FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DO PORTO Instituto de Farmacologia e Terapêutica FARMACOLOGIA Notas sobre o enigma da acção farmacológica dos anestésicos gerais O mecanismo de acção dos anestésicos gerais é um enigma. A descoberta de fármacos que eliminam a dor durante a cirurgia fez-se sem planos e sem conhecimentos profundos. Resultou de argúcia prática, experiência temerária e sorte. Passou-se nos Estados Unidos da América na segunda metade do século XIX. O gás protóxido de azoto (N2O ou óxido nitroso) e o vapor do éter (éter dietílico) eram conhecidos e usados pelos efeitos inebriantes em exibições de feira e em festas colectivas. O protóxido de azoto era conhecido por gás hilariante e o éter era usado nas ether frolics. Crawford Williamson Long, médico de Jefferson, Geórgia, em 1842 terá sido o que primeiro operou doentes depois de lhes dar a inalar o vapor do éter, mas só divulgou e escreveu os seus relatos depois de dois dentistas da Nova Inglaterra, Horace Wells e William T.G. Morton, terem demonstrado em público o uso de protóxido de azoto e de éter (1846). O terceiro anestésico geral a juntar-se foi também um vapor, o clorofórmio, cujo emprego foi descoberto pelo obstetra escocês James Simpson em 1847 e que foi gloriosamente consagrado em público pela rainha Vitória que teve dois partos sob o seu efeito. A ligação do efeito anestésico a várias substâncias que eram solventes orgânicos foi consolidada numa síntese conceptual poderosa de Meyer e Overton que estabeleceram uma relação linear entre a potência de uma série de anestésicos gerais e a sua solubilidade no azeite: quanto mais solúvel no azeite em relação à água tanto mais potente. Esta análise genialmente simples resiste há mais de um século depois de descrita por Hans Horst Meyer e Charles Ernest Overton na transição do século XIX para o XX. Parece, assim, que a acção farmacológica dos anestésicos gerais não deveria ser procurada numa ligação a um receptor distinto mas à propriedade física destes compostos se dissolverem nos lipídeos das membranas celulares dos neurónios e alterarem as suas propriedades físicas. Enquanto que o desenvolvimento da farmacologia foi reunindo provas cada vez mais robustas de que quase todos os fármacos são ligandos selectivos de moléculas específicas com funções importantes que são modificadas pela ligação ao fármaco, a natureza da acção farmacológica mantém-se, no essencial, no estado de conhecimento criado pela regra de Meyer e Overton. Não há, para qualquer dos anestésicos aplicados no estado gasoso, qualquer receptor identificado por qualquer dos métodos conhecidos: não há antagonistas selectivos, não há preparações ou moléculas que sejam locais de ligação selectiva e saturáveis dos anestésicos gerais, não há receptores isolados, identificados ou clonados. Isto significa que não há receptores para os anestésicos gerais? Não há provas negativas. Significa que os efeitos dos anestésicos gerais são inespecíficos e difusos sobre todo o funcionamento da membrana neuronial? Significa que os efeitos dos anestésicos gerais se fazem sobre todos os neurotransmissores e sobre todos os tipos de neurónios? Os assuntos estão por esclarecer mas importa lembrar que os anestésicos gerais têm curvas de dose-efeito bem definidas, têm potências diferentes e que a sensibilidade de diferentes neurónios e de diferentes correntes iónicas não é a mesma. Embora os anestésicos possam bloquear por completo toda a actividade do sistema nervoso central, essa depressão pode ser selectiva e controlada de tal forma que se consegue deprimir o sistema nervoso o necessário para que haja anestesia sem que seja necessário deprimir muitos processos de manutenção vital. O desenvolvimento de novos anestésicos gerais depois do protóxido de azoto, do éter e do clorofórmio foi dirigida pela experimentação empírica, pela tentativa e erro e pelo ganho de experiência médica. Pode sintetizar-se a evolução da farmacologia dos anestésicos gerais para a situação médica actual em cinco grandes desenvolvimentos: 1.º, a confirmação do protóxido de azoto como um dos fármacos mais úteis e mais usados para a anestesia cirúrgica; 2.º, o abandono completo do éter e do clorofórmio; 3.º, a ascensão e declínio do halotano, entretanto substituído pelos seus análogos de série mais recente, o desflurano e o sevoflurano, e que, actualmente, acompanham o protóxido de azoto como os principais anestésicos administrados por via inalatória; 4.º, a descoberta da anestesia por via intravenosa com o tiopental; 5.º, a descoberta de anestésicos intravenosos não barbitúricos de que o propofol é o mais importante. A intensidade do efeito dos anestésicos gerais depende da concentração no sistema nervoso central. É inaceitável fazer-se deliberadamente uma curva completa e detalhada de dose-efeito dos anestésicos gerais em pessoas porque tal seria intoleravelmente cruel para se definir a parte baixa da curva e intoleravelmente perigoso para se definir o topo. O início da curva é a atenuação da dor provocada e o máximo a depressão completa do sistema nervoso central com perda total do controlo cardiovascular, visceral e respiratório. O que é necessário é colocar a dose no valor necessário à anestesia clínica, isto é, à analgesia e perda de consciência com o mínimo de interferência nas funções de controlo vital. Note-se que um dos grandes desenvolvimentos da prática médica anestésica tem sido o uso de medicações adjuvantes (bloqueadores da placa motora, analgésicos opiáceos potentes, benzodiazepinas potentes), que diminuem as doses necessárias do anestésico a administrar, e a qualidade da observação e dos cuidados intensivos e contínuos assegurados durante e após a anestesia. A dose dos anestésicos gerais é orientada pela sua potência que se exprime pelo valor de MAC (minimum alveolar concentration) que é a concentração do gás ou vapor no ar alveolar que resulta em imobilidade ao estímulo nóxico (por exemplo à incisão cirúrgica) em metade dos doentes. A unidade em que as MAC se exprimem é a percentagem com que o anestésico contribui para a mistura gasosa nos alvéolos, ou seja, pela pressão parcial do gás ou vapor anestésico em percentagem de 760 mm Hg. É evidente que as MAC são muito úteis para comparar a potência de uma série de anestésicos ou para alinharem uma dose adequada para a média dos doentes. Mas não definem directamente as doses de que cada doente necessita, porque a dose necessária pode varia por exemplo entre 0.5 e 1.5 MAC. A principal limitação do valor de MAC é que não nos dá informação sobre a inclinação da curva dose-resposta. Esta é em regra muito grande o que dificulta ainda mais um cálculo preciso da dose individual. No entanto, os valores de MAC têm permitido quantificar com maior rigor as variáveis que mais influenciam a dose adequada. Em regra as MAC não dependem do sexo ou do peso mas diminuem nos doentes idosos e com hipotermia. Uma das variáveis às quais os valores de MAC são claramente sensíveis é a associação dos adjuvantes que, se forem bons, reduzem as MAC dos gases ou vapores anestésicos. O protóxido de azoto é pouco potente. A sua MAC é de 110%, o que significa que mesmo que estivesse sozinho no ar inalado (o que é, evidentemente, medicamente vedado porque seria necessário retirar todo o oxigénio e matar-se-ia o doente não por efeitos tóxicos do protóxido de azoto mas por anóxia) nem sequer 50% dos doentes ficariam sem reacção motora à dor! No entanto, o protóxido de azoto é muito útil porque em concentrações mais baixas compatíveis com boas condições respiratórias permite baixar as necessidades de outro anestésico mais potente. A soma das duas MAC, cada uma delas inferior a 1, dará um valor total de MAC de 1 ou mais, suficiente para causar anestesia na maioria dos doentes. Além da potência há outras propriedades muito importantes para a qualidade do anestésico: a rapidez de início e fim do efeito, a suavidade da indução e do recobro, e o risco baixo de acidentes anestésicos que podem resultar de complicações agudas dosedependentes como a depressão ou instabilidade cardiovascular ou ainda de reacções adversas ou tóxicas raras e imprevisíveis mas graves. A rapidez de efeito depende da rapidez da absorção através da barreira alveolocapilar e da distribuição ao sistema nervoso. A travessia é feita por difusão e, por isso, o número de moléculas que completam a travessia por unidade de tempo é tanto maior quanto mais alta for a percentagem de anestésico no ar alveolar. É claro que a mistura gasosa que é inalada é enriquecida com o anestésico numa percentagem que é pequena se o anestésico for potente e numa percentagem grande se o anestésico for pouco potente. Por isso, quando o anestésico é potente, o número de moléculas presentes na mistura é pequeno e, por isso, o trânsito de moléculas é pouco intenso: os anestésicos potentes têm um início lento de efeito. Pelo contrário, se o anestésico é pouco potente, o anestesista tem de enriquecer a mistura gasosa de inalação com muitas moléculas do anestésico. Por isso, o trânsito molecular é muito intenso e rapidamente se instala o efeito: os anestésicos pouco potentes têm um início rápido de efeito. Claro que se poderia acelerar o início do efeito do anestésico potente aumentando a sua concentração na mistura inalada, mas seria errado submeter o doente a uma concentração em excesso, desnecessariamente alta e seguramente mais tóxica. Os mecanismos dos efeitos sobre a função cardiovascular são complexos e diferentes de anestésico para anestésico: dependem da alteração do controlo central vasomotor mas também de alterações directas sobre o coração e os vasos e sobre as glândulas endócrinas como, por exemplo, a medula suprarrenal, com maior ou menor estimulação de libertação de catecolaminas. O que se sabe de cada anestésico é fruto da observação e experiência acumuladas. Alguns efeitos tóxicos dependem da formação de metabolitos. O clorofórmio foi abandonado depois de mais de 100 anos de uso médico quando as alternativas para escolha de um anestésico passaram a ser mais e melhores. O clorofórmio provoca, para além de bradicardia e paragem cardíaca por acção provavelmente directa, necrose hepática e renal provavelmente por ser metabolizado em compostos tóxicos. Resumo curto do perfil farmacológico dos principais anestésicos gerais por inalação Protóxido de azoto É pouco potente, insuficiente como fármaco principal mas muito útil como adjuvante. A rapidez de início e fim de efeito são notáveis. Não é biotransformado e está, por isso, desprovido do risco de originar metabolitos tóxicos. É eliminado quase inteiramente pelos pulmões na forma intacta. Os efeitos adversos e as precauções para os evitar são fundamentalmente de natureza física e indirectos: a hipóxia na fase do recobro porque o protóxido difunde tão depressa para o ar alveolar que reduz a percentagem de oxigénio e a entrada em colecções de ar, como as de um pneumotórax, de uma ansa intestinal obstruída ou de um ouvido médio obstruído, com aumento do seu volume porque a troca com o azoto é lenta (o protóxido de azoto entra depressa e o azoto sai devagar). Halotano, desflurano e sevoflurano O halotano foi o primeiro dos modernos anestésicos gerais para inalação. Introduzido na década de 1950 ganhou um uso vastíssimo. É potente. Não é irritante. A indução e o recobro são lentos. Forma uma quantidade apreciável de metabolitos por biotransformação hepática catalizada por enzimas CYP450. Os metabolitos podem ser os responsáveis pelos casos raros de necrose hepática, às vezes fulminante. Tem efeitos, dependentes da dose, depressores do trabalho cardíaco e hipotensores. O uso do halotano diminuiu substancialmente no final do século XX nos países com dinheiro suficiente para o substituir pelos análogos de série posteriores, o sevoflurano e o desflurano, melhores e mais caros. O seu uso em crianças tem-se mantido mais tempo porque a indução embora lenta é bem tolerada e as complicações cardiovasculares e tóxicas parecem ser menores nessas idades. O halotano é barato e é por isso o recurso a que podem chegar as economias de pobreza da maioria humana. O desflurano é mais rápido a começar e a acabar os seus efeitos do que o halotano, é menos potente como depressor do miocárdio e não é degradado metabolicamente. A sua potência, embora menor do que a do halotano, é suficientemente boa. O halotano é muito melhor tolerado pelas vias aéreas. O desflurano pode ser irritante no doente acordado, provocando tosse, salivação e espasmos das vias aéreas. O sevoflurano é também rápido no início e fim do efeito e ao contrário do desflurano não é irritante das vias aéreas. A preocupação maior tem sido a da sua metabolização. O sevoflurano é degradado metabolicamente no fígado em vários metabolitos, incluindo fluoreto inorgânico. Não se conhece o potencial tóxico mas a experiência não chega ainda para afastar receios de eventuais efeitos raros. Alguns problemas técnicos Os mais óbvios são a explosão e o incêndio. O éter pertence à história dos grandes medicamentos mas foi abandonado em parte porque é inflamável e explosivo e causou, com isso, vários acidentes. O protóxido de azoto, o halotano e os seus derivados não são inflamáveis nem explosivos. Outros problemas técnicos são menos aparatosos como a formação de produtos de decomposição, que podem ou não ser tóxicos, com os adsorventes de CO2 nos sistemas, como acontece com o sevoflurano. Há que ter também a preocupação em definir a segurança ambiental da exposição crónica dos médicos e enfermeiros a quantidades pequenas de poluentes gasosos. Sabe-se pouco sobre este assunto. Anestésicos gerais por via intravenosa O tiopental começou a ser usado em 1934 e tornou-se no primeiro anestésico geral por via intravenosa realmente merecedor dessa designação. Continua a ser empregue muitíssimas vezes na indução anestésica. A sua farmacologia está descrita no capítulo dos barbitúricos. O propofol, usado desde 1977, acompanha agora o tiopental na posição dos anestésicos gerais por via intravenosa que mais vezes se empregam. Tal como o tiopental, o propofol tem um início de acção muito rápido e muito confortável para o doente e uma duração de acção também curta. Os princípios farmacocinéticos são os mesmos, isto é, grande lipossolubilidade, rápida distribuição para o sistema nervoso central e redistribuição secundária para compartimentos adiposos. No entanto, a biotransformação do propofol é mais rápida do que a do tiopental e, por isso, em administrações repetidas o risco de acumulação é baixo. O propofol é muito usado nos procedimentos de diagnóstico ou cirúrgicos curtos que dispensam internamento. O etomidato, sintetizado em 1964 e usado desde 1972, produz também uma indução anestésica rápida e é muito útil em doentes em situação hemodinâmica precária, por doença cardíaca, por exemplo. Não pode ser usado por períodos longos de muitas horas ou dias, por exemplo nos cuidados intensivos, porque inibe a síntese de cortisol e de aldosterona e causa falência da suprarrenal potencialmente letal. Este problema não se põe para o uso limitado no tempo na indução anestésica e na manutenção em procedimentos curtos. A cetamina (ou quetamina, para conservar o som mais próximo do inglês ketamine) usase desde 1965. É um derivado da fenciclidina (phencyclidine, phenyl cyclohexyl piperidine, PCP) conhecida como droga de rua “pó de anjo”. A fenciclidina começou a ser usada como anestésico geral em 1958, mas cedo se verificou que causa alucinações com uma frequência inaceitável para uso médico. É este potencial alucinogénico que a torna substância de abuso. A fenciclidina que hoje se encontra espalhada é toda de produção clandestina. A vivência interior de separação entre pensamento e corpo (dissociação) é para algumas pessoas causa de pânico mas para outras pode ser muito atractiva, e facilitar o uso compulsivo. A cetamina tem também este potencial e é controlada por lei para evitar o seu desvio da prática médica para o tráfico ilegal de substâncias psicoactivas. È um bom anestésico mas conserva em parte a capacidade alucinogénica da fenciclidina como se comprova pelo relato da ocorrência, por vezes tardia de algumas horas depois da anestesia, de alucinações, pesadelos e vivências de dissociação por vezes muito intensas e que podem ser assustadoras para o doente. Presume-se que as crianças pequenas estejam livres deste tipo de reacções (estarão mesmo?). A experiência da cetamina em Pediatria é vasta e considerada boa. Para dois destes anestésicos gerais por via intravenosa identificaram-se dois locais de fixação selectiva: o canal de cloreto associado ao receptor GABAA que representa um local de fixação selectivo do tiopental e o receptor do glutamato de tipo NMDA para o qual a cetamina tem grande afinidade. O tiopental promove uma abertura prolongada do canal do cloreto. Ao contrário das benzodiazepinas, o tiopental não requer a presença de GABA endógeno. A abertura prolongada do canal do cloreto provoca hiperpolarização e diminuição da actividade neuronial. A cetamina é uma antagonista não competitivo do glutamato para os efeitos mediados pelo receptor de tipo NMDA. Este receptor é um canal iónico permeável ao sódio e ao cálcio. A cetamina bloqueia o canal dependente do NMDA sobretudo quando ele está na forma aberta. A cetamina impede assim o efeito do glutamato sobre o receptor NMDA sem que, no entanto, se ligue ao local preciso de fixação do agonista. Para o propofol e para o etomidato não se identificaram locais selectivos que eventualmente pudessem contribuir para explicar o seu efeito anestésico geral. A evolução dos nossos conhecimentos no sentido da eventual identificação de receptores selectivos para os anestésicos gerais volta no entanto a ser perturbada pela observação do efeito anestésico do xénon. Este gás é dos elementos quimicamente mais inertes na Natureza. E, no entanto, é um anestésico geral muito bom. Não fosse o preço muito elevado e seria provavelmente muito utilizado. Volta-se ao ponto de partida no enigma da acção farmacológica dos anestésicos gerais. DM 2005.06.09