IDEALISMO ESPECULATIVO E O OBJETO DA FILOSOFIA CURSO DE EXTENSÃO 17/10/2011 - Prof. Ricardo Pereira Tassinari TEXTO BASE1 ENCICLOPÉDIA DAS CIÊNCIAS FILOSÓFICAS EM EPÍTOME (1930) PREFÁCIO À 1ª EDIÇÃO [1917] A necessidade de fornecer aos meus ouvintes um fio condutor para as minhas lições filosóficas é a primeira razão que me induz a publicar esta sinopse de todo o conjunto da Filosofia mais cedo do que tinha pensado. A natureza de um compêndio exclui não só uma exposição exaustiva das ideias segundo o seu conteúdo, mas também restringe em particular a exposição da sua dedução sistemática, a qual deve conter o que outrora se entendia por demonstração e que é indispensável a uma Filosofia Científica. O título devia mostrar, em parte, o âmbito de um todo e, em parte, a intenção que temos de reservar os pormenores para o ensino oral. Num epítome, porém, espera-se mais apenas uma ordenação e disposição exteriormente conformes ao fim que se propõe, quando o conteúdo é já suposto e conhecido e cuja exposição se deve fazer com uma concisão intencional. A presente exposição não se encontra neste caso; propõe, antes, uma nova elaboração da Filosofia segundo um método que, como espero, será reconhecido como o único, idêntico ao conteúdo […]2 INTRODUÇÃO §1 A Filosofia não tem a vantagem, de que beneficiam as outras ciências, de poder pressupor os seus objetos como imediatamente dados pela representação [Vorstellung], e de pressupor também como já admitido, para o início e o ulterior desenvolvimento, o método do conhecer. Tem, sem dúvida, os seus objetos em comum com a religião. Ambas têm a Verdade por objeto e, certamente, no mais elevado sentido — enquanto Deus, e só Deus, é Verdade. Além disso, ambas se ocupam do âmbito do finito, da Natureza e do espírito humano, da sua relação reciproca e a Deus, enquanto sua verdade. A Filosofia pode, pois, e deve mesmo pressupor um trato [Bekanntschaft] com os seus objetos, como também um interesse pelos mesmos; — e justamente porque a consciência, na ordem do tempo, 1 2 HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epítome – Volume I. Lisboa: Edições 70, 1988. Podem haver modificações nos textos citados. Sobre “Método” e “Conteúdo”, de forma mais aprofundada, ver §§ 237 a 243 1 forma primeiro para si representações dos objetos do que conceitos dos mesmos, o espírito pensante só através de representações e pela sua aplicação a elas é que progride para o conhecimento e para o Conceito. Mas, na consideração pensante, depressa se torna manifesto que nela se encerra a exigência de mostrar a necessidade (Notwendigkeit) do seu conteúdo e de demonstrar o ser e as determinações dos seus objetos . Aquele trato com estes aparece, pois, como insuficiente, e o fazer ou permitir pressupostos e asserções, como inadmissível. Mas surge assim, ao mesmo tempo, a dificuldade de fazer um começo, porque um começo, enquanto algo de imediato, forma ou antes, ele próprio é um pressuposto. §2 A Filosofia pode, antes de mais, definir-se em geral como a consideração pensante dos objetos. Se é verdade (e sê-lo-á certamente) que o homem se distingue do animal pelo pensar, então todo o humano é [especificamente] humano por e somente por ser produzido pelo pensar. No entanto, uma vez que a Filosofia constitui um modo peculiar do pensamento, modo esse pelo qual ele se torna conhecer e conhecer conceptual, o seu pensar [da Filosofia] terá então igualmente uma diferença em relação ao pensamento ativo em tudo o que é humano, pensamento que suscita a humanidade do humano, porquanto é idêntico ao mesmo e o pensar é em si um só. Esta diferença religa-se ainda ao fato de que o conteúdo humano da consciência, constituído pelo pensar, não aparece logo na forma do pensar, mas como sentimento, intuição, representação — formas que há que distinguir do pensar enquanto forma. §6 […] é igualmente importante que a Filosofia tome nota de que o seu conteúdo não é mais nenhum [outro] senão o que originariamente se produziu e se produz no domínio do Espírito vivo, conteúdo que se tornou Mundo, mundo externo e interno da consciência — isto é, de que o seu conteúdo é a Efetividade (Wirklichkeit). Chamamos experiência (Erfahrung) à primeira consciência deste conteúdo. Uma inteligente consideração do mundo distingue já, no amplo reino da existência externa e interna, o que é unicamente aparência/fenômeno (Erscheinung), fugaz e insignificante, e o que em si merece verdadeiramente o nome de Efetividade. Visto que a Filosofia se distingue, só pela forma, de todo o outro tornar-se-consciente (Bewusstwerden) deste único e mesmo conteúdo, é, pois, necessária a sua concordância com a efetividade e a experiência. Mais ainda, esta concordância pode considerar-se como uma pedra-de-toque, pelo menos extrínseca, da verdade de uma filosofia, da mesma maneira que se deve olhar como Fim Último da Ciência [Filosófica] o produzir, mediante o conhecimento de tal concordância [da Filosofia com a Efetividade e a experiência], a reconciliação da razão autoconsciente com a razão que simplesmente é, com a efetividade. 2 § 10 O pensar do modo filosófico de conhecimento concebido segundo a necessidade (Notwendigkeit) e também segundo a sua capacidade de conhecer os objetos absolutos, precisa também de se justificar. Mas um tal juízo constitui já em si um conhecer filosófico que, por conseguinte, só tem lugar dentro da Filosofia. Uma explicação preliminar seria, pois, afilosófica e não poderia ser senão um tecido de pressupostos, de asserções e raciocinações — isto é, de afirmações acidentais, às quais com igual direito se poderiam opor as contrárias. § 17 Para o começo que a Filosofia tem de fazer, parece que também ela em geral, como as outras ciências, começa com um pressuposto subjetivo, a saber, deve tomar como objeto de pensamento um objeto particular: como além se tem o espaço [na Geometria], o número [na Aritmética], etc., aqui é o Pensar [o objeto da Filosofia]. Mas é este apenas o ato livre do pensar: colocar-se no ponto em que ele [o Pensar] é para si mesmo e, portanto, [de que o Pensar] produz e a si mesmo dá o seu objeto. Além disso, o ponto de vista que assim aparece como imediato deve tornar-se [o resultado] no interior da Ciência [Filosófica] e, claro, seu resultado último, no qual ela atinge de novo o seu começo e a si retorna. A Filosofia revela-se deste modo como um círculo que a si regressa, que não tem começo algum no sentido das outras ciências, de modo que o começo tem só uma relação ao sujeito, como aquele que quer decidir-se a filosofar, e não à Ciência [Filosófica] enquanto tal. — Ou, o que é o mesmo, o conceito da Ciência [Filosófica] e, por conseguinte, o primeiro — e por ser o primeiro, contém a separação que faz do pensar objeto de um sujeito (por assim dizer, exterior) filosofante — deve ser compreendido pela própria Ciência [Filosófica]. Tal é justamente o seu[*] único fim, a sua[*] ação e meta: atingir o conceito do seu conceito e, assim, o seu retorno e pacificação. [*Da Ciência Filosófica.] § 18 Como de uma filosofia não é possível fornecer uma representação geral preliminar, pois só o todo da Ciência [Filosófica] é a representação da Ideia [veja § 14 abaixo], assim também só a partir desta se pode conceber a sua divisão; ela é, como esta [Ideia], da qual se tira, algo de antecipado. A Ideia, porém, revelase como o pensar absolutamente idêntico a si mesmo e este, ao mesmo tempo, como a atividade de se pôr perante si a fim de ser para si e, neste outro, estar unicamente em si. A Ciência [Filosófica] divide-se assim em três partes: I. A Lógica, a Ciência [Filosófica] da Ideia, em si e para si; II. A Filosofia da Natureza, como a Ciência [Filosófica] da Ideia, no seu ser-outro; III. A Filosofia do Espírito, como a Ciência [Filosófica] da Ideia, que, do seu ser-outro, a si retorna. 3 […] A representação própria da divisão tem, pois, de incorreto o pôr lado a lado as partes ou ciências singulares como se fossem unicamente imóveis e substanciais na sua diferenciação, como as espécies. § 13 A origem e o desenvolvimento da Filosofia expõem-se na forma peculiar de uma história externa como história desta ciência. Esta configuração dá aos graus de desenvolvimento da Ideia a forma de uma sucessão acidental e, até, de simples diversidade dos princípios e de sua realização nas filosofias. Mas o artífice deste trabalho de milênios é o Espírito vivo, único, cuja natureza pensante consiste em trazer à sua consciência aquilo que ele é e, após disto ter feito o seu objeto, em ao mesmo tempo se sobreerguer e constituir em si um grau mais alto. A história da Filosofia mostra, em parte, nas filosofias, que parecem diferentes, apenas uma única Filosofia em diversos estádios de desenvolvimento e, em parte, que os princípios particulares, dos quais cada um subjaz a um sistema, são unicamente ramos de um só e mesmo todo. A filosofia que é a última segundo o tempo é o resultado de todas as filosofias precedentes e deve, portanto, conter os princípios de todas; se for, pois, verdadeiramente uma filosofia, ela é a mais desenvolvida, a mais rica e concreta. § 14 O mesmo desenvolvimento do Pensar, que é exposto na história da Filosofia, se exibe na própria Filosofia, mas liberto daquela exterioridade histórica, puramente no elemento do Pensar. O pensamento livre e verdadeiro é em si concreto e, por isso, é idéia e, em toda a sua universalidade, é a Ideia ou o Absoluto. A Ciência [Filosófica] do mesmo é essencialmente sistema, porque o verdadeiro como concreto só é enquanto se desdobra em si e se recolhe e mantém na unidade, isto é, como totalidade, e só mediante a diferenciação e a determinação das suas diferenças são possíveis a necessidade das mesmas a liberdade do todo. Um filosofar sem sistema nada de científico pode ser; além disso, que um tal filosofar para si exprima antes um modo de sentir subjetivo é, segundo o seu conteúdo, acidental. Um conteúdo tem a sua justificação só como momento do todo, fora dele, porém, constitui um pressuposto infundado ou uma certeza subjetiva; muitos escritos filosóficos limitam-se a deste modo expressar apenas convicções e opiniões. – Por sistema entende-se, falsamente, uma filosofia que tem um princípio limitado e diferente de outros; é, pelo contrário, princípio de verdadeira filosofia conter em si todos os princípios particulares. 4