deve ser, em qualquer circunstância, apressada. Os judeus mostram-se, contudo, sensíveis ao sofrimento humano. A tradição hebraica dispõe que o prolongamento da vida do paciente é obrigatório, mas o prolongamento da agonia não o é. Assim, caso o médico esteja convencido de que o paciente poderá morrer em três dias é lícito suspender as manobras de reanimação e o tratamento não analgésico. A doutrina espírita mostra-se contrária a abreviar a vida de um doente que sofre sem esperança de cura, uma vez que “ainda que haja chegado ao último extremo um moribundo, ninguém pode afirmar com segurança que lhe haja soado a hora derradeira. A Ciência não se terá enganado nunca em suas previsões?” 88 Ademais, a desistência do paciente em continuar vivendo significa renúncia às expiações a que se acha sujeito. Não obstante, é contrária ao prolongamento artificial da morte. Já na visão cristã, a vida foi dada ao homem por Deus e somente a Ele cabe tirá-la. A Igreja Católica sempre se mostrou contrária à eutanásia ativa, entretanto, tolera a eutanásia indireta e a ortotanásia, para alguns tida como sinônimo de eutanásia passiva. O Papa Pio XII, em 1956, afirmou ser permitida a suspensão dos meios extraordinários que prolongassem artificialmente a vida nos casos em que a recuperação não fosse mais possível, bem como a administração de narcóticos que buscassem aliviar a dor e gerassem como efeito indireto a abreviação da morte. Seguindo a mesma linha de raciocínio, a Declaração sobre Eutanásia da sagrada congregação para a doutrina da fé, em 05 de maio de 1980, dispôs ser lícita a renúncia a tratamento com medidas desproporcionais, que daria somente um prolongamento precário e penoso à vida89. O Papa João Paulo II, na Encíclica Evangelium Vitae reassumiu, numa grande síntese, os pronunciamentos de Pio XII e da Declaração sobre a Eutanásia. Vê-se, assim, que as principais religiões do mundo se posicionam pela manutenção da vida até o seu fim natural, sendo, portanto, contrárias a qualquer conduta que venha a abreviar a vida. Por outro lado, mostram-se contrárias ao prolongamento artificial e doloroso do processo de morrer. Por fim, há que se ressaltar a existência de termos que embora 88 KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. 81. ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 1981, p. 129. 89 Nota-se que a Igreja Católica deixou de empregar os termos medidas ordinárias e extraordinárias para adotar as expressões meios proporcionais e desproporcionais. 47 relacionados à eutanásia, com ela não se confunde, a exemplo da distanásia, mistanásia, ortotanásia e suicídio assistido. 2.6.3 Distanásia Como visto alhures, o homem contemporâneo tem a tendência de negar e ocultar a morte. Com o avanço tecnológico da área médica, que culminou com a medicalização da morte, o homem passou a combater a morte de forma veemente. Esta atitude de ingerência médica desmedida no processo de morte gera alguns abusos, transformando um fenômeno natural num evento selvagem. Prolonga-se a vida até as últimas conseqüências e, “em certos casos, não sabemos se estamos diante de uma pessoa viva, ou de um morto, que ainda tem alguns parâmetros considerados vitais”.90 Diante da suposta onipotência e, ao mesmo tempo, fragilidade frente à morte, o homem desenvolve e utiliza técnicas cada vez mais modernas para retardar o momento final da vida. A preocupação não está mais no bem-estar do paciente, mas em prolongar ao máximo a sua vida, uma vez que a morte, na sociedade contemporânea, é vista como a “a falência da ciência médica”.91 O paciente acaba por transformar-se em um objeto nas mãos do médico que, ofendido “em seu brio, opta por resistir à morte até as últimas conseqüências, mostrando uma obstinação terapêutica que vai além de qualquer esperança de beneficiar o doente ou de promover seu bem-estar global”.92 A distanásia representa, justamente, esta obstinação terapêutica que se dedica a prolongar ao máximo a quantidade de vida, sem levar em conta a sua qualidade, combatendo a morte como o último e grande inimigo da humanidade. Esta conduta leva em conta além do paradigma tecnocientífico da medicina, também o paradigma comercial-empresarial, haja vista que o prolongamento no tratamento do doente, mesmo que não represente qualquer melhoria no seu quadro de saúde, gera lucro para as instituições hospitalares. 90 KOVÁCS, Maria Julia. Educação para a morte. Temas e reflexões. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003, p. 77. 91 PESSINI, Leocir. Eutanásia: Por que abreviar a vida? São Paulo: Edições Loyola, 2004, p.41. 92 Ibidem, p. 222. 48 Assim, de acordo com Roxana Cardoso Brasileiro Borges93 pode-se conceituar a distanásia como o prolongamento artificial do processo de morte, com sofrimento do doente. É uma ocasião em que se prolonga a agonia, artificialmente, mesmo que os conhecimentos médicos, no momento, não prevejam possibilidade de cura ou de melhora. É a expressão da obstinação terapêutica pelo tratamento e pela tecnologia, sem a devida atenção em relação ao ser humano. O termo distanásia94 foi proposto pela primeira vez por Morache, em 1904, em seu livro Naisance et mort, e tem, assim como a eutanásia, origem grega (dis=afastamento e thanatos=morte), implicando a idéia de prolongamento da morte.95 Etimologicamente é o antônimo da eutanásia. Enquanto na eutanásia há uma abreviação da morte por motivos piedosos, na distanásia há um adiamento do momento da morte com o uso desmedido de recursos extraordinários e desproporcionais que não promovem qualquer melhoria no quadro clínico do paciente, mas apenas e tão somente prolongam o seu sofrimento e a sua agonia. A conduta distanásica é repudiada moralmente96, inclusive pela maior parte das religiões, e representa uma negação à própria condição mortal do homem. 2.6.4 Mistanásia Mistanásia97 significa morte miserável (mis=miserável e thanatos=morte). Ao contrário do que se dá com a distanásia em que o paciente é alvo de obstinação terapêutica, com o prolongamento do processo de morte e de 93 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direito de morrer dignamente: eutanásia, ortotanásia, consentimento informado, testamento vital, análise constitucional e penal e direito comparado. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 286-287. 94 A distanásia é também conhecida como obstinação/futilidade/encarniçamento terapêutico. 95 ADONI, André Luis. Bioética e biodireito: aspectos gerais sobre a eutanásia e o direito à morte digna. Revista dos Tribunais, a. 92, v. 818, p.395-423, dez. 2003. 96 Nada obstante seja praticamente unânime que não se deve prolongar artificialmente a vida humana quando já está instaurado, de forma irreversível, o processo de morte, Nelson Hungria, em artigo intitulado “Ortotanásia ou eutanásia por omissão” assevera que “extingui-la [a vida], ainda quando se apresente como provocada sobrevida ou um avanço além do ponto mortal, previsto segundo id quod plerum que fit, é matar”, afirmando que a vida deve ser mantida a qualquer custo em todas as situações. [HUNGRIA, Nelson. Ortotanásia ou eutanásia por omissão. Revista Forense, Rio de Janeiro, a. 50, v. 150, p.515-518, nov./dez. 1953]. 97 É comumente conhecida como eutanásia social, mas com eutanásia não se confunde ante a ausência do móvel piedoso que move o ato. 49 agonia, na mistanásia, o doente, na maioria das vezes, sequer consegue ser atendido em uma instituição hospitalar. Morre antes de ser submetido a qualquer tratamento médico. A sua ocorrência é muito comum em países subdesenvolvidos, em que o direito à saúde não é respeitado. A escassez de recursos destinados à área de saúde, associado ao seu mau gerenciamento, faz com que o número de doentes seja maior do que a capacidade do Estado em atendê-los. Como conseqüência é comum que os doentes morram na fila de espera por um atendimento de saúde ou, quando têm a sorte de serem atendidos, sejam alvo de erro médico ou má prática. É a morte precoce, antes da hora, por falta de tratamento adequado. Segundo Leonard M. Martin98: Um primeiro direito que serve de pano de fundo para muitos outros é o direito à assistência médica. A mistanásia, que é uma das grandes chagas a desfigurar o rosto latino-americano, é resultado direto do desrespeito a este primeiro direito. A mistanásia é a morte miserável antes da hora, provocada ou por erro médico ou má prática, de um lado, ou, mais frequentemente, por omissão de socorro estrutural, de outro. A mistanásia abrange três situações, a saber: a) Mistanásia em doentes e deficientes que não chegam a ser pacientes99. É a forma mais comum de mistanásia e consiste na morte antes da hora em virtude da ausência ou precariedade dos serviços de atendimento médico. Esta prática é muito comum nos países de terceiro mundo, especialmente na América Latina, e consiste na omissão de socorro estrutural. Ao lado da mistanásia por omissão, Leocir Pessini inclui nesta categoria também os casos de mistanásia ativa que ocorreram na época da política nazista em que pessoas defeituosas ou indesejáveis eram eliminadas para promover a purificação racial, bem como as experiências realizadas com cobaias humanas nos campos de concentração. b) Mistanásia em pacientes vítimas de erro médico100. Neste caso os doentes chegam a ser admitidos como pacientes nas instituições de saúde, entretanto, são vítimas de erro médico, que pode se dar por imperícia, imprudência 98 MARTIN, Leonard M. A ética e a humanização hospitalar. In: PESSINI, Leocir; BERTACHINI, Luciana (org.). Humanização e cuidados paliativos. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p.47. 99 PESSINI, Leocir. Eutanásia: Por que abreviar a vida? São Paulo: Edições Loyola, 2004. 100 Ibidem. 50 ou negligência. Imperícia é a “falta de aptidão para o exercício de arte ou profissão”101 e, como exemplo de mistanásia por imperícia está aquele em que o médico, por falta de conhecimento, deixa de prescrever tratamento capaz de minimizar o sofrimento do paciente, ou, até mesmo, contribui para a sua majoração. Já por imprudência se entende a “prática de um fato perigoso”102 e como exemplo de mistanásia por imprudência tem-se o caso do profissional que sem exame direto do paciente prescreve tratamento inadequado, ou então pratica atos sem o esclarecimento e conhecimento prévio do paciente. Finalmente, por negligência deve-se entender a “ausência de precaução ou indiferença em relação ao ato realizado” e tem-se exemplo de mistanásia por negligência no caso de omissão de tratamento e abandono do paciente pelo médico. Aqui faz-se mister ressaltar que ao contrário da omissão estrutural, o doente já se tornou paciente de uma instituição de saúde, e a omissão de socorro se dá na relação médico-paciente. c) Mistanásia em pacientes vítimas de má prática103. É fruto da maldade daqueles que usam, intencionalmente, da medicina para prejudicar o paciente. Um exemplo típico de mistanásia por má prática ocorre quando se retira órgão vital de paciente para transplante sem que ele já tenha morrido. A mistanásia, independentemente da situação, representa uma ofensa direta ao direito à saúde e à assistência médica, e um mal a ser combatido. 2.6.5 Ortotanásia O termo ortotanásia deriva dos radiciais orthos, que significa reto, correto, e thanatos, que quer dizer morte. Assim, ortotanásia significa morte no tempo certo. É o meio-termo entre a eutanásia (abreviação da morte) e a distanásia (prolongamento da morte). A ortotanásia se dá com condutas médicas restritivas, que se efetivam pela omissão e suspensão de uma medida de prolongamento artificial, ou seja, visam à interrupção de tratamentos fúteis que já não representam qualquer 101 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal: parte geral. 24. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2001, p.302. 102 Ibidem. Loc. cit. 103 PESSINI, Leocir. Eutanásia: Por que abreviar a vida? São Paulo: Edições Loyola, 2004. 51 vantagem para o paciente, apenas prolongando o doloroso processo de morte. 104 Vê-se, assim, que a ortotanásia é uma resposta à distanásia, só tendo espaço ante um caso de obstinação terapêutica. Ortotanásia (do grego – orthós: normal, correta e thánatos: morte) ou paraeutanásia é a atuação correta frente a morte, podendo ser compreendida como uma abordagem adequada diante de um paciente que está morrendo e que consiste em renunciar a meios extraordinários e dispendiosos, já inadequados à situação real do paciente porque não 105 proporcionam os resultados que se podiam esperar. Em relação ao tema faz-se mister abrir um parêntese para tratar da confusão que, comumente, se faz entre a ortotanásia e a eutanásia passiva. Limitarse a fazer a distinção dos termos com base unicamente na intenção do agente, afirmando que enquanto na eutanásia se abrevia a morte, na ortotanásia apenas permite-se que a morte siga o seu curso natural, é insuficiente e não permite estabelecer com precisão a diferença entre eles. Melhor destino não têm aqueles que fazem a distinção com base na iminência106 da morte, afirmando que na ortotanásia o processo de morte já está instalado, o que não ocorre com a eutanásia passiva. Estes critérios são muito subjetivos e não se prestam a precisar claramente a distinção entre ortotanásia e eutanásia passiva. Isso não significa, contudo, que os termos se confundam. Neste aspecto vale trazer à baila os ensinamentos de Maria Elisa Villas-Bôas que, com muita propriedade, distingue a ortotanásia da eutanásia passiva com base na intenção do agente em conjunto com a indicação médica dos recursos suspensos. Na eutanásia passiva o intento do agente é abreviar a morte com a conduta de omitir ou suspender recursos que ainda eram indicados e proporcionais, pois ainda poderiam beneficiar o paciente. Já na ortotanásia o desejo não é de abreviar a 104 Assim vale pontuar que a afirmação de que a ortotanásia ocorre naquela situação em que “o doente já se encontra em processo natural de morte, que consiste na morte encefálica.” não deve prevalecer, haja vista que se já há morte encefálica, então a pessoa já está, de acordo com o critério hodierno de definição da morte, morta, não havendo que se falar em ortotanásia. [BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direito de morrer dignamente: eutanásia, ortotanásia, consentimento informado, testamento vital, análise constitucional e penal e direito comparado. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 287]. 105 COUTINHO, Luiz Augusto. Aspectos jurídicos da eutanásia. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, a. II, n. 7, p. 19-37, ago./set. 2005, p. 23. 106 Maria Auxiliadora Minahim faz distinção entre terminalidade e iminência, afirmando que no caso da ortotanásia além do estado de terminalidade é preciso que a morte seja iminente. [MINAHIM, Maria Auxiliadora. Direito Penal e biotecnologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005]. 52 morte, mas sim de não prolongar indevidamente o processo de morte, optando-se pela abstenção ou suspensão de medida não indicada pela ciência médica por ser incapaz de promover qualquer melhora no paciente e, portanto, desproporcional. Não se pode conceber, portanto, como fazem alguns doutrinadores107, a eutanásia passiva como suspensão de medidas extraordinárias e não indicadas, pois isto a confundiria com ortotanásia, mas sim como a interrupção de tratamento ainda proporcional ou útil, com o fim de abreviar a morte. Assim, perfeita a colocação de Maria Auxiliadora Minahim, para quem a eutanásia passiva consiste na “abstenção deliberada de prestação de tratamentos médicos proporcionais ou úteis que poderiam prolongar a vida do paciente e cuja abstenção antecipa a sua morte”108. Enquanto que a ortotanásia omite ou suspende “medida fútil ou meramente protelatória da morte e cuja manutenção importa em mais prejuízos e agonias do que em benefícios para o paciente”.109 Ademais, na ortotanásia apenas o médico pode ser o responsável pela omissão ou suspensão de tratamento fútil, o que, como visto, não ocorre na eutanásia. Deste modo, ainda que sutil a diferença, não se deve ter como sinônimos ortotanásia e eutanásia passiva. Fechado este parêntese vale rememorar que o objetivo da ortotanásia é promover conforto ao paciente naqueles casos em que a cura não é mais possível, sem, contudo, interferir no momento da morte, sendo, portanto, um meio válido para se assegurar a dignidade no processo de morte. 2.6.6 Suicídio Assistido O suicídio assistido pode ter por substrato uma situação bastante similar à eutanásia, mas com ela não se confunde. Enquanto a eutanásia significa o apressamento da morte praticada por terceiro (médico, parente ou amigo) por motivo de compaixão diante do sofrimento de um enfermo com doença incurável e em 107 Neste sentido, Maria de Fátima Freire de Sá ao asseverar que as expressões eutanásia passiva e ortotanásia são sinônimas e representam a “não-realização de ação que teria indicação terapêutica naquela circunstância”. [SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de morrer: eutanásia, suicídio assistido. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 39] 108 MINAHIM, Maria Auxiliadora. Direito Penal e biotecnologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 190. 109 Ibidem, p. 191. 53 estado terminal, o suicídio assistido não é praticado por terceiro, mas pelo próprio doente, que decide pôr termo a sua vida em virtude da incapacidade de suportar os sofrimentos a que está submetido. Neste caso, ante o seu estado de saúde que não lhe permite a prática de alguns atos, é apenas auxiliado por um terceiro que lhe fornece os meios materiais aptos a abreviar a vida. O ato em si, entretanto, é executado pelo próprio paciente. Noutros termos, “ocorre quando uma pessoa, não dispondo de meios para consumar, por si mesma, o próprio óbito, reclama auxílio, a participação material de outrem para levar a contento sua intenção”.110 O suicídio, entendido como uma forma de morte planejada, teve conotações diferentes ao longo da história. Gregos e romanos, na antiguidade, o enxergavam como solução aceitável para uma vida indigna. Já para a doutrina cristã pode ser visto por dois ângulos: possibilidade de elevação da alma através do martírio ou ato de desobediência à vontade de Deus.111 A expressão foi utilizada pela primeira vez em 1990 e tem como seu maior expoente o Dr. Jack Kervokian, vulgarmente conhecido como Dr. Morte, médico que promoveu, no estado norte-americano de Oregon, mais de 90 casos de suicídio assistido ou, como ele preferia denominar, suicídio piedoso. O suicídio assistido advém da noção de auxílio, ajuda para que o suicida, autônomo e consciente, atinja o seu intento, e não de ato de indução ou instigação, que feririam a voluntariedade da conduta. Tampouco deve ser realizada naquelas pessoas fragilizadas ou deprimidas que não gozam de plenas condições de decidir de forma imparcial dar fim a sua vida.112 O suicídio assistido é um tema que ganhou vulto na sociedade contemporânea, especialmente nos últimos anos, graças ao avanço tecnológico da área médica que, muitas vezes, guiada por uma obstinação terapêutica desenfreada, tende a prolongar excessivamente o processo de morte e de agonia dos doentes. O assunto deve ser debatido, uma vez que fechar os olhos para os dilemas das questões envolvendo o final da vida só contribui para aumentar a angústia do homem diante da morte e o seu sentimento de impotência e onipotência. 110 ADONI, André Luis. Bioética e biodireito: aspectos gerais sobre a eutanásia e o direito à morte digna. Revista dos Tribunais, a. 92, v. 818, p.395-423, dez. 2003, p. 408. 111 KOVÁCS, Maria Julia. Bioética nas questões da vida e da morte. Psicologia USP, São Paulo, p. 115-167, 2003. 112 VILLAS-BÔAS, Maria Elisa. Da eutanásia ao prolongamento artificial: aspectos polêmicos na disciplina jurídico-penal do final de vida. Rio de Janeiro: Forense, 2005. 54 3 BIOÉTICA, AUTONOMIA PRIVADA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: O TRIPÉ DE SUSTENTAÇÃO DAS QUESTÕES ENVOLVENDO O FINAL DA VIDA 3.1 NOÇÕES GERAIS A evolução da tecnologia é um fato que não pode ser desprezado pelos estudiosos do Direito e, no que diz respeito à ciência médica, não há como ser diferente. Não obstante as benesses do desenvolvimento tecnológico alcançado pelo ser humano, a exemplo da descoberta de cura para doenças dantes tidas como incuráveis, é imprescindível o estabelecimento de limites éticos e jurídicos à sua atuação. E, neste contexto, o Direito, de mãos dadas com a bioética, não pode fechar os olhos a esta nova realidade, devendo estabelecer mecanismos capazes de regulamentar as novas situações que diariamente se desenham. A bioética, ao longo das suas quatro décadas de existência, vem tentando impor limites éticos ao desenfreado desenvolvimento biotecnológico e o Direito, mesmo na ausência de normas explícitas sobre determinados temas, é instado a se manifestar, e o faz com base, prioritariamente, nos princípios da autonomia privada e da dignidade da pessoa humana. Nas questões que envolvem o final da vida não é diferente, daí porque se optou por englobar em um único capítulo a bioética e os princípios da autonomia privada e da dignidade da pessoa humana por se entender que eles formam o tripé de sustentação para a promoção da defesa de um morrer natural, sem as angústias e sofrimento promovidos pelo prolongamento artificial da vida. 3.2 BIOÉTICA 3.2.1 Histórico e Conceito As mudanças ocorridas no campo da biomedicina e a constatação das atrocidades cometidas pela humanidade em nome de uma ética utilitarista, em especial na segunda guerra mundial, tornaram imprescindível a imposição de limites éticos e a necessidade de um maior debate sobre a evolução tecnológica perpetrada nesta seara. 55 O homem, que há pouco assistia atônito e aceitava com resignação os fenômenos naturais, passa a intervir diretamente nestes fenômenos e os eventos biológicos são criados, manipulados e extintos por ele, ao alvedrio de sua vontade. Neste sentido, preciosa a lição de Sérgio Ferraz1: Tão intensa foi, no particular, a acelerada disparada da ciência que já nos habituamos a encarar como fenômenos do cotidiano revoluções que há 30 (trinta) anos, não saíam dos livros de ficção: a inseminação artificial; o bebê de proveta ou fecundação ´in vitro´; as técnicas de reprodução assistida; a doação e utilização de embriões, fetos, células, tecidos, órgãos etc. Temas antes restritos a filmes de ficção científica, a exemplo de clonagem, transgênicos e fertilização in vitro, se transformam em realidade e o relato, anunciado pela mídia com frequência cada vez maior, de experiências capazes de gerar em laboratório criaturas monstruosas fazem com que a humanidade passe a repensar certos valores que se encontravam esquecidos. A ética passa a ser alvo da análise de diversos estudiosos, o que deságua no surgimento de um campo de estudo voltado especificamente para a sua aplicação no âmbito relacionado a fatos biológicos: a Bioética. O termo Bioética surgiu em 1971 na obra de Van Rensselaer Potter “Uma Ponte para o Futuro”. Segundo este autor, a ética humana não poderia se separar de fatos biológicos e a ponte que deveria uni-los seria a Bioética, caminho apto a garantir a sobrevivência da espécie humana. Antes disto, porém, questões éticas já permeavam as relações biomédicas e os avanços tecnológicos contribuíram para o estremecimento da relação médico-paciente e consequente surgimento da bioética. “De amigos e confidentes morais – no antigo modelo do médico de família -, médicos e pacientes tornaram-se distantes morais. E esse processo de estranhamento moral foi de fundamental importância para o surgimento e a consolidação da bioética”.2 Acerca da origem do termo bioética vale ressaltar que além de Van Rensselaer, André Hellegers reivindica a sua paternidade. De fato, foi Van Potter quem fez uso do termo pela primeira vez. Entretanto, o legado de Potter teve uma influência modesta para o desenvolvimento da disciplina. André Hellegers, por outro 1 FERRAZ, Sérgio. Manipulações Biológicas e Princípios Constitucionais: Uma Introdução. Porto Alegre: Editora Sérgio Antonio Fabris, 1991, p.11. 2 DINIZ, Débora; GUILHEM, Dirce. O que é ética. São Paulo: Brasiliense, 2006 (Coleção primeiros passos), p. 14. 56 lado, promoveu a disseminação do estudo da bioética, e teve a virtude de aplicar a bioética ao reino da biomedicina.3 Para compreender o nascimento da bioética faz-se mister analisar, antes de tudo, as transformações científicas e político-culturais da época. Na segunda metade do século XX, a evolução da ciência médica era enorme, aliada a isto as mudanças sociais ocorridas a partir da década de sessenta, com o florescimento de movimentos que pregavam a liberdade, a igualdade e a desconfiança no poder das grandes instituições, criaram campo fértil para o desenvolvimento da nova disciplina. Não bastasse isso, ao lado da tecnologia e da nova cultura moral da autonomia e igualdade, a divulgação dos abusos cometidos contra seres humanos em pesquisas científicas e o renascimento do interesse pela ética normativa ao lado da filosofia moral, deram luz à moderna bioética. Débora Diniz e Dirce Guilhem4 trazem o que elas chamam de microhistória da bioética, que, baseada nas idéias do filósofo Albert Jonsen, pontua três acontecimentos relevantes na consolidação da bioética. O primeiro deles foi a divulgação do artigo “Eles decidem quem vive, quem morre” da jornalista Shana Alexander, em que demonstrava a forma como o Comitê de Seattle definia os critérios de seleção de pacientes para participação em tratamentos de saúde, ante a incapacidade de recursos para atender a toda população que deles necessitava. O segundo acontecimento se refere à publicação do artigo de Henry Beecher relatando pesquisas científicas pouco respeitosas aos seres humanos nelas envolvidas, a exemplo da inoculação de agentes patogênicos em indivíduos com retardos mentais, idosos e pacientes psiquiátricos. O terceiro evento diz respeito ao primeiro transplante de coração realizado em 1974 na África do Sul pelo cirurgião cardíaco Cristian Bernard, que gerou controvérsias acerca dos critérios para definir o exato momento da morte. Esses três acontecimentos, aliados à modificação dos padrões morais vigentes na sociedade, foram de grande importância para a institucionalização da bioética. A bioética, que em suas origens estava indissociavelmente ligada à religião, passa a ter enfoque secular e os próprios teólogos sentem a necessidade 3 FERRER, Jorge José; ÁLVAREZ, Juan Carlos. Para Fundamentar a bioética: teorias e paradigmas teóricos da bioética contemporânea. Tradução Orlando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 2005. 4 DINIZ, Débora; GUILHEM, Dirce. O que é ética. São Paulo: Brasiliense, 2006 (Coleção primeiros passos). 57 de se abrirem para a sociedade plural. Embora muitos autores se arvorem em definir a bioética, sem dúvida o conceito de maior prestígio é aquele trazido por Warren Thomas Reich em sua obra Enciclopédia da Bioética. Para este autor, bioética é “o estudo sistemático das dimensões morais – incluindo a visão moral, as decisões, as condutas e as políticas – das ciências da vida e do cuidado da saúde, usando uma variedade de metodologias éticas num contexto interdisciplinar.”5 . Da análise deste conceito podem-se extrair algumas características inerentes à bioética. Ao tratar da vida e do cuidado à saúde resta claro que esta nova disciplina além do sentido biológico abrange a vida biográfica, englobando, inclusive, a proteção ao meio ambiente. Ademais, fica evidente o caráter transdisciplinar da bioética, com o envolvimento de estudiosos das mais diversas áreas. Por fim, é explícita a utilização de várias metodologias éticas na reflexão e estudo de temas bioéticos. Seguindo esta linha de raciocínio, a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos dispõe6: O termo bioética diz respeito ao campo de estudo sistemático, plural e interdisciplinar, envolvendo questões morais teóricas e práticas, levantadas pela medicina e ciências da vida, enquanto aplicadas aos seres humanos e à relação destes com a biosfera. Já Leo Pessini e Christian de Paul de Barchifontaine7 asseveram que a bioética deve servir de instrumento para a promoção da qualidade e dignidade da vida humana. Enfim, quer seja disciplina quer ciência ou mero desdobramento da filosofia moral no capítulo da “ética aplicada” (applied ethics) – em tempos de novidades nunca sonhadas trazidas pela tecnociência – ou ainda um novo movimento cultural, não há dúvida de que se trata de uma nova sensibilidade humana que leva a cuidar, zelar, promover dignidade humana e qualidade de vida. Deste modo, não obstante as mais diversas conceituações que se 5 REICH apud FERRER, Jorge José; ÁLVAREZ, Juan Carlos. Para Fundamentar a bioética: teorias e paradigmas teóricos da bioética contemporânea. Tradução Orlando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 2005, p. 76. 6 ANVISA. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Disponível em: <www.anvisa.gov.br>. Acesso em: 26 jun. 2010. 7 PESSINI, Leocir; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. 8. ed. rev. e ampl. São Paulo: Loyola, 2007, p. 16. 58 pode dar à bioética, o que se pode extrair de todas elas e o que efetivamente importa é que ela visa a garantir a dignidade humana e a qualidade de vida. 3.2.2 Paradigmas bioéticos A bioética pode ser estudada por meio dos mais diversos modelos de análise teórica. Jorge José Ferrer e Juan Carlos Álvarez8, ao lado de Leo Pessini e Christian de Paul de Barchifontaine9 trazem à baila as principais teorias éticas que servem para fundamentar, ou melhor, tentar explicar, a bioética, apontando as vantagens e desvantagens de cada uma, que antes de se confrontarem devem se complementar na prática. [...] muitos dos paradigmas, mais que alternativos, são complementares. Não se trata, pois, de substituir o paradigma dos princípios, mas de corrigilo e enriquecê-lo, se quisermos ter uma bioética normativa cabal, capaz de fazer frente aos sérios desafios que encontramos hoje em bioética. Embora refuja ao objetivo deste trabalho, em virtude da importância teórica que representam para o estudo da bioética e por servirem para, de certo modo, fundamentar posicionamentos favoráveis ou contrários às atuais questões biomédicas, serão aqui expostas, de forma sucinta e sem qualquer objetivo de exaurir o tema, as características centrais das principais teorias éticas que servem de fundamento para a disciplina. São elas: 1) O principialismo tem como principais expoentes Tom L. Beauchamp e James F. Childress e se baseia em quatro princípios gerais fundamentais para orientar moralmente as decisões no âmbito da biomedicina. Esses princípios são: respeito pela autonomia, beneficência, mão-maleficência e justiça. De acordo com a teoria principialista não existe uma ordem lexicográfica entre eles, sendo todos do mesmo nível prima facie. E é nisto justamente que consistem as maiores críticas do principialismo.10 A teoria principialista de Tom L. Beauchamp e James F. Childress manteve hegemonia por um largo espaço de tempo, e por vezes se confundiu com a 8 FERRER, Jorge José; ÁLVAREZ, Juan Carlos. Para Fundamentar a bioética: teorias e paradigmas teóricos da bioética contemporânea. Tradução Orlando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 2005. 9 PESSINI, Leocir; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. 8. ed. rev. e ampl. São Paulo: Loyola, 2007. 10 FERRER; ÁLVAREZ, op. cit. 59 própria bioética. Ao longo dos anos 90, contudo, passou a ser veementemente criticada, e quem iniciou este movimento oposicionista foram Danner Clouser e Bernard Gert, para quem o fato dos quatro princípios propostos não terem um corpo teórico uniforme provoca, na prática, uma disputa entre eles cuja solução só poderá se dar por julgamentos particulares. Segundo Clouser e Gert a teoria principialista teria tido maior sucesso se ao invés de negar a diferença entre estes valores reconhecesse a hierarquia entre eles, priorizando a autonomia. A esta crítica à teoria principialista se somam outras, a exemplo do desprezo pela diferença entre as pessoas e pelo multiculturalismo11. 2) Como resposta ao principialismo extremado, isto é, à utilização tirânica dos princípios de forma prévia e irrestrita na solução para todos as situações, há autores, a exemplo de Albert R. Jonsey e Stephen Toulmin, que pregam que a solução dos embates só pode se dar diante do caso concreto, não havendo como se recorrer de antemão a um determinado princípio. É o paradigma do casuísmo, que prega a análise dos casos particulares como única alternativa viável para a solução dos conflitos. Os casuísticos não negam o valor dos princípios, mas procuram aplicá-los às situações concretas, como se os casos fossem capazes de falar por si mesmos.12 3) O paradigma libertário tem sua raiz no liberalismo norte-americano e Tristam Engelhardt é o seu principal defensor. Este modelo tem a autonomia do indivíduo como valor central, capaz de autorizar ações de disponibilidade sobre o próprio corpo. A bioética da permissão, de H. Tristam Engelhardt, demonstra o fracasso de uma moralidade secular canônica, por ter desprezado a pluralidade de visões morais existentes e julgado ser possível encontrar uma moral com conteúdos concretos que seria capaz de unir a comunidade de estranhos morais que habita a moderna cidade secular. Para o autor, a bioética deve ser compreendida como um substantivo plural, sendo impossível descobrir uma moral secular com conteúdos. Segundo ele, há quatro caminhos para resolver os conflitos éticos existentes: a força, a conversão de uma parte ao ponto de vista da outra, a sólida argumentação racional e o acordo. Entretanto a única autoridade moral na sociedade secular é o 11 DINIZ, Débora; GUILHEM, Dirce. O que é ética. São Paulo: Brasiliense, 2006 (Coleção primeiros passos). 12 FERRER, Jorge José; ÁLVAREZ, Juan Carlos. Para Fundamentar a bioética: teorias e paradigmas teóricos da bioética contemporânea. Tradução Orlando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 2005. 60 acordo, o consentimento dos que decidem participar de um determinado empreendimento.13 Se uma pessoa quer colaborar, com autoridade moral, apesar dos desacordos morais e sem o recurso à força, não tem mais alternativa que aceitar a negociação pacífica e o acordo entre as partes de uma controvérsia como os únicos meios possíveis para resolver os desacordos morais.14 Segundo H. Tristam Engelhardt15, a fonte cardinal da autoridade moral secular é o princípio do consentimento, expressão que usou para rebatizar o princípio da autonomia, pois enquanto este último tem caráter individualista, o consentimento pressupõe o encontro de interesses das partes envolvidas em um empreendimento comum. Com isto, a autoridade moral secularmente justificável vem do consentimento, que pressupõe a tolerância com visões morais diversas. Ao tratar dos princípios bioéticos, o autor deixa claro que controvérsias porventura existentes devem ser resolvidas com base no acordo, no consentimento, na tolerância, moralidade bioética que une os estranhos morais, sobrepondo-se à própria beneficência, uma vez que o consentimento tem contornos mais facilmente identificáveis. Noutros termos, No contexto da moralidade secular geral, o princípio do consentimento sempre supera o da beneficência. A obrigação de fazer aos outros o bem deles é fundamental. No entanto, a obrigação como tal não é especificada. Apenas em contextos concretos será possível determinar a extensão da obrigação, e como avaliar ou ordenar os vários bens que se encontram em jogo. A obrigação geral de não usar da força sem autoridade tem um controle maior no fato de poder ser claramente revelada em situações particulares, sem o recurso a qualquer coisa além da interpretação do indivíduo que seria o sujeito dessa força. Assim, o direito de não ser tratado sem consentimento ganha aplicabilidade imediata nos desejos do possível paciente. [...] Em um contexto secular geral, o princípio da beneficência exige o recurso ao princípio do consentimento para poder ser aplicado.16 Para Tristam, este consentimento deve ser livre e informado, o que se justifica tanto pelo respeito à liberdade dos indivíduos quanto pelo objetivo de atender a seus melhores interesses. 13 FERRER, Jorge José; ÁLVAREZ, Juan Carlos. Para Fundamentar a bioética: teorias e paradigmas teóricos da bioética contemporânea. Tradução Orlando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 2005. 14 Ibidem, p. 121. 15 ENGELHARDT, H. Tristam. Fundamentos da bioética. Tradução José A. Ceschin. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2004. 16 Ibidem, p. 163-164. 61 4) O paradigma das virtudes, por seu turno, representa uma reação à perspectiva individualista. A tônica deste modelo está centrada no agente, especialmente nos profissionais de saúde, que detêm a virtude, aperfeiçoada pelo hábito clínico, de praticar o bem. Este modelo tem como principais nomes Edmund Pellegrino e David C. Thomasma, os quais embora admitam que as virtudes, por si sós não bastam para a elaboração de uma teoria ética suficientemente abrangente, entendem que elas, juntamente com dever e princípios, são indispensáveis para a vida moral.17 5) A ética médica comunitarista nasce como uma rejeição ao liberalismo e tem como principal expoente Ezekiel J. Emanuel. Vincula à filosofia política a solução dos problemas postos pela ética médica, pregando uma democratização radical da assistência sanitária.18 6) Utilitarismo leva em conta as conseqüências no julgamento da moralidade das ações. Noutros termos, uma ação é moralmente legítima se incrementa a felicidade para todos os envolvidos. O maior nome desta corrente é Peter Singer.19 7) Pragmatismo tem como ponto de partida da reflexão moral a atenção do pragmatismo clínico ao caso concreto, ou seja, a análise concreta do caso prático, dos dados médicos e sociais.20 8) Moralidade comum prega um amplo acordo nas questões morais, na universalidade do sistema moral.21 9) O paradigma fenomenológico e hermenêutico prega a necessidade de interpretação de todas as experiências vividas.22 10) O paradigma narrativo leva em conta a dimensão narrativa de cada situação, ou seja, a riqueza da história que vai além dos meros fatos.23 11) O paradigma do cuidado contrapõe a idéia de cuidado à de justiça, enfatizando a importância do cuidar em detrimento a uma perspectiva técnica da 17 FERRER, Jorge José; ÁLVAREZ, Juan Carlos. Para Fundamentar a bioética: teorias e paradigmas teóricos da bioética contemporânea. Tradução Orlando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 2005. 18 Ibidem. 19 Ibidem. 20 Ibidem. 21 Ibidem. 22 PESSINI, Leocir; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. 8. ed. rev. e ampl. São Paulo: Loyola, 2007. 23 Ibidem. 62 medicina.24 12) O paradigma do direito natural estabelece a existência de alguns bens fundamentais em si mesmo, a exemplo do conhecimento, da vida e da amizade, devendo toda ação ser realizada no sentido de contribuir para o desenvolvimento desses bens.25 13) O paradigma contratualista parte da insuficiência da ética hipocrática clássica e defende um triplo contato entre o médico e os pacientes, entre os médicos e a sociedade e com os princípios orientadores da relação médicopaciente, quais sejam o da beneficência, proibição de matar, dizer a verdade e manter as promessas.26 14) fundamentação O paradigma antropológica da antropológico bioética, personalista desenvolvendo propõe um uma “raciocínio deontológico, de fundamentação teleológica, que considera o ser humano, em sua dignidade universal, o valor supremo de agir.”27 15) A bioética católica tem como principal representante Elio Sgreccia, que não obstante apresente sua bioética como uma ética racional, filosófica, peca pelo fato de inúmeras vezes valer-se demasiadamente da teologia para fundamentar as suas opiniões. Elio Sgreccia28 traz como exemplos de princípios relativos à intervenção do homem sobre a vida humana no campo biomédico os princípios de defesa da vida física, de liberdade e de responsabilidade, de totalidade ou princípio terapêutico e de socialidade e subsidiaridade. De acordo com o princípio da defesa da vida física, a vida corpórea e física do homem é um valor fundamental da pessoa, e não algo que lhe é extrínseco. É o meio de realização da pessoa e acima dela só existe o bem espiritual. Para Sgreccia, “o respeito pela vida, a sua defesa e a sua promoção representam o primeiro imperativo ético do homem diante de si mesmo e diante dos outros.”29 Inserido neste princípio está o tema de defesa à saúde que procede, contudo, o direito à vida e, neste sentido, não pode servir de fundamento, em hipótese alguma, 24 PESSINI, Leocir; BARCHIFONTAINE, Christian da Paul de. Problemas atuais de bioética. 8. ed. rev. e ampl. São Paulo: Loyola, 2007. 25 Ibidem. 26 Ibidem. 27 Ibidem. 28 SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética I: Fundamentos e ética biomédica. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2002. 29 Ibidem, p. 157. 63 para por em risco ou suprimir a vida. O princípio da liberdade-responsabilidade é delimitado pelo princípio da defesa da vida e, em sendo assim, a liberdade deve arcar com a responsabilidade da própria vida e da do outro. Com isso, este princípio sanciona a obrigação do paciente colaborar com o tratamento necessário para salvaguardar a sua vida. Por outro lado, este princípio também regula a responsabilidade do médico, que não pode transformar o tratamento em coação. Segundo o princípio da totalidade ou terapêutica, o ser humano deve ser considerado em sua totalidade física, espiritual e moral, o que autoriza, com base no princípio da inviolabilidade da vida, que para salvar o todo e a vida de um indivíduo se intervenha de modo mutilante sobre uma parte do organismo, desde, é claro, com o consentimento do paciente e sopesamento dos riscos e benefícios. Por fim, o princípio da socialidade e subsdiaridade prega que todo cidadão considere a sua vida e a do seu semelhante como um bem social, e não apenas pessoal e, como conseqüência, a vida e a saúde de cada um dependem do apoio dos outros, que devem ajudar mais onde mais grave seja a necessidade. Noutros termos, deve-se “ter mais cuidado com quem mais necessita de cuidados e gastar mais com que está mais doente.”30 Elio Sgreccia critica o principialismo, pois, segundo ele, da forma em que foi elaborado, torna os princípios estéreis e confusos, o que seria superado com a sua sistematização e hierarquização. Para o autor italiano, o princípio do benefício (que englobaria o princípio do não-malefício) deveria ser posto no vértice, como fim primário da medicina, sendo seguido pelo princípio da autonomia, que deveria estar a serviço do primeiro, e pelo princípio da justiça. 16) O modelo latino-americano da libertação leva em conta a estrutura social, política e econômica dos países periféricos, em especial na América Latina, e busca propostas capazes de realizar a inclusão social.31 17) Principialismo hierarquizado de Diego Gracia propõe que os quatro princípios da bioética devem se organizar em dois níveis: o privado e o público. No primeiro estão compreendidos os princípios da autonomia e da beneficência, já no segundo estão os da nãol-maleficência e justiça, que, do ponto de vista hierárquico, 30 SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética I: Fundamentos e ética biomédica. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2002, p. 165. 31 HOGEMANN, Edna Raquel Rodrigues Santos. Conflitos bioéticos: o caso da clonagem humana. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003. 64 tem prioridade sobre os primeiros. Para Diego Gracia, apenas a análise do caso concreto, sem que haja regras de hierarquização entre os princípios bioéticos, não pode servir de solução para os chamados casos difíceis32. A solução proposta por Manuel Atienza33 para este impasse seria juridificar a bioética, ou seja, segundo o autor, ainda que não seja possível traçar, a priori, uma hierarquia entre tais princípios, isto não significa não se poder criar algumas regras que serviriam para nortear a sua aplicação no caso concreto, seguindo um modelo plausível de racionalidade prática. De acordo com Atienza deve-se construir a partir dos princípios “um conjunto de pautas específicas que resulten coherentes com ellos y que permitan resolver los problemas prácticos que se plantean y para los que no existe, em principio, consenso”. O fato é que mesmo estas regras não seriam suficientes para resolver todas as questões que se desvelam em nosso cotidiano e, portanto, antes de se promover a hierarquização dos princípios ou mesmo a jurisdicização da bioética, o ideal é que a imperatividade ceda espaço, no caso concreto, ao respeito pelo pluralismo e pela diversidade. Segundo Débora Diniz, a Bioética tem por função, na mediação dos conflitos morais, respeitar as diferenças e para tanto a tolerância exerce papel primordial. Ante a pluralidade de crenças e a impossibilidade de haver consenso moral em temas bioéticos, o ideal é que reine o respeito e a tolerância mútua. Afinal a “bioética, antes de tudo, refere-se a direitos e conquistas, não a imposições ou restrições em nome de valores considerados éticos e moralmente bons para alguns”.34 O que se deve ter em mente é que o paradigma principialista, embora mais divulgado e conhecido, não é o único, e os outros modelos teóricos vistos acima, bem como outros que porventura surjam, devem vir a somar com os já existentes. Nenhum paradigma é suficiente para lidar com todos os aspectos da vida humana e cada um deles traz alguma contribuição na tentativa de solucionar as questões bioéticas atuais, 32 daí porque antes de excludentes devem ser FERRER, Jorge José; ÁLVAREZ, Juan Carlos. Para Fundamentar a bioética: teorias e paradigmas teóricos da bioética contemporânea. Tradução Orlando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 2005. 33 ATIENZA, Manuel. Juridificar la bioética. In: VASQUEZ, Rodolfo (comp.). Bioética y derecho. Fundamento y problemas actuales. Rodolfo Vasquez. México: ITAM, 1999, p. 89. 34 DINIZ, Débora; GUILHEM, Dirce. O que é ética. São Paulo: Brasiliense, 2006 (Coleção primeiros passos), p. 69. 65 complementares. Em respostas às críticas ofertadas ao principialismo ao longo dos anos, Tom L. Beauchamp e James F. Childress, considerados os pais do paradigma principialista, pontuam que há diversas teorias éticas que proporcionam um estudo reflexivo acerca da recusa ou aceitabilidade de ações na área biomédica. Cada uma delas, assim como a teoria principialista, é passível de críticas e elogios, mas todas contribuem de certa forma na solução das tormentosas questões advindas da evolução tecnológica na área da saúde e da vida. Os autores, embora estruturem sua abordagem baseados em princípios, não rejeitam a possibilidade, e até mesmo necessidade, de se recorrer a outras teorias, a exemplo do utilitarismo, kantismo, ética do caráter, individualismo liberal, comunitarismo, ética do cuidar, casuística e moralidade comum. No pensamento moral, frequentemente se misturam recursos a princípios, regras, direitos, virtudes, paixões, analogias, paradigmas, parábolas e interpretações. Atribuir prioridade a um desses fatores como o elementochave é uma pretensão duvidosa, assim como a tentativa de dispensar completamente a teoria ética. Os aspectos mais gerais (os princípios, as regras, as teorias etc.) e os mais específicos (os sentimentos, as percepções, os julgamentos de caso, as práticas, as parábolas etc.) devem ser ligadas em nossa deliberação moral.35 Assim, cada um destes modelos teóricos tem seu grau de importância no deslinde das questões bioéticas. 3.2.3 Matizes culturais da bioética O movimento da bioética teve início na década de 70 nos Estados Unidos, e isso se deve, primordialmente, pela hegemonia política e econômica deste país, desencadeador de um vertiginoso desenvolvimento biotecnológico, aliada ao pluralismo da sua população e à denúncia de abusos cometidos nesta área, a exemplo do notório caso Tuskegee36, no estado do Alabama, em que centenas de negros sifilíticos foram deixados sem tratamento com o objetivo de acompanhar a trajetória natural da doença. Estes fatos fizeram com que os Estados Unidos fossem 35 BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Tradução Luciana Pudenz. São Paulo: Loyola, 2002, p. 135. 36 PESSINI, Leocir; BARCHIFONTAINE, Christian da Paul de. Problemas atuais de bioética. 8. ed. rev. e ampl. São Paulo: Loyola, 2007. 66 o primeiro país a se preocupar com os limites éticos das pesquisas em seres humanos. Como reação aos escândalos envolvendo experimentações com pessoas, amplamente divulgados na imprensa, o governo norte-americano criou uma comissão para identificar princípios éticos básicos que deveriam nortear as pesquisas em humanos. O resultado dos trabalhos desta comissão culminou no Relatório de Belmont, com a consolidação dos princípios que regem, ainda hoje, a bioética e a supremacia do paradigma principialista. Leo Pessini e Christian de Paul de Barchifontaine37 apontam algumas razões que desencadearam a característica eminentemente principialista da bioética e entre elas está o fato de que os princípios forneceram aos estudiosos da área um esquema claro para uma ética normativa que fosse aplicada na prática, noutros termos, tornou mais lógicas as percepções e sentimentos morais não verbalizados. Além de principialista, e até mesmo em decorrência deste fato, a bioética norte-americana sofre forte influência do pragmatismo, que se preocupa mais com o procedimento em si do que com a sua fundamentação. A matiz anglosaxônica é marcada por um prisma individual-liberal, privilegiando a autonomia das pessoas. Na Europa, o interesse pela bioética só se desenvolve a partir da década de 80. No continente europeu, todavia, privilegiaram-se os temas mais teóricos de fundamentação do que o pragmatismo procedimental. Essa abordagem está mais pautada numa dimensão social do ser humano, marcada pela idéia de caráter e virtude. Acerca das características das matizes culturais bioéticas angloamericana e européia, oportunas são as palavras de Leo Pessini e Christian de Paul de Barchifontaine38: A perspectiva anglo-americana é mais individualista do que a européia, privilegiando a autonomia da pessoa. Está prioritariamente voltada para microproblemas, buscando solução imediata e decisiva das questões para um indivíduo. A perspectiva européia privilegia a dimensão social do ser humano, com prioridade para o sentido de justiça e equidade preferencialmente aos direitos individuais. Apenas na década de 90 as preocupações bioéticas se descortinam na 37 PESSINI, Leocir; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. 8. ed. rev. e ampl. São Paulo: Loyola, 2007. 38 Ibidem, p. 65. 67 América - latina. Nos países sul-americanos, contudo, muito mais do que o respeito à autonomia ou preocupação com questões de fundamentação filosófica, os principais debates éticos lidam com a exclusão, pobreza e marginalidade. Afinal, em muitos destes países o desenvolvimento biotecnológico ainda está em fase embrionária e mesmo que assim não o seja, a alta tecnologia só está acessível a uma parcela muito pequena da população. “As interrogações mais difíceis nesse campo giram em torno não de como se usa a tecnologia médica, mas de quem tem acesso a ela”39. As discussões bioéticas nos países latinos, portanto, cingem-se às questões de medicina sanitária e distribuição de recursos públicos para a saúde, o que leva conceitos como justiça, equidade e solidariedade a ocuparem posição central na bioética. Vê-se, pois, que a evolução da bioética não se deu de modo uniforme em todo o mundo e a tentativa de criar uma bioética universal, sem levar em conta as matizes culturais, é utopia. Para Edna Raquel Rodrigues Santos Hogemann40, não obstante o pouco tempo de sua existência, a história da bioética pode ser dividida em três estágios. O estágio inicial (1960-1972) denomina-se protobioética e tem como preocupação central os valores humanos, com forte influência da religião e da teologia. O segundo estágio (1972-1985) é chamado de bioética filosófica e aqui a ética assume papel de relevo ante os desafios surgidos com o vertiginoso desenvolvimento da biotecnologia. O terceiro e presente estágio tem como marca a constatação do caráter multidisciplinar e plural da bioética. Esta característica, aliás, fica evidente com a nova definição de bioética trazida na Enciclopédia de Bioética, que supera o enfoque meramente principialista da edição anterior para abarcar outras fontes de conhecimento moral como as virtudes, atitudes e emoções. Os estágios da bioética e a evolução do seu conceito possuem estreita relação com a sua disseminação pelo mundo. Neste sentido vaticinam Leo Pessini e Christian Barchifontaine41 ao traçarem as quatro fases da bioética, que assim podem ser resumidas: na primeira fase tem-se os códigos de conduta dos profissionais da área de saúde; na segunda, leva-se em conta a relação médico-paciente, pondo em 39 PESSINI, Leocir; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. 8. ed. rev. e ampl. São Paulo: Loyola, 2007, p. 66. 40 HOGEMANN, Edna Raquel Rodrigues Santos. Conflitos bioéticos: o caso da clonagem humana. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003. 41 PESSINI; BARCHIFONTAINE, op. cit. 68 evidência os direitos do paciente e questionando-se o paternalismo; na terceira, questiona-se o sistema de saúde, incluindo a sua organização, estrutura, financiamento e gestão; na quarta fase a bioética vai levar em conta questões como equidade e alocação de recursos no sistema de saúde. Esta última fase tem íntima ligação com a matiz cultural latino-americana, onde as discussões acerca do individualismo norte-americano ou as virtudes européias devem ser adaptadas à situação de exclusão, pobreza e fome que caracterizam o seu cotidiano. A bioética nos países periféricos não pode fechar os olhos para a sua realidade política, econômica e social, sob pena de se tornar um ramo vazio e carente de qualquer utilidade prática. 3.2.4 Princípios bioéticos Os princípios informadores da Bioética têm seu gérmen com a criação de uma Comissão Nacional para a Proteção de Sujeitos Humanos na Pesquisa Biomédica e Comportamental por parte do Congresso dos Estados Unidos, em 1974, com o objetivo de instituir princípios éticos básicos que deveriam guiar as investigações com seres humanos. Quatro anos após o seu surgimento, foi publicado, em 1978, o Relatório Belmont, que trazia em seu bojo três princípios bioéticos: o do respeito pelas pessoas, o da beneficência e o da justiça. A partir de então, multiplicaram-se as publicações sobre o tema, merecendo destaque o livro “Princípios de ética biomédica” lançado em 1979 por Tom L. Beauchamp e James F. Childress. Nesta obra, os seus autores seguem a mesma linha traçada no Relatório Belmont, defendendo a existência de princípios éticos como mecanismos aptos a solver conflitos morais. Trazem, no entanto, algumas alterações em relação ao mencionado Relatório, especificamente no tocante aos princípios do respeito às pessoas e da não-maleficência. Primeiramente, Tom L. Beauchamp e James F. Childress substituem o princípio do respeito às pessoas42 pelo princípio da autonomia, sob o argumento de que o relatório “teria colocado numa mesma referência dois princípios independentes: o princípio do respeito à autonomia e o princípio de proteção e 42 O princípio do respeito pelas pessoas, originariamente previsto no Relatório Belmont, abrangia duas concepções éticas: 1) as pessoas deveriam ser tratadas com autonomia; 2) as pessoas com autonomia reduzida deveriam ser protegidas. 69 segurança às pessoas incompetentes”43. Ademais, trazem um quarto princípio que inexistia no Relatório Belmont: o da não-maleficência, que se diferencia do princípio da beneficência, justamente pelo seu caráter negativo, isto é na proibição de atos que causem danos. A teoria destes quatro princípios bioéticos (autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça) elaborada por Tom L. Beauchamp e James F. Childress serviu de sucedâneo à teoria principialista, vista acima, e, pela importância que desempenham, ainda hoje, na seara bioética, serão analisados individualmente, tomando-se como base a obra destes autores44. 3.2.4.1 Autonomia Como dito anteriormente, Tom L. Beauchamp e James F. Childress reduziram o princípio do respeito à pessoa, originalmente previsto no Relatório Belmont, ao princípio da autonomia. A palavra autonomia foi empregada pela primeira vez para designar autogoverno das cidades-estados independentes gregas e, ao longo dos anos, o termo estendeu-se aos indivíduos, adquirindo sentidos diversos. Para ser considerado autônomo, o indivíduo além de estar livre de interferências controladoras externas deve estar isento de limitações pessoais que obstaculizem a livre escolha. Caso isso não ocorra estaremos diante de pessoas com autonomia reduzida. Os autores afirmam que nenhuma teoria de autonomia é aceitável se não for capaz de ser alcançada por agentes normais que agem intencionalmente, com entendimento e sem influências controladoras, devendo-se destacar que as duas últimas condições comportam graus e para que a ação seja considerada autônoma o entendimento e a ausência de influências não precisam ser absolutos, até porque se assim o fosse raramente haveria autonomia. Dito isto, para que uma ação seja autônoma é exigido somente um grau substancial de entendimento e de liberdade de alguma coerção, o que só pode ser contemplado em contextos 43 DINIZ, Débora; GUILHEM, Dirce. O que é ética. São Paulo: Brasiliense, 2006 (Coleção primeiros passos), p. 26. 44 BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Tradução Luciana Pudenz. São Paulo: Loyola, 2002. 70 particulares, e não por uma teoria geral do que constitua um grau de autonomia substancial. Vale ressaltar, ainda, que autonomia não pressupõe independência em relação aos outros. Ao contrário, “a vida comunitária e os relacionamentos humanos proporcionam a matriz para o desenvolvimento do eu, e nenhuma teoria defensável nega esse fato.”45 Autonomia, portanto, não deve ser confundida com individualismo extremado. Ademais, ser autônomo não significa ser respeitado como ser autônomo. O princípio do respeito à autonomia se manifesta de forma negativa, no sentido de que as ações autônomas não devem se sujeitar a pressões controladoras de outras pessoas, bem como de forma positiva, no sentido de promover tratamento respeitoso na revelação de informação e encorajamento na tomada de decisão. O princípio da autonomia, assim como os outros princípios bioéticos, são prima facie, não absolutos, e apesar da sua amplitude não pode se aplicar indistintamente a pessoas não autônomas. Este princípio, dada a sua relevância e graças ao viés jurídico que o impregna será analisado separadamente dos demais princípios bioéticos. 3.2.4.2 Não-maleficência O princípio da não-maleficência consiste em não infligir intencionalmente dano a outrem. Este princípio não foi previsto, originalmente, no Relatório de Belmont, sendo criação de Tom L. Beauchamp e James F. Childress, que o diferenciaram do princípio da beneficência. Os autores afirmam ser comum, na ética médica, utilizar-se de distinções tradicionais para especificar o princípio da mão-maleficência. Muitas destas distinções, todavia, são ilegítimas para delimitar o referido princípio, a exemplo do que se dá com abstenção e interrupção de tratamento, cuja distinção é moralmente insustentável, e sempre que o tratamento puder ser permissivelmente omitido, pode ser também permissivelmente interrompido. “As decisões sobre iniciar ou suspender tratamentos devem se basear em considerações a respeito dos 45 BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Tradução Luciana Pudenz. São Paulo: Loyola, 2002, p. 142. 71 direitos e do bem-estar do paciente, e, portanto, dos custos e dos benefícios do tratamento conforme julgados pelo paciente ou por um substituto.”46 O mesmo se diga entre tratamentos comuns e especiais ante a vagueza dos termos e o fato de que o que para alguns é tratamento comum para outros é especial. Como conseqüência, mais importante do que saber se o tratamento é comum ou especial é saber se ele é benéfico ou maléfico para uma situação. “A distinção comum-especial, portanto, se reduz ao balanço dos custos e benefícios, sendo que a primeira categoria inclui dano imediato, inconveniência, riscos de danos e outras desvantagens.”47 Também a distinção entre tecnologias de suporte e tecnologias médicas não deve ser usada para distinguir a recusa justificada e a recusa injustificada de tratamentos de suporte da vida, e consequentemente, delimitar o princípio da não-maleficência, haja vista que em algumas situações as tecnologias ditas de suporte, a exemplo da nutrição e hidratação artificiais, podem ser justificadamente repudiadas. Como bem pontuaram os autores, há casos em que “as desvantagens da nutrição e da hidratação artificiais superam as vantagens, e ninguém pode privá-los do direito de recusar o tratamento.”48 Por fim, também a tentativa de especificar o princípio da nãomaleficência com base na regra do duplo efeito, ou seja, na diferenciação entre os efeitos visados e os efeitos meramente previstos não deve vingar, já que esta é moldada exclusivamente para os casos em que há um efeito bom e um efeito ruim. Ocorre que, frequentemente, a principal questão é saber se um dado efeito, a exemplo da morte, é bom ou ruim, e isso a regra do duplo efeito não está apta a resolver. Os autores propõem a distinção entre tratamentos opcionais e tratamentos obrigatórios como a mais apropriada para especificar o princípio da nãomaleficência. Nestes termos, o tratamento não é obrigatório quando não oferece benefício ao paciente, por ser inútil ou despropositado, isto é, não tem chance de ser eficaz. A não-maleficência não pode ser entendida como a conservação da 46 BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Tradução Luciana Pudenz. São Paulo: Loyola, 2002, p. 220. 47 Ibidem, p. 223. 48 Ibidem, p. 228. 72 vida biológica a qualquer custo, sem a possibilidade de interrupção ou abstenção de tratamentos médicos que possam conduzir à morte do paciente. De acordo com este princípio, ao contrário, deve-se fazer um sopesamento entre as vantagens e desvantagens da terapia, levando em conta a dor, o sofrimento e o desconforto do paciente. Noutros termos, ao se considerar a opcionalidade ou obrigatoriedade de um tratamento é imprescindível se analisar a qualidade de vida sob o ponto de vista de critérios justificáveis para a determinação de custos e benefícios. Vê-se, pois, que determinar o que seja não infligir danos a outrem e, consequentemente, especificar o princípio da não-maleficência é tarefa árdua, cuja solução perpassa considerações sobre qualidade de vida e respeito à autonomia. 3.2.4.3 Beneficência O princípio da beneficência implica na prática do bem e requer atitudes positivas para ajudar os outros. Tom Beauchamp e James Childress subdividem o princípio da beneficência em dois: a beneficência positiva, que requer a propiciação de benefícios; e a utilidade, que requer a ponderação de benefícios e desvantagens. Os autores trazem, ainda, distinções importantes acerca do princípio da beneficência, a saber: a) Beneficência ideal versus beneficência obrigatória. A primeira diz respeito ao que seria ideal em uma sociedade onde as pessoas se preocupassem sempre em fazer o bem a todas as outras pessoas, independentemente das circunstâncias e das sanções em caso de descumprimento; já a segunda traz determinadas atitudes que, mais do que ideais, são obrigatórias, ao menos do ponto de vista moral. b) Beneficência geral versus beneficência específica. Esta se direciona a indivíduos ou grupos específicos, e geralmente se baseia em relações morais específicas; enquanto aquela se direciona a todas as pessoas, e está intimamente ligada à beneficência ideal, romântica, sendo de menor alcance prático, na medida em que “quanto mais amplamente generalizamos as obrigações de beneficência, menos probabilidade há que cumpramos nossas responsabilidades primárias”.49 49 BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Tradução Luciana Pudenz. São Paulo: Loyola, 2002, p. 286. 73 Há que se diferenciar, ainda, o princípio da beneficência da beneficência propriamente dita e da benevolência. A beneficência é toda a ação realizada em benefício de outrem; a benevolência é a virtude ligada à disposição de praticar beneficência e o princípio da beneficência é a obrigação moral de agir em benefício de outrem. Por fim, vale a pena distinguir também as obrigações de beneficência das obrigações negativas de evitar causar o dano, o que configura o princípio da não-maleficência, visto acima. Embora haja autores que não façam distinção entre os princípios da não-maleficência e da beneficência, uma análise um pouco mais apurada destes princípios deixa claro que há diferenças substanciais entre eles, e as principais são: O princípio da não-maleficência tem caráter negativo, ou seja, é marcado por proibições negativas de ações, que devem ser obedecidas de modo imparcial e cujo descumprimento serve de base de sanções legais. Já o princípio da beneficência tem caráter positivo, isto é, apresenta exigências positivas de ação, que não precisam ser sempre obedecidas de modo imparcial e que raramente causam punições legais em caso de inobservância. O princípio da beneficência pode ser, assim, resumido como um compromisso, imposto pela tradição médica hiprocrática, de causar benefício às pessoas. O grande risco deste princípio é aplicá-lo de forma radical, e como conseqüência o profissional de saúde assumir uma atitude paternalista em relação ao paciente e, sob o pretexto de praticar-lhe o bem, anular a sua liberdade de decisão. 3.2.4.4 Justiça Traduz-se na igualdade de tratamento entre pessoas que se encontram em situação semelhante. Enquanto os princípios anteriores são marcados pelo caráter mais individual, este princípio diz respeito especialmente à sociedade. Nas lições de Maria Helena Diniz50, o “princípio da justiça requer a imparcialidade na distribuição dos riscos e benefícios, no que atina à prática médica pelos profissionais da saúde”. É a expressão da justiça distributiva, entendida esta como a distribuição justa e equitativa dos recursos escassos no interior da 50 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 5. ed. rev., aum. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 15. 74 sociedade. Os recursos disponibilizados para a saúde são escassos, sendo insuficientes para atender aos anseios de toda a população51, o que leva à necessidade de distribuí-los da maneira mais equilibrada possível. E, para tanto, é imprescindível que se efetuem a macroalocação e microalocação de recursos.52 A primeira se refere à distribuição feita em escala governamental, ou seja, quanto será alocado à saúde e de que forma se dará este investimento. Já a microalocação diz respeito à distribuição de recursos no caso concreto, dentro das unidades de saúde, ou seja, em caso de ausência de leitos nos hospitais públicos para atender a todos os que necessitam, consiste em escolhe aqueles doentes que serão internados e aqueles que não o serão. Este princípio bioético representa a efetivação do direito à igualdade, material e formal, e o direito de acesso a todos à saúde nas melhores condições possíveis. Após a análise dos quatro princípios bioéticos básicos, faz-se mister ressaltar não ser conveniente que se estabeleça uma hierarquia absoluta e apriorística entre eles, bem como não se deve visualizá-los de forma extremada, em especial o da beneficência e o da autonomia, sob pena de se incorrer num paternalismo radical ou no autonomismo liberal. Neste sentido, preciosa é a lição de Tom Beauchamp e James Childress53: [...] o debate sobre qual princípio ou modelo deveria ser prioritário na prática médica não pode ser resolvido de forma tão simplificada, defendendo-se um princípio contra o outro ou transformando um princípio em absoluto. Nem o médico nem o paciente possuem uma autoridade preferencial e prioritária, e não há na ética biomédica nenhum princípio preeminente, nem mesmo a admonição de agir no melhor interesse do paciente. [...] a beneficência fornece a meta e o fundamento primordiais da medicina e da assistência à saúde, enquanto o respeito à autonomia (e a não-maleficência e a justiça) estabelece os limites morais as ações dos profissionais ao buscar essa meta. Os princípios bioéticos têm cunho axiológico e devem servir de parâmetro na solução de impasses causados pela evolução biotecnológica, mas não 51 Isso ocorre em todo o mundo, mesmo em países mais desenvolvidos. Não há como se negar, entretanto, que a situação é mais crítica em países pobres e em desenvolvimento, onde não há, sequer, acesso ao mínimo existencial 52 VILLAS-BÔAS, Maria Elisa. Da eutanásia ao prolongamento artificial: aspectos polêmicos na disciplina jurídico-penal do final de vida. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 123. 53 BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Tradução Luciana Pudenz. São Paulo: Loyola, 2002, p. 296-297. 75 podem ser aplicados de forma isolada, sem considerar as características culturais e o sistema jurídico vigente. 3.2.4 Relação com o Biodireito A evolução da biomedicina aliada à ausência de regramento específico sobre a matéria deixa clara a insuficiência da proteção jurídica existente, bem como a necessidade de disciplinamento do tema, e é a isto que se propõe o Biodireito. Não há como negar que a bioética serve de baliza ética para os experimentos com seres humanos na seara biomédica. A ausência de coercitividade de seus preceitos, todavia, impede o controle mais efetivo da prática de abusos, razão pela qual o direito vem se preocupando, cada vez mais, em regulamentar esta seara. A grande dificuldade é, sem dúvida, compatibilizar a efemeridade das transformações no campo biotecnológico com as características positivistas de estabilidade e perenidade do Direito. Isso não deve servir de óbice, contudo, para que o direito normatize as transformações ocorridas com a evolução biotecnológica, até porque, não raro o operador jurídico se depara com situações fáticas conflituosas, sendo o Direito instado a resolvê-las, mesmo na ausência de normas específicas. Assim, como bem pontua Maria Auxiliadora Minahim54, “mesmo admitindo que o sistema jurídico é incompleto, provisório, e não definitivo, porque a vida é um processo constante de mudanças, é preciso encontrar um ponto de convergência, a partir de princípios comuns”. Seguindo esta mesma linha de raciocínio, para Heloisa Helena 55 Barboza , o Biodireito se destina a reger os fenômenos resultantes da biotecnologia e da biomedicina e, em sendo assim, não pode desconsiderar a Bioética que, ao longo dos últimos anos vem construindo o suporte ético para orientar estes fenômenos. Isso, entretanto, não significa que o Biodireito deve se limitar a transpor as normas bioéticas para o direito, uma vez que sendo ramo do direito não pode, em hipótese alguma, ir de encontro aos princípios gerais do direito ou princípios 54 MINAHIM, Maria Auxiliadora. Direito Penal e biotecnologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 48. 55 BARBOZA, Heloísa Helena. Princípios do biodireito. In: BARBOZA, Heloísa Helana; MEIRELLES, Jussara M. L. de; BARRETO, Vicente de Paulo (org.). Novos temas de biodireito e bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 76 constitucionais, fundamentando-se exclusivamente em princípios bioéticos. Assim, na hipótese, mesmo que remota, de colisão entre princípios constitucionais ou gerais do direito e princípios da bioética, no caso concreto, devem prevalecer os primeiros. Pode-se afirmar, portanto, que os princípios que constituem a sociedade brasileira e que estão previstos na Constituição Brasileira de 1988 formam a base principiológica do Biodireito, isto é, “os princípios constitucionais devem constituir os princípios do Biodireito”56, e os princípios da bioética assumiriam a natureza de pressupostos. É verdade, também, como bem pontua Maria Auxiliadora Minahim57, que em virtude da instabilidade que rege as relações biomédicas não se deve adotar normas rígidas aptas a tentar solucionar pontualmente todas as situações existentes, mas sim fazer uso de normas mais genéricas que tenham a flexibilidade por característica. A complexidade social e a impossibilidade de uma regra com validade universal impõe a necessidade de regras gerais, que possam ser flexibilizadas diante do caso concreto, e esta flexibilização da regra diante do caso para que se faça justiça exige uma “densificação da moral na norma jurídica de forma que esta tenha legitimidade e, em sua aplicação, deixe o menor saldo possível de injustiça.”58 Nesta tarefa ganha destaque a Bioética. Assim, diante do até aqui exposto, pode-se afirmar que embora não se confundam, Bioética e Biodireito possuem uma relação simbiótica, e por vezes os princípios bioéticos se confundem de tal forma com os princípios gerais do direito que estabelecer uma linha divisória clara entre eles é tarefa difícil, senão impossível. Isto se dá com o princípio da autonomia/liberdade, que em virtude da importância que representa para as questões envolvendo o final da vida será retomado e abordado de forma mais profunda, levando em conta o seu aspecto práticonormativo. 3.3 O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PRIVADA E O CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO 56 BARBOZA, Heloísa Helena. Princípios do biodireito. In: BARBOZA, Heloísa Helana; MEIRELLES, Jussara M. L. de; BARRETO, Vicente de Paulo (org.). Novos temas de biodireito e bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 73. 57 MINAHIM, Maria Auxiliadora. Direito Penal e biotecnologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. 58 Idem. A vida ode morrer? Reflexões sobre a tutela penal da vida em face da revolução biotecnológica. In: BARBOZA, Heloísa Helena; MEIRELLES, Jussara M. L. de; BARRETO, Vicente de Paulo (org.). Novos temas de biodireito e bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 97-131. 77 3.3.1 Definição, antecedentes históricos e conceitos correlatos A autonomia deriva do grego auto, que significa próprio, e nomos, que quer dizer norma. Assim, autonomia pode ser traduzida como o poder de traçar suas próprias regras de acordo com os seus interesses e, nestes termos, está umbilicalmente ligada à vontade. De acordo com Francisco dos Santos Amaral Neto a vontade pode ser vislumbrada sob os prismas psicológico, ético, filosófico e jurídico. Do ponto de vista psicológico, a vontade é uma “faculdade espiritual do homem que manifesta uma tendência, um impulso para algo, a realização de um valor intelectualmente conhecido”. Já eticamente, a vontade traduz-se em uma “atitude ou disposição moral para querer algo”. Sob a ótica filosófica, a vontade é uma “entidade a que se atribui absoluta subsistência e se converte, por isso, em substrato de todos os fenômenos”. Por fim, juridicamente, a vontade constitui-se em um dos “principais elementos do ato jurídico”, e quando manifestada de acordo com os preceitos legais produz efeitos, criando, modificando ou extinguindo relações jurídicas.59 A faculdade de agir de acordo com a sua vontade chama-se liberdade e é, justamente, esta esfera de liberdade de que o agente dispõe que se chama autonomia. Assim, vontade, liberdade e autonomia são conceitos que não podem ser vistos de forma dissociada. Outro conceito ligado à autonomia e, por sua relevância, deve aqui ser abordado, ainda que de forma bastante sucinta, é o de capacidade, haja vista que a vontade produtora de efeitos jurídicos depende da capacidade do declarante. A capacidade legal se divide em duas espécies, quais sejam, a capacidade de gozo ou de direito e a capacidade de fato ou de exercício. A primeira é a aptidão genérica do indivíduo para adquirir direitos e contrair obrigações, já a segunda traduz-se na aptidão de exercer por si só os atos da vida civil. Embora todas as pessoas tenham capacidade de direito, nem todas reúnem as condições necessárias para o seu exercício e, nestes casos devem ser representadas por outrem. Além da capacidade legalmente prevista, existe a capacidade decisória na seara bioética, que se configura como a aptidão das pessoas decidirem sobre a 59 AMARAL NETO, Francisco dos Santos. A autonomia privada como princípio fundamental da ordem jurídica. Revista de informação legislativa, a. 26, n. 102, p. 207- 230, abr./jun. 1989, p. 211-212. 78 sua própria saúde. Nesta área, a circunstância de as pessoas serem dotadas de capacidade de fato não as legitima, por si só, a tomarem decisões terapêuticas relativas à sua saúde. Do mesmo modo, aquelas pessoas que não são dotadas de capacidade civil podem ter a sua vontade respeitada no que tange aos tratamentos médicos adotados. Assim, capacidade não se restringe à capacidade legal, e o conceito de capacidade trazido pela bioética está mais intimamente ligado ao conceito de autonomia. Lívia Heygert Pithan, Fabrício Benites Bernardes e Luiz Alberto B. Simões Pires Filho60, ao discorrerem sobre o assunto, asseveram que a capacidade decisória do paciente não pode ser avaliada de maneira geral, com base, unicamente, em critérios legais pré-estabelecidos, mas depende do caso concreto, da decisão particular a ser tomada, haja vista que a avaliação exclusivamente sobre o prisma legalista “não confere suficiente proteção à dignidade humana do paciente. A capacidade do paciente deve ser entendida como algo pontual, específico, relacionado ao caso concreto a ser avaliado [...].”61 Feita esta breve digressão sobre os institutos que contribuem para melhor conceituar a autonomia, pode-se defini-la como a “capacidade de escolher, tomar decisões e agir de acordo com elas.”62 Ou seja, capacidade de agir livremente segundo a sua vontade. O princípio da autonomia tem seu antecedente imediato no individualismo, entendido como a doutrina que supervaloriza o indivíduo em relação à sociedade, considerando-o como causa e fim de todo o direito. O individualismo, por sua vez, e o próprio princípio da autonomia, por conseqüência, derivam do direito romano, do direito canônico, da escola do direito natural, da teoria do contrato social e do liberalismo econômico.63 No direito romano, o gérmen da autonomia era especificamente a lex privata, que consistia numa declaração solene, com valor de norma, em que o particular dispunha de alguma coisa que possuía. Posteriormente, o direito canônico dogmatizou a declaração da vontade como fonte de obrigações jurídicas, reconhecendo como pecado a violação da palavra dada. Com o direito natural 60 PITHAN, Lívia Heygert; BERNARDES, Fabrício Benites; PIRES FILHO, Luiz Alberto B. Simões. Capacidade decisória do paceinte: aspectos jurídicos e bioéticos. In: GAUER, Gabriel José Chittó; ÁVILA, Gerson Antônio de; ÁVILA, Gustavo Noronha de. (org.) Ciclo de conferência em bioética. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005, p. 121-137. 61 Ibidem, p. 132. 62 SINGER, Peter. Ética prática. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000, p. 109. 63 AMARAL NETO, Francisco dos Santos. A autonomia privada como princípio fundamental da ordem jurídica. Revista de informação legislativa, a. 26, n. 102, p. 207- 230, abr./jun. 1989. 79 consagraram-se as liberdades naturais em substituição à idéia de origem divina. E a teoria do contrato social de Jean Jacques Rousseau contribuiu no plano filosófico para a teoria da autonomia da vontade, na medida em que a vida em sociedade exigia uma renúncia parcial da liberdade em favor do contrato social, sendo impossível a convivência se cada um exercesse a sua liberdade ao máximo, sem limites. Com Kant a autonomia da vontade, expressão retirada de sua obra “Crítica da Razão Prática”, adquiriu conotação dogmática, passando a imperativo categórico de ordem moral. 64 De acordo com Imanuell Kant, a autonomia da vontade deve ser entendida como a capacidade representada pela vontade humana do indivíduo agir segundo uma legislação moral por ele próprio criada, livre de qualquer fator externo.65 Foi com o liberalismo, todavia, que a autonomia adquiriu força, ganhando contornos absolutos, na medida em que o Estado não deveria intervir nas relações firmadas autonomamente por particulares. A autonomia da vontade traduzia-se como a liberdade de contratar, com quem contratar e o conteúdo do contrato, tendo como fundamento a propriedade privada e como função garantir a livre circulação de bens. Com a evolução social, a demonstrar as injustiças de uma autonomia da vontade irrestrita e que violava flagrantemente a igualdade material, surgiram inúmeras críticas ao absolutismo da autonomia. A autonomia da vontade, bandeira do ideal liberal e vista de modo irrestrito, foi suplantada pela autonomia privada. Acerca do tema, Roxana Borges66 distingue autonomia jurídica individual e autonomia privada. A primeira, mais ampla, coincide com o conceito de liberdade jurídica, e significa a faculdade de agir licitamente, ou seja, na ausência de proibição. A segunda, mais restrita, coincide com liberdade negocial, e consiste no poder de regular, por si mesmo, as próprias ações e conseqüências jurídicas. A autonomia das pessoas de se autoregularem, quando reconhecida pelo direito transforma-se em autonomia privada jurídica. De acordo com a autora, a teoria da autonomia da vontade está, hoje, superada pela teoria da autonomia privada, embora alguns autores ainda utilizem as 64 AMARAL NETO, Francisco dos Santos. A autonomia privada como princípio fundamental da ordem jurídica. Revista de informação legislativa, a. 26, n. 102, p. 207- 230, abr./jun. 1989. 65 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução: Paulo Quintel. Lisboa: Edições 70, 2000. 66 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos de personalidade e autonomia privada. 2. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2007. 80 expressões como sinônimas. Primeiramente insta frisar que a vontade, apesar de importante, não pode por si só ser considerada, haja vista que apenas após ter sido externada é que passa a ter relevância para o mundo, pois enquanto somente interna é irreconhecível por outra pessoa. Daí porque ganha destaque a declaração da vontade, e não apenas a vontade. Ademais, com o desenvolvimento social passou-se a afirmar que o puro consenso não seria capaz de criar direitos, “mas apenas o consenso que for previsto pelo ordenamento jurídico ou aquele consenso ou acordo que não o contrariar.”67 O dogma de que a vontade individual era onipotente foi suplantado. Apenas a declaração da vontade que estiver de acordo com o ordenamento jurídico é capaz de gerar efeitos jurídicos desejados pelo sujeito capaz e legitimado. Esta autonomia privada também permeia as situações subjetivas existenciais e, nestes casos, a autonomia encontra limites no princípio da dignidade da pessoa humana. No mesmo sentido manifesta-se Francisco dos Santos Amaral Neto, para quem, embora muitos autores tratem as expressões autonomia da vontade e autonomia privada como sinônimas, em verdade elas não se confundem. Segundo o autor a autonomia da vontade tem conotação mais subjetiva, enquanto a autonomia privada tem contornos mais objetivos, concretos e reais. Noutros termos, [...] quando nos referimos especificamente ao poder que o particular tem de estabelecer as regras jurídicas de seu próprio comportamento, dizemos, em vez de autonomia da vontade, autonomia privada. Autonomia da vontade, como manifestação de liberdade individual no campo do direito, psicológica, autonomia privada, poder de criar, nos limites da lei, normas jurídicas.68 A autonomia privada encontra limites na ordem pública, moral, bons costumes e legislação, enfim, no respeito à dignidade da pessoa humana e solidariedade social. Noutros termos, a autonomia privada, ainda que não regulada explicitamente, está a serviço do princípio da dignidade da pessoa humana e não deve exceder os limites estabelecidos no ordenamento jurídico brasileiro. Da mesma forma que está a serviço da dignidade da pessoa humana, a autonomia é uma faceta dela, haja vista o ser humano existir em função da sua própria vontade, como 67 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos de personalidade e autonomia privada. 2. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 52. 68 AMARAL NETO, Francisco dos Santos. A autonomia privada como princípio fundamental da ordem jurídica. Revista de informação legislativa, a. 26, n. 102, p. 207- 230, abr./jun. 1989, p. 213. 81 será melhor explicitado adiante.69 Otavio Luiz Rodrigues Junior nos traz, ao lado da autonomia privada, o conceito de autodeterminação como “um poder juridicamente reconhecido e socialmente útil, de caráter ontológico, baseado numa abertura do homem para o mundo e suas experiências e solicitações sensíveis ou não.”70 A autodeterminação é, pois, mais ampla, abarcando a autonomia privada e as escolhas individuais quanto à ideologia, religião, opção sexual e direito de renunciar à própria vida. Independentemente da nomenclatura adotada (autonomia da vontade, autonomia privada ou autodeterminação), Rodrigo Siqueira-Batista e Fermin Roland Schramn71 chamam a atenção para o fato de o princípio da autonomia não poder ser visualizado de forma absoluta, em especial na argumentação bioética sobre o fim da vida, por estar eivado de paradoxos. O primeiro destes paradoxos diz respeito à idéia de que embora seja possível pensar a autonomia como livre-arbítrio, permanece sempre a dúvida se realmente está-se diante de uma escolha livre ou diante de uma “necessidade”, de um determinismo que subtrai o âmbito da autonomia sobre as decisões de vida e morte. O segundo paradoxo se refere à limitação da autonomia imposta pela biologia humana, na medida em que “a existência material – ou corpórea – marca, de modo indelével, toda sorte de restrições, como cansaço, senescência, enfermidade, sofrimento e morte, as quais têm profunda influência sobre a (im) possibilidade de autodeterminação.”72 O terceiro paradoxo, baseado nas idéias de Schopenhauer, Nietzche e Freud, prega que o querer humano está indissociavelmente ligado à irracionalidade, ao inconsciente e, em sendo assim, esta determinação psíquica é incompatível com a autonomia, uma vez que “o inconsciente dita as preferências e opções aparentemente livres que se estabelecem como ‘suposto’ produto da atividade consciente.”73 O quarto e último paradoxo diz respeito à dificuldade em se estabelecer um equilíbrio entre autonomia e justiça nas sociedades democráticas, haja vista que a autonomia efetiva das pessoas é limitada por conta do estado de desigualdade existente, impossibilitando69 Apesar de feitas as distinções conceituais entre autonomia privada e autonomia da vontade, os termos serão tratados, por vezes, indistintamente, como faz a maior parte da doutrina. 70 RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Autonomia da vontade, autonomia privada e autodeterminação: Notas sobre a evolução de um conceito na Modernidade e na Pós-modernidade. Revista de informação legislativa. Brasília, a. 41, n. 163, p. 114-129, jul./set. 2004. p. 126. 71 BATISTA, Rodrigo Siqueira; SCHRAMM, Fermin Roland. A eutanásia e os paradoxos da autonomia. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, p. 95-102, 2008. 72 Ibidem, p. 213. 73 Ibidem, p. 216. 82 as de se manterem dignamente. Não obstante estes paradoxos e o fato de que a autonomia não possa ser vista de forma ilimitada, não se pode levar adiante a crença de inexistência de autonomia da pessoa humana que nos permite agir e pensar livremente, sob pena de retirarmos do homem a sua principal característica, qual seja a sua individualidade. 3.3.2 O consentimento livre e esclarecido A autonomia incorporou-se à medicina na década de 70 para significar “atribuição de poder para se tomar decisões sobre assuntos médicos”74, e foi de fundamental importância para a substituição do princípio do paternalismo pelo consentimento livre e esclarecido. Há até bem pouco tempo a relação médico-paciente se dava no plano vertical, com o médico ocupando uma posição de superioridade perante o moribundo. Por ser o detentor do conhecimento técnico, caberia a ele adotar o tratamento que julgasse mais adequado ao paciente. O doente era sujeito passivo das intervenções médicas, sem possibilidade de opinar. Após a Segunda Guerra Mundial, contudo, o mundo tomou conhecimento das atrocidades do nazismo que, sob o pretexto de realizar experiências médicas, dizimou milhões de judeus. Desde então a relação médicopaciente sofreu profundas alterações, passando a ser marcada pela igualdade entre as partes envolvidas, e não mais superioridade. Neste contexto ganha relevo a autonomia do paciente, cujas decisões teriam de ser respeitadas pelos agentes de saúde, e que se traduz como consentimento livre e esclarecido, substituto do paternalismo até então vigente. Esta substituição se deu também no Brasil, embora aqui, não obstante nossa legislação já contemple o respeito à autonomia dos pacientes, esta mudança ainda não está totalmente consolidada. Prova disto é que o Código Civil Brasileiro ainda faz uso de expressões paternalistas, a exemplo do que se dá no seu artigo 13, que dispõe “Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes“; bem como do artigo 15, segundo o qual 74 RIBEIRO, Diaulas Costa. Autonomia: viver a própria vida e morrer a própria morte. Caderno Saúde Pública, Rio de Janeiro, 22(8):1749-1754, ago, 2006. 83 “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica“. Em relação ao primeiro dispositivo está evidente que a expressão “exigência médica” não mais condiz com a nossa realidade, haja vista que a autonomia deu lugar à indicação, recomendação e não mais exigência. Quanto ao segundo dispositivo legal aqui trazido, a sua interpretação literal levaria ao equívoco de concluir que há obrigação de aceitar tratamento ou cirurgia sem risco de vida, o que é inaceitável.75 Embora ainda se encontrem resquícios do princípio paternalista, o que não é surpresa pela forte influência exercida, é fato incontroverso que a autonomia desempenha, hoje, nas relações médicas, papel de grande relevância. De acordo com Heinrich Ganthaler76, [...] a concepção ético-médica tradicional segundo a qual o médico é quem deve decidir, em primeira linha, sobre o início, continuação e interrupção do tratamento, deu lugar, em grande medida, a uma concepção que acentua o princípio da observância da autonomia do paciente capaz de decisão e suficientemente esclarecido e que faz jus, dessa forma, à visão de mundo individual e às concepções individuais de valor do paciente. No campo da bioética, a autonomia se manifesta pelo consentimento livre e informado77. Assim, nesta seara, mais importante que firmar a distinção entre capacidade de direito e de agir é que o paciente tenha capacidade de compreender o que lhe é dito pelos agentes de saúde e manifestar-se sobre os seus interesses livre de qualquer coação, ainda que certos padrões, a exemplo da idade dos enfermos, sejam considerados prudentes. A capacidade legal, portanto, não se confunde com a capacidade na seara da bioética, como visto alhures. Para que esta capacidade de compreender seja exercida livre de quaisquer vícios é imprescindível que a informação prestada seja clara e precisa. O consentimento, ou mesmo a sua negação, só pode ser dado sobre aquilo que foi 75 RIBEIRO, Diaulas Costa. Autonomia: viver a própria vida e morrer a própria morte. Caderno Saúde Pública, Rio de Janeiro, 22(8):1749-1754, ago, 2006. 76 GANTHALER, Heirich. O direito à vida na medicina. Tradução Elisete Antoniuk. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2006, p. 69. 77 Aqui vale a pena trazer à baila a crítica de Roxana Cardoso Brasileiro Borges à expressão consentimento informado, pois, segundo ela, consentir se resume a concordar ou não objetar com as decisões do médico. Para a autora, o consentimento era ato típico do antigo paciente da era paternalista, que se reduzia a mero objeto de intervenções médicas, mas não mais se coaduna com a figura atual do doente cliente (e não paciente), que não se contenta apenas em consentir, mas sim manifestar expressamente a sua vontade. [BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direito de morrer dignamente: eutanásia, ortotanásia, consentimento informado, testamento vital, análise constitucional e penal e direito comparado. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 283-305]. 84 previamente esclarecido de forma satisfatória. Assim entende Rachel Sztajn78: O paciente, ao tomar decisões quanto a sua saúde, procedimentos terapêuticos, terapias alternativas, ou outras medidas, deve ter recebido informações completas, em linguagem acessível, de forma que sua vontade não seja viciada por pressões externas ou por falta de informação. Vê-se, pois, que a autonomia ganha relevo no campo da saúde, interferindo no paternalismo da relação médico-paciente, na medida em que o paciente deve ser visto como sujeito dotado de vontade, capaz de influenciar ativamente no tratamento a que está sendo submetido, não se restringindo a mero objeto de intervenções médicas. Ademais, na relação médico-paciente a autonomia não se restringe ao paciente, uma vez que também o médico goza de autonomia, na medida em que lhe é assegurado o direito de não tratar de quem se recusa a seguir as suas orientações, salvo os casos de risco de vida iminente. Ainda que a autonomia nas relações de saúde não se restrinja ao paciente é, contudo, certamente, neste aspecto que há maiores polêmicas. Quanto ao exercício da autonomia dos pacientes nas relações de saúde há duas correntes: de um lado estão os autonomistas extremados, segundo os quais as manifestações dos pacientes devem ser sempre levadas em consideração79; de outro lado estão os autonomistas moderados, para quem a autonomia só pode ser exercida nas matérias de menor importância para a saúde80, como será visto de forma detalhada no capítulo seguinte. Independentemente da corrente seguida, contudo, para que a autonomia seja eficazmente exercida é mister que o paciente seja competente81 e esteja esclarecido. Vale ressaltar, todavia, que a própria aferição da capacidade do paciente em certos casos é complexa, não se podendo afirmar com convicção se o paciente é capaz de, livre de influências internas e externas, tomar decisões acerca do seu tratamento. Por esta razão a capacidade decisória do paciente deve ser 78 SZTAJN, Rachel. Autonomia privada e direito de morrer: eutanásia e suicídio assistido. São Paulo: Cultural Paulista, 2002, p. 32. 79 Para os adeptos desta corrente o pedido de antecipação da morte deve ser respeitado. Primeiro porque se o pedido não for atendido criar-se-á para o paciente uma obrigação de continuar vivo contra o seu interesse; e segundo porque o atendimento do pedido do paciente representa respeito à sua dignidade. 80 SZTAJN, op. cit. 81 Competência aqui deve ser entendida como capacidade do paciente tomar decisões, fazer escolhas de forma livre e consciente. 85 analisada de forma criteriosa pelo médico, que tem o dever profissional de adequar as terapias utilizadas às circunstâncias pessoais do doente. Este dever é ratificado pelo artigo 7482 do novo Código de Ética Médica Brasileiro, que veda a possibilidade de revelação de segredo médico até mesmo de paciente menor quando este tiver capacidade de avaliar o seu problema e tomar decisões a ele atinentes. O Código de Ética Médica Brasileiro deixa transparecer, portanto, a importância dada à capacidade dos pacientes, bem como a necessária sensibilidade que o médico deve ter ao auferi-la no caso concreto. Neste aspecto, Lívia Haygert Pithan, Fabrício Benites Bernardes e Luiz Alberto B. Simões Pires83 fazem menção à chamada estratégia da escala móvel, que consiste em levar em conta certos critérios de eficiência, viabilidade e aceitabilidade social quando da análise da capacidade do paciente. Noutros termos, o critério deve ser observado sem desprezar os modelos da comunidade, o risco envolvido e os benefícios esperados. “A estratégia da escala móvel consiste na estipulação de maior ou menor rigorismo na avaliação da capacidade conforme o grau de risco envolvido no procedimento médico”84, ou seja, caso a decisão apresente um risco grave, deve ser submetida a um modelo rígido; caso haja um risco baixo, deve ser usado um modelo de capacidade mais frouxo. 85 Tal fato denota, pois, que a capacidade do paciente não pode se restringir ao rigorismo da capacidade legalista do Direito. Há situações, porém, em que o doente se mostra claramente incapacitado de manifestar seus desejos e, nestes casos, o exercício do direito à autonomia apresenta algumas peculiaridades. Assim, faz-se mister analisar a autonomia não só sob a ótica do paciente capaz, mas também daqueles que não o são, ou porque, em virtude do grau da doença, o paciente, antes plenamente capaz, não apresenta a menor possibilidade de tomar decisões acerca do seu tratamento, 82 “É vedado ao médico: Art. 74 - Revelar segredo profissional referente a paciente menor de idade, inclusive a seus pais ou responsáveis legais, desde que o menor tenha capacidade de discernimento, salvo quando a não revelação possa acarretar danos ao paciente.” 83 PITHAN, Lívia Haygert; BERNARDES, Fabrício Benites; PIRES FILHO, Luiz Alberto B. Simões.Capacidade decisória do paciente: aspectos jurídicos e bioéticos. In: GAUER, Gabriel José Chittó; ÁVILA, Gerson Antônio de; ÁVILA, Gustavo Noronha de. (org.) Ciclo de conferência em bioética. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005. 84 Ibidem, p. 134. 85 Tom Beaucham e James Childress afirmam que este modelo da escala móvel é condenável, uma vez que o nível de capacidade não aumenta à medida que aumenta o risco de um resultado. Para os autores este problema pode ser contornado “aceitando-se que o nível de evidência para se determinar a capacidade deve variar de acordo com o risco, embora a capacidade em si mesma varie somente ao longo de uma escala de dificuldade de decisão. [BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Tradução Luciana Pudenz. São Paulo: Loyola, 2002, p. 161]. 86 ou porque o paciente nunca foi capaz. Nestes casos, o consentimento deve ser prestado pelo representante legal, se houver, ou por um terceiro, dando azo à decisão substituta, que deve levar em conta, sempre que possível, a vontade presumida do paciente. Lydia Neves Bastos Teles Nunes86 assim discorre sobre o tema: Havendo representante legal, será ele o responsável pelo consentimento. Não havendo representante legal, uma orientação estabelecida pela Declaração dos Direitos dos Pacientes, que no item 3.7 dispõe: “Em todas as situações em que o paciente é incapaz de dar o seu consentimento esclarecido ou em que nenhum representante legal foi designado pelo paciente para este efeito, devem tomar-se medidas apropriadas para a aplicação de um procedimento que permita que se alcance uma decisão de substituição de base do que se conhece e, na medida do possível, do que poderia presumir-se dos desejos do paciente”. O tipo de incapacidade do paciente leva a diferentes modelos a serem seguidos na tomada de decisão pelos substitutos, e são eles: decisor substituto, autonomia pura ou melhores interesses.87 No primeiro modelo, o substituto vai atuar como se fosse o próprio incapaz, levando em conta as suas atitudes e o seu modo de viver enquanto era capaz. Assim, este modelo parte do pressuposto de que a incapacidade do paciente é superveniente, só devendo, portanto, ser utilizado para aqueles pacientes que já foram capazes, mas que não se manifestaram explicitamente acerca do tratamento médico (ou interrupção do tratamento) a ser adotado em caso de tornar-se incapaz.88 89 No segundo modelo, preserva-se a decisão tomada pelo doente quando era capaz. Neste caso, também se está diante de uma incapacidade superveniente, mas aqui o paciente se manifestou explicitamente acerca da atitude a ser tomada caso não mais pudesse expressar-se. 86 NUNES, Lydia Neves Bastos Teles. O consentimento informado na relação médico-paciente: respeitando a dignidade da pessoa humana. Revista Trimestral de Direito Civil, a. 8, v. 29, p. 95110, jan./mar. 2007, p. 106. 87 BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Tradução Luciana Pudenz. São Paulo: Loyola, 2002. 88 Em sentido contrário Tom Beauchamp e James Childress entendem este modelo só deve ser usado para pacientes que já foram capazes e cuja vontade restou explicitada. Ocorre que, nestes casos a decisão substituta se confunde com o segundo modelo, o modelo da pura autonomia. [BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Tradução Luciana Pudenz. São Paulo: Loyola, 2002]. 89 Observa-se que este modelo desaguará, necessariamente, em um dos dois modelos seguintes, pois se o paciente explicitou a sua vontade, como entendem Tom Beauchamp e James Childress se confundirá com o modelo da pura autonomia; caso contrário, ou seja, se a vontade do paciente não restou explicitada, desembocará no modelo dos melhores interesses. 87 No terceiro modelo o substituto vai agir no melhor interesse dos pacientes, avaliando os riscos e benefícios do tratamento. É indicado para pacientes que nunca foram capazes ou que o foram, mas não se pode determinar de forma confiável qual a sua preferência. Como a legislação brasileira não contempla estas hipóteses há dúvidas acerca da aplicabilidade da decisão substituta em nosso país. Para Marilise Kostelnaki Baú, no Brasil, o consentimento informado prestado por terceiro, nos casos em que o paciente não tem discernimento para manifestar o seu desejo, pode-se dar por representação legal e por representação convencional. No primeiro caso, a representação é regulada por lei, a exemplo do que ocorre com os pais que representam os seus filhos enquanto crianças e sem condições de expressar as suas vontades. No segundo, a representação é estipulada por convenção entre as partes e se concretiza por procuração. Embora tal entendimento não seja unívoco, a autora assevera que como o Código Civil Brasileiro não delimita o âmbito de interesses que podem ser representados, são juridicamente válidas as representações legais e convencionais nos casos de tratamentos médicos. Assim, não há qualquer vedação legal que impeça a ocorrência de representação em matéria médica no Brasil. 90 Nos Estados Unidos, ao contrário, esta prática de representação convencional de consentimento informado é comum. São os chamados testamentos vitais. Os testamentos vitais são instrumentos de manifestação da vontade para o futuro, especificamente no que se refere a tratamentos médicos. Nas palavras de Roxana Cardoso Borges Brasileiro, “testamento vital é um documento em que a pessoa determina, de forma escrita, que tipo de tratamento ou não tratamento deseja para a ocasião em que se encontra doente, em estado incurável ou terminal, e incapaz de manifestar sua vontade”.91 Este documento surgiu na década de setenta, na Califórnia, Estados Unidos, com o Natural Death Act, e foi o ponto de partida para o reconhecimento da autonomia privada do paciente naquele país, culminando com a aprovação, em 90 BAÚ, Marilise Kostelnaki. Relevância jurídica do consentimento informado prestado por representação legal e convencional. In: GAUER, Gabriel José Chittó; ÁVILA, Gerson Antônio de; ÁVILA, Gustavo Noronha de. (org.) Ciclo de conferência em bioética. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005. 91 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direito de morrer dignamente: eutanásia, ortotanásia, consentimento informado, testamento vital, análise constitucional e penal e direito comparado. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 295. 88 1991, do Patient Self-Determination Act ou Ato de Autodeterminação do Paciente (PSDA). As diretrizes antecipadas dos testamentos vitais se consubstanciam em três formas: o living will (testamento em vida), que estabelece os tratamentos médicos indesejados, a exemplo de entubação e ordem de não ressucitação, em caso de inconsciência ou estado terminal; o durable power of attorney for health care (mandato duradouro), em que se estabelece um representante para decidir e tomar providências pelo paciente; advanced core medical directive (diretiva do cento médico avançado), em que o paciente estabelece os procedimentos a que não quer se submeter e nomeia um representante, sendo assim um documento mais completo que abrange disposições do testamento em vida e mandato duradouro.92 O PSDA obriga as instituições de saúde a informarem aos seus pacientes sobre a possibilidade de tomarem decisões, e fazê-la por escrito, referentes ao tratamento médico a ser seguido, incluindo aí a sua aceitação ou recusa.93 É, pois, a concretização da autonomia do paciente. Diante do exposto até então, pode-se afirmar não ser possível menosprezar a autonomia do paciente no que concerne ao tratamento a ser seguido, ou mesmo a sua interrupção e, para tanto, é imprescindível analisar cuidadosamente a sua capacidade de consentir livre de qualquer influência, seja ela interior ou externa, e devidamente informado. E mesmo nos casos em que o doente se encontra explicitamente incapaz de manifestar a sua vontade, não se pode, sob este pretexto, aniquilar a sua liberdade, desprezando as decisões tomadas enquanto era capaz, ou mesmo fechando os olhos para as suas opiniões e o seu modo de viver a vida em sua integralidade, sob pena de assim o fazendo estar-se aniquilando a sua autonomia e transformando-o em mero objeto, em franca violação à sua dignidade. Dito isto, pode-se traduzir, de forma sucinta, o princípio da autonomia como o dever de respeitar os desejos das pessoas e as condições que ela escolheu para viver. Noutros termos, pode-se afirmar que respeitar a autonomia da pessoa é uma forma de respeitar a sua própria dignidade. 92 NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Da relação jurídica médicopaciente: dignidade da pessoa humana e autonomia privada. In: SÁ, Maria de Fátima Freire de (coord.). Biodireito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 101-127. 93 CLOTET, Joaquim. Bioética: uma aproximação. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006. 89 3.4 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA 3.4.1 Histórico A dignidade, na antiguidade clássica, estava ligada à posição que o indivíduo ocupava na sociedade. Eram dignos apenas aqueles que ocupavam as castas mais elevadas. Com a evolução do cristianismo, que pregava ser o homem feito à imagem e semelhança de Deus, a dignidade passou a ser inerente a todo e qualquer ser humano, independentemente de sua classe social, como um valor próprio e intrínseco ao homem. No período da Idade Média, fortemente marcada pelas idéias de Tomás de Aquino, a noção de dignidade estava indissociavelmente ligada à capacidade de autodeterminação do homem. Nos séculos XVII e XVIII, com o pensamento jusnaturalista, a idéia de dignidade passou por um processo de racionalização e laicização. Reforça-se a idéia de dignidade como liberdade do homem agir de acordo com a sua vontade. Apesar de remontar à antiguidade clássica, a construção do conceito de dignidade, tal como se concebe hoje, só teve início no século XVIII, “quando predicados anteriormente associados à aristocracia e à ocupação de cargos públicos começam a sofrer um processo de generalização”94. Essa generalização do século XVIII, instrumentalizada com as declarações de direitos, foi empreendida pela burguesia, que circunscreveu a noção de dignidade apenas à sua classe social, não abrangendo, assim, todas as pessoas. Imannuel Kant95, no final do século XVIII, definiu a dignidade da pessoa humana como qualidade imprescindível do ser humano, devendo por todos ser promovida e respeitada. Tal conceito, entretanto, não foi amplamente difundido, haja vista que o aspecto patrimonialista do século XIX e início do século XX se sobrepôs ao valor da pessoa humana. Após os horrores da 2ª Guerra Mundial, contudo, o conceito de dignidade foi revigorado, adquirindo, em muitos países, status constitucional. 94 COSTA, Helena Regina Lobo da. A dignidade humana: teorias de prevenção geral positiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 21. 95 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução: Paulo Quintel. Lisboa: Edições 70, 2000, p. 59. 90 Nesta época, a influência kantiana é marcante. Para este autor96, todo homem deve ser considerado um fim em si mesmo, jamais um meio. [...] todo ser racional existe como um fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo, como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem de ser considerado simultaneamente como fim. Apesar deste avanço, ainda não se visualizava a obrigação do Estado promover um mínimo existencial apto a garantir a dignidade humana. Esta era vista apenas em seu aspecto negativo, isto é, caberia ao Estado apenas proteger os cidadãos de ataques que violassem a sua dignidade. Tal situação, entretanto, foi se modificando ao longo dos anos com o alargamento do conceito de dignidade. Neste sentido dispõe Helena Regina Lobo da Costa.97 O conceito de dignidade no período pós-guerra, portanto, além de ter seu âmbito de aplicação alargado para todas as pessoas com fundamento, sobretudo, na doutrina kantiana, ganha densidade em seu conteúdo, que paulatinamente vai sendo preenchido não apenas por direitos-liberdade (Abwehrrechte), que impõem limitações ao poder estatal em face do indivíduo, bem como por direitos sociais, que impõem ao Estado deveres de prestação ao indivíduo (Forderungrechte). No Brasil, não foi diferente. O princípio da dignidade da pessoa foi erigido pela Constituição de 1998, em seu artigo 1º, III, a fundamento da República, e como tal deve nortear toda e qualquer relação jurídica. Sendo assim, “é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal”.98 Nas lições de Ingo Wolfgang Sarlet99, a dignidade da pessoa humana é a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais 96 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução: Paulo Quintel. Lisboa: Edições 70, 2000, p. 59. 97 COSTA, Helena Regina Lobo da. A dignidade humana: teorias de prevenção geral positiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 30. 98 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 6. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2008, p. 70. 99 Ibidem. 91 que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. Com a inserção da dignidade humana na Constituição da República de 1988, ela se transformou em norma jurídica e, portanto, dotada de caráter vinculante. Como bem pontua Roxana Cardoso Borges100 sempre que um valor é juridicizado e transformado em princípio, constituindo-se em norma, sua força vinculante é ainda maior e sua carga axiológica passa a ter caráter obrigatório. Seguindo esta esteira de raciocínio, Helena Regina Lobo da Costa101 acentua o caráter de norma jurídica da dignidade da pessoa humana, sendo indefensável o seu caráter meramente declaratório. Traçar um conceito preciso de dignidade da pessoa humana é tarefa árdua em virtude da sua grande abertura semântica, o que não deve servir, contudo, para esvaziar o seu conteúdo e transformá-lo em mera exortação ideológica, como era comum ocorrer na era do positivismo ortodoxo. De acordo com Ingo Wolfgang Sarlet102, ainda que não haja uma definição precisa para dignidade, é conveniente que o seu conteúdo seja concretizado e delimitado pela práxis constitucional. Na mesma linha, Roxana Borges103 assevera que o conceito de dignidade humana é plural, devendo-se levar em conta as diferentes concepções de vida, seja no âmbito religioso, moral, social, cultural ou jurídico, sendo inadmissível que noções objetivas de valores possam ser usadas no direito para conformar a dignidade das pessoas. O que não se pode negar é que a dignidade da pessoa humana, entendida com princípio fundamental e vinculante, impõe a todos uma nova postura na interpretação e aplicação das normas jurídicas, como será visto mais adiante. 3.4.2 Dimensões individual e cultural do princípio da dignidade da pessoa 100 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos da personalidade e autonomia da vontade. 2. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 15. 101 COSTA, Helena Regina Lobo da. A dignidade humana: teorias de prevenção geral positiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 34 102 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 6. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2008 103 BORGES, op. cit. 92 humana A dignidade humana, inserida que está no ordenamento constitucional torna-se uma norma-princípio com caráter jurídico e vinculante, deixando de ser considerada apenas um valor, com caráter meramente axiológico. De acordo com Roxana Borges, a dignidade tem sentido subjetivo na medida em que o seu conteúdo depende do “próprio sujeito, depende de seus sentimentos de respeito, da consciência de seus sentimentos, das suas características físicas, culturais, sociais.”104 Noutros termos, o seu conteúdo só pode ser apreendido a partir de uma pessoa concretamente considerada. A dignidade foi reconhecida por meio de conquistas históricas, não sendo, pois, uma outorga. Daí se depreende que o seu conteúdo está também atrelado a aspectos espaciais e cronológicos. Pode-se dizer, assim, que o princípio da dignidade humana tem caráter subjetivo e, consequentemente, a autonomia também o terá, na medida em que há espaços da vivência da pessoa inalcançável pela lei, tendo cada um a liberdade de decidir os meios concretos de realização de sua própria dignidade. Há que se ressaltar, ainda, que a dignidade tem, além de sua dimensão natural/biológica, ínsita ao ser humano, também uma dimensão cultural e, neste contexto, é considerada um limite e uma tarefa do Estado e da comunidade em geral, isto é, além de ser expressão da autonomia, a dignidade se configura como necessidade de proteção, em especial quando ausente a autodeterminação. Não obstante a dignidade seja inerente a todo ser humano, importa considerar que apenas a dignidade de uma pessoa determinada pode ser desrespeitada, não havendo que se falar em atentado contra a dignidade da pessoa em abstrato. “[...] a dignidade constitui atributo da pessoa humana individualmente considerada, e não de um ser ideal ou abstrato”.105 Isto, no entanto, não descaracteriza a dimensão comunitária da dignidade, no seu sentido intersubjetivo e relacional. Pode-se afirmar, portanto, que a dignidade humana tem caráter multidimensional, na medida em que além da dimensão natural, biológica, possui 104 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos de personalidade e autonomia privada. 2. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2007, p.15. 105 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 6. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2008, p. 54. 93 também sentido histórico-cultural, estando em constante processo de reconstrução e redefinição. 3.4.3 Liberdade e autonomia da vontade como corolários da dignidade Como dito alhures, com Kant106 completou-se o processo da secularização da dignidade, que erigiu como seu fundamento a autonomia. Para este autor, a dignidade de uma pessoa provém do fato dela ser moralmente autônoma. Ressalte-se, todavia, que, de acordo com ele, uma pessoa só tem autonomia da vontade se agir intencionalmente de acordo com os princípios morais universalmente válidos que atendem aos requisitos do imperativo categórico, segundo o qual só se deve agir de acordo com a conduta que possa querer que se transforme em lei universal. Ainda hoje, é no pensamento kantiano que a doutrina jurídica mais expressiva identifica as bases de uma conceituação de dignidade. De acordo com Ingo Sarlet, seguindo a linha kantiana, a dignidade é inerente a todas as pessoas humanas, iguais que são em dignidade e o seu elemento nuclear centra-se na autonomia e autodeterminação da pessoa. Tal autonomia, contudo, segundo o autor, deve ser considerada em abstrato, como sendo a capacidade potencial que cada ser humano tem de autodeterminar a sua conduta, não dependendo da sua efetiva realização no caso da pessoa em concreto, de tal sorte que também o absolutamente incapaz [...] possui exatamente a mesma dignidade que qualquer outro ser humano física e 107 mentalmente capaz. Ainda que se entenda que a dignidade, assim como a autonomia, deve ser auferida no caso concreto, e não considerada em abstrato como faz crer Ingo Sarlet, é cediço que a liberdade é uma das suas principais exigências. Não se pode falar em dignidade sem garantir a autonomia do indivíduo. Como bem acentua Roxana Borges108, impedir que a pessoa aja autonomamente, com vistas a alcançar sua própria felicidade, sem interferências em direitos alheios, é atentar contra a 106 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução: Paulo Quintel. Lisboa: Edições 70, 2000. 107 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 6. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2008, p. 47-48. 108 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos da personalidade e autonomia da vontade. 2. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 144. 94 dignidade da pessoa humana. É a própria pessoa “quem definirá em que consiste sua dignidade e quais são os atos que possam agredi-la”. Não se pode, a pretexto de uma dignidade universal, aniquilar a autonomia das pessoas. Afinal, “a liberdade é o fator primacial da dignidade humana, a manifestação prática da personalidade, o postulado de todos os direitos. O próprio direito de existência é uma ficção não tendo por apoio a liberdade”.109 Dignidade humana e autonomia privada, deste modo, vivem em relação de simbiose. 109 CUNHA apud BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos da personalidade e autonomia da vontade. 2. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 152. 95 4 DIREITO À MORTE DIGNA 4.1 ASPECTOS GERAIS Como visto no Capítulo 2 do presente trabalho, a evolução da tecnologia na área biomédica, apesar de benéfica em inúmeros aspectos, gera também a possibilidade de prolongamento desmedido do processo de morte e do sofrimento dos doentes e seus familiares. Embora seja um fenômeno comum em todo o mundo, os receios e sentimento de fracasso que encobrem a morte fazem com que este tema não seja amplamente divulgado nem debatido, cedendo espaço ao silêncio. O próprio conceito de eutanásia, entendida, tradicionalmente, como morte piedosa, sofreu transformações ao longo dos anos, passando a surgir termos a ela correlatos como distanásia, mistanásia e ortotanásia. Antes de se proferir argumentos éticos, morais ou religiosos contrários ou favoráveis à eutanásia, é imprescindível ter em mente o que ela realmente significa, traçando-se uma distinção precisa, principalmente, entre a eutanásia, distanásia e ortotanásia. Retomando de forma sucinta o que foi abordado nos capítulos precedentes1 pode-se dizer que eutanásia e ortotanásia, embora seja tênue a linha que os separa, especialmente a eutanásia passiva, não são conceitos sinônimos. Enquanto a eutanásia significa abreviar a vida, ortotanásia nada mais é do que permitir que a morte ocorra no tempo correto. A distanásia, por sua vez, é o adiamento da morte com a utilização de tratamentos fúteis e desproporcionais2, que só aumentam a agonia e o sofrimento do doente. Como institutos distintos que são, seria um erro tratá-los do mesmo modo, como é comum ocorrer. O tratamento, quer religioso, moral ou jurídico, conferido aos institutos é diverso, ante as características também diversas dos fenômenos. Afinal, a solicitação para agir com o objetivo de por fim à vida não pode ser confundido com o pedido de não prolongar o processo de morte. Um outro aspecto importante a ser considerado, em caráter preliminar, diz respeito à relevância do princípio da dignidade da pessoa humana, nunca 1 Vide tópico 2.6. A título meramente exemplificativo, Lívia Haygert Pithan cita como exemplo de tratamentos fúteis e desproporcionais a ressuscitação cardiopulmonar nos casos em que se detecta a impossibilidade de cura ou de inversão de expectativas, sendo a morte inevitável. PITHAN, Lívia Haygert. A dignidade humana como fundamento jurídico das “ordens de não ressuscitação”. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. 2 96 perdendo-se de vista que firmar aprioristicamente um conceito para ele é tarefa impossível, uma vez que além da análise do caso concreto é imprescindível que se leve em conta os aspectos históricos, sociais, culturais e individuais para concretizálos, e sendo assim está indissociavelmente ligado à autonomia.3 O dilema central nas questões envolvendo os limites da vida gira em torno da sua sacralidade, de um lado, e a preocupação com a sua qualidade, de outro, despontando com especial relevância os princípios bioéticos básicos, bem como os princípios da dignidade da pessoa humana e da autonomia. Se a vida é tomada como um valor absoluto, deve ser mantida a qualquer custo e nada pode ser feito para abreviá-la, evitando-se a morte sempre que possível, mesmo que isso signifique a mera manutenção de sinais vitais. Se por outro lado, a vida, apesar de considerada um bem fundamental, não for vista com contornos absolutos, primando-se pela sua qualidade, o prolongamento sem limites da vida deve ser evitado e até mesmo repudiado, uma vez que o fundamental passa a ser não a extensão ou quantidade de vida, mas a sua qualidade. Este dilema envolve questões sobre a normatização da eutanásia, o conflito de princípios e a sua solução, bem como a concretização da ortotanásia, como se verá no decorrer deste capítulo. 4.2 DIREITO À VIDA VERSUS DIREITO DE MORRER: COLISÃO DE DIREITOS Tecidos os esclarecimentos acerca das noções propedêuticas que envolvem o tema, é chegada a hora de se analisar em que medida o respeito à autonomia de uma pessoa deve ser levado em conta no que se refere às questões envolvendo o final da vida. Noutros termos, como se dá a relação do respeito do direito à vida e da beneficência hipocrática com outros princípios tidos como fundamentais, a exemplo da autonomia privada e dignidade da pessoa humana. Deve-se respeitar o desejo de evitar o prolongamento artificial da vida/morte de um paciente ou a vida deve ser garantida a qualquer custo? A resposta a estas e outras perguntas, como bem pontuou Heinrich 4 Galanter , depende do significado que se dê à expressão direito à vida, e, para 3 Cf. capítulo 3. GANTHALER, Heirich. O direito à vida na medicina. Tradução Elisete Antoniuk. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2006. 4 97 tanto, é imprescindível analisar quatro posições, ou pontos de vista, sobre o tema, a saber: doutrina da sagração da vida em sentido estrito, doutrina da sagração da vida em sentido moderado, posição liberal moderada e posição fortemente liberal. De acordo com a versão severa da doutrina da sagração da vida, a vida humana deve ser mantida sob qualquer circunstância, devendo tanto o paciente quanto o médico, utilizar todos os meios disponíveis para manter a vida do doente. Com isso, entende-se que a vida humana “deveria ser mantida não somente contra a vontade de um paciente capaz de decisão, mas, também, independentemente da questão da qualidade de vida.”5 Os representantes deste pensamento são chamados de vitalistas. O autor cita como exemplo de aplicação deste posicionamento o caso de Nancy Cruzan, uma jovem americana que por determinação judicial foi mantida viva em estado vegetativo por sete anos contra a sua suposta vontade e o desejo de seus pais. O primeiro defensor desta corrente foi Tomás de Aquino, para quem só caberia a Deus decidir sobre a vida e a morte. Esta idéia foi seguida pela igreja católica, embora, posteriormente, a Igreja tenha adotado exceções ao mandamento da mantença da vida a qualquer custo, a exemplo do apoio à utilização de medicamentos que aliviem a dor, mesmo quando provoquem, de forma indireta, a antecipação da morte, assim como a interrupção de tratamentos fúteis, quando a morte é iminente, se enquadrando, portanto, mais na doutrina da sagração da vida em sentido moderado. Conforme a fraca posição da sagração da vida, embora seja proibido matar alguém, ou a si mesmo, intencionalmente, é permitido não prolongar a vida humana ou não impedir a morte em certas circunstâncias. Neste sentido dispõe a Declaração sobre a eutanásia da Congregação Romana da Fé, do ano de 1980 e a Encíclica Evangelium Vitae, do papa João Paulo II, de 1995. Representa uma transição para a doutrina liberal. Para a posição liberal na sua forma enfraquecida, o suicídio é permitido sob certas circunstâncias em que se pressupõe o desejo explícito de uma pessoa capaz e esclarecida de por fim à sua vida. Aqui vale ressaltar a diferença entre permitir o suicídio e prestar auxílio ao suicídio. Para esta corrente, embora 5 GANTHALER, Heirich. O direito à vida na medicina. Tradução Elisete Antoniuk. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2006, p. 56. 98 defensável a permissão ao suicídio de um paciente, o seu auxílio não o é. E é isto, justamente, o que o diferencia da forte posição liberal. Consoante a posição liberal na sua forma fortalecida é eticamente permitido o suicídio, o auxílio ao suicídio e até mesmo a eutanásia direta-ativa em certas circunstâncias. Pode-se ver, assim, que a doutrina da sagração da vida em sentido severo tem a vida biológica como um valor absoluto e acima de qualquer outro que com ele possa colidir, a exemplo da autonomia e da própria dignidade. Já para as outras três correntes, há situações de sofrimento tão graves que é melhor morrer que continuar a viver, variando elas apenas em relação à medida de sofrimento em que a vida deixa de ter valor, o que só pode ser auferido de modo individual e diante do caso concreto. Para Heinrich Ganthaler6 é inaceitável a corrente que considera a vida em seu sentido absoluto, por desprezar valores indispensáveis ao ser humano, a exemplo do respeito à sua autonomia. Para ele, “respeitar a autonomia do paciente capaz de juízo significa, nesse contexto, resumindo, reconhecer que o valor que a vida tem para ele deve ser avaliado segundo suas próprias medidas de valor e não segundo aquelas de outras pessoas”. Não obstante alguns posicionamentos já firmados, o tema ainda é eivado de polêmicas e, no âmbito jurídico, perpassa pela questão da solução de conflitos entre normas constitucionais. De um lado tem-se o direito à vida, como um direito constitucionalmente previsto no artigo 5º, caput, de outro, tem-se a dignidade da pessoa humana, fundamento da República, assim como a autonomia privada, que em relação às questões biomédicas, notadamente aquelas envolvendo o final da vida, se concretiza pelo consentimento livre e esclarecido. Assim, é fundamental o estudo mais aprofundado sobre os critérios utilizados para a solução deste conflito, destacando a insuficiência dos métodos tradicionalmente previstos para tanto, bem como em que medida a ponderação de bens pode ser útil para solver o impasse. 6 GANTHALER, Heirich. O direito à vida na medicina. Tradução Elisete Antoniuk. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2006, p. 177. 99 4.2.1 Critérios para a solução de antinomias 4.2.1.1 Insuficiência dos métodos tradicionais Os dilemas envolvendo o limite da vida estão diretamente ligados a princípios bioéticos, bem como ao direito à vida e aos princípios da autonomia e dignidade da pessoa humana. Vê-se, pois, que tais questões são regidas por normas com caráter eminentemente principiológico, e em virtude da abertura semântica que marca estas normas, não raro, na prática, entram em choque. A solução de antinomias entre normas sofreu algumas modificações ao longo dos últimos anos. Até bem pouco tempo atrás o conflito entre normas se solvia exclusivamente com base nos critérios cronológico (lei posterior prevalece sobre lei anterior), hierárquico (lei superior derroga lei inferior) e da especialidade (lei especial prevalece sobre lei geral). Apenas as regras detinham caráter normativo e a solução do conflito entre elas, como afirma Ronald Dworkin7, se dava com a aplicação da regra do tudo ou nada, por padrões de validade e vigência. Dado os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão Com o passar do tempo e o surgimento de demandas cada vez mais complexas, contudo, os princípios, anteriormente vistos com caráter secundário de meros suplentes das regras para suprir os vácuos legislativos, ou seja, critério para solução de antinomias8, passam a ter o seu caráter normativo incontestado, evidenciando a insuficiência dos critérios clássicos para resolver todos os conflitos porventura existentes entre as normas. É neste contexto que os princípios passam a integrar as constituições ocidentais, dotados de normatividade e erigidos a norteadores do sistema, vinculando não apenas as normas infraconstitucionais, mas 7 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 2. ed. Tradução Nelson Boeira. São paulo: Martins Fontes, 2007. 8 O próprio artigo 4º da Lei de Introdução do Código Civil preceitua que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. O mesmo ocorre como artigo 126 do Código de Processo Civil, segundo o qual, “o juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais do direito”. Estes dispositivos legais sugerem que os princípios possuem caráter subsidiário. Neste sentido, NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002. 100 também as normas constitucionais. Os princípios passam, pois, a ocupar o vértice da pirâmide normativa. Uma análise perfunctória da nossa Carta Magna denota que o próprio legislador constituinte optou por utilizar os princípios como guias do ordenamento jurídico, haja vista possuírem uma abertura semântica maior, capazes, assim, de reger um maior número de situações, bem como se adequar às situações não previstas. Ocorre que também eles podem entrar em colisão diante do caso concreto, e diferentemente do que ocorria com as regras, a solução não poderia se dar com a aplicação da regra do tudo ou nada, com a retirada do ordenamento jurídico do princípio que não prevalecesse. A forma de solução de conflitos entre regras e princípios passou a ser, inclusive, um dos critérios utilizados para diferenciar estas espécies de norma, vista como gênero. Além do critério gradualista, segundo o qual os princípios são normas com grau de generalidade alto e as regras são normas com grau de generalidade baixo, também o critério qualitativo serve para tentar-se diferenciar regras e princípios. Por este critério, em caso de conflito entre regras a solução se dá ou com uma cláusula de exceção que elimina o conflito em uma das regras ou com a declaração de invalidade de uma das regras. Noutros termos, os conflitos entre regras ocorrem na dimensão da validade. Já a solução para a colisão de princípios, por seu turno, se dá de maneira totalmente diversa. Se dois princípios colidem, um deles terá de ceder em favor do outro, que terá precedência. Isso não significa, todavia, que o princípio cedente foi declarado inválido, mas apenas e tão somente que, no caso concreto, ele tem peso menor. Daí porque dizer-se que a colisão entre princípios ocorre na dimensão do peso, dando azo ao sopesamento/ponderação de interesses. O objetivo desta ponderação é, justamente, definir qual dos interesses tem maior peso no caso concreto, não obstante estejam no mesmo nível em abstrato. “Segundo a lei do sopesamento, a medida permitida de não-satisfação ou de afetação de um princípio depende do grau de importância da satisfação do outro.”9 Tal fato explicitou o déficit dos métodos tradicionais para solução de conflitos normativos, ao menos entre princípios, com a evolução da técnica de ponderação de bens na solução destes impasses. 9 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 167. 101 Sobre o tema vale a pena ressaltar, ainda que este trabalho não tenha por objeto o estudo aprofundado da teoria dos princípios, o posicionamento encabeçado por Humberto Ávila e perfilhado por outros doutrinadores pátrios, a exemplo de Fábio Oliveira, de que também as regras, e não apenas os princípios, como pensado originariamente, se sujeitam à ponderação. Para Humberto Ávila10, a distinção entre princípio e regras não pode ser baseada no suposto método tudo ou nada da aplicação de regras, pois também elas precisam, para que sejam implementadas suas conseqüências, de um processo prévio de interpretação e ponderação. Seguindo a mesma linha de raciocínio, para Fábio Oliveira11, “caso se entenda a ponderação como um balanceamento de valores inerente ao processo de interpretação e aplicação, sempre há ponderação, independente de se tratar de regras”. Assim, não só para princípios, mas também para as regras, as técnicas tradicionais de solução de antinomia mostraram-se insuficientes, ganhando relevo o método de ponderação de bens. 4.2.1.2 Método de ponderação de bens A complexidade da sociedade contemporânea, aliada ao ideal de Estado Democrático de Direito, contribui para a previsão e proteção de um grande número de princípios. O respeito a estes princípios se deslocou para o centro de importância da ordem jurídica. Ocorre que, diante do caso concreto, não é incomum que eles entrem em colisão. Como visto alhures, as normas que tratam dos limites da vida, ante as suas características, têm delineamento de princípios e, em sendo assim, os casos de conflito não podem ser solucionados pela hermenêutica tradicional, necessitando de uma metodologia própria para resolver os casos de colisão. Como bem pontuou Paulo Ricardo Schier12, os princípios por constituírem exigências de otimização, permitem o balanceamento de 10 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10. ed. ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2009. 11 OLIVEIRA, Fábio de. Por uma teoria dos princípios: o princípio constitucional da razoabilidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p. 50. 12 SCHIER, Paulo Ricardo. Neoconstitucionalismo e direitos fundamentais. Disponível em: <www.unibrasil.com.br/revista_on_line/artigo%2026.pdf>. Acesso em: 02 nov. 2009. 102 valores e interesses consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente conflitantes. Por isso, em caso de colisão entre princípios, estes podem ser objetos de harmonização ou, em último caso, de ponderação, pois eles contêm apenas exigências ou standards que, em primeira linha devem ser realizados Nestes casos, fala-se em ponderação dos princípios e aplicação da razoabilidade como regra capaz de permitir a coexistência de direitos tidos como fundamentais ou de fazer prevalecer um diante do outro, sem a eliminação de qualquer um deles em abstrato. A ponderação judicial de acordo com Ana Paula de Barcellos e José Roberto Barroso13 consiste em “uma técnica de decisão jurídica aplicável a casos difíceis, em relação aos quais a subsunção se mostrou insuficiente, especialmente quando uma situação concreta dá ensejo à aplicação de normas de mesma hierarquia que indicam soluções diferenciadas”. A técnica da ponderação, comumente utilizada para a solução de colisão de direitos fundamentais é instrumentalizada pelo princípio da razoabilidade. Aqui faz-se mister esclarecer que embora alguns autores, a exemplo de Humberto Ávila e Willis Santiago façam diferenciações entre os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, neste trabalho eles estão sendo tratados como sinônimos, haja vista que segundo lições de Fábio de Oliveira, exceto pela existência de especificidades históricas, proporcionalidade e razoabilidade são totalmente semelhantes.14 O princípio da razoabilidade, que teve origem na Carta Magna inglesa de 1215 e foi vigorosamente recepcionada pelos Estados Unidos, se desdobra em razoabilidade interna e externa. A primeira é aferida dentro do próprio ato, exigindo “um vínculo lógico, causal, entre os motivos que ocasionaram a medida estatal e os fins perseguidos por ela”15. Já na segunda, faz-se “um juízo comparativo do ato com a Constituição”16, ou seja, o ato deve estar de acordo com a sistemática constitucional. A razoabilidade, tal qual ocorre com os princípios de um modo geral, é 13 BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: BAROSSO, Luís Roberto (coord.). A nova interpretação constitucional. Ponderação, Direitos Fundamentais e relações privadas. São Paulo: Renovar, 2003, p. 345-346. 14 OLIVEIRA, Fábio de. Por uma teoria dos princípios: o princípio constitucional da razoabilidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007. 15 Ibidem, p. 103. 16 Ibidem, p. 104. 103 marcada pela abstração e generalidade, o que lhe confere característica aberta. Daí porque a grande dificuldade em se estabelecer um conceito universalmente aceito. Segundo Humberto Ávila, a razoabilidade deve ser vista em três acepções principais (razoabilidade como equidade, razoabilidade como congruência e razoabilidade como equivalência), e em todas elas não se confunde com proporcionalidade, pois não faz referência de causalidade entre um meio e fim, como ocorre com a proporcionalidade. Primeiro, a razoabilidade é utilizada como diretriz que exige a relação de normas gerais com as individualidades do caso concreto [...]. Segundo, a razoabilidade é empregada como diretriz que exige uma vinculação das normas jurídicas com o mundo ao qual elas fazem referência [...]. Terceiro, a razoabilidade é utilizada como diretriz que exige a relação de equivalência entre duas grandezas.17 Nas lições de Fábio de Oliveira, [...] razoabilidade é a norma constitucional que estabelece critérios formais e materiais para a ponderação de princípios e regras, com o que confere lógica aos juízos de valor e estreita o âmbito da discricionariedade com base na pauta prevista pela Constituição, estando essencialmente ligada ao bom senso mais do que ao senso comum.18 Robert Alexy19 prega a solução para a colisão entre princípios baseado na ponderação de interesses, que se realiza por meio do princípio da proporcionalidade. De acordo com o autor, o sistema de estruturas de ponderação, fulcrado no princípio da proporcionalidade e apto a solucionar o conflito entre normas de direitos fundamentais tem sua incidência amarrada aos subprincípios da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. De acordo com o subprincípio da adequação, qualquer medida restritiva deve ser adequada ou idônea ao fim que se busca alcançar. Noutros termos, as intervenções realizadas devem ser capazes de atingir o objetivo almejado. Já segundo o subprincípio da necessidade, a medida adotada deve ser aquela que cause menos restrição aos direitos fundamentais envolvidos. A opção escolhida deve ser a menos gravosa aos direitos discutidos. Por fim, o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito 17 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10. ed. ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 154. 18 OLIVEIRA, Fábio de. Por uma teoria dos princípios: o princípio constitucional da razoabilidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p. 105. 19 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. 104 caracteriza-se por uma relação entre custos e benefícios, ou seja, o ônus imposto deve ser menor que o benefício a ser alcançado. Assim, ante a ineficácia das técnicas tradicionais de solução de conflito de regras para a solução de colisão entre princípios, é imprescindível a utilização do princípio da razoabilidade e seus subprincípios como critério para a solução de conflitos de direitos fundamentais, através de juízos de ponderação dos interesses envolvidos no caso concreto. Embora não esteja explícito na Carta Magna de 1988, o princípio da razoabilidade já vem sendo bastante utilizado pela jurisprudência pátria, inclusive pelas cortes superiores, como mecanismo apto a solucionar o conflito entre direitos fundamentais, sendo instrumento de estruturação da aplicação de outras normas. É cediço que o mundo contemporâneo convive com conflitos em virtude das diferentes pretensões existentes na Constituição. Tais conflitos, todavia, devem ser harmonizados para se garantir a convivência pacífica em uma sociedade plural como a nossa, e a técnica de ponderação dos interesses, instrumentada pelo princípio da razoabilidade, tem esta pretensão, sendo de especial relevância nas questões envolvendo o final da vida, notadamente nos casos em que o uso de tratamentos médicos só confere uma ampliação da quantidade de vida, em desprezo à sua dignidade. 4.2.2 A dignidade da pessoa humana como guia na ponderação de bens A Constituição Cidadã de 1988 está assentada em princípios que são, reconhecidamente, dotados de normatividade e eficácia jurídica, vinculando não apenas as normas infraconstitucionais, mas também as normas constitucionais. Os princípios, por seu forte conteúdo axiológico, servem de base para a interpretação de todo o ordenamento jurídico. Nas palavras de Geraldo Ataliba20, [...] princípios são linhas mestras, os grandes nortes, as diretrizes magnas do sistema jurídico. Apontam os rumos a serem seguidos por toda a sociedade e obrigatoriamente perseguidos pelos órgãos do governo (poderes constituídos). Eles expressam a substância última do querer popular, seus objetivos e desígnios, as linhas mestras da legislação, da administração e da jurisdição. 20 ATALIBA, apud NUNES, Luiz Alberto Rizzatto. O princípio constitucional da dignidade humana: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 38. 105 Deste modo deve-se aceitar a supremacia, ao menos axiológica, dos princípios em relação às regras. Situação semelhante se dá com os princípios entre si, não se podendo negar que o princípio da dignidade da pessoa humana ocupa posição superior em relação aos demais princípios constitucionais. O próprio legislador constituinte ao erigir a dignidade da pessoa humana como fundamento da República a colocou em posição de destaque, reconhecendoa, assim, como o princípio máximo estampado na Constituição. Este, aliás, tem sido o entendimento de abalizada doutrina. De acordo com Flávia Piovesan21, tendo em vista que o legislador constituinte colocou a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, não resta dúvida de que a dignidade da pessoa humana deve ser vista como um valor apto a orientar toda interpretação e efetivação do sistema constitucional, servindo de “suporte axiológico” a todo sistema jurídico brasileiro. Mais adiante, assevera que a dignidade humana é um “superprincípio” a orientar o Direito. Resta claro, pois, a posição da autora de que a dignidade da pessoa humana se sobrepõe aos demais princípios constitucionais: Assim, seja no âmbito internacional, seja no âmbito interno (à luz do Direito Constitucional Ocidental), a dignidade da pessoa humana é princípio que unifica e centraliza todo o sistema normativo, assumindo especial prioridade. A dignidade humana simboliza, deste modo, um verdadeiro superprincípio constitucional, a norma maior a orientar o constitucionalismo contemporâneo, nas esferas local e global, dotando-lhe especial racionalidade, unidade e sentido.22 Seguindo a mesma esteira de raciocínio, Paulo Bonavides23 afirma que nenhum princípio é mais valioso para compendiar a unidade material da Constituição que o princípio da dignidade da pessoa humana. Para Helena Regina Lobo da Costa24, a dignidade da pessoa humana é fundamento jurídico e filosófico do ordenamento, a razão de ser dos direitos fundamentais. Todavia, não se resume a isto, funcionando como norma jurídica, ora 21 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos, o Princípio da Dignidade Humana e a Constituição Brasileira de 1988. In: NOVELINO, Marcelo (org.). Leituras Complementares de Direito Constitucional: Direitos Humanos e Direitos Fundamentais. 3. ed. Salvador: Editora JusPODIVM, 2008. 22 Ibidem, p. 53 23 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2002. 24 COSTA, Helena Regina Lobo da. A dignidade humana: teorias de prevenção geral positiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. 106 como princípio, determinando um estado ideal de coisas a ser concretizado pela adoção de comportamentos, ora como postulado normativo, determinando critérios para a interpretação de outras normas25. E, neste caso, em havendo colisão entre direitos fundamentais, o postulado normativo da dignidade humana serve como medida para ponderação entre eles. Como postulado normativo, a dignidade adquire feições mais amplas do que aquelas referentes ao princípio da dignidade, podendo-se falar em dignidade em sentido amplo (postulado normativo) e dignidade em sentido estrito (princípio). Por esta razão, o postulado da dignidade funciona como uma chave interpretativa que abre o sistema jurídico, permitindo a produção de respostas a novas questões, delimitando o alcance de certas 26 normas e resolvendo antinomias. Vê-se, pois, que a autora, embora designando-a como postulado, prevê a preponderância da dignidade da pessoa humana, a qual, como metanorma que é, situa-se em plano superior às regras e princípios, estruturando, assim, a maneira pela qual estas normas devem ser aplicadas. Flademir Jerônimo Belinati Martins27, do mesmo modo, disserta que em face da proeminência axiológica conferida ao princípio da dignidade da pessoa humana, uma de suas principais funções é conferir unidade e legitimidade à ordem constitucional. Neste contexto, não há como desprezar o fato de que a dignidade da pessoa humana é o valor máximo do sistema jurídico nacional. Quem se posiciona em sentido contrário, argumenta que não deve haver hierarquia entre normas constitucionais e, caso se entenda de outro modo, não haveria que se falar em ponderação de interesses ou princípio da proporcionalidade, haja vista que este pressupõe se esteja diante de normas de mesma hierarquia. Tal posicionamento, todavia, acha-se eivado de equívocos e não merece ser acolhido. O princípio da dignidade é, na verdade um metaprincípio, princípio supremo que deve orientar a interpretação dos demais princípios constitucionais, inclusive em caso de confronto entre direitos fundamentais. Assim, no caso 25 Aqui vale destacar que a Autora segue a classificação de Humberto Ávila, que concebe uma divisão tripartida entre as categorias de normas jurídicas, a saber: regras, princípios e postulados normativos. 26 COSTA, Helena Regina Lobo da. A dignidade humana: teorias de prevenção geral positiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 54-55. 27 MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental. 1. ed. 6. tir. Curitiba: Juruá, 2008. 107 concreto, em havendo conflito entre princípios, a solução deve se dar com a utilização do princípio instrumental da proporcionalidade, que terá sempre por parâmetro a dignidade da pessoa humana, guia na ponderação de interesses conflitantes. A dignidade da pessoa humana é, assim, o elemento balizador de qualquer interpretação constitucional, especialmente quando estão envolvidos direitos fundamentais. Segundo Luiz Alberto Rizzatto Nunes28: Agora, realmente é a dignidade que dá o parâmetro para a solução do conflito de princípios; é ela a luz de todo o ordenamento. Tanto no conflito em abstrato de princípios como no caso real, concreto, é a dignidade que dirigirá o intérprete – que terá em mãos o instrumento da proporcionalidade- para a busca da solução. Na medida em que os direitos fundamentais representam concretizações do princípio da dignidade da pessoa humana, a solução para o conflito envolvendo estes direitos deve ser norteada pelo referido princípio. Noutros termos, sempre que houver colisão entre direitos fundamentais, a técnica de ponderação de interesses e, consequentemente, a utilização do princípio da proporcionalidade, deve se aproximar ao máximo da realização da dignidade da pessoa humana. Nas palavras de Leandro Sousa Bessa29, [...] o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana funciona como poderosa arma na complexa tarefa de resolver colisões de direitos fundamentais. Se estes representam desdobramentos, concretizações e exigências daquele, é natural que, em uma eventual interpretação, a dignidade da pessoa humana seja o ponto de apoio e a finalidade a ser alcançada. É neste sentido que deve ser orientada a ponderação solucionadora de colisões. O princípio da dignidade da pessoa humana, ante a sua supremacia, é que dá a direção para aplicação não só de regras constitucionais e infraconstitucionais, como também para a concretização de outros princípios constitucionais e, em especial, servindo de guia para a aplicação do princípio da proporcionalidade nos casos de conflito entre direitos fundamentais, conferindo sustentação ao ordenamento jurídico. 28 NUNES, Luiz Alberto Rizzatto. O princípio constitucional da dignidade humana: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 55. 29 BESSA, Leandro Sousa. Colisão de direitos fundamentais: proposta de solução. Disponível em: <conpedi.org/manaus/arquivos/Anais/Leandro%20Sousa%20Bessa.pdf>. Acesso em: 21 abr. 2009. 108 Assim, o relevante para a temática aqui proposta é que nos casos de conflitos envolvendo o direito à vida e autonomia deve-se utilizar a técnica de ponderação de interesses, guiada pelo princípio da dignidade da pessoa humana para solução do impasse. 4.2.3 Ortotanásia: a ponderação de interesses no limite da vida No caso dos conflitos envolvendo o fim da vida, há quem afirme, a exemplo de Maria Elisa Villas-Bôas, que a solução não pode se dar por ponderação, como ocorre, via de regra com os conflitos envolvendo princípios, mas sim pela técnica do tudo ou nada, como acontece em caso de conflitos de regras: ou se acolhe integralmente a vida como bem intangível de modo absoluto ou se a admite como disponível, não havendo como aplicar-se a norma em proporção. No primeiro caso, sendo a vida um valor absoluto, que não pode, em hipótese alguma, ser relativizado, incorre-se no perigo da distanásia, em que o prolongamento da vida é levado ao extremo, com a sua manutenção a qualquer custo, dando azo ao encarniçamento terapêutico. No segundo caso, em se aceitando sem restrições a disponibilidade da vida corre-se o risco da eutanásia e, pior, da desfiguração do próprio instituto da eutanásia, transformando a vida em um bem banal. Ambas as soluções são inadequadas para solver o impasse, ferindo a dignidade humana e, portanto, data máxima vênia as interpretações em sentido contrário, também no limite da vida deve-se aplicar a técnica de ponderação de bens. No Brasil, o direito à vida não pode ser visto de forma absoluta. Embora o artigo 5º, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil traga a vida como um bem inviolável, a legislação pátria permite em alguns casos a disposição da vida. É o caso da pena de morte em caso de guerra, aborto legal, legítima defesa e estado de necessidade. Nestes casos a morte é aceitável para a defesa de outros interesses. Caso a prescrição constitucional de inviolabilidade da vida fosse absoluta, como faz crer, por exemplo, Maria Helena Diniz30 ao asseverar que jamais se poderia legitimar qualquer conduta que vulnerasse ou colocasse em risco a vida humana, não se poderia tolerar, no ordenamento jurídico pátrio nenhum ato que de 30 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 5. ed. rev., aum. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. 109 alguma forma fosse de encontro a este direito. Não é isto, todavia, o que ocorre no nosso sistema jurídico, que exclui a ilicitude em hipótese de legítima defesa, estado de necessidade e exercício regular do direito, bem como extingue a punibilidade do aborto legal e tolera a pena de morte em caso de guerra. Poder-se-ia afirmar que nas situações de legítima defesa ou aborto em que esteja em risco a vida da mãe não se estaria a violar o direito à vida, mas preservando a vida de uns em detrimento de outros. O mesmo, todavia, não pode ser dito em casos de aborto cuja gravidez resultou de estupro ou autorização de pena de morte em caso de guerra declarada. Nestas circunstâncias o direito à vida cede espaço a outros bens relevantes, denotando que no ordenamento pátrio a inviolabilidade à vida não é um direito absoluto. Não se pode também, com base em fundamentos meramente religiosos, defender a sacralidade da vida sob o argumento de que a vida é um dom de Deus e só a Ele caberia tirá-la, sendo obrigação do homem manter a vida a qualquer custo. Primeiramente deve-se destacar que o Brasil é um país laico, não podendo concepções religiosas servir de base para criminalização de determinadas condutas. Ademais, a liberdade de crença constitucionalmente prevista envolve além da opção de escolha pela religião a ser seguida, também a possibilidade de não ter qualquer religião e não crer em Deus. Assim, a religião, embora exerça forte influência em nossa sociedade, não pode, em hipótese alguma, servir de base para condenação de certas práticas médicas. Consoante bem enfatiza Luiz Augusto Coutinho31, inobstante a liberdade de culto assegurada constitucionalmente, vivemos em um Estado laico, e em sendo assim as questões religiosas não podem ser determinantes nas decisões dos poderes estatais. Aqui vale a pena trazer à baila os ensinamentos de Ronald Dworkin32, para quem, as coisas valiosas se dividem em três categorias: a) as instrumentalmente valiosas, cujo valor depende de sua utilidade para conseguir algo mais; b) as subjetivamente valiosas, ou seja, só possuem valor para as pessoas que a desejam; c) as intrinsecamente valiosas, cujo valor independe do desejo das pessoas, são valiosas em si mesmo. Esta última categoria, por sua vez, se distingue 31 COUTINHO, Luiz Augusto. Aspectos jurídicos da eutanásia. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, a. II, n. 7, p. 19-37, ago./set. 2005. 32 DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. Traduzido por Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 110 em duas espécies: as incrementalmente valiosas, que são aquelas que quanto mais tivermos melhor, e as sagradas e invioláveis, que não se ligam ao aspecto quantitativo, sendo valiosas pelo simples fato de existirem. A vida humana se enquadra como sagrada/inviolável. Esta questão do sagrado é importante para o estudo da eutanásia na medida em que os seus principais opositores valem-se do argumento de que a vida é sagrada e pertencente a Deus, único que pode decidir sobre o seu fim. Dworkin não contesta a afirmação de que a vida é sagrada, apenas dá uma conotação diferente ao que se deve entender por sagrado. A morte deve ser um reflexo de nossas vidas e a forma como e quando desejamos morrer não significa que estamos rejeitando a santidade da vida. Ao contrário, não levar em conta a autonomia é que seria violar o caráter sagrado da vida. “[...] as concepções das pessoas a respeito de como viver dão cor a suas convicções sobre quando morrer”.33 E “quem quer que acredite na santidade da vida humana, acreditará também que, uma vez iniciada, é intrinsecamente importante que tal vida se desenvolva bem”.34 Ainda sobre o tema vaticina Paulo Lucio Nogueira35: Não se nega que a vida seja uma dádiva de Deus e que só Ele é o seu dono. Mas não se pode duvidar também que o homem ou o médico, como instrumentos de Deus, podem e devem aliviar as dores e os sofrimentos dos seus semelhantes, deixando-os morrer com menos padecimentos. Deve-se ter em mente, também, que a vida que se pretende proteger não é a vida meramente biológica, mas a relacional. A vida não pode se circunscrever apenas a aspectos físicos, renegando os aspectos psicológicos e sócio-culturais, sob pena de manter-se indefinidamente vivo um corpo já sem vida. A vida é um valor inerente ao ser humano e na Carta Magna, conforme preceitua José Afonso da Silva36, Não será considerada apenas no seu sentido biológico de incessante autoatividade funcional, peculiar à matéria orgânica, mas na sua acepção biográfica mais compreensiva. Sua riqueza significativa é de difícil apreensão porque é algo dinâmico, que se transforma incessantemente sem perder sua própria identidade. É mais um processo (processo vital), 33 DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. Traduzido por Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 298. 34 Ibidem, p. 304. 35 NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Em defesa da vida: aborto – eutanásia – pena de morte – suicídio – violência/linchamento. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 65. 36 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 200. 111 que se instaura com a concepção. Não se deve restringir a vida humana apenas à sua dimensão biológica, negligenciando a sua qualidade. Como enfatizam Bruno Torquato de Oliveira Naves e Maria de Fátima Freire de Sá37, além da biológica o ser humano tem outras dimensões, de modo que aceitar o critério da qualidade de vida significa estar a serviço não só da vida, mas também da pessoa. O direito à vida que se busca proteger na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é a vida com dignidade e não apenas a sobrevivência. Neste sentido a obstinação terapêutica não encontra guarida no Estado Democrático de Direito, pois sob o pretexto de manter a vida biológica fere as demais dimensões da vida, indo de encontro à dignidade do viver e do morrer. Outros argumentos favoráveis à absolutização do direito à vida cingemse à possibilidade de erro médico, bem como o surgimento de cura para doenças incuráveis, sob o argumento de que em alguns casos há probabilidade, ainda que muito remota de recuperação. Tais posicionamentos devem ser rechaçados, haja vista que hodiernamente o diagnóstico e prognóstico feitos sobre um enfermo são cada vez mais precisos. Além disso, ao contrário do que afirma Luiz Flávio Borges D´Urso38, a possibilidade do surgimento da cura para doenças incuráveis não se dá da noite para o dia. As pesquisas, normalmente, duram anos, e dificilmente se aplicariam àqueles doentes em estado de morte iminente, e ainda que assim não fosse, uma probabilidade remota não pode servir para se violar os interesses fundamentais de uma pessoa. Nem se diga que o não acatamento da vida como um bem absoluto poderia vir a permitir a morte em casos duvidosos e, portanto, o melhor é manter a vida a qualquer custo. O prolongamento do processo de morte é em si danoso a muitas pessoas e, assim como a morte é irreversível, também o é a violação dos interesses fundamentais de uma pessoa que se vê obrigada a se submeter a terapias desproporcionais, tendo a sua dignidade frontalmente violada. Nesta investigação dos interesses fundamentais de uma pessoa deve-se levar em conta não só os interesses experienciais (que são aqueles interesses por experiências que 37 NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Da relação jurídica médicopaciente: dignidade da pessoa humana e autonomia privada. In: SÁ, Maria de Fátima Freire de (coord.). Biodireito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 101-127. 38 D´URSO, Luiz Flávio Borges. A eutanásia no direito brasileiro. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, a. I, n. 5, p. 5-6, abr./maio 2005. 112 nos dão prazer), como também os interesses críticos (que são interesses que levam em conta uma análise crítica sobre o caráter e valor da vida em termos gerais, em sua integralidade). “Levar alguém a morrer de uma maneira que outros aprovam, mas que para ele representa uma terrível contradição de sua própria vida, é uma devastadora e odiosa forma de tirania.”39 Ademais, a possibilidade do cometimento de abusos por médicos, segundo apontam alguns, com o risco de eugenia, não se dá apenas com a interrupção de tratamentos médicos, mas também e principalmente com a obstinação terapêutica que, sob o pretexto de tentar salvar vidas é capaz de prolongar indefinidamente a angústia e sofrimento de familiares e pacientes, mantendo artificialmente vivo quem não tem mais vida, com fins meramente experimentais ou econômicos. Além disso, a dignidade da pessoa humana, como fundamento do estado democrático de direito não pode ser relegada a plano secundário e, consequentemente também a autonomia pode sê-lo, uma vez que não há dignidade com a ofensa e supressão da liberdade. Como apregoa Ronald Dworkin, uma verdadeira apreciação da dignidade argumenta em favor da liberdade individual, “em favor de um sistema jurídico e de uma atitude que incentive cada um de nós a tomar decisões individuais sobre a própria morte.”40 Aqueles que se mostram contrários à absoluta inviolabilidade do direito à vida recorrem principalmente à autonomia privada, segundo a qual é permitido ao homem agir livremente, desde que respeitada a lei, moralidade e bons costumes. Para os defensores deste posicionamento a liberdade é um componente da dignidade, e ambos são valores intrínsecos à vida, de sorte que a vida física não deve suplantar estes dois princípios, sob pena “de o amor natural pela vida transformar-se em idolatria. E a conseqüência do culto idólatra à vida é a luta, a todo custo, contra a morte”.41 Para Ronald Dworkin42 as pessoas devem decidir sobre a sua própria morte, ou sobre a morte dos outros, em três situações: 1) consciente e competente; 39 DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. Traduzido por Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 307. 40 Ibidem, p. 342. 41 NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Da relação jurídica médicopaciente: dignidade da pessoa humana e autonomia privada. In: SÁ, Maria de Fátima Freire de (coord.). Biodireito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 111. 42 DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. Traduzido por Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 113 2) inconsciente; 3) consciente, mas incompetente. No que se refere à autonomia, deve-se analisar estas três situações, levando-se em conta os interesses fundamentais de cada um e, para tanto não há como se firmar uma cláusula geral, mas investigar cada pessoa individualmente. Existem pessoas que diante de um sofrimento atroz e sem perspectiva de cura julgam ser melhor a morte do que uma vida que consideram degradante e indigna. Nestes casos, o respeito à sua decisão de morrer representa respeito aos seus interesses fundamentais. Ir de encontro a esta escolha livremente realizada seria, ao contrário, violar estes interesses. O fato de estar ou não entre os interesses fundamentais de uma pessoa ter um final de vida de um jeito ou de outro depende de tantas outras coisas que lhe são essenciais – a forma e o caráter de sua vida, seu senso de integridade e seus interesses críticos – que não se pode esperar que uma 43 decisão coletiva uniforme sirva a todos da mesma maneira. O avanço tecnológico das últimas décadas não pode ser desprezado, mas a tecnologia deve ser usada com ponderação. Não se pode, por exemplo violar a autonomia e correlatamente o princípio da dignidade da pessoa humana em favor da manutenção indeterminada da sobrevida de um paciente. A existência humana é singular e a morte digna depende de uma avaliação ética individual sobre como se deseja morrer. A morte é um tema de ética privada e, desde que não ofenda o ordenamento jurídico e o direito de terceiros, a condição em que ela se dará deve respeitar os valores inerentes a cada ser humano. Como enfatizam Débora Diniz e Tatiana Lionço44 certamente há pessoas que desejam se submeter a toda e qualquer intervenção terapêutica na esperança de um milagre, mas ao lado delas há também aquelas que não mais desejam se submeter a tratamentos inúteis e, neste caso, devem ter o seu desejo respeitado. Não se está aqui a defender que a autonomia e a dignidade sirvam de fundamento à eutanásia, mas apenas que evitem ofensa à dignidade e desrespeito à autonomia pela imposição da obstinação terapêutica. E, neste sentido, a exata medida da ponderação entre o direito à vida e a autonomia, guiada pela dignidade da pessoa humana, é a ortotanásia. A ortotanásia permite que a morte aconteça no tempo certo, sem abreviações prematuras ou prolongamentos desnecessários e pode ser entendida 43 Ibidem, p. 301. DINIZ, Débora; LIONÇO, Tatiana. Direito à morte, direito ao luto. Boletim IBCCRIM, a. 16, n. 197, p. 13-14, abr. 2009. 44 114 como a exata medida da ponderação entre o direito à inviolabilidade da vida e a autonomia. Com a ortotanásia nenhum destes princípios é completamente excluído, alcançando-se uma medida de satisfação de cada um deles: preserva-se, de um lado, a liberdade de consentimento do paciente que não quer ser submetido a tratamentos fúteis e por ele considerados desumanos e degradantes, e, por outro lado, respeita-se o direito à vida, que não pode ser vista apenas sob o aspecto biológico, com a aceitação da morte como um evento natural. Afinal, valorizar a vida é também respeitar o processo de morte, que dela faz parte, acatando a condição mortal do ser humano. Entender que a vida biológica deve ser preservada a todo custo, aniquilando por completo os anseios de seu titular e ferindo a sua dignidade, além de violar o direito à autonomia, viola o próprio direito à vida no sentido em que a vida deve ser entendida. 4.3 TRATAMENTO CONFERIDO AO FINAL DA VIDA NO ORDENAMENTO BRASILEIRO 4.3.1 A humanização do processo de morte em outros países Antes de discorrer sobre a forma como o ordenamento brasileiro trata das questões envolvendo o final da vida, é mister fazer uma digressão, ainda que superficial, sobre como o direito comparado vem tratando o tema. Neste aspecto, merece destaque a Holanda, primeiro país no mundo a permitir a eutanásia. Esta permissão, todavia, não se dá sem restrições. Em 10 de abril de 2001 foi aprovada a lei sobre comprovação da extinção da vida por solicitação própria e do auxílio ao suicídio, alterando os artigos 293 e 294 do Código Penal Holandês. De acordo com o novo artigo 293, “aquele que extinguir a vida de outra pessoa, segundo o desejo expresso e sério da mesma, será punido com pena de prisão de até doze anos ou com uma pena de multa da categoria quinta”. Não haverá punibilidade, todavia, se for praticado por um médico que cumpra os requisitos previstos no artigo 2º da Lei sobre comprovação da extinção da vida por solicitação própria e do auxílio ao suicídio e que tenha comunicado o fato ao cartório municipal conforme o artigo 7º, § 2º, da lei reguladora dos funerais. Consoante o 115 artigo 2º da lei sobre comprovação da extinção da vida por solicitação própria e do auxílio ao suicídio, o médico deve observar os seguintes cuidados: convencer-se de que a solicitação do paciente é voluntária e que o seu padecimento é insuportável e sem esperança de melhora; informar o paciente da sua condição e das perspectivas futuras; convencer-se, juntamente com o paciente, que não há outra solução razoável para o caso; consultar um médico independente que emitirá parecer sobre o caso; e levar a cabo a extinção da vida ou auxílio ao suicídio com o máximo de cuidado e esmero profissional. 45 Já segundo o novel artigo 294 do Código Penal Holandês, aquele que induzir outrem ao suicídio será castigado com pena de prisão de até três anos ou com uma pena de multa de categoria quarta. Aplica-se a mesma pena àquele que prestar auxílio ao suicídio, não sendo punível, contudo, o ato, caso seja praticado por um médico, nos mesmos termos do artigo 293. Vê-se, assim, que na Holanda, apesar de ser permitida a eutanásia, deve-se observar uma série de requisitos para não ser punível. Daí porque para Maria de Fátima Freire de Sá46 se trata de uma exclusão de culpabilidade. Alguns meses após a legalização da eutanásia na Holanda, a Bélgica47 seguiu o mesmo caminho, admitindo a eutanásia em caso de pacientes terminais e desde que cumpridos os requisitos legais. A lei belga foi, todavia, mais restritiva que a holandesa, na medida em que excluiu a possibilidade de menores de 18 anos solicitarem este procedimento, o que não ocorre na Holanda. Na Espanha, apesar do notório caso de Ramón Sampedro48, a eutanásia e o suicídio assistido constituem crime49, o que não se dá com a 45 LEITE, George Salomão. Direito fundamental a uma morte digna. In: SARLET, Ingo Wolfgang; LEITE, George Salomão (coord.). Direitos fundamentais e estado constitucional: estudos em homenagem a J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 147. 46 SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de morrer: eutanásia, suicídio assistido. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. 47 . GOLDIM, José Roberto. Eutanásia-Bélgica. Disponível em:< www.ufrgs.br/bioetica/eutabel.htm>. Acesso em: 10 ago. 2010. 48 Ramón Sampedro solicitou, durante cinco anos à justiça espanhola o direito de morrer em virtude de uma tetraplegia que o acometia por mais de vinte anos. Apesar das autoridades espanholas terem negado o seu pleito, em 20 de janeiro de 1998 foi auxiliado por algumas pessoas a morrer. O caso ganhou notoriedade, dando origem ao filme Mar Adentro. 49 “Artículo 143. (225) 1. El que induzca al suicidio de otro será castigado con la pena de prisión de cuatro a ocho años. 2. Se impondrá la pena de prisión de dos a cinco años al que coopere con actos necesarios al suicidio de una persona. 3. Será castigado con la pena de prisión de seis a diez años si la cooperación llegara hasta el punto de ejecutar la muerte. 116 ortotanásia. Na França, há uma diferenciação entre eutanásia ativa, caracterizada como homicídio, e eutanásia passiva, tida como omissão de socorro.50 A ortotanásia, por seu turno, a exemplo da Alemanha, é permitida. Já na Suíça a morte assistida é autorizada e a eutanásia não é prevista em lei51. O estado de Oregon nos Estados Unidos da América, em outubro de 1997, legalizou o suicídio assistido por médico52. Em 1º de julho de 1999, a Lei dos Direitos dos Pacientes Terminais autorizou o suicídio assistido no território norte da Austrália. Esta lei, contudo, teve curta duração, sendo revogada em março de 1997.53 Na América Latina merece destaque a Colômbia, cujo artigo 106 do Código Penal54 prevê pena mais branda para aquele que mata por piedade, para por fim a intensos sofrimentos provenientes de lesão corporal ou enfermidade grave ou incurável, incorrendo em prisão de um a três anos. Contra este artigo foi proposta uma ação de inconstitucionalidade, que em maio do ano de 1997 foi julgada improcedente sob o argumento de que em face do sofrimento do enfermo, a morte se apresenta como a melhor solução para a preservação da dignidade, sendo, pois, um ato de compaixão e misericórdia. A Corte Colombiana entendeu, ainda, que nos casos de pacientes terminais, o médico que os matar por piedade e com o seu consentimento não poderá ser condenado, devendo os juízes exonerá-lo de 4. El que causare o cooperare activamente con actos necesarios y directos a la muerte de otro, por la petición expresa, seria e inequívoca de éste, en el caso de que la víctima sufriera una enfermedad grave que conduciría necesariamente a su muerte, o que produjera graves padecimientos permanentes y difíciles de soportar, será castigado con la pena inferior en uno o dos grados a las señaladas en los núms. 2 y 3 de este.” ESPANHA, Código Penal. Disponível em: <www.fragoso.com.br/penal.asp>. Acesso em: 10 ago. 2010. 50 GOLDIM, José Roberto. Eutanásia-França. Disponível em: <www.ufrgs.br/bioetica/eutafran.htm>. Acesso em: 10 ago. 2010. 51 Idem. Suicídio assistido. Disponível em: < www.ufrgs.br/bioetica/suicass.htm >. Acesso em: 10 ago. 2010. 52 Ibidem. 53 Idem. Eutanásia-Austrália. Disponível em: <www.ufrgs.br/bioetica/eutanaus.htm>. Acesso em: 10 ago. 2010. 54 “ARTÍCULO 106 - Homicidio por piedad. El que matare a otro por piedad, para poner fin a intensos sufrimientos provenientes de lesión corporal o enfermedad grave e incurable, incurrirá en prisión de uno (1) a tres (3) años”. COLÔMBIA, Código Penal. Disponível em: <domiarmo.iespana.es/index20.htm>. Acesso em: 10 ago. 2010. 117 responsabilidade, concedendo o benefício do perdão judicial.55 Alguns anos depois, a lei nº 890 de 2004, em seu artigo 14, aumentou a pena de prisão nos casos de homicídio por piedade de 16 a 54 meses na Colômbia.56 No Uruguai57, o homicídio piedoso, provocado por compaixão e mediante reiteradas súplicas da vítima, é previsto como causa de impunidade. O Código Penal do Uruguai, a exemplo do que ocorre na Colômbia, concede o benefício do perdão judicial em caso de eutanásia ativa, quando realizada com expressa anuência do paciente terminal. Na Argentina a instigação ou auxílio ao suicídio é punível, não existindo a figura do homicídio piedoso58. No Peru, o artigo 11259 do Código Penal prevê pena reduzida àquele que mata enfermo incurável com finalidade piedosa. Desta breve explanação, pode-se contatar que as questões legais envolvendo o final da vida ao redor do mundo são tormentosas e ainda estão longe de alcançarem um consenso. 4.3.2 Brasil No Brasil, a questão ainda é pouco debatida e embora não haja um regramento específico para o tema, é assente enquadrar-se a eutanásia no delito de homicídio privilegiado, ignorando-se os seus vários tipos, assim como a distanásia e ortotanásia. 55 LEITE, George Salomão. Direito fundamental a uma morte digna. In: SARLET, Ingo Wolfgang; LEITE, George Salomão (coord.). Direitos fundamentais e estado constitucional: estudos em homenagem a J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. 56 “Penas aumentadas por el artículo 14 de la Ley 890 de 2004, a partir del 1o. de enero de 2005. El texto con las penas aumentadas es el siguiente:> El que matare a otro por piedad, para poner fin a intensos sufrimientos provenientes de lesión corporal o enfermedad grave e incurable, incurrirá en prisión de dieciséis (16) a cincuenta y cuatro (54) meses.” COLÔMBIA, Código Penal. Disponível em: <domiarmo.iespana.es/index-20.htm>. Acesso em: 10 ago. 2010. 57 Art. 37 do Código Penal Uruguaio: “Los Jueces tiene la facultad de exonerar de castigo al sujeto de antecedentes honorables, autor de un homicidio, efectuado por móviles de piedad, mediante súplicas reiteradas de la víctima”. URUGUAI, Código Penal. Disponível em: <ww.ufrgs.br/bioetica/penaluru.htm>. Acesso em: 10 ago. 2010. 58 “Articulo 83. - Será reprimido con prisión de uno a cuatro años, el que instigare a otro al suicidio o le ayudare a cometerlo, si el suicidio se hubiese tentado o consumado.” ARGENTINA, Código Penal. Disponível em:< www.infoleg.gov.ar >. Acesso em: 10 ago. 2010. 59 “Artículo 112.- Homicidio piadoso El que, por piedad, mata a un enfermo incurable que le solicita de manera expresa y consciente para poner fin a sus intolerables dolores, será reprimido con pena privativa de libertad no mayor de três años”. PERU, Código Penal. Disponível em: <www.unifr.ch/ddp1/derechopenal/legislacion/l_20080616_75.pdf >. Acesso em 10 ago. 2010. 118 Na exposição de motivos do Código Penal está evidente o intuito do legislador em punir a eutanásia. Ocorre que, como visto anteriormente, com o desenvolvimento tecnológico das últimas décadas, à eutanásia se agregaram outros institutos que com ele não se confundem e, como tal, devem ter regramentos específicos. 4.3.2.1 Eutanásia e suicídio assistido Ao contrário do que se dá em outros países, no Brasil a eutanásia não é tratada como um delito autônomo, sendo abarcada pelo crime de homicídio, previsto no artigo 121 do Código Penal (CP). Por se tratar de homicídio causado por motivo de relevante valor social ou moral, sobre ele incide a causa de diminuição da pena de um terço a um sexto prevista no parágrafo 1º deste dispositivo legal.60 A explicação do que venha a ser considerado tal motivo consta da Exposição de Motivos do Código Penal de 1940, segundo o qual: "por ‘motivo de relevante valor social ou moral’, o projeto entende significar o motivo que, em si mesmo, é aprovado pela moral prática como, por exemplo, a compaixão ante irremediável sofrimento da vítima (caso do homicídio eutanásico), a indignação contra um traidor da pátria, etc." Assim, embora não expressamente prevista, resta claro que o legislador dirige-se, no artigo 121, § 1º, do CP, à conduta eutanásica, que além de sua forma comissiva também pode se dar por omissão. Aqui é importante distinguir as duas categorias de omissão existentes: omissão própria e omissão imprópria.61 A omissão própria se dá quando o agente deixa de prestar auxílio a quem dele necessite, embora não tenha uma obrigação específica de agir. Como exemplo de omissão própria tem-se a omissão de socorro, prevista no artigo 135 do Código Penal, culminando em pena de detenção de um a seis meses ou multa àquele que “deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública”. Esta pena ainda pode ser aumentada de metade, “se da 60 “Art. 121. Matar alguém: Pena – reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos. § 1º. Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.” 61 VILLAS-BÔAS, Maria Elisa. Da eutanásia ao prolongamento artificial: aspectos polêmicos na disciplina jurídico-penal do final de vida. Rio de Janeiro: Forense, 2005. 119 omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.” Na omissão imprópria, por seu turno, o agente tem uma obrigação de agir específica, e caso não o faça responde não só pela sua omissão como também pelo resultado causado por dolo ou culpa, in casu, a morte do paciente, o que configuraria o homicídio por omissão. Deste modo, a eutanásia passiva ou por omissão, entendida como aquela em que o agente ou não inicia uma ação médica ou interrompe a utilização de tratamento ainda indicado e proporcional com o intuito de abreviar a morte, do mesmo modo que a eutanásia ativa, não constitui delito autônomo no ordenamento brasileiro, podendo-se enquadrar no crime de omissão de socorro, previsto no artigo 135 do Código Penal, quando não praticado por agente de saúde e que, portanto, não tinha a obrigação de agir, mas apenas um dever de solidariedade de fazê-lo; ou no crime de homicídio por omissão, quando o agente detinha a obrigação específica de agir e não agiu. Vale ressaltar que nas circunstâncias de constatação de morte encefálica não há que se falar em crime, pois a pessoa já é considerada morta, sendo o caso, portanto, de crime impossível. Ao lado das figuras do homicídio, omissão de socorro e eutanásia temse o suicídio assistido ou auxílio ao suicídio, que também configura a prática de crime, previsto no art. 122 do Código Penal. Embora o suicídio em si não seja disciplinado como crime, “induzir ou instigar alguém suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça” é conduta criminosa, com pena de “reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave.” Deve-se ressaltar, ainda, que ao lado da eutanásia passiva e ativa e do suicídio assistido, tem ganhado relevo nos últimos anos a figura da eutanásia de duplo efeito que, como visto, em verdade não se configura como eutanásia propriamente dita, uma vez que a intenção do agente não é causar a morte, mas apenas aliviar a dor do moribundo com a prescrição de analgésicos capazes, como efeito secundário, de abreviar a sua morte. Neste caso, não há que se falar em crime, uma vez que o agente de saúde, nestas circunstâncias, está agindo de acordo com o seu mister, haja vista ser objetivo da medicina não apenas promover a cura, mas o bem-estar global do paciente. E ainda que assim não se entendesse, não haveria crime, pois estaria atuando no estrito cumprimento do dever legal. 120 Ao longo dos anos, o desejo de inserir a eutanásia como delito autônomo no Código Penal já foi alvo de inúmeros projetos de lei, que até o presente momento, entretanto, não lograram êxito. Após a reforma da Parte Geral do Código Penal perpetrada no ano de 1984, iniciou-se um movimento de reforma também da parte especial, com a sugestão de inserção de um terceiro parágrafo ao artigo 121, isentando de pena o médico que, “com o consentimento da vítima, ou na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge ou irmão, para eliminar-lhe o sofrimento, antecipa a morte iminente e inevitável, atestado por outro médico”. Este anteprojeto, todavia, não teve seguimento, nomeando-se uma comissão destinada a elaborar o anteprojeto para reforma da parte especial em 1994. O anteprojeto de reforma da parte especial do Código Penal de 1994 previa expressamente a ortotanásia no art. 121 § 3º, não constituindo crime “deixar de manter a vida de alguém, por meio artificial, se previamente atestada, por dois médicos, a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do doente ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge ou irmão”. Este projeto, do mesmo modo que o anterior, não teve futuro. Posteriormente, nomeou-se nova comissão para a elaboração do Anteprojeto de Código Penal, que culminou com o anteprojeto de 1998, prevendo a eutanásia como delito autônomo no § 3º do art. 121 e imputando ao autor pena de reclusão de três e seis anos, “se o autor do crime agiu por compaixão, a pedido da vítima imputável e maior, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável, em razão de doença grave”. Este mesmo projeto previa, no § 4º do art. 121, a ortotanásia como causa de exclusão de ilicitude, não constituindo crime “deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestado por dois médicos, a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do paciente, ou na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão.” Este projeto, de modo semelhante ao anterior, não prosperou. Em 1999, novo anteprojeto propôs algumas modificações ao anterior, tornando a eutanásia um delito próprio, praticado por familiares e passando-se a exigir o estado terminal. Este anteprojeto também não teve continuidade. Não se deve esquecer que além dos anteprojetos de reforma da parte especial do Código Penal, houve projetos de lei que tentaram regulamentar a matéria. Aqui merece destaque a Lei do Estado de São Paulo de nº 10.241/99 121 (conhecida como “Lei Covas”) que prescreve como direito dos usuários do serviço de saúde recusar tratamento extraordinário e doloroso para prolongar a vida bem como a escolha do local da morte. Diante do exposto, fica evidenciado que na época da elaboração do Código Penal de 1940, além de não se fazer distinção entre as mais variadas espécies de eutanásia, tampouco havia qualquer menção à ortotanásia, diferenciação que só foi possível com o avanço na área biomédica. 4.3.2.2 Ortotanásia: atipicidade penal e respeito à ética médica e religiosa Ao contrário do que se dá com a eutanásia e com o suicídio assistido, reconhecidos como crime pelo ordenamento jurídico pátrio, não há qualquer comando normativo que obrigue o médico a valer-se de meios fúteis e desproporcionais que prolonguem inutilmente a vida e o sofrimento de um paciente terminal em processo de morte. Assim, na ortotanásia não há qualquer conduta a ser punida, devendo o direito adaptar-se a essa nova realidade. Márcio André Keppler Fraga62, utilizando-se da concepção da tipicidade conglobante de Eugenio Raúl Zaffaroni, prega a atipicidade penal da ortotanásia. Segundo Zaffaroni, para que uma conduta seja considerada típica penalmente, além da adequação penal se exige antinormatividade, que pressupõe uma averiguação do alcance da proibição de forma conglobada na ordem normativa. No caso das práticas médicas, a obrigação do agente de saúde não é de resultado, mas de meio, não se podendo cobrar dele a cura nem o ato de salvar vidas. Assim, a ortotanásia – entendida como abstenção ou suspensão de terapêuticas desproporcionais – não pode ser vista como crime, uma vez que “lhe faltaria tipicidade penal, porquanto embora a conduta possa ter se enquadrado no tipo legal, não houve violação da norma que deu origem ao tipo”. Seguindo a mesma linha de raciocínio, Luiz Flávio Gomes63 exclui a tipicidade material da ortotanásia, não a enquadrando como um ato desvalioso, isto é, contra a dignidade humana, senão, ao contrário, a favor dele. 62 FRAGA, Márcio André Keppler. A atipicidade penal da ortotanásia. Revista da AJURIS, a. XXVI, n. 78, jun. 2000, p. 166-167. 63 GOMES, Luiz Flavio. Eutanásia, morte assistida e ortotanásia: dono da vida, o ser humano é também dono da sua própria morte? Revista do Ministério Público, n.26, p. 171-179, jul./dez. 2007. 122 Iberê Anselmo Garcia64, com fulcro nos elementos da teoria do delito majoritariamente aceita, descaracteriza a ortotanásia como delito, afirmando que ela “pode ser caracterizada como atípica, ou justificada pelo exercício regular do direito do médico no tratamento de seus doentes ou ainda não culpável, pela inexigibilidade de conduta diversa por parte do profissional existente”. Já o prolongamento artificial do processo de morte, ao contrário, ofende o sistema jurídico, na medida em que o homem deixa de ser fim para transformar-se em meio, meio da obstinação terapêutica, violando frontalmente o princípio da dignidade da pessoa humana, podendo até mesmo ser enquadrado no crime de tortura. Ademais, a intervenção terapêutica contra a vontade do paciente além de contrariar a sua autonomia, ofende o seu direito à inviolabilidade à integridade física e psíquica, submetendo o doente a tratamento por ele considerado desumano e degradante. Como acentua Daury Cesar Fabriz65, a integridade física, psíquica e moral está intimamente ligada ao direito à vida e à dignidade, e, em decorrência dela, ninguém pode ser submetido a tortura ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Iberê Anselmo Garcia66 afirma que a distanásia pode até ser considerada crime de constrangimento ilegal, previsto no artigo 146 do Código Penal, “se a opção de obstinação terapêutica contrariar a vontade expressa do doente ou de seus representantes.” 67 Não bastasse isso, o Código Civil Brasileiro em seu artigo 15 estipula não estar o indivíduo obrigado a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. Assim, aceitar a distanásia sob o pretexto de que a abstenção ou suspensão de terapêuticas fúteis poderia se enquadrar como crime seria violar a ordem jurídica em diversos dispositivos legais. Além de ofender ao artigo 15 do Código Civil, iria de encontro à impossibilidade da prática de condutas desumanas e 64 GARCIA, Iberê Anselmo. Aspectos médicos e jurídicos da eutanásia. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 67, p. 253-275, jul./ago. 2007, p. 273. 65 FABRIZ, Daury César. Bioética e direitos fundamentais: a bioconstituição como paradigma ao biodireito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003 66 GARCIA, op. cit., p. 271. 67 Quem entende em sentido contrário se vale do quanto disposto no art. 146, § 3º, I, do CP, segundo o qual não se enquadra da mencionada figura delitiva “a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida”. Vale ressaltar, todavia, que este dispositivo legal, ultimamente, tem sido alvo de inúmeras críticas, por ir de encontro à liberdade de escolha do paciente, constitucionalmente prevista, devendo o Código Penal se adequar à Constituição da República Federativa do Brasil, e não o contrário. 123 degradantes, prevista no art. 5º, III, da Carta Magna, sem falar que fere os princípios da autonomia e da dignidade da pessoa humana. Até com base nos princípios bioéticos, aos quais o direito está indissociavelmente ligado, não haveria reprovabilidade da ortotanásia. Ela respeita o princípio da beneficência, uma vez que fazer o bem significa agir no melhor interesse do paciente, e não fazer uso de todo aparato tecnológico para preservar a vida a qualquer custo, devendo-se sopesar os riscos e benefícios na escolha dos procedimentos terapêuticos adequados a cada situação. Observa, do mesmo modo, o princípio da não-maleficência, na medida em que prega não infligir o mal ao paciente, entendido como mal aquele tratamento fútil e desproporcional que só causa sofrimento, sem qualquer benefício ao doente. Promove, ainda, o princípio da autonomia, conferindo ao paciente o direito de escolher livremente o próprio destino, acatando ou recusando tratamento médico que considere indigno ou degradante. Leva em conta, por fim, o princípio da justiça, haja vista ser contrária à obstinação terapêutica com a destinação de recursos para pacientes que não os desejam e deles não necessitam, em detrimento daqueles que realmente possam com eles ser salvos. No caso do prolongamento artificial da vida daqueles que se encontram em estado terminal e cuja morte é iminente, a manutenção de tratamentos fúteis apenas prolonga a dor e a angústia do paciente e de seus familiares, não lhe sendo em nada benéfico. Ao contrário, assim agindo o médico estaria infringindo o princípio da não-maleficência, ao submeter o paciente a sofrimentos desnecessários, assim como o princípio da autonomia, na medida em que desrespeita a decisão do moribundo ou de seus representantes legais, em caso de incapacidade. Dito de outro modo, a ortotanásia atende plenamente ao quanto estatuído pelos princípios bioéticos da beneficência, não-maleficência, autonomia e justiça. Até mesmo sob a ótica das maiores religiões do mundo, que atribuem considerável importância à preservação da vida, condena-se o excesso terapêutico. Como bem pontuou o Papa João Paulo II, “a renúncia a meios extraordinários ou desproporcionais não equivale ao suicídio ou à eutanásia; exprime, antes, a aceitação da condição humana defronte à morte”68. Também para o islamismo não se deve manter uma pessoa em estado vegetativo se valendo da obstinação 68 HIRSCHHEIMER, Mário Roberto; CONSTANTINO, Clóvis Francisco. O direito de morrer em paz e com dignidade. Boletim IBCCRIM, a. 14, n. 172, p. 9-11, mar. 2007, p. 10. 124 terapêutica. O judaísmo, de igual modo, prega que o prolongamento da agonia deve ser evitado, removendo-se todo obstáculo para a partida da alma.69 A ortotanásia, por todos os fundamentos jurídicos, éticos e religiosos analisados ao longo deste trabalho é a medida exata da ponderação da autonomia e da inviolabilidade da vida, da eutanásia e da distanásia, possibilitando o direito a uma morte digna. Ocorre que não obstante a ausência de norma proibitiva do ponto de vista jurídico, bem como a sua aceitação sob o prisma ético e religioso, isso ainda não é suficiente para dar a segurança necessária que o tema requer. A morte, por ser ato irreversível e derradeiro da vida deve ser cercada de cuidados e tratada de forma clara e explícita. O receio de responder a um processo judicial por omissão e a ausência de clareza no disciplinamento da matéria contribuem para o médico se valer de todos os esforços para salvar a vida do seu paciente, sem levar em conta se isto lhe trará algum benefício. A falta de regramento específico sobre o tema coloca a espada da (in) justiça, cotidianamente, sobre a cabeça dos agentes de saúde que, em muitos casos, se vêem coagidos a utilizar tratamentos inúteis, que antes de prolongar a vida só aumentam o mal-estar do doente. Além do receio, em muitos casos justificável, dos médicos, em se verem no banco dos réus em um processo criminal, não se pode ignorar a cultura paternalista impregnada nas entranhas de nossa sociedade, que ainda hoje tende a conferir poder absoluto ao médico na escolha terapêutica a ser seguida pelo moribundo, privando-o por completo da sua autonomia. A morte, vista como um tabu e um fracasso da medicina, impede, via de regra, o médico de tratá-la como um processo natural da vida, fazendo-o resistir à morte até as últimas conseqüências, com uma obstinação que ignora os anseios do doente e vai além de qualquer esperança de beneficiar-lhe ou preservar a sua dignidade. Por outro lado, têm-se, ainda, os paradigmas tecnológicos e comerciais que, sob o pretexto de preservar a vida humana, transformam-na em instrumento para lograr avanço científico e ganho econômico. O homem deixa de ser visto como fim para transforma-se em meio, e a doença passa a ser o objeto central das preocupações da equipe de saúde, dando azo ao prolongamento desmedido do processo de morte com vistas a utilizar os doentes como cobaias de novos 69 SOUZA, Cimon Hendrigo Burmann. Eutanásia, Distanásia e Suicídio Assistido. In: SÁ, Maria de Fátima Freire de (coord.). Biodireito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 141-183. 125 tratamentos e até mesmo auferir lucro com a sua internação prolongada. A ausência de regulamentação da ortotanásia faz com que, pelos mais diversos motivos, entre os quais o receio de se incorrer na eutanásia, se pratique a distanásia70. Não se deve fechar os olhos também para o fato de que em países emergentes como o Brasil a grande maioria da população sequer tem acesso a tratamento médico, morrendo antes de serem atendidos nos corredores lotados dos hospitais públicos. O problema que mais atinge estes países, portanto, não é a obstinação terapêutica ou distanásia, mas a morte precoce causada pela ausência de condições mínimas de saúde e higiene, conhecida como mistanásia. Este fato, todavia, não deve servir de óbice para a regularização da ortotanásia em nosso país, mas, ao contrário, deve servir de alerta para a circunstância de que enquanto milhares de pessoas morrem diariamente por falta de acesso a um leito hospitalar e a tratamento médico adequado, algumas outras são mantidas, contra sua vontade, artificialmente vivas, fazendo uso de tratamentos fúteis e desproporcionais para o caso e que não oferecem qualquer vantagem ao doente. Omitir-se sobre as questões envolvendo o final da vida, ocultando a morte e desprezando a possibilidade de, graças ao desenvolvimento tecnológico, adiar indefinidamente o processo de morte, certamente não é a melhor atitude a ser tomada, pois além de aumentar a insegurança dos pacientes e dos profissionais de saúde, ainda contribui para aumentar o temor e a sensação de fracasso que envolvem o morrer. Em sentido contrário Hubert Lepargneur71 defende a não regulamentação jurídica da eutanásia com base em três objeções: inutilidade, nocividade e incongruência. A inutilidade decorre da existência de regulamentação nos códigos penal e deontológico. A nocividade advém da desnecessária intromissão do poder público em um domínio da vida privada. Já a incongruência decorre do fato de que apenas os agentes de saúde teriam competência para clarear a fronteira da vida e da morte. A falta de regulamentação, todavia, data 70 A distanásia, nas lições de Iberê Anselmo Garcia, pode ser considerada crime de constrangimento ilegal previsto no artigo 146 do Código Penal, “se a obstinação terapêutica contrariar a vontade expressa do doente ou de seus representantes legais”. GARCIA, Iberê Anselmo. Aspectos médicos e jurídicos da eutanásia. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 67, p. 253-275, jul./ago. 2007, p. 271. 71 LEPARGNEUR, Hubert. Bioética da eutanásia – argumentos éticos em torno da eutanásia. Disponível em:<http://www.portalmedico.org.br>. Acesso em: 05 jan. 2010. 126 máxima vênia quem pense em sentido oposto, só contribui para aumentar a ocorrência da obstinação terapêutica e tornar insegura e distante a relação médicopaciente. Seguindo esta linha de raciocínio Lívia Haygert Pithan72 afirma que “de pouco adianta a medicina e demais ciências da vida buscarem prudência em suas aplicações se o direito também não o fizer e continuar interpretando as leis de maneira desconectada da realidade”. É claro que a existência de conceitos fechados não seria conveniente, pois ante rigidez e imutabilidade que os cercam, em pouco tempo cairia em desuso, haja vista a vertiginosa evolução pela qual vem passando a biomedicina. A cada dia surgem novas práticas e os conceitos médicos sofrem profundas alterações. Isso, contudo, não deve ser empecilho para a fixação de normas abertas, mas que tracem a distinção entre eutanásia, suicídio assistido e ortotanásia, deixando claro em que consiste cada uma destas práticas e se devem ou não ser encaradas como crime. No caso específico da ortotanásia é imprescindível evidenciar que ela não é conduta criminosa, não ferindo qualquer preceito legal, ético ou religioso. Antecipar ou provocar a morte não é o mesmo que permitir que a morte ocorra no tempo certo, sem prolongamentos inúteis, e sendo assim não podem ser tratados de forma semelhante no plano jurídico. A maneira mais correta de resolver este impasse é aceitar a ortotanásia. Afinal, valorizar a vida não significa resistir à morte a qualquer custo, mas, ao contrário, aceitá-la como fenômeno vital, e é justamente a isso que se presta a ortotanásia. Para Mário Roberto Hirschheimer e Clóvis Francisco Constantino73, A ortotanásia permite ao doente que já entrou na fase final de sua doença e àqueles que o cercam, enfrentar seu destino com certa tranquilidade porque, nesta perspectiva, a morte não é uma doença evitável, mas algo que faz parte da vida. Uma vez aceito este fato, que a cultura ocidental contemporânea tende a esconder e a negar, abre-se a possibilidade de trabalhar a distinção entre cuidar e curar, entre manter a vida quando isto for o procedimento correto, e permitir que a pessoa morra, quando chega a sua hora. Neste sentido o paradigma do curar deve ceder espaço ao cuidar. O objetivo da medicina é promover a saúde e esta não pode ser vista como mera 72 PITHAN, Lívia Haygert. A dignidade humana como fundamento jurídico das “ordens de não ressuscitação”. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 51-52. 73 HIRSCHHEIMER, Mário Roberto; CONSTANTINO, Clóvis Francisco. O direito de morrer em paz e com dignidade. Boletim IBCCRIM, a. 14, n. 172, p. 9-11, mar. 2007, p. 9. 127 ausência de doença, mas como bem-estar físico, mental e social. Nem sempre a cura é possível, e em tal circunstância o paciente não deve ser abandonado à própria sorte, sem a promoção dos cuidados que lhe permitam ter um final de vida digno. Por outro lado, também não se deve empreender todos os esforços para promover a cura a qualquer custo, prolongando a agonia daquele que não mais quer ser submetido a tratamentos por ele considerados degradantes. Em tais casos a promoção do bem-estar do paciente terminal não consiste na sua cura, mas nos cuidados necessários para assegurar o seu bem-estar global. É neste cenário que o movimento dos cuidados paliativos representa um forte aliado da ortotanásia, na medida em que, como visto anteriormente, propõe a rehumanização do processo de morte, permitindo que ela ocorra no tempo certo, com o alívio das dores e sem incorrer em prolongamentos abusivos mediante o uso de tratamentos desproporcionais. Também aqui o cuidar passa a ter ênfase sobre o curar. Não se pode negar que os médicos têm o compromisso de manter a vida, mas ao lado deste dever têm também a obrigação de aliviar o sofrimento. Estes imperativos, via de regra, andam de mãos dadas; quando, no entanto, um dever conflita com o outro a vontade dos pacientes deve prevalecer. Acerca do tema assim se manifesta Ana Georgia Cavalcanti de Melo74: Os cuidados paliativos, então, afirmam a vida e encaram a morte como um processo normal, não adiam nem prolongam a morte, provêm alívio de dor e de outros sintomas, integrando os cuidados, oferecendo suporte para que os pacientes possam viver o mais ativamente possível, ajudando a família e os cuidadores no processo de luto. Atento a esta nova área da medicina que se encontra em franca expansão, o novo Código de Ética Médica é explícito sobre a importância dos cuidados paliativos, prevendo no parágrafo único do artigo 41 que: Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis, sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal. Vale ressaltar, todavia, que embora se reconheça a importância dos 74 MELO, Ana Georgia Cavalcanti. Os cuidados paliativos no Brasil. In: PESSINI, Leocir; BERTACHINA, Luciana (org.). Humanização e cuidados paliativos. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 293. 128 cuidados paliativos eles também não devem servir de óbice para a discussão da matéria e ser visto como um ponto final para o debate. Como salienta Maria Julia Kovács75 não obstante os programas de cuidados paliativos sejam importantes e ajudem na busca de qualidade no processo de morte, não pode ser considerada a única saída possível para as questões envolvendo o final da vida, haja vista serem inacessíveis à grande maioria da população, em especial nos países emergentes como o Brasil76, que conta com pouquíssimas unidades ao longo do seu extenso território. É necessário, portanto, encarar o tema da ortotanásia com a maior clareza possível, para que os médicos tenham mais segurança no exercício da sua profissão. 4.4 A ORTOTANÁSIA COMO CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À MORTE DIGNA Conforme assevera Lívia Hayger Pithan e como é defendido neste trabalho, a morte, ou melhor, o processo de morte, faz parte da vida humana, e como tal deve ser vivida com dignidade, o que dá azo à existência de um direito à morte digna, no sentido de garantir ao paciente a opção de recusar o excesso terapêutico. Ressalte-se que o direito à morte digna aqui tratado não deve ser confundido com o possibilidade de encurtamento da vida ou eutanásia, mas apenas e tão somente com a possibilidade de permitir que a morte siga o seu curso natural, sem o adiamento indefinido provocado pelo uso de tratamentos fúteis. Roxana Borges77 diferencia o direito de morrer do direito de morrer dignamente. O direito de morrer dignamente é a reivindicação por vários direitos, como a dignidade da pessoa, a liberdade, a autonomia, a consciência, refere-se ao 75 KOVÁCS, Maria Julia. Bioética nas questões da vida e da morte. Psicologia USP, São Paulo, p. 115-167, 2003. 76 No mesmo sentido Hubert Lepargneur afirma que embora não se possa negar a importância dos cuidados paliativos, acreditar que eles, por si sós, são suficientes para por um ponto final em todos os problemas do desfecho da vida é incidir em equívoco. LEPARGNEUR, Hubert. Bioética da eutanásia – argumentos éticos em torno da eutanásia. Disponível em:<http://www.portalmedico.org.br>. Acesso em: 05 jan. 2010. 77 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direito de morrer dignamente: eutanásia, ortotanásia, consentimento informado, testamento vital, análise constitucional e penal e direito comparado. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 284-285. 129 desejo de se ter uma morte humana, sem o prolongamento da agonia por parte de um tratamento inútil. Isso não se confunde com o direito de morrer. Esse tem sido reivindicado como sinônimo de eutanásia ou de auxílio ao suicídio, que são intervenções que causam ou antecipam a morte. Se o direito à vida for absolutizado e o princípio bioético da beneficência levado em conta com características meramente paternalistas, corre-se o grave risco de incorrer na obstinação terapêutica, ou distanásia; se, por outro lado, o princípio da autonomia e, consequentemente, o consentimento livre e esclarecido não tiverem rédeas, tem-se o perigo de praticar abusos, matando pessoas que sequer apresentam doenças incuráveis, sob a alegação de estar-se praticando morte piedosa, eutanásia. Para equilibrar os dois lados da balança, a ortotanásia, guiada pelo princípio da dignidade, mostra-se como solução cabível, capaz de concretizar o direito à morte digna. Além de garantir o respeito à vontade do paciente, evitando o prolongamento desmedido do processo de morte, mostra-se como saída eticamente correta e condizente com o sistema jurídico vigente no Brasil. O grande problema é que ainda hoje há vozes que se pronunciam contrariamente à ortotanásia, minando de dúvidas a conduta a ser seguida pelos médicos no limite da vida. O próprio código de ética médica de 1988, vigente até 2010, embora admitisse implicitamente a ortotanásia, não se manifestava de forma explícita sobre o tema. Neste sentido vale a pena trazer à baila a opinião de Nelson Hungria78, segundo a qual a vida [...] ainda que mantida por meios artificiosos ou reduzida a mera estremeção muscular, alheia à consciência [...], embora periclitante ou conservada pelo suprimento artificial da quase exaurida resistências orgânica ou fisiológica, não deixa de ser vida, de modo que a supressão dos momentos de vida que restam ao moribundo é crime de homicídio, pois a vida não deixa de ser respeitável mesmo quando convertida num drama pungente e esteja próxima de seu fim. Na mesma linha de raciocínio manifesta-se Samuel Buzaglo79, para quem a vida deve ser mantida a qualquer custo. O autor elenca entre os argumentos contrários à eutanásia, assim como à ortotanásia, a possibilidade da prática de abusos de médicos, enfermeiros e familiares que poderiam provocar ou consentir na 78 HUNGRIA apud BUZAGLO, Samuel. Considerações sobre a eutanásia. Revista do Ministério Público, n. 24, p.217-235, 2006, p. 233. 79 BUZAGLO, Samuel. Considerações sobre a eutanásia. Revista do Ministério Público, n. 24, p.217-235, 2006. 130 morte de um paciente em benefício próprio ou por motivos egoístas como o tráfico de órgãos, práticas eugênicas e disponibilização de leitos hospitalares. Além disso, combate veementemente a eutanásia por acreditar que ela viola o direito absoluto à vida, bem como desconsidera a falibilidade dos diagnósticos médicos e a possibilidade do surgimento da cura de doenças incuráveis. Segundo ele, “a medicina continua sendo a ciência dos milagres, pois a cada dia se descobre medicamentos novos e eficazes, e por isso deve o médico empregar todos os meios e recursos imagináveis não somente para salvar uma vida, mas para preservá-la”.80 Não obstante as vozes que se manifestam em sentido contrário81, não há nada, como visto, do ponto de vista ético (ou bioético), jurídico e até mesmo religioso que vá de encontro ao direito à morte digna no ordenamento pátrio. E uma das formas, e talvez a principal, de concretização da morte digna se dá pela ortotanásia, na medida em que impede sofrimentos desnecessários ao doente, que se configuram em atos de tortura e degradantes, além de atender aos princípios jurídicos da autonomia (art. 5º CF) e dignidade da pessoa humana (art. 1º), bem como aos princípios bioéticos básicos (beneficência, não-maleficência, autonomia e justiça). Assim, os argumentos expendidos pelos opositores à ortotanásia não devem e não podem ser usados para permitir o prolongamento do sofrimento e a tortura perpetrada aos pacientes terminais sem chance de cura com a utilização de meios fúteis e desproporcionais. Com o pretexto de preservar a vida biológica, ofende-se a ética, a autonomia, a dignidade da pessoa e o próprio direito à vida biográfica, relacional. Maria Celeste Cordeiro Leite Santos82 traz alguns requisitos essenciais para garantir uma morte digna. São eles: a) respeito ao modelo de morte da pessoa, o que significa o respeito ao modelo de enfocar e viver a morte, ou seja, à liberdade e à autonomia; b) alívio da dor, e neste aspecto o movimento dos cuidados paliativos é um aliado da morte digna; c) rejeição da crueldade terapêutica, isto é, da distanásia, o que se concretiza pela ortotanásia. Atendendo a esta necessidade e com vistas a precaver os médicos de 80 BUZAGLO, Samuel. Considerações sobre a eutanásia. Revista do Ministério Público, n. 24, p.217-235, 2006, p. 230 81 A exemplo de Antonio dos Reis Lopes Neto e Dinéia Largo Anziliero, para quem, “no Brasil a legislação vigente criminaliza a prática da Ortotanásia”. LOPES NETO, Antonio dos Reis; ANZILIERO, Dinéia Largo. Considerações acerca da (i)legalidade da ortotanásia no Brasil. Revista Jurídica, a. 55, n. 359, p.103-114, set. 2007, p. 11. 82 SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Transplante de órgãos e eutanásia: liberdade e responsabilidade. São Paulo: Saraiva, 1992. 131 eventuais processos criminais tramita, atualmente, na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados Federais, o projeto de lei nº 6.715/2009, de autoria do Senador Gerson Camata (PMDB-ES), que trata da legalidade da abstenção do uso de meios extremos no tratamento de doença incurável e irreversível. A proposta legislativa insere um artigo (136-A) no Código Penal atual, assegurando não ser crime deixar de fazer uso de meios desproporcionais e extraordinários em situação de morte iminente e inevitável. Este projeto já foi aprovado pelo Senado e caso também o seja pela Câmara dos Deputados colocará um ponto final na controvérsia iniciada em novembro de 2006 pela Resolução nº 1.805 do Conselho Federal de Medicina, que permite ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal. Esta resolução teve a sua eficácia suspensa por uma medida liminar concedida pelo juiz Roberto Luis Luchi Demo, da 14ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal, em uma Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público Federal. Em sua decisão o magistrado afirma que a ortotanásia, assim como a eutanásia, parece caracterizar crime de homicídio, nos termos do artigo 121 do atual Código Penal, e a sua liberação só poderia ser feita por lei federal, e não por uma resolução do conselho federal de medicina (CFM). Em resposta, o CFM embora acatasse a decisão proferida informou que a referida resolução trazia apenas uma recomendação ético-profissional e em nada se opunha à legislação vigente, ajuizando o recurso cabível. O mérito da ação até o momento não foi julgado. Ao projeto de lei (PL) nº 6.715/09, foram apensados outros três projetos que tratam do mesmo assunto: PL 3.002/2008, que regulamenta a prática da ortotanásia no território nacional brasileiro; o PL 5.008/2009, que proíbe a suspensão de cuidados a pacientes em estado vegetativo persistente; e o PL 6.544/2009, que dispõe sobre cuidados devidos a pacientes que se encontram em fase terminal de enfermidade. Um avanço importante do tema foi alcançado pelo novo Código de Ética Médica83, que entrou em vigor em 13 de abril de 2010, e em seu artigo 41 determina que nos casos de doença incurável e terminal o médico deve oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis, sem empreender ações diagnósticas ou 83 O Novo Código de Ética Médica substituiu o anterior que datava de 1988 e estava bastante desatualizado em virtude do grande avanço biomédico das últimas duas décadas. 132 terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal, do mesmo modo que proíbe o profissional da medicina de abreviar a vida do paciente, mesmo que a pedido dele ou de seu representante. Noutros termos, proíbe a eutanásia e incentiva o respeito à autonomia do paciente84, a prática de cuidados paliativos e promove uma liberação ética da ortotanáisa, numa tentativa de resgatar a dignidade do ser humano na última fase da sua vida. Nota-se, assim, uma tendência ao abandono do paternalismo hipocrático, marcado pela obstinação terapêutica contra a doença e a morte, para a tomada de uma postura mais liberal do profissional de saúde, que passa a aceitar a morte como um fenômeno natural, integrante da vida, e não mais como um tabu ou como o sinônimo de fracasso. Neste sentido, a ortotanásia é o instrumento adequado de preservação da autonomia e dignidade da vida humana, levando à aceitação da morte e valorização da vida, que antes de serem fenômenos contrapostos, são complementares. A morte nada mais é que o complemento da vida; e a manutenção artificial de fenômenos vitais contra a vontade do paciente em nada se confunde com o conceito de vida protegido pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Valorizar a vida é também respeitar o processo de morte e a condição de ser mortal do homem. 84 Vale ressaltar que o CFM pretende até dezembro deste ano publicar uma resolução que permita aos pacientes adotarem diretivas antecipadas do tratamento a ser seguido em caso de incapacidade superveniente, à semelhança do que se dá com os testamentos vitais nos Estados Unidos. 133 5 CONCLUSÃO Como foi amplamente demonstrado, as questões envolvendo o final da vida estão longe de serem tratadas de forma uníssona. Vida, morte, liberdade, autonomia, ponderação e dignidade são conceitos com forte conteúdo axiológico, sujeitando-se à intensa mutabilidade da ciência e da sociedade. Em que pese as divergências sobre o assunto, algumas conclusões podem ser extraídas, senão vejamos: a) Inicialmente, cumpre ressaltar que para se definir a morte é imprescindível, preliminarmente, delimitar o conceito de vida. O grande problema, todavia, é que a definição precisa de vida, até mesmo do ponto de vista físico e biológico, é tarefa extremamente difícil, senão impossível. Não existe um conceito unívoco, universalmente aceito de vida, estando ela ligada à individualidade, daí porque não poder ser vista sob o aspecto meramente biológico, desprezando-se o seu caráter biográfico. b) De modo semelhante ao que se dá com a vida, também o conceito de morte varia de acordo com as características sócio-culturais vigentes, sendo caracterizada de forma diversa a depender da corrente filosófica ou religiosa adotada. O próprio critério científico para diagnosticar a morte sofreu alterações ao longo dos anos, o que influencia diretamente a sua conceituação. c) O tradicional critério cardio-respiratório usado para fixar o momento da morte cedeu espaço ao critério da morte encefálica, que prevalece até os dias atuais, equivalendo a morte à parada total e irreversível das funções encefálicas. O estabelecimento de um critério universalmente aceito para diagnosticar a morte é de extrema relevância para evitar o cometimento de abusos, o que não significa dizer, contudo, que está imune a críticas. O próprio critério de morte encefálica é contestado por alguns, o que deixa transparecer a impossibilidade de um consenso sobre o que é precisamente a morte. Mais do que um fato, ela representa um valor e, portanto, sujeito a variações sócio-culturais, razão pela qual a individualidade e, consequentemente, a autonomia não podem ser desprezadas nos momentos finais da vida. d) Insta frisar, ainda, que a morte não pode ser vista como o contraponto da vida, mas parte integrante dela e, do mesmo modo, não pode ser tida como um momento, um instante, mas um processo que deve levar em conta 134 além de aspectos biológicos, aspectos valorativos e sociais. Este processo, por seu turno, abarca alguns estágios como a negação, raiva, barganha, depressão e aceitação, que podem ter duração variada a depender da pessoa. e) Repise-se que, por ser um fenômeno cultural, a postura humana diante da morte sofreu profundas alterações ao longo dos séculos, partindo-se da fase da morte domada, em que o homem presidia o seu processo de morrer, até a fase da morte interdita, em que a morte torna-se algo vergonhoso, passando por um processo de medicalização, com a substituição da presença da família pela solidão dos leitos hospitalares. Neste processo de medicalização, a doença passa a ser mais importante do que o doente, e a morte representa o fracasso da medicina, sendo combatida com todos os meios, até mesmo os considerados inúteis, com o prolongamento desmedido do processo de morte. f) O desenvolvimento da medicina vem permitindo uma interferência cada vez maior na vida humana, o que implica na necessidade de repensar temas como eutanásia, bem como trazer a distinção com conceitos a ela correlatos, mas que com ela não se confundem, a exemplo da distanásia, mistanásia, ortotanásia e suicídio assistido. A eutanásia consiste na antecipação da morte de doente em estágio terminal que sofre intensamente, guiado por sentimento de compaixão e piedade e com o seu consentimento. No lado oposto à eutanásia está a distanásia, que consiste no prolongamento artificial e desmedido do processo de morte, com o uso de medidas que não possibilitam a cura ou a melhora do paciente, contribuindo apenas para aumentar o seu sofrimento. A mistanásia, por seu turno, é a morte precoce ocasionada pela falta de tratamento médico adequado. Já a ortotanásia é o meio-termo entre a eutanásia e a distanásia e significa morte no tempo certo. Noutros termos, deixar que a morte siga o seu curso natural, sem apressamento ou prolongamentos desnecessários. O suicídio assistido, por fim, consiste em fornecer os meios materiais para que o próprio paciente ponha fim à sua vida. g) Ainda que os benefícios trazidos pelo desenvolvimento tecnológico na seara biomédica não possam ser desprezados, é imprescindível o estabelecimento de limites éticos e jurídicos à sua utilização. No que concerne à defesa por um morrer natural e no tempo certo, sem as angústias promovidas pelo prolongamento artificial da morte, a bioética e os princípios da autonomia e da dignidade da pessoa humana têm papel relevante. h) A bioética almeja, justamente, traçar os parâmetros éticos capazes 135 de guiar a conduta humana ante a evolução tecnológica. Apesar de ser uma ciência nova, há inúmeros modelos teóricos que tentam fundamentá-la, a exemplo do principialismo, casuísmo, pragmatismo, utilitarismo, dentre outros. Embora cada um deles tenha trazido alguma contribuição para o desenvolvimento da bioética, não se pode negar que foi a corrente principialista que exerceu maior destaque para a divulgação desta nova área de conhecimento e, por vezes, se confundiu com a própria bioética. De acordo com esta corrente, a bioética deve ser pautada em princípios, igualmente importantes entre si, e que devem nortear as práticas biomédicas. São quatro os princípios fundamentais da bioética, a saber: beneficência, não-maleficência, justiça e autonomia. i) O princípio bioético da autonomia está ligado à necessidade de se levar em conta a opinião e os anseios do sujeito passivo de intervenções biomédicas; já o princípio da não-maleficência implica na obrigação de não infligir dano a outrem de forma intencional; o princípio da beneficência, por sua vez, se resume no dever de trazer benefícios às pessoas; e o princípio da justiça traduz-se na necessidade de oferecer, de forma igualitária, tratamento àqueles que se encontram em situação semelhante. j) Os princípios bioéticos, por serem normas de condutas não dotadas de coercitividade, carecem, muitas vezes, do auxílio de regras impositivas para se evitar o cometimento de abusos. Neste contexto, o biodireito vem despontando como uma nova disciplina que, aliada à bioética, visa a regulamentar os fenômenos resultantes da biotecnologia, e para tanto, deve se valer de princípios gerais e não de normas rígidas e fechadas, em virtude da instabilidade que rege tais relações. Assim, bioética e biodireito têm uma relação muito estreita e isto se torna mais evidente quando se constata que princípios gerais do direito, a exemplo da autonomia e da dignidade da pessoa humana, também são princípios informadores da bioética. k) A autonomia da vontade, hoje comumente tratada como autonomia privada, deve ser entendida como a capacidade de agir livremente de acordo com sua vontade, respeitando-se a ordem pública, moral, bons costumes e legislação vigente, enfim, a própria dignidade da pessoa humana. Noutros termos, a autonomia deve estar a serviço da dignidade. Na seara médica a autonomia é tratada como consentimento livre e esclarecido e representa o poder do paciente tomar decisões sobre assuntos médicos. 136 l) A dignidade da pessoa humana, restrita, na antiguidade, a algumas pessoas de determinadas classes sociais, tornou-se inerente a todo e qualquer ser humano e, principalmente após os horrores da segunda guerra mundial, adquiriu status constitucional em vários países. No Brasil, foi alçada a fundamento da República pela Carta Magna de 1988, servindo de instrumento norteador de toda e qualquer relação jurídica. Apesar da forte carga valorativa que cerca o termo, o que dificulta a atribuição de um conceito preciso, é certo que não se pode desprezar as diversas concepções de vida do indivíduo, desempenhando a autonomia papel relevante para se garantir e concretizar o princípio da dignidade. m) No que se refere à vertiginosa evolução tecnológica das últimas décadas, notadamente na área biomédica e na fase final da vida, não há como prosperar uma visão legalista e estanque do direito, inapta a solver as contendas do mundo atual. Como conseqüência, o direito passa a se valer de uma linguagem mais vaga, mais aberta, capaz de abranger um número maior de situações. Neste cenário despontam com proeminência os princípios, que passaram a nortear todo o ordenamento jurídico, notadamente o princípio da dignidade da pessoa humana. n) Os princípios, de meras recomendações, integraram o sistema constitucional com força vinculante e servindo de fundamento para a interpretação de todo o ordenamento jurídico. Ocorre que, por serem dotados de grande abertura semântica e diante da pluralidade da sociedade contemporânea, não é incomum que, no caso concreto, entrem em tensão dialética. Nestes casos, as técnicas de solução de antinomia de regras não são capazes de resolver os conflitos e o princípio da razoabilidade, aplicando a técnica de ponderação de interesses, é o único meio capaz de solver a colisão existente. Aqui, a dignidade da pessoa humana desempenha um papel imprescindível. o) Nada obstante não se pregue a existência de hierarquia entre princípios constitucionais, o que por si só esvaziaria a técnica de ponderação de interesses e o princípio da razoabilidade, não há como negar que a dignidade da pessoa humana se sobrepõe aos demais princípios, tanto assim que o próprio legislador constituinte a colocou em posição de destaque, configurando-se, pois, como uma metanorma, um superprincípio que obriga a todos os demais princípios o seu cumprimento, dando a direção a ser seguida na ponderação de interesse e, por via de conseqüência, guiando a aplicação do princípio da razoabilidade na solução de conflitos bioéticos. 137 p) As questões atinentes ao fim da vida são regidas por normas com conteúdo marcadamente principiológico e em sendo assim também a elas deve-se aplicar a técnica de ponderação de bens e o princípio da razoabilidade para solucionar eventuais conflitos. q) No que concerne especificamente às práticas recorrentes no processo de morte, de forma mais detida ao conflito entre o direito à vida e o respeito à autonomia privada, deve-se considerar, preliminarmente, que o ordenamento jurídico pátrio, a exemplo do que ocorre em outros países, não regulamenta de modo semelhante eutanásia, suicídio assistido e ortotanásia. Enquanto eutanásia e suicídio assistido configuram práticas criminosas, previstas no Código Penal Brasileiro, a ortotanásia, além de ser conduta atípica, respeita os preceitos éticos e religiosos. A ortotanásia nada mais seria do que a concretização do princípio da dignidade no limite da vida, por respeitar tanto o direito à vida, uma vez que ela não prega a sua abreviação, mas sim o seu transcurso natural, como também a autonomia do paciente em não ser obrigado a se submeter a tratamentos fúteis e inúteis. Noutros termos, a ponderação dos bens em conflito nas questões atinentes ao final da vida encontra sua exata medida com a ortotanásia. r) A ortotanásia, apesar de alguns projetos de lei que tramitam no Congresso, não está regulamentada explicitamente no ordenamento jurídico brasileiro, e embora não configure qualquer ato atentatório à lei, à moral e aos bons costumes, ainda gera enorme receio à classe médica, que, na tentativa de evitar a prática da eutanásia ou mesmo ante a dificuldade de aceitar a morte como fenômeno natural, incorre na distanásia, conduta inaceitável sob o ponto de vista ético, por tão somente prolongar a dor e o sofrimento sem garantir qualquer benefício ao paciente. s) É preciso ter em mente que deixar a morte seguir o seu curso natural, respeitando a vontade do doente e assegurando-lhe a dignidade em todas as fases da vida é fundamental, sendo a ortotanásia nada mais do que uma forma eficaz de concretizar o direito à morte digna. 138 REFERÊNCIAS ADONI, André Luis. 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