LÍNGUA, HISTÓRIA E ENSINO NO GINGADO DA CAPOEIRA Jurgen Alves de Souza1 RESUMO: No que se refere às influências linguísticas sofridas pelo português brasileiro, quando da sua constituição, ainda permeia, no imaginário coletivo do brasileiro, a ideia de que a herança africana está restrita a um punhado de palavras presentes na culinária ou nas manifestações religiosas. Por conta desse senso comum, a maioria da população não tem acesso a informações sobre pesquisas sociolinguísticas sérias e muito pertinentes a respeito do assunto. Assim, o que se expõe através deste artigo é uma tentativa de se refletir um pouco mais sobre os estudos acadêmicos acerca da contribuição do contato entre línguas para a formação do português brasileiro e sobre o alcance de tais estudos no ensino de língua portuguesa nas escolas, propiciando, com isso, um necessário repensar sobre nossa história, nossa língua e nosso sistema de ensino. Palavras-chave: Contato entre línguas; Ensino; Português brasileiro; Sociolinguística. ABSTRACT: In what refers to the linguistic influences suffered by the Brazilian Portuguese, when it was formed, it still permeates, in the collective imaginary of the Brazilian, the idea that the African inheritance is restricted to a handful of words that are present in the cookery or in the religious manifestations. Because for this common sense, most of the population doesn't have access to information about sociolinguistics researches serious and very relevant regarding the subject. Thus, what is exposed through this article is an attempt to reflect a little more on the academic studies concerning the contribution of the contact among languages in formation of Brazilian Portuguese and on the reach of such studies in the teaching of Portuguese language in the schools, propitiating, with that, a necessary to rethink on our history, our language and our education system. Word-key: Contact among languages; Teaching; Brazilian Portuguese; Sociolinguistics. Introdução Não se iludam os entusiastas da capoeira ao se depararem com a expressão cunhada no título, pois aqui se transcende o significado literal para se aludir, isto sim, à cultura africana de modo geral, envolvida na discussão sobre as nossas origens, destacadamente as origens linguísticas, afinal o debate acerca das contribuições linguísticas dos africanos e seus descendentes na formação do português brasileiro tem transitado, reverberante, pelos corredores das universidades, nos últimos anos. Opiniões divergentes de grandes pesquisadores da sociolinguística no país acirram as mesas-redondas de congressos e associações por todo o território nacional, mas, ao contrário do que pode parecer, o fato de haver uma incongruência de pensamentos entre os estudiosos do assunto tem impulsionado as pesquisas e, aos poucos, lançado luz sobre esta face até então obscura do nosso português: as suas origens. Assim, essa batalha intelectual tem sido a mola propulsora para que a produção e a publicação de textos acadêmicos que abordem tal temática se sucedam a cada dia. 1 Mestrando em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia, com bolsa do CNPq. Um questionamento, porém, parece tomar conta de todos aqueles que acompanham, de perto ou a distância, a aparição dessas novas velhas páginas da história da língua portuguesa no Brasil. Essas descobertas, mesmo que envoltas ainda em muita discussão, chegam a atingir o ensino de português na sala de aula das escolas brasileiras? Se a resposta for negativa, é inevitável mais uma pergunta: o que deve ser feito para que a formação do português brasileiro seja, de fato, conteúdo programático das aulas de língua portuguesa? No entanto, se a resposta àquele primeiro questionamento for positiva, a indagação deve ser outra: o que – e como – tem sido ensinado nas escolas sobre a influência africana em nossa língua? Numa época de “perguntas fortes e respostas fracas” (SANTOS, 2008, p. 13), talvez este seja o momento propício para uma reflexão sobre essas questões que, para além de uma querela academicista, são fulcrais no que diz respeito à nossa compreensão de nação e à consequente formação da nossa identidade. Não se pode esquecer, também, que o preparo adequado de escolas e professores para a inserção dessa temática no ambiente de sala de aula não é uma tarefa simples, pois envolve não só a necessária reciclagem de conteúdos, mas a difícil quebra de preconceitos há muito arraigados. Ainda que existam divergências teóricas a respeito da contribuição dos africanos e seus descendentes nas origens do português brasileiro, não há mais espaço para o antigo discurso de que as influências linguísticas deixadas por eles se limitem a algumas palavras ou expressões incorporadas ao português. Infelizmente, no entanto, esse pensamento ainda é muito comum entre os nossos educadores. O português que falamos no Brasil tem muitas palavras de origem africana. (...) Os africanos trouxeram consigo sua religião – o candomblé – e sua cultura, que inclui as comidas, a música, o modo de ver a vida e muitos dos seus mitos e lendas. Trouxeram ainda, é claro, as línguas e dialetos que falavam. (...) Muitos vocábulos que vieram desses idiomas passaram a fazer parte do nosso vocabulário e foram incorporados à nossa cultura. Em geral, trata-se de nomes ligados à religião, à família, a brincadeiras, à música e à vida cotidiana (STRECKER, 2008). Declarações como essas são sintomáticas e não só apontam para o fato de que os nossos educadores precisam voltar a estudar, mas indicam a necessidade urgente de veicular os resultados das pesquisas feitas até o momento, incentivando e amparando esses educadores durante o árduo – mas possível – processo de mudança na abordagem de um assunto tão importante para a compreensão da cultura do nosso povo. Considerando relevantes as influências linguísticas africanas para a formação do português brasileiro, fruto do contato entre línguas ocorrido no período da colonização do Brasil, este artigo se propõe, então, a servir de ferramenta útil para as reflexões que urgem ser feitas e para a nova proposta de ensino que delas pode surgir. 1. Panorama sociolinguístico do Brasil nos primeiros séculos Do século XVI ao século XIX, o tráfico negreiro trouxe, em cativeiro, para o Brasil entre quatro e cinco milhões de falantes africanos. O contato linguístico e cultural que ocorreu nesse período teve como consequência mais direta a alteração da língua portuguesa aqui falada, provocando inevitavelmente a participação de falantes africanos na construção da modalidade da língua e da cultura representativas do Brasil. Segundo Lucchesi (2008, p. 151), os africanos e seus descendentes foram, por um lado, vítimas de uma violenta repressão cultural e linguística que não permitiu a conservação das muitas línguas africanas que chegaram aqui, durante os séculos de colonização, sendo encontrados raros resquícios de línguas africanas ainda subsistentes apenas em algumas poucas comunidades rurais de afrodescendentes mais isoladas, servindo como elemento de preservação da identidade cultural africana. Por outro lado, porém, protagonizaram o importante papel de difusor da língua portuguesa no Brasil, contribuindo para que o contato linguístico desses muitos falares africanos com a língua portuguesa trazida da Europa gerasse as características mais notáveis da fala popular brasileira, ainda que o preconceito e a escassez das teorias tentem, a todo custo, diminuir ou mesmo negar essa efetiva contribuição. Os primeiros séculos da história do Brasil apontam, portanto, para o cenário bipolarizado em que a realidade linguística brasileira foi constituída (cf. LUCCHESI, 2001). As cidades, pouco populosas e geralmente situadas no litoral, não influenciavam as distantes povoações interioranas e eram reduto exclusivo de uma reduzida elite colonial, a qual, como era de se esperar, procurou aproximar-se e manter-se fiel ao padrão linguístico lusitano, submetendo-se ao cânone português até o início de século XX. A maior parte da população colonial – formada principalmente por índios nativos e negros escravos, e espalhada pelo interior do país – quase não tinha contato com a cultura européia e, consequentemente, com a variedade padrão da língua portuguesa, restringindo-se à convivência com colonos portugueses pobres e pouco escolarizados, com os quais adquiriram o português como segunda língua. Essa aquisição precária de uma segunda língua por uma coletividade de falantes adultos, sem instrutores ou escolas, e sua posterior socialização e nativização nessa coletividade é denominada de transmissão línguística irregular (cf. LUCCHESI, 2003). Um cenário como o dos primeiros séculos da colonização brasileira certamente contribuiu para gerar as condições propícias à ocorrência de processos de transmissão línguística irregular, contando com uma significativa colaboração dos negros escravos, que foram obrigados a aprender, numa situação social precária, a língua que serviu para a comunicação com capatazes e senhores, e também com outros escravos de etnias diferentes. É claro que em algumas áreas do Brasil, especialmente no norte do país e em alguns trechos do sudeste, a influência linguística dos índios foi muito relevante (cf. RODRIGUES, 1986), mas não podemos nos esquecer de que o extermínio da população indígena, causado por doenças e pela violência dos colonizadores, e sua resistência ao trabalho forçado, fortalecida pela oposição da igreja à escravização indígena, levaram o índio a desempenhar um papel muito menos significativo do que o negro na constituição da realidade sociolinguística brasileira. O contato entre as línguas africanas e esse português precariamente adquirido deixou vestígios em nossa língua, os quais acabaram por se tornar marcas típicas do português popular brasileiro, expandindo-se, posteriormente, do ambiente rural para ambientes citadinos. No início do século XIX, os africanos e seus descendentes eram quase 70% dos três milhões e trezentos mil habitantes do Brasil (AZEVEDO, 1975, p. 14-15) e, por estarem inseridos nos diversos setores da atividade produtiva – mesmo que se concentrassem nos estratos menos elevados da sociedade –, serviram de transmissor desse português tipicamente nosso. É possível perceber, então, em decorrência desse contexto sócio-histórico, uma realidade linguística que aponta para a existência de um sistema bipolararizado no português brasileiro, formado por dois diferentes subsistemas: a norma culta, constituída pelos padrões linguísticos elitistas inspirados na língua lusitana, e a norma popular, que se baseia nos padrões linguísticos que a maioria da população adquiriu precariamente. Esses dois polos, no entanto, não se repelem tão vorazmente quanto se pode imaginar, chegando até a interrelacionar-se, ainda que a norma culta permaneça sendo prestigiada e a popular continue sendo fortemente estigmatizada. A polarização linguística do Brasil não é, porém, estanque, podendo-se detectar influxos que interligam os dois subsistemas distintos, sobretudo a partir das primeiras décadas do século XX, quando se inicia o vigoroso e profundo processo de industrialização e urbanização do país, que dinamizou a reprodução da cultura e democratizou as relações sociais, sem conseguir, entretanto, alterar o quadro de profundas desigualdades sociais que ainda entravam o verdadeiro desenvolvimento do país. As contradições da realidade social refletem-se no plano das normas linguísticas, pois, ao tempo em que se observa, no plano objetivo dos padrões coletivos de comportamento verbal, uma tendência ao nivelamento das duas normas linguísticas brasileiras, no plano subjetivo da avaliação das variantes linguísticas, o estigma ainda recai pesadamente sobre as variantes mais características da norma popular, fortalecendo-se, a cada dia – inclusive com a força dos meios de comunicação de massa – um preconceito que, sem fundamento linguístico, nada mais é do que a crua manifestação da discriminação econômica e social (LUCCHESI, 2002, p. 87-88). 2. Compreendendo melhor a questão do contato As marcas mais imediatas, e por isso mais perceptíveis, em qualquer situação de contato linguístico são os empréstimos lexicais, principalmente quando a relação entre as línguas é estabelecida por domínio político, militar, cultural ou ideológico, como ocorreu, por exemplo, com o próprio português, quando da invasão moura na península ibérica. Todavia, a forma violenta de colonização ocorrida nas muitas colônias europeias, a partir do final do século XV, criou contextos sociais que propiciaram influências linguísticas muito mais profundas em situação de contato, uma vez que a opressão física e simbólica dos grupos humanos, retirados de seu ambiente natural e tomados como escravos, favorecia a chamada crioulização. Em linhas gerais, o processo de crioulização decorre de situações em que povos de línguas diferentes têm de interagir por um determinado período de tempo, criando a necessidade de um código básico de comunicação, usado apenas para passar informações básicas e imediatas, transmitir e receber ordens e viabilizar trocas. Se a situação se prolonga, porém, uma estrutura gramatical começa a se formar em torno desse vocabulário básico, podendo gerar uma expansão da estruturação gramatical e suas funções de uso, assemelhando esse código de comunicação a qualquer outra língua humana. A posterior nativização e socialização desse código por uma nova comunidade formada na situação de contato pode ocasionar uma ruptura cultural e linguística para uma parte dos grupos envolvidos, fazendo com que as crianças que nasçam nessa comunidade emergente passem a ter como modelo para aquisição de sua língua materna o código de comunicação por ela usado, dando origem a uma língua crioula. No caso específico do Brasil, entende-se que não houve exatamente um processo de crioulização, mas uma “semi-crioulização”, segundo Holm (1992, p. 37), ou, nos termos de Lucchesi (2003, p. 281), uma “transmissão lingüística irregular de tipo leve”, pois não ocorreu, de modo generalizado, a expansão da estruturação gramatical que começou a ser formada em decorrência da situação de contato. Assim, o processo de crioulização foi abortado, gerando – em lugar de uma língua crioula – uma variedade popular da língua portuguesa, da qual mantém quase todo o arcabouço estrutural, modificado apenas pela profunda variação no uso dos elementos gramaticais sem valor referencial, tais como a morfologia verbal de pessoa e número, a concordância nominal de gênero e número, e a flexão de caso dos pronomes pessoais. O conceito de transmissão linguística irregular de tipo leve propõe uma análise das mudanças linguísticas induzidas pelas situações de contato entre línguas que não se restrinja unicamente às condições de crioulização, admitindo que esse contato entre línguas pode, ao invés de formar uma língua crioula, conduzir à formação apenas de uma nova variedade da língua-alvo. Tal variedade apresentaria características estruturais semelhantes às que seriam encontradas numa língua crioula, mas se diferenciando dessa pela menor intensidade da erosão gramatical e, consequentemente, pela menor necessidade de recomposição das estruturas gramaticais perdidas na fase inicial do processo de aquisição precária da línguaalvo por uma comunidade de falantes adultos, em função do pouco acesso aos modelos da língua adquirida. Por outro lado, para que houvesse a possibilidade da consolidação dos processos de crioulização, seria necessário um acesso restrito aos modelos da língua-alvo durante o período de formação dessa nova comunidade de fala. Portanto, as situações sociolinguísticas propícias para isso seriam, em tese, as mesmas – ou ao menos semelhantes – encontradas em algumas sociedades de plantation ou em comunidades quilombolas, tais como a retirada de populações de seu contexto cultural e linguístico de origem, como ocorreu com o tráfico negreiro; a concentração de um grande contingente linguisticamente heterogêneo sob o domínio de um grupo dominante numericamente muito inferior (em torno de 10%); e a segregação da comunidade que se forma na situação de contato. Pode-se, então, inferir que uma das possíveis causas para que o processo de crioulização não tenha se completado em nosso território talvez tenha sido a inserção dos afro-descendentes, sobretudo os mestiços, na sociedade brasileira, principalmente a partir do século XVIII, com a economia não mais girando em torno da atividade agro-exportadora e sim da mineração. Esse fato permitiu o acesso dos falantes de línguas africanas e de seus descendentes aos modelos gramaticais da língua-alvo, fazendo com que os elementos gramaticais da língua do grupo dominante suplantassem eventuais processos embrionários de gramaticalização e de transferência do substrato, importantes na formação de uma língua crioula. Um cenário social como esse, diferente dos cenários de maior segregação, comuns à formação de crioulos, contribuiu para que a crioulização ocorrida no Brasil não tenha perdurado a ponto de se consolidar uma comunidade de falantes crioulos e tenha sido por demais localizada, ocorrendo quase que exclusivamente em comunidades rurais isoladas, notadamente marcadas pela presença africana. Partindo dessa premissa, o processo de transmissão linguística irregular de tipo leve teria sido, portanto, elemento fundamental para a formação do português popular brasileiro e, como foi no ambiente rural que tudo isso começou, os atuais dialetos rurais, em especial os de localidades marcadas pela presença africana, constituem um campo de observação linguística privilegiado, pois comunidades rurais afro-brasileiras mais isoladas, de acordo com Lucchesi (2004, p. 216), podem guardar rastros históricos desse contato. 3. Seguindo os rastros do contato: uma viagem às comunidades rurais afro-brasileiras Ao longo dos últimos quinze anos, comunidades rurais afro-brasileiras isoladas têm sido alvo de sucessivos estudos, os quais têm ajudado significativamente na busca pelas contribuições linguísticas que a presença africana deixou como herança no português popular brasileiro. Essas comunidades têm como característica comum o fato de terem sido originadas de agrupamentos de negros africanos trazidos como mão-de-obra escrava e de terem mantido, até a época em que os dados foram coletados, um grau relativamente elevado de isolamento – condição importante para se pesquisar a possibilidade de ocorrência de transmissão linguística irregular pretérita (cf. LUCCHESI, 2003). Para que se compreendam com clareza os argumentos deste artigo, é importante conhecer, mesmo que resumidamente, um pouco da história das comunidades que constituem a base empírica da análise linguística aqui apresentada, procurando observar as condições sócio-históricas em que o contato linguísitico parece ter ocorrido. Assim, segue abaixo um pequeno histórico das comunidades de Barra, Bananal, Cinzento, Helvécia e Sapé, as quais são estudadas pelo Projeto Vertentes do Português Popular do Estado da Bahia2. As comunidades de Barra e Bananal, localizadas no município de Rio de Contas, ao sul da Chapada Diamantina, na Bahia, teriam sua origem relacionada aos sobreviventes do naufrágio de um navio negreiro que trazia escravos da África, os quais se afastaram do litoral em busca de lugar seguro para se abrigarem e acabaram encontrando nas cabeceiras do rio Brumado o lugar ideal para a prática da agricultura de subsistência – que até bem pouco tempo era o único meio de sustento dos moradores –, mas não demoraram a ser capturados 2 O Projeto Vertentes do Português Popular do Estado da Bahia, coordenado pelo Prof. Dr. Dante Lucchesi, na Universidade Federal da Bahia, vem realizando, desde 1994, uma ampla pesquisa de campo para recolher amostras de fala junto a comunidades rurais afro-brasileiras isoladas e outras comunidades rurais não marcadas etnicamente, com o objetivo de construir uma sólida base empírica para análises linguísticas que possam revelar o efeito das mudanças linguísticas induzidas pelo contato entre línguas na formação do português brasileiro. É possível encontrar mais informações sobre o projeto em sua página na internet: www.vertentes.ufba.br. por bandeirantes para servir-lhes de mão-de-obra escrava na mineração. Mais tarde, por volta do final do século XVII, o local começou a ser povoado, por conta de uma rota de viagem que ligava Goiás e o norte de Minas Gerais a Salvador. Nessa ocasião, surgiu o pequeno Arraial de Crioulos, que servia de pousada aos viajantes, principalmente àqueles que garimpavam rios e serras da região em busca de ouro (cf. SAKAMOTO, 2000). A comunidade de Cinzento, localizada no município de Planalto, na região sudoeste da Bahia, é remanescente de um quilombo e seus fundadores seriam escravos fugidos do Arraial de Crioulos, na Chapada Diamantina, que se estabeleceram às margens do Rio Gavião nas primeiras décadas do século XIX. O único meio de sustento da comunidade é a agricultura de subsistência, prejudicada pela constante seca. O terreno acidentado, de difícil acesso, serviulhes de refúgio e fez com que permanecessem, durante muito tempo, isolados do convívio com outras comunidades, levando-os à prática da endogamia e à consequente constituição de um agrupamento étnico e de parentesco (cf. SILVA, 2008). A comunidade de Helvécia, localizada no município de Nova Viçosa, no extremo sul da Bahia, teve sua origem por volta de 1818, a partir de uma colônia fundada por imigrantes europeus (alemães, franceses e suíços), os quais se deslocaram para esta região durante o século XIX e se dedicaram ao cultivo e exportação do café, utilizando-se da mão-de-obra escrava. Todavia, a Colônia Leopoldina entrou num período de decadência no final do mesmo século, por conta do declínio da cultura do café e da abolição da escravatura, em 1888. Dessa forma, os fazendeiros abandonaram a região – muitos voltaram a seus países de origem – e deixaram um grande número de ex-escravos, que, ao contrário do que comumente acontecia naquela época, não se dispersaram e se mantiveram no local, permanecendo isolados ali até meados do século XX (cf. FERREIRA, 1988). A comunidade de Sapé, localizada no município de Valença, na região do Recôncavo Baiano, teria se originado, segundo relatos de moradores antigos da região, no início do século XIX, a partir de um grande latifúndio pertencente ao fazendeiro Miguel Elia, que se dedicava ao cultivo da mandioca e à pecuária. Após a abolição da escravatura, em 1888, muitos ex-escravos continuaram trabalhando nas fazendas da região em troca de pequenos lotes de terra, geralmente em locais de pouca produtividade e distante dos recursos hídricos, nos quais acabaram se fixando e, por meio da prática de endogamia, perpetuando a população local (cf. SILVA, 2009). 4. Seguindo os rastros do contato: uma breve noção das consequências linguísticas Na busca por dados comprobatórios da influência do contato linguístico para a caracterização do português brasileiro, o Projeto Vertentes realizou diversas análises quantitativas com base em amostras de fala vernácula das comunidades rurais afro-brasileiras isoladas acima descritas. Tais análises foram pautadas nos pressupostos metodológicos da sociolinguística variacionista (cf. LABOV, 2008) e amparadas pelo rigor estatístico do pacote de programas VARBRUL (cf. SCHERRE & NARO, 2003). No presente artigo, destacam-se – a título de exemplificação da ideia aqui defendida – os estudos sobre a variação na concordância nominal de número, os quais, juntamente com outros estudos realizados nessas comunidades, constam do recém-lançado livro O português afro-brasileiro (cf. LUCCHESI et alii, 2009), resultado de laboriosos quinze anos de pesquisa. Um dos efeitos desencadeados pelo contato entre línguas ocorrido no período da colonização brasileira foi a significativa erosão da morfologia flexional, tanto do nome quanto do verbo, e consequentemente das regras de concordância fundamentadas nesses morfemas, gerando, assim, um amplo quadro de variação na concordância nominal e verbal do português brasileiro. No tocante à concordância nominal, a frequência de uso das regras da gramática normativa não chega a dez por cento dos casos em algumas comunidades rurais afrobrasileiras isoladas, sendo a categoria gramatical de número muito mais afetada nesse processo de variação do que a de gênero. Enquanto a variação na concordância nominal de número atinge todas as variedades do português brasileiro, a variação na concordância de gênero está restrita a poucas comunidades rurais isoladas, sendo incomum até mesmo nas comunidades rurais afro-brasileiras (cf. LUCCHESI, 2000). O caráter mais gramatical – pelo fato de atingir praticamente todos os constituintes do Sintagma Nominal (SN) – e sua consequente redundância são fatores a que se pode atribuir a profunda variação existente na concordância nominal de número, conforme se verifica nos exemplos abaixo3: (1) esses meus primo aí (2) o meus irmão (3) umas coisa velha Todavia, essa variação parece ser ainda maior quando envolve estruturas passivas e de predicativo do sujeito, pois elas não apresentariam a mesma coesão estrutural observada no interior do SN, segundo o que confirmaram alguns estudos realizados com falantes urbanos escolarizados (cf. SCHERRE, 1991). Considerando essas estruturas na fala das comunidades 3 Exemplos foram retirados de amostras de fala da comunidade afro-brasileira de Helvécia, no extremo sul da Bahia (cf. ANDRADE, 2003). rurais afro-brasileiras isoladas, a não-aplicação das regras de concordância nominal de número é categórica, uma vez que a ocorrência da flexão de número de acordo com as regras é de apenas um por cento, índice irrelevante em termos estruturais. Pode-se afirmar, portanto, que a concordância nominal de número com estruturas passivas e predicativos do sujeito não fazia parte da gramática das comunidades rurais afro-brasileiras isoladas, pelo menos até meados do século XX. Quando, no entanto, o SN apresenta na sua estrutura um modificador à direita do nome, como no exemplo (3), este modificador participaria da relação de concordância no mesmo nível que um predicativo ou um particípio passado em uma estrutura passiva. Tal paralelo estrutural – validado pelo modelo da Regência e Ligação (cf. CHOMSKY, 1986) – foi observado em análises sobre a concordância nominal de número em estruturas desse tipo na fala de comunidades rurais afro-brasileiras isoladas no interior do Estado da Bahia, revelando que a marcação do plural nos modificadores à direita do nome é praticamente nula. Esses resultados, dentre outros tantos a que as pesquisas sociolinguístas têm chegado, atestam a influência do contato entre línguas na formação do português brasileiro, já que a situação de contato linguístico teria sido responsável pelo intenso processo de erosão gramatical que ocasionou tais variações no uso das regras de concordância. Eles apontam também para, ao contrário do que vem ocorrendo com os falantes urbanos (SCHERRE & NARO, 1997, p. 107), uma inequívoca tendência ao incremento do uso das regras de concordância nas comunidades rurais afro-brasileiras, dada a sua cada vez maior interação com as zonas urbanas e ao consequente aumento do acesso a tais regras. 5. O ensino do português brasileiro em sala de aula Todo esse investimento em pesquisa e as implicações de seus resultados, no entanto, parecem estar muito distantes do ambiente de sala de aula. No Brasil, o ensino de língua portuguesa não reflete, na maioria das escolas, os grandes esforços que têm sido feitos para se corrigir o enganoso pensamento de que a contribuição africana na formação do nosso português seja apenas a inserção de uma meia dúzia de palavras ou expressões usadas na culinária e nos cultos religiosos. Um dos fatores que inibem a inclusão das contribuições africanas para a constituição do português brasileiro no conteúdo de sala de aula é a atitude dos educadores. Muitos professores e escolas – por desconhecimento ou desinteresse – sequer mencionam, no conteúdo programático, algo sobre a história da língua portuguesa em território brasileiro, limitando-se apenas a ensinar as regras da gramática normativa. Em 09 de janeiro de 2003, foi sancionada a lei nº 10.639/2003, a qual insere na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional dois artigos que estabelecem o ensino sobre cultura e história afro-brasileiras nas escolas públicas e particulares, especificando a necessidade de se privilegiar o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional. Mesmo não havendo menção específica ao estudo das contribuições linguísticas africanas para a constituição do português brasileiro, pode-se compreender que não há como estudar a participação do negro na formação da nossa sociedade, sem abranger, de maneira séria e compromissada com o processo de ensino/aprendizagem, a considerável influência dos africanos e seus descendentes num dos aspectos de nossa cultura que nos faz tão ímpares: a língua. A própria lei, no entanto, incorre num lapso sem tamanho, determinando que tais conteúdos devem ser ministrados nas áreas de educação artística, literatura e história, esquecendo-se de indicar esse ensino nas aulas de língua portuguesa. É importante salientar que, quando se discute a inserção do estudo dessas contribuições linguísticas dos africanos e seus descendentes na trajetória do português brasileiro, não se trata de uma campanha contra o ensino da gramática normativa, até porque são notórias as relações de poder que estão envolvidas no uso da língua. Saber a variedade padrão prescrita pela gramática normativa é, de fato, necessário, uma vez que ela será exigida em algumas situações do cotidiano, podendo ser um instrumento de ascensão ou de exclusão social. Não se deve esquecer, no entanto, que essa é apenas uma das variedades da língua. É imprescindível que o estudante tenha ciência da existência de outras variedades linguísticas, desfazendo-se do preconceito que muitas vezes lhe incutiram a respeito do seu próprio modo de falar (cf. BAGNO, 1999). Para isso, porém, fazem-se necessárias a compreensão das origens do português brasileiro, incluindo as influências dos falares africanos, e a franca diferenciação dele em relação ao português europeu, já que, diante dos resultados das muitas pesquisas sociolinguísticas desenvolvidas no Brasil, parece ser insustentável atualmente a ideia de que as marcas que caracterizam o nosso português sejam consideradas, nas palavras de Silva Neto (1960, p. 21), “uma linguagem adulterada de negros e índios”. Outro fator desagregador para uma tentativa de abordar as contribuições africanas na formação do português brasileiro em sala de aula é a divergência existente entre os próprios sociolinguistas quanto à relevância de tais contribuições. Por um lado, alguns pesquisadores defendem a tese da transmissão linguística irregular, proposta por Lucchesi (2003), segundo a qual muitas das características atuais do português brasileiro, em especial na sua variedade popular, teriam sido fruto do contato entre línguas ocorrido no período da colonização – pressuposto teórico utilizado neste artigo. Outros pesquisadores, por sua vez, defendem a tese proposta por Naro & Scherre (2007), a partir da qual todos os traços aparentemente típicos do português brasileiro, inclusive em sua variedade popular, seriam fruto da chamada deriva secular das línguas românicas e não do contato com línguas africanas ou outras quaisquer. Até mesmo quem propõe mudanças no ensino de língua portuguesa nas escolas diverge quanto às origens do português brasileiro. Dessa forma, há quem afirme que, apesar de ser uma hipótese considerável, a influência desse contato linguístico estaria limitada às variedades rurais, não atingindo o ambiente citadino, o qual permaneceria muito próximo do modelo do português europeu, afirmando também, numa aparente contradição, que a realidade sociolinguística que envolve o português brasileiro apresenta características muito peculiares, diferindo do que ocorre em outros países (BORTONI-RICARDO, 2005, p. 20-21). Por outro lado, há os que consideram tal influência relevante para o entendimento das características atuais do português brasileiro, destacando que as marcas deixadas pela situação de contato linguístico presente no período da colonização do Brasil, ao contrário do que se pode pensar, não ficaram restritas às zonas rurais isoladas, mas expandiram-se para as cidades, formando um português brasileiro geográfica e socialmente heterogêneo (MATTOS E SILVA, 2004, p. 133). Todavia, ainda que possam discordar veementemente do arcabouço teóricometodológico utilizado para defender a influência dos africanos e seus descendentes na formação do português brasileiro, os críticos mais ferrenhos à teoria da transmissão linguística irregular concordam que houve, nos primeiros séculos de colonização do Brasil, as condições sócio-históricas propícias a uma transmissão linguística irregular de tipo leve, afirmando que, se a origem dos traços do português brasileiro não foi originada pelo contato linguístico, ele foi – certamente – o motivador da expansão desses traços em nossa língua. Enfatizamos que nossa posição não implica, todavia, ignorar a existência inquestionável de condições sócio-históricas normalmente propícias ao surgimento de línguas crioulas clássicas em terras hoje brasileiras: multilinguismo generalizado entre falantes adultos, que, no início do contato, não partilhavam língua comum, em contexto de colonização e de consequentes relações linguísticas e sociais assimétricas. Também não duvidamos da provável existência, durante o processo de aquisição do português por adultos, de efeitos diretos de interferência de primeiras línguas em indivíduos ou até em comunidades relativamente isoladas de mesma origem. (...) As origens do português do Brasil são estritamente internas e genéticas; a posterior expansão dos traços geneticamente derivados é externa e motivada pelo contato. (NARO & SCHERRE, 2007, p. 118-119; 186). A existência de tais divergências teóricas, porém, não inviabilizaria o ensino, em sala de aula, da história da língua portuguesa falada no Brasil, cabendo ao professor – mais bem informado e melhor preparado a esse respeito – apresentar aos alunos ao menos um resumo das duas correntes teóricas que tratam da constituição do português brasileiro. O que não se pode mais é continuar propagando nas escolas o senso comum de que as contribuições linguísticas dos africanos e seus descendentes restringem-se aos empréstimos lexicais, já que parece ser consenso, mesmo entre os que discordam da transmissão linguística irregular, que as influências desses segmentos para o português brasileiro são mais consideráveis. Conclusão Espera-se, à guisa de se tecer as considerações finais, que – apesar de breves – as reflexões desenvolvidas ao longo destas páginas possam ter servido para fomentar o desejo de se incluir no currículo escolar o estudo das influências linguísticas africanas no português brasileiro, contribuindo para abolir a ideia estigmatizada de que tais influências ficaram restritas ao léxico e procurando, para tanto, compreender melhor, através dos estudos sociolinguísticos que a isto se prestam, suas contribuições fonológicas e morfossintáticas para a constituição da língua que hoje falamos. Durante todo esse repensar, porém, não se negaram as divergências teóricas a respeito do tema, ainda que a linha de raciocínio aqui exposta tenha conduzido à opção por uma das correntes, no intuito de embasar o pensamento norteador do texto. A escolha da teoria da transmissão linguística irregular se deve ao fato de que ela, ao contrário de ter “clara conotação negativa” (NARO & SCHERRE, 2007, p. 140), como afirmam seus opositores, propõe uma justa inclusão do segmento afro-brasileiro e sua inegável participação na cultura linguística nacional, viabilizando a oportunidade de – na contramão das concepções desinformadas e, estas sim, preconceituosas sobre as nossas origens – desenvolver o terreno fértil para a formação de uma identidade positiva a respeito da nossa língua e de nosso povo. No que diz respeito ao ambiente de sala de aula, muita coisa ainda precisa mudar. A aprovação de uma lei que obrigue a inclusão do estudo da história e da cultura afro-brasileira, apesar de ser apenas o primeiro passo, já abriu o caminho para que o sistema educacional possa, de fato, apresentar aos nossos estudantes a significativa contribuição, inclusive no que tange à língua, que os africanos e seus descendentes trouxeram para a nação brasileira. Cabe, porém, às escolas e professores a criação de projetos locais que implementem o que rege a legislação aprovada, facilitando, ao máximo, o acesso dos estudantes às informações que as muitas pesquisas científicas na área das ciências sociais e linguísticas trouxeram nesse sentido, fazendo do conhecimento do nosso passado um instrumento para a compreensão de quem somos hoje. Contudo, para que essas conquistas legais e as implicações positivas que elas podem trazer se efetivem na prática escolar, as instituições de ensino precisam rever suas posturas e práticas. A escola, que, ao longo da história, sempre serviu aos interesses dos grupos dominantes – escondendo muitos fatos e inventando outros tantos –, impedindo o acesso de seus alunos ao capital cultural, numa ação de evidente violência simbólica (cf. BOURDIEU, 1998), depara-se agora com a possibilidade de reparar um dos muitos dos enganos a respeito da participação do negro na história do nosso país. Urge, portanto, que o conteúdo programático seja modificado nas escolas brasileiras com o objetivo de se incluir, na sala de aula de língua portuguesa, uma reflexão sobre a história do português brasileiro, destacando as relevantes contribuições linguísticas africanas para sua formação. Convém ressaltar, por fim, a importante participação do professor de língua portuguesa na mudança dos rumos da concepção dos alunos acerca de quem somos nós linguisticamente. Paulo Freire, renomado educador e crítico da educação brasileira, afirma que a sala de aula deve ser um espaço de constante transformação, mas enfatiza que esse processo transformador deve envolver educadores e educandos, propiciando as condições para que ambos assumam-se como seres sócio-históricos, pensantes e realizadores, que buscam transformar-se em meio à comunhão de conhecimentos e de vida que a educação visa promover (cf. FREIRE, 1995). Nessa perspectiva, o professor precisa sair da inércia intelectual, em busca do aperfeiçoamento cada vez mais necessário ao papel de educador que ele exerce. Assim, para se incluir as influências linguísticas africanas no português brasileiro na práxis do ensino de língua portuguesa, não se pode mais pensar num professor que esteja limitado ao conhecimento das regras da gramática normativa, sendo essencial que ele tenha acesso a um sólido arcabouço teórico a respeito do assunto. Referências ANDRADE, Patrícia Ribeiro de. 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