MODELO CIENTÍFICO E METÁFORA POÉTICA: A REDESCRIÇÃO DA REALIDADE EM LUCRÉCIO E LUÍS MIGUEL NAVA Carla Miguelote∗ RESUMO: Esse trabalho analisa as relações entre poesia e ciência no poema Da natureza, de Lucrécio, e na obra poética do português Luís Miguel Nava. Recorremos às reflexões de Paul Ricoeur, que, seguindo Max Black, afirma que o modelo é para a linguagem científica o que a rede metafórica é para a linguagem poética: um instrumento de redescrição da realidade. Isso implica dizer que a metáfora, longe de ser mero ornamento de linguagem, desempenha uma função heurística e integra um processo cognitivo. Nas obras analisadas, modelo e metáfora se aproximam a ponto de criar uma zona indecidível entre poesia e ciência. Lucrécio escreve um tratado de física em linguagem poética. Suas metáforas estão, pois, declaradamente, a serviço da construção de um modelo teórico cujo original é o próprio universo. Por outro lado, na poética de Luís Miguel Nava, observa-se a construção de uma rede metafórica tão bem trançada que se supõe um modelo implícito, submerso, operante no pensamento do escritor. Tratar-se-ia de um modelo da interação entre o corpo humano e o universo. PALAVRAS-CHAVE: Lucrécio; Luís Miguel Nava; modelo científico; metáfora. ABSTRACT: This essay analyses the relations between poetry and science in Lucretius’ poem On the nature of things, and in the poetic work of the Portuguese Luís Miguel Nava. We invoke the reflections of Paul Ricoeur, who, following Max Black, affirms that the use of models in scientific language resembles the use of metaphors in poetic language: both redescribe reality. This implies the understanding that metaphor, more than mere ornament, performs a heuristic function and integrates a cognitive procedure. In the analysed works, model and metaphor are so blended that they create an undecided zone between poetry and science. Lucretius writes a treaty on physics in poetic language. His metaphors are, therefore, declared to serve the construction of a theoretical model whose original is the universe itself. On the other hand, in Luís Miguel Nava’s poetry, we observe the construction of a metaphorical web so well weaved that one can suppose an implicit or submerged model operating in the writer’s thought. It would be the model of the interaction between the human body and the universe. KEYWORDS: Lucretius; Luís Miguel Nava; scientific model; metaphor. ∗ Doutoranda em Literatura Comparada da Universidade Federal Fluminense (UFF). MODELO CIENTÍFICO E METÁFORA POÉTICA: A REDESCRIÇÃO DA REALIDADE EM LUCRÉCIO E LUÍS MIGUEL NAVA Este artigo se propõe a realizar uma dupla tarefa. Por um lado, aproximar Luís Miguel Nava e Lucrécio. Por outro, aproximar poesia e ciência. No primeiro caso, lidamos com épocas e configurações históricas significativamente distintas. No segundo caso, lidamos com duas modalidades de discurso frequentemente consideradas opostas. Ora, a aproximação dos dois poetas passa justamente pelo embaralhamento, que ambos promovem, das fronteiras desses gêneros discursivos. Portanto, o diálogo entre os dois requer que se confronte a definição de ciência e de poesia na antiguidade greco-romana à sua reelaboração moderna, mas para observar, por contraste, como cada um a seu modo escapa dos limites genéricos então definidos. Lucrécio escreveu o poema Da natureza no século I antes de nossa era, com o propósito declarado de transpor para a linguagem poética a filosofia de Epicuro, herdeiro do atomismo de Demócrito e Leucipo. O pensamento de Epicuro, filósofo médico, tinha por finalidade curar os males da alma e servir como via de acesso à felicidade. Segundo o filósofo, os homens eram infelizes porque, não conhecendo a verdadeira natureza das coisas, padeciam dos temores fomentados pela crença religiosa. A física seria, portanto, uma disciplina preliminar a possibilitar os fundamentos da ética e conduzir a uma vida feliz. Seguindo a doutrina epicurista, o poema de Lucrécio é também um tratado de física com profundas implicações éticas. É difícil circunscrever o poema Da natureza nas categorias definidas por Aristóteles na Poética. Difícil mesmo afirmar que Aristóteles teria considerado esse texto um poema, e o seu autor, um poeta: [S]e alguém compuser em verso um tratado de Medicina ou de Física, esse será vulgarmente chamado “poeta”; na verdade, porém, nada há de comum entre Homero e Empédocles, a não ser a metrificação: aquele merece o nome de “poeta”, e este, o de “fisiólogo”, mais do que de poeta. (ARISTÓTELES, 2003: 104) Lucrécio aparece como um poeta atípico dentro das letras romanas. Não se aproxima dos seus contemporâneos (Propércio - que traçava sua trama erótica e amorosa - e Catulo - que propunha uma urbanização da poesia a partir de uma crítica à épica), nem se aparenta aos poetas da geração imediatamente posterior (Virgílio - que promove, com a Eneida, o elogio do Império de Augusto - e Horácio - que exercita sua sátira a partir de Pérsio e Juvenal). Como bem observa Rodrigo Petrônio: No lugar de heróis, deuses, adivinhos e imperadores Lucrécio pôs os átomos, as forças de contração e repulsão, as relações do espírito com a matéria, o vácuo, o acaso, os astros, as vidas vegetal, animal e mineral, o universo em sua mudança contínua [...]. (PETRÔNIO, 2006) Nem épico, nem trágico, nem lírico, o poema de Lucrécio não encontra senão uma classificação à margem do sistema aristotélico de gêneros poéticos, caracterizado como reflexivo ou filosófico. Entretanto, apesar das dificuldades de classificação, o nome de Lucrécio atravessou a história colado à designação de um dos maiores poetas da língua latina. O poeta português Luís Miguel Nava escreveu nas últimas décadas do século XX. Portanto, sua obra se insere já numa nova retórica dos gêneros, posto que à tríade aristotélica épico / lírico / dramático a modernidade superpõe a dicotomia prosa narrativa-dramática / poesia lírica (COMBE, 1989). Sob a ótica desse novo sistema dualista, o poema em prosa, do qual Nava faz largo uso, se inscreve como uma forma impura. Porém, se a obra naviana ocupa no panorama da poesia contemporânea um lugar bastante particular, isso não se deve ao entremear entre lirismo e narrativa, de resto levado a cabo por inúmeros outros poetas. A esse respeito, o que lhe confere maior singularidade vem de um cunho reflexivo-ensaístico, tal como nos dão conta alguns indícios discursivos: “O problema que daqui decorre é o de saber [...]”; “Um outro passo a dar nos meandros desse raciocínio é o que nos leva a pôr a hipótese de [...]” (NAVA, 2002: 175). Além disso, quando se faz presente a dimensão narrativa, o que vem à cena, no lugar de personagens, são certas imagens que se aproximam já de conceitos: a pele, as vísceras, o coração, a memória, o contínuo reverter entre a superfície e a profundidade dos corpos. Traçando um paralelo, diremos que, se Lucrécio descreve o movimento dos corpos no universo, Nava descreve o movimento do universo nos corpos. Lucrecio pensa o mundo. Nava pensa as condições de conhecimento do mundo. Ambos estão em busca de uma ciência, embora distantes de muitos paradigmas científicos. Lucrécio não os assume porque escreve antes do desenvolvimento da ciência moderna. Tendo na religião o maior inimigo, Lucrécio recusa a narrativa religiosa como resposta ao problema da origem e persegue uma atitude questionadora da natureza, buscando no mundo físico a explicação das coisas existentes. Porém, se investe uma empreitada que se encontra na base do conhecimento científico, está ainda longe dos critérios modernos de objetividade e verificação. Nava, por sua vez, vivendo num mundo saturado pelos critérios de objetividade, têm justamente em alguns preceitos científicos modernos os seus maiores inimigos. Nesse sentido, seu principal questionamento diz respeito à “possibilidade de um objeto, enquanto entidade separada dum sujeito, poder ser por este conhecido, seja este objeto o mundo ou o próprio eu” (NAVA, 2004: 220). Na perspectiva naviana, o esbatimento da dicotomia sujeito/objeto revela-se como condição do conhecimento. No final das contas, as únicas semelhanças que lhe restam quanto ao modelo cientificista parecem ser a vontade de conhecer e o rigor com que empreende seu projeto. De fato, se não nos afastarmos de uma visão mais usual da ciência e da poesia, será difícil entender como ambos os poetas entremeiam discurso científico e poético. Usualmente, considera-se que a linguagem da ciência é denotativa e referencial; a da poesia, conotativa e não-referencial. Do mesmo modo, admite-se facilmente que a ciência é produto da razão e a ela se dirige; que a poesia é fruto da imaginação e para ela se volta. Para tentar entender o modo como cada um desses dois poetas entrelaça discurso científico e discurso poético, será necessário considerar que a ciência também depende da imaginação e também se desenvolve em linguagem metafórica; que a poesia também recorre à razão e sua linguagem também é referencial, tratando-se apenas de um outro tipo de referência. Nesse sentido, recorremos às reflexões de Paul Ricoeur, que, seguindo Max Black, afirma que o modelo é para a linguagem científica o que a rede metafórica é para a linguagem poética: um instrumento de redescrição da realidade. Veremos como o poema Da natureza de Lucrécio pode ser entendido como a descrição de um modelo científico. Em seguida, tentaremos mostrar como as metáforas de Nava são construídas sobre um modelo implícito ou subterrâneo, em muitos aspectos semelhante ao modelo explícito de Lucrécio. Daí adviria, aliás, a semelhança entre imagens das duas obras. Na tentativa de entender todas as implicações da metáfora, Paul Ricoeur (2000) traça uma trajetória de suas concepções em disciplinas como a retórica, a semântica e a hermenêutica. As concepções se diferem em função da entidade lingüística tomada como unidade de referência para a definição da metáfora. A retórica toma como unidade de referência a palavra; a semântica, a frase; a hermenêutica, o discurso. A retórica preocupa-se com a forma da metáfora; a semântica, com seu sentido; a hermenêutica, com sua referência. Situando suas pesquisas no nível da hermenêutica, o filósofo interessa-se pelo poder do discurso de referenciar-se a uma realidade fora da linguagem. Ora, afirmar que o discurso metafórico diz algo sobre a realidade esbarra na problemática da aparente não-referencialidade do discurso poético. O filósofo propõe então um novo conceito de referência. No discurso poético, haveria, sim, uma suspensão da referência literal, mas para fazer surgir uma referência de segundo grau, a referência metafórica. E é nesse sentido que a metáfora adquire o poder de redesrever a realidade. O conceito de redescrição justifica-se, segundo Ricoeur, pelo parentesco estabelecido por Max Black entre o funcionamento da metáfora na poesia e o do modelo na ciência. Max Black classifica os modelos científicos em três tipos, os de escala, os analógicos e os teóricos. O caso típico do modelo de escala são as miniaturas tridimensionais de algum objeto material, existente ou imaginado. A coisa real ou imaginada representada pelo modelo é chamada de original. Max Black ressalta que o modelo nem sempre é menor que o original, lembrando, por exemplo, o caso de um modelo muito aumentado de um mosquito. Os modelos de escala reproduzem em um formato manipulável ou acessível alguns aspectos selecionados do original (como ele é, como ele funciona, que leis o governam). Eles nos ajudam a ver como um avião vai funcionar ou como as mudanças de cromossomo acontecem. Trazemos, assim, o remoto e desconhecido (o que é demasiado grande ou demasiado pequeno) para o tamanho de nossa própria estatura mediana. Os modelos analógicos envolvem mudança de meio. Enquadra-se nessa classificação, por exemplo, o modelo hidráulico de um sistema econômico. O modelo analógico é um objeto material que reproduz o mais fielmente possível em algum novo meio a estrutura ou a rede de relações do original. Os modelos teóricos, embora também sejam uma representação da estrutura do original, diferenciam-se dos modelos analógicos e de escala por uma característica fundamental. Ao contrário desses últimos, o modelo teórico não precisa ser construído; basta que seja descrito. Um modelo arquitetônico hipotético ou um modelo analógico imaginário de nada ajudariam a compreender como os originais funcionam. Mas o modelo teórico desempenha sua função heurística na medida em que redescreve a realidade. Por meio da ficção, ele destrói uma interpretação inadequada e abre caminho para uma interpretação mais adequada. Criar um modelo teórico consiste, pois, em introduzir uma nova linguagem, sugerida por uma teoria familiar, mas estendida a um novo domínio de aplicação. Segundo Black, “o coração do método consiste em falar de certo modo” (BLACK, 1972: 229, tradução nossa). Para explicar sua concepção de modelo teórico, o autor toma como exemplo a representação que Maxwell fez de um campo elétrico em termos das propriedades de um fluido imaginário incompreensível. O próprio Maxwell ressalta o caráter imaginário do fluido, e enfatiza a inteligibilidade e a aplicabilidade de sua descrição frente a uma explicação que se valesse apenas de símbolos algébricos. No plano da hipótese, seria mais fecundo operar sobre um objeto mais conhecido e familiar. Max Black reconhece que há certa desconfiança quanto ao uso de modelos na ciência. Alguns argumentam que eles são criados não de acordo com a razão, mas para mero prazer da imaginação. Nessa perspectiva, o uso de modelos seria uma aberração de mentes fracas demais, incapazes de pensar abstratamente sem ajuda de um recurso visual. Outros admitem que haja vantagens em pensar uma teoria científica por meio de um modelo, pois isso evitaria certas complicações e dificuldades, mas consideram o método mero atalho. Ou seja, acreditam que os mesmos resultados seriam alcançados se, sem o recurso ao modelo, a teoria científica fosse abordada de forma direta (BLACK, 1972: 235). A questão crucial é saber se o emprego de modelos deve ser visto como um substituto para algum outro procedimento ou como um método com seus próprios padrões e princípios. Max Black argumenta que é frequentemente difícil conceber como determinada pesquisa poderia ter sido desenvolvida sem o recurso ao modelo e aposta que o método desempenha um papel insubstituível na investigação científica (BLACK, 1972: 233-236). É nesse ponto que ele propõe considerar a questão a partir de um outro ponto de vista, o da semelhança entre modelos e metáforas. Max Black observa que a questão sobre a autonomia dos modelos é paralela à antiga problemática acerca da tradutibilidade das metáforas. Aqueles que vêem o modelo como uma simples muleta são como aqueles que consideram a metáfora simples decoração ou ornamento (BLACK, 1972: 236). É verdade que Aristóteles apontara a dimensão cognitiva da metáfora, afirmando que ela “produz ensinamento e conhecimento” (ARISTÓTELES apud VASCONCELOS, 2005: 56). Mas também foi o próprio Aristóteles quem abriu caminho para que todo um conjunto de vozes considerasse nula a informação fornecida pela metáfora. Ao afirmar que a palavra metafórica toma o lugar de uma palavra nãometafórica que teria sido possível empregar, Aristóteles assenta as bases do que será a chamada de teoria substitutiva da metáfora. Se o termo metafórico substitui um termo literal ausente que pode ser restituído, dizendo o mesmo, a metáfora tem somente um valor ornamental, decorativo. Max Black opõe-se radicalmente a essa visão: Uma metáfora memorável tem o poder de criar uma relação cognitiva e emocional entre dois domínios separados, usando a linguagem diretamente apropriada a um domínio como uma lente para ver o outro; as implicações, sugestões e valores entrelaçados no uso literal da expressão metafórica nos permitem ver um novo problema de um novo modo. Os significados que daí resultam, as relações criadas entre domínios inicialmente separados, não podem ser previstos anteriormente nem parafraseados posteriormente em prosa. Podemos comentar sobre a metáfora, mas ela não precisa de explicação ou paráfrase. Pensamento metafórico é um modo distintivo de alcançar um insight, e não um ornamento substituto para o pensamento pleno. (BLACK, 1972: 237) É algo muito parecido o que ele diz sobre o papel do modelo na pesquisa científica. Se o modelo fosse invocado após o trabalho de formulação abstrata, ele seria apenas um recurso para a exposição. Mas os modelos memoráveis da ciência são instrumentos especulativos. Promovendo a aproximação de domínios distintos, por uma operação de transferência de suas implicações, o modelo nos ajuda a ver novas conexões e a perceber o que de outro modo seria negligenciado (BLACK , 1972: 237). Max Black alerta, entretanto, para uma limitação na comparação entre modelo e metáfora. Enquanto o modelo consiste em uma rede complexa de enunciados, a metáfora reduz-se, geralmente, a uma breve frase. O correspondente exato do modelo na linguagem poética seria, portanto, a metáfora continuada. Nesse sentido, é interessante observar o que diz o filósofo inglês Stephen Toulmin: De fato, uma grande virtude de um bom modelo é que ele sugere futuras questões, levandonos para além do fenômeno de partida, e conduzindo-nos a formular hipóteses que se revelam experimentalmente férteis. [...] Certamente, é sua sugestividade e desdobrabilidade sistemática que faz de um bom modelo algo mais que uma simples metáfora. (TOULMIN apud BLACK, 1972: 239, tradução nossa) Seguindo as pistas de Max Black, Paul Ricoeur destaca que o que Toulmin chama de “‘desdobrabilidade sistemática’ do modelo tem seu equivalente em uma rede metafórica e não em uma metáfora isolada” (RICOEUR, 2000: 371). Com isso, Ricoeur pretende dizer que uma rede metafórica pode ter, também, sugestividade e desdobrabilidade maiores que uma simples metáfora. Vejamos, por ora, a desdobrabilidade do modelo de Lucrécio. Seguindo a doutrina epicurista, Lucrécio explica-nos que o universo é composto de átomos e vazio. O vazio é a imensidão infinita do espaço. Ele nunca veio a ser nem nunca deixará de ser, é eterno. Os átomos são partículas minúsculas, fisicamente indivisíveis, sólidas, indestrutíveis e, portanto, eternas também. Esses átomos estão em movimento constante, entrechocando-se no vazio infinito. Desses movimentos atômicos, formam-se, ao acaso, por agregação, corpos compostos, provisórios, que podem, agregando-se a outros corpos compostos, ao acaso, formar amontoados maiores. Já se disse que o filósofo pensa e demonstra, enquanto o poeta vê e mostra. De fato, Lucrécio, que é também poeta, não se detém na explicação filosófica do universo. Ele lança mão de uma imagem e mostra-nos como vê o mundo: Do que acabo de dizer temos nós sempre presente, ante os olhos, o traslado e a imagem. Observa os raios de sol que entram dando sua luz na obscuridade de uma casa: verás que na própria luz dos raios se misturam, de modos vários, numerosos corpos diminutos, e, como se fosse em eterna luta, combatem, dão batalhas, por grupos certos se guerreiam e não há pausa, agitados como estão pelos encontros e pelas separações freqüentes. Podes imaginar por isto o que será a perpétua agitação no vago espaço dos elementos das coisas na medida em que um pequeno fato pode dar idéia de grandes coisas, e elementos para seu conhecimento. (LUCRÉCIO, 1988: 96) Sendo os átomos minúsculos, e portanto invisíveis a olho nu, e o universo infinito, também inapreensível pela visão humana, Lucrécio recorre a um domínio mais familiar para explicar o movimento atômico. A sugestividade desse modelo se comprova em pesquisas científicas posteriores. O comportamento de partículas de poeira num raio de sol está também “na base do trabalho de Thompson sobre o elétron e no de Perrin sobre o movimento browniano” (JOHNSON; WILSON, 2007: 146, tradução nossa). O físico Richard Feynman colocou a seguinte pergunta: “Se, em algum cataclisma, todo o conhecimento científico fosse destruído, e só uma sentença passasse para as novas gerações de criaturas, que declaração conteria o máximo de informação no mínimo de palavras?” (FEYNMAN apud JOHNSON; WILSON, 2007: 146, tradução nossa). Ele conclui que essa sentença deveria conter a hipótese atômica e poderia ser dita mais ou menos assim: todas as coisas são feitas de átomos – pequenas partículas em perpétuo movimento. Segundo Feynman, essa breve sentença poderia se desdobrar em uma enorme quantidade de informações sobre o mundo, bastando para isso que a imaginação e o pensamento se aplicassem a ela. Levando em conta as considerações de Feynman, admite-se que a hipótese atômica é, por si só, rica em desdobramentos. O que cabe sublinhar é que talvez ela não tivesse perdurado até a modernidade se não fosse a contribuição de Lucrécio. Pesquisadores que se debruçam sobre os primeiros passos da ciência moderna argumentam que a reaparição e a persistência do atomismo não se devem mais a injunções da ordem do raciocínio, da observação e da evidência do que ao encanto da apresentação de Lucrécio, com seu apelo aos sentidos e à imaginação (JOHNSON; WILSON, 2007: 140). Recorrendo a procedimentos literários, Lucrécio foi capaz de expor um modelo de universo prenhe de implicações científicas. Embora não tenha sido mencionado por Max Black, o poema Da natureza pode ser evocado como um exemplo da integração dos procedimentos cognitivos na literatura, nas ciências humanas ou exatas. Afinal, com sua comparação entre modelos e metáforas, o que o autor pretendia era mostrar que o pensamento, científico ou literário, é sempre uma questão de imaginação. Vejamos agora o funcionamento da metáfora em Nava. Alguns críticos vêm apontando que a obra de Luís Miguel Nava é marcada, do início ao fim, pela recorrência sistemática de certas palavras, o que lhe confere certa unidade. Ricardo Vasconcelos (2003), autor de uma dissertação de mestrado sobre o poeta, fez uma contagem dos lexemas mais recorrentes. Destaco, aqui, apenas aqueles que têm mais de 50 recorrências (sua obra tem um total de 166 poemas): céu (55), coração (65), corpo (61), espírito (50), mar (88), memória (82) e pele (80). Vasconcelos ressalta também que essas palavras são, geralmente, focos de enunciados metafóricos. Obviamente o significado dessas metáforas não são sempre os mesmos, pois, embora a palavra foco se repita, o quadro de referência a que ela vem associada alterna-se a cada poema. A leitura atenta, entretanto, vai criando uma sedimentação dos diversos significados suscitados pelas imagens criadas. Para exemplificar essa sedimentação de significados, escolho a recorrência da palavra memória em dois poemas, um do primeiro livro e um do último. No poema “Apenas a folhagem”, do primeiro livro (de 1979), lê-se: “Da árvore encarnada, meio dentro da memória, apenas a folhagem salta pelos olhos e se espalha pelo rosto [...]. As raízes entram-lhe no sangue [...], não tarda que penetrem pela terra a cujos intestinos vão buscar com que saciar-lhes os olhos – as visões ascendem tumultuosamente, como seiva a ferver” (NAVA, 2002: 50). Há nesse funcionamento da memória algo de vulcânico, que se retoma no poema “O abismo”, do último livro (de 1994), onde se diz de “uma memória onde fulgura a lava dos sentidos que entram em atividade” (NAVA, 2002: 249). Como diz Vasconcelos, “o leitor é posto em contato com uma língua própria, e a sistemática exposição a ela permite-lhe um seu maior domínio” (VASCONCELOS, 2005: 75). Ou seja, o aprendizado dessa língua própria não se dá na leitura de cada enunciado metafórico isolado, mas na articulação de todos eles. Ao dominá-la, o leitor acaba por intuir a existência de um modelo subjacente. As reflexões de Max Black podem lançar uma luz também sobre o que estou tentando dizer. O autor propõe considerar os casos em que temos “um modelo implícito ou submerso operando no pensamento de um escritor” (BLACK, 1972: 239, tradução nossa). A fim de explicar esse procedimento, Black recorre ao que Stephen C. Pepper designa como metáfora raiz: O método em princípio parece ser este: um homem desejando entender o mundo procura uma pista para sua compreensão. Ele assenta em alguma área do senso comum e tenta entender outras áreas nos termos dessa. A área original se torna sua analogia básica ou metáfora raiz. Ele descreve o melhor que pode as características dessa área, ou discrimina sua estrutura. Uma lista de suas características estruturais constitui seus conceitos básicos de explicação e descrição. (PEPPER apud BLACK, 1972: 239, tradução nossa) Em Nava, parece haver um pensamento implícito ou submerso. Não se pretende com isso dizer que seu universo metafórico parte de um método racional e aplicado como o descrito por Pepper. Mas de algum modo, pressente-se que há alguns pressupostos básicos a guiar a construção de toda a obra do poeta. Um deles é o de que tudo tem corpo. Com efeito, grande parte de suas metáforas consistem na aproximação dos domínios corpóreo e incorpóreo. E é aí que se trava a proximidade com Lucrécio. No universo em que só existem átomos e vazio, aquilo a que chamamos de alma só pode ser também um composto de átomos. Segundo Lucrécio, se a alma diferencia-se do corpo, é porque é composta por átomos mais sutis. Se a hipótese atômica foi empiricamente comprovada, nada foi comprovado ainda, e talvez nunca seja, acerca da existência e da materialidade da alma. Isso não está em jogo aqui. Pouco importa que a corporeidade da alma (ou da memória) não seja literalmente verdadeira. Basta que seja metaforicamente verdadeira. E a verdade de uma metáfora talvez possa se medir por sua sugestividade e desdobrabilidade, por sua capacidade de atingir, de certo modo, a realidade, redescrevendo-a. Para terminar com as palavras de António Candido Franco, referindo-se a Luís Miguel Nava, diremos que “saímos da poesia [...] com a noção de que a realidade da metáfora é tão viva que transforma e aprofunda a nossa percepção do real fixo” (FRANCO, 2002: 24). Recebido em outubro de 2009 Aprovado em novembro de 2009 REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Poética. Tradução, prefácio, introdução, comentário e apêndices de Eudoro de Sousa. 7. ed. Lisboa: Imprensa nacional – Casa da Moeda, 2003. BLACK, Max. 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