TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES SURDOS: FRONTEIRAS E TERRITÓRIOS. FAVORETO DA SILVA, Rosane Aparecida – SEED-PR e PPGE/UFPR [email protected] Eixo Temático: Comunicação e Tecnologia Agência Financiadora: Não contou com financiamento Resumo A Educação de Surdos tem sido marcada por práticas clínico-terapêuticas que colocam em segundo plano os aspectos pedagógicos; apesar disso ela rompe com o discurso da Educação Especial e passa a situar-se no campo que alguns teóricos têm denominado de Estudos Surdos. No ano de 2007, durante o desenvolvimento do Curso de Especialização em Tecnologias em Educação/PUC-RJ, investigou-se o uso das tecnologias de informação e comunicação em um Curso de Licenciatura (Letras/Libras) ofertado à distância; constatandose que as dificuldades apresentadas pelos alunos surdos foram semelhantes às dos demais alunos. A partir do resultado da investigação problematizam-se as demarcações de território e fronteiras que situam os sujeitos surdos ora no campo dos anormais, ora num campo em que não se consegue distingui-los dos que ouvem. Palavras-chave: Educação à distância. Tecnologias de informação e comunicação. Formação de professores. Educação de Surdos. Língua Brasileira de Sinais. Introdução Este artigo toma como objeto a participação de alunos surdos em cursos de formação de professores na educação “à distância”. Começa por situar o modo de olhar para a pessoa com surdez, mostrando brevemente algumas das diferenças entre a perspectiva clínicoterapêutica e a perspectiva dos Estudos Surdos. Em seguida, é apresentado o contexto institucional (Decreto Lei e políticas públicas) da criação e oferta do Curso de Letras Libras, à distância, para a formação de pessoal qualificado para trabalho no entorno à educação de surdos: professores e instrutores surdos, bem como tradutores e intérpretes de Libras/Língua Portuguesa. A partir de um trabalho de investigação cujo resultado indica que o tratamento diferenciado – via tecnologias assistivas – para os sujeitos surdos nestes cursos ofertados na 3402 modalidade EaD não é necessário, o artigo convida a refletir sobre modos de romper as fronteiras que delimitam a construção de uma identidade pautada em um déficit biológico. O lugar de onde se olha e aquilo que se vê. “Considera-se pessoa surda aquela que, por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais - Libras. ” (BRASIL, 2006) A definição acima, retirada do Decreto Federal Nº. 5626/05, como é característico de quase todas as definições, não revela a história e luta que fazem parte da construção da identidade do sujeito surdo; ela nada mostra dos fatos e ações que marcaram as concepções e representações de surdos e surdez, influenciando significativamente a vida dessas pessoas, em particular a sua vida escolar e o modo como puderam ter acesso aos conhecimentos. Os surdos quase sempre foram vistos e tratados como doentes e anormais1, vivendo em clausuras. A partir da década de 70, ao menos em discursos oficiais e acadêmicos, deixaram de ser vistos como doentes e passaram a ser tratados como deficientes que necessitam de reabilitação. Desta forma, sua vida escolar passa por práticas clínicoterapêuticas centradas em exercícios e treinamento para expressão da fala e compreensão através de leitura labial, tudo isso quase sempre em oposição e em detrimento dos conteúdos das disciplinas escolares. Neste contexto, o método de ensino para educar pessoas surdas era predominantemente oral e, durante o período escolar, esses indivíduos, em sua maioria, ficavam submetidos àquilo que hoje denominamos de 'práticas de correção do corpo' e 'reabilitação da fala', tudo com o intuito de produzir surdos aceitáveis perante a sociedade. Não é de estranhar que tais práticas tenham levado àquilo que é denominado como “o fracasso escolar dos surdos”. Embora antiquadas e já fartamente criticadas por diversos estudiosos, tais concepções e práticas ainda estão presentes em nossa sociedade, até mesmo em algumas escolas providas com recursos públicos. Essa permanência das práticas ultrapassadas acontece em oposição ao movimento que busca o reconhecimento desse grupo 1 A palavra ‘anormal’ é utilizada tendo como referência Michel Foucault (2001), tal como utilizado por Veiga-Neto (2001) quando se refere aos anormais para designar os sindrômicos, deficientes, monstros e psicopatas (em suas variadas tipologias), os surdos, cegos, os aleijados, rebeldes, os estranhos, GLS, os “outros”… 3403 como uma minoria lingüística e cultural e tenta retirar o debate sobre a educação de surdos do território discursivo da Educação Especial (ainda fortemente permeado por práticas clínicas e reabilitadoras). (SKLIAR, 2005; LOPES, 2007, FERNANDES, 2003). “A surdez é uma grande invenção”, como diz Lopes (2007), destacando que dentro de várias narrativas produzidas em distintos campos discursivos – clínicos, religiosos, educacionais, lingüísticos, jurídicos, etc – constrói-se culturalmente a surdez para além da materialidade de um corpo. Lopes (2007, p. 08) complementa: “toda escolha que fazemos e as justificativas que lhe damos são culturais, mas nem toda interpretação feita sobre a surdez está sustentada em uma base antropológica.” Atualmente, pesquisadores como Skliar (2005) e Lopes (2007), compreendendo a surdez como um importante marcador cultural tem tratado e discutido a surdez dentro de um campo afastado daquele da Educação Especial: o campo dos Estudos Surdos. Skliar (2005, p. 29) salienta que: Os Estudos Surdos em Educação podem ser pensados como um território de investigação educacional e de proposições políticas que, através de um conjunto de concepções lingüísticas, culturais, comunitárias e de identidades, definem uma particular aproximação – e não uma apropriação – com o conhecimento e com os discursos sobre a surdez e o mundo dos surdos. Dentro deste enfoque, algumas ações tem sido implementadas em âmbito federal e estadual, em atendimento ao Decreto Federal Nº 5626/05, que regulamenta a Lei Federal Nº 10. 436/02, a qual dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais e regulamenta também o artigo 18 da Lei Federal Nº 10. 098/00 que dispõe sobre a acessibilidade de pessoas com necessidades especiais. Tais ações não tratam apenas de questões linguísticas e sim, de acordo com Skliar (1999), podem ser definidas como uma oposição aos discursos e as práticas clínicas e hegemônicas e , também, como reconhecimento político da surdez como diferença. Um curso de graduação à distância e a aproximação dos sujeitos. Entre os documentos oficiais de relevância que estabelecem diretrizes para a Educação de Surdos está o Decreto Federal Nº. 5626/05 que dispõe, entre outras coisas, sobre a formação e a certificação de professor e instrutor surdo, além de tradutor e intérprete de Libras. Esta política pública resultou em ações como o Curso de Graduação de Licenciatura 3404 em Letras/Libras, realizado inicialmente à distância, sendo que, atualmente este curso é ofertado também presencialmente. A educação a distância também está em consonância com políticas públicas estaduais e federais, pois o governo brasileiro, através da Secretaria de Educação à Distância/MEC, tem investido e induzido ações que promovam o uso de novas tecnologias, alegando a democratização do ensino superior e a necessidade de expansão e interiorização da oferta de cursos e programas de educação superior pelas universidades públicas. Desta forma, a Educação à Distância (EaD) é tida como uma modalidade de ensino desejável para atender às antigas e novas demandas educacionais. O Curso de Graduação em Letras Libras em EaD foi implantado no ano de 2006, em nove (09) pólos federais2, somente para a turma de Licenciatura, sob a coordenação geral da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Em 2008 passa a ser ofertado com turmas de Licenciatura e Bacharelado em quinze (15) pólos federais3, totalizando 950 vagas. Ou seja: atualmente, o Curso de Graduação em Letras Libras conta com 1450 alunos, 950 que iniciaram o curso este ano, somadas às 500 que iniciaram em 2006. A turma de Bacharelado é destinada preferencialmente aos ouvintes com a finalidade de formação de tradutores e intérpretes de Libras/Língua Portuguesa; e a turma de Licenciatura é destinada preferencialmente aos instrutores surdos para formação de professores para o ensino da Libras. As ações inovadoras, como este Curso e o fato de ele ser ofertado à distância, merecem acompanhamento crítico e proporcionam reflexões que podem contribuir para o debate no âmbito dos Estudos Surdos. Sendo assim, considera-se relevante problematizar tanto o perfil quanto a formação dos profissionais oriundos de cursos na modalidade de ensino à distância; problematizar tendo-se em vista as formas do pensar e fazer docente e discente mediado pelas tecnologias de informação e comunicação (TICs), pois a EaD, conforme MORAN (2008) não é um “fast-food” no qual o aluno se serve de algo pronto. A aprendizagem não é acidental, requer planejamento e uma organização formal do currículo. Moore e Kearsley (2008) salientam que educação à distância é o aprendizado planejado que 2 INES/RJ (Rio de Janeiro-RJ), UNB (Brasília), USP (São Paulo-SP), UFAM (Manaus-AM), UFC (Fortaleza-CE), UFBA (Salvador-BA), UFSM (Santa Maria-RS), CEFET/GO (Goiânia-GO), UFSC (Florianópolis-SC) 3 Belém (UEPA), Belo Horizonte (CEFET-MG), Brasília (UnB), Campinas/SP (UNICAMP), Curitiba (UFPR), Dourados/MS (UFGD), Florianópolis (UFSC), Fortaleza (UFC), Goiânia (CEFET- GO), Natal (CEFET- RN), Porto Alegre (UFRGS), Recife (UFPE), Rio de Janeiro (INES), Salvador (UFBA), Vitória (UFES). 3405 ocorre normalmente em lugar diferente do local de ensino, exigindo técnicas especiais de criação do curso e de instrução, comunicação por meio de várias tecnologias e disposições organizacionais e administrativas especiais. A educação à distância, mediada por computadores e telecomunicações, é uma modalidade de ensino cujo uso vem sendo ampliado pelas agências governamentais. As tecnologias de informação e comunicação (TICs) têm possibilitado ações pedagógicas em tempo e espaço iguais ou diferentes que aqueles do ensino tradicional, ênfase no trabalho presencial ou virtual e, ainda, a possibilidade de acesso à escola até mesmo em lugares distantes. Desta forma, o processo de ensino e aprendizagem tem sofrido modificações que são relevantes para os investigadores interessados no campo educacional, pois de acordo com Delanay-Jacquinot (2008, p. 281): (... ) os instrumentos de informação e/ou comunicação implicam em nova gestão de tempo e espaço, uma nova relação com a presença e ausência: as referências mudaram e os ritmos também. As diversas modalidades do nosso funcionamento cognitivo são diversamente valorizadas segundo as culturas, diversamente representadas segundo os indivíduos e diferentemente solicitadas segundo as máquinas e os recursos expressivos que privilegiam. Na EaD, a sala de aula deixa de ser o único espaço de aprendizagem, muitas vezes até deixando de ser o espaço privilegiado da aprendizagem. As interações se efetivam, na maior parte do tempo, no ambiente virtual e a relação professor e aluno acontece - em tempo real ou não - através das tecnologias uni e bidirecionais, síncronas e assíncronas. No Curso de Graduação em Letras Libras o ambiente informatizado de estudo – ou o ambiente habitado – é o Ambiente Virtual de Ensino-Aprendizagem (AVEA)4, onde é utilizado o software livre Moodle contendo várias ferramentas de comunicação. Deste modo, o uso das TICs torna-se imprescindível no processo de formação adotado neste Curso de Graduação. Juntamente com as TICs, entram em uso as formas midiatizadas de comunicação, que são os recursos tecnológicos da mediação na educação à distância: CDs, DVDs, fitas de vídeo, impressos, softwares, entre outros. 4 Terminologia utilizada em consonância com a UFSC e com os autores Bastos; Alberti. ; Mazzardo (2008) ao optarem por trabalhar a abordagem AVEA (Ambiente Virtual de Ensino-Aprendizagem) e não apenas AVA (Ambiente Virtual de Aprendizagem) para destacar e valorizar o papel do professor no planejamento e implementação das atividades didáticas desses ambientes, realizado através de um processo que se efetive no par ensinar-aprender por ser um ambiente dialógico e problematizador. 3406 Em um curso planejado para funcionar desta maneira, professores e alunos são desafiados a um pensar e fazer pedagógico que se diferencia do usual, pondo em evidência novas formas de ensinar e aprender que podem ser associadas a modelos educacionais que necessitam ainda uma reflexão sobre os papéis para os atores envolvidos nesse processo. A responsabilidade de ensinar deixa de ser função atribuída apenas a uma pessoa, no caso o professor, e passa a ser compartilhada por vários profissionais: professores, monitores e tutores. Este grupo de pessoas deixa de ocupar o lugar de “detentor e transmissor do conhecimento”, passando a ser um grupo que planeja e desenvolve as atividades de modo a proporcionar e promover a aprendizagem através de autonomia e interação dos alunos. Para esses novos sujeitos e atores surgem novos espaços de aprendizagem: os Ambientes Virtuais de Ensino-Aprendizagem – AVEA. Novos tempos e espaços escolares fazem parte da EaD, e portanto, muda-se a forma de organização do trabalho escolar. No Curso Letras Libras este espaço é utilizado através do software livre Moodle. Os autores Bastos, Alberti e Mazzardo (2008) denominam os AVEA como ambientes que possuem uma interface para navegação hipertextual que agrega múltiplas mídias, ferramentas de comunicação, síncrona e assíncrona, com proposta pedagógica, localizados em um único sítio. Desta forma, percebem-se significativas mudanças nas maneiras de ensinar e aprender em cursos na modalidade de EaD, assim como proposto no Curso de Letras Libras. Todas estas mudanças levam a refletir sobre os sujeitos surdos, alunos preferenciais em algumas modalidades deste Curso, que foram e ainda são situados dentro do território discursivo da Educação Especial, sendo assujeitados às práticas com enfoque clínico fazendo parte de um grupo significativo de pessoas tidas como “especiais”. Nestas condições, cabe investigar como estes sujeitos lidam com o aparato tecnológico em um Curso de Graduação recém-criado com finalidades específicas de atendimento a uma nova legislação e a uma demanda social e educacional ainda pouco estudadas. Inquietações, investigação e novas inquietações A partir de algumas inquietações, em dupla com uma colega de curso, foi elaborado um trabalho monográfico (CLASER e FAVORETO DA SILVA, 2007)5 sobre o uso das TICs 5 CLASER, E. A; FAVORETO DA SILVA, R. A. A utilização das TICs no curso de Licenciatura em Letras/Libras, Curitiba, 2007. 65 p, Monografia de Especialização – Departamento de Coordenação Central de Educação a Distância, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 3407 no curso de Licenciatura em Letras Libras – Pólo UFSC em EaD. Este trabalho era um dos requisitos para conclusão de curso da especialização em Tecnologias em Educação pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ) também em EaD. Essa pesquisa, de caráter exploratório e qualitativa, foi realizada com um grupo de dezenove surdos e um ouvinte, tendo como instrumento de coleta de dados um questionário enviado aos alunos do curso com o uso das TICs. No decorrer do curso de Especialização em Tecnologias em Educação algumas constatações surgidas foram muito significativas em relação à pesquisa que estava realizando e as práticas vivenciadas como aluna do curso. Percebi que alguns colegas encontravam dificuldades para prosseguir os estudos devido a fatores relacionados à forma de estudar da EaD, chegando até ocorrer a desistência do curso e tal consideração ganhou relevância ao ser contrastada com o resultado da pesquisa realizada para a monografia, pois se constatou que as dificuldades encontradas pelos alunos do curso de Licenciatura em Letras Libras (no que diz respeito ao curso ser EaD) eram praticamente as mesmas enfrentadas pelos alunos da Especialização. Entre as dificuldades apontadas na investigação, a que mais se destacou – tanto para os alunos surdos, quanto para os ouvintes dos cursos em evidência - foi a falta de autonomia para estudar sozinho em tempo e espaço diferente do professor. A autonomia dos estudantes de EaD é um tema de estudo de pesquisadores desta área, pois esta modalidade de ensino requer novos atores no contexto educacional. Moore e Kearsley (2008, p. 245) afirmam que “o conceito de autonomia significa que os alunos têm capacidades diferentes para tomar decisões a respeito de seu próprio aprendizado”. Portanto, na pesquisa realizada, assim como os alunos da Especialização em Tecnologias em Educação (ouvintes), os alunos do Curso de Letras Libras que participaram da pesquisa (surdos) tinham dificuldades para se adequarem a este novo modo de aprender proporcionado e exigido por cursos realizados na educação à distância. Este resultado levou a questionar sobre a “grande invenção” que é a surdez, bem como a refletir sobre as representações de sujeito surdo construídas no contexto social, educacional e cultural. Se é dentro do discurso da Educação Especial que ainda se costuma situar os surdos, as pesquisas e literatura da área se referem ao uso das Tecnologias de Informação e Comunicação 6 pelos surdos como 'Tecnologias Assistivas'6, termo relacionado à As tecnologias assistivas caracterizam-se por qualquer ferramenta ou recurso utilizado com a finalidade de proporcionar uma maior independência e autonomia ás pessoas com necessidades educacionais, seja por meio de suplemento, manutenção ou devolução de suas capacidades funcionais. (OLIVEIRA e PESSOA, 2002) 3408 acessibilidade. Desta forma, olha-se para esse sujeito tendo em conta uma medida de “incapacidade e anormalidade”. Entretanto, esse discurso da “anormalidade” é contraditório em relação ao que presenciamos no dia-a-dia: cada vez mais os surdos se apropriam das tecnologias, suas ferramentas e recursos; nos espaços de trabalho, estudo, lazer e nas relações sociais. Assim como acontece no Curso de Letras Libras: a formação de educadores surdos está sendo realizada através da apropriação das tecnologias de informação e Comunicação pelos alunos surdos, num ambiente virtual de ensino-aprendizagem. Quem precisa de tecnologias assistivas? Se os alunos ouvintes apresentaram dificuldades semelhantes as dos alunos surdos, situados na Educação Especial, pode-se questionar se os ouvintes também precisam de tecnologias assitivas. Ou, de outro lado: os surdos precisam de tecnologias assistivas? Partindo deste raciocínio, é possível problematizar vários aspectos de como são vistos e situados os surdos. Por exemplo: está disponível na internet7 um tradutor automático, o Player Rybená, que tem a finalidade de converter páginas da Internet - ou texto escrito em português - para a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). No referido site este tradutor automático é apresentado como acessibilidade em Libras. De modo análogo, seria possível pensar os tradutores automáticos que convertem textos da língua inglesa para a língua portuguesa como também fazendo parte do que se chama acessibilidade. Deste modo, todas as pessoas que não possuem competência lingüística em língua inglesa e fazem uso desse tradutor necessitariam de acessibilidade. Vale dizer: seriam tratadas como “deficientes”. Diante do exposto, pode-se salientar que a norma tende a ser invisível, destaca Silva (1997), e é essa invisibilidade da norma que faz com que ela raramente seja questionada ou problematizada: é sempre o desvio que constitui um “problema”. O “outro” é sempre o desvio tornado invisível e “problemático”. Neste caso, não são problematizadas as dificuldades encontradas pelos surdos e sim, os próprios surdos, sendo vistos como o “outro”, um desvio. A investigação realizada, ainda que em caráter preliminar e precário, foi conclusiva em relação ao fato de não haver a necessidade de utilização de “tecnologias assistivas” (destinadas a pessoas com deficiência, ou “necessidades educacionais especiais”) para os surdos fazendo cursos na modalidade EaD. Isso não é necessário tendo em vista que as 7 Sítio: www.rybená.org.br 3409 dificuldades apresentadas pelos surdos são semelhantes àquelas dos demais alunos. Dessa forma, a investigação deve ser retomada e aprofundada, mas parece apontar de modo decisivo para o distanciamento dos Estudos Surdos do território discursivo da Educação Especial. Enfim: além das fronteiras ou entre as fronteiras? Há algum tempo pesquisadores como Castell (2000), Cebrián (1999) e Abreu (2006), entre outros, sinalizam o desaparecimento de fronteiras nacionais e apontam para o surgimento de uma espécie de sociedade virtual. As tecnologias de informação e comunicação proporcionam acesso a outras culturas podendo até ser evidenciado um processo de homegeneização cultural gerado a partir do que circula no ciberespaço. (LEVY, 1999). É possível observar as transformações sociais e educacionais que emergiram através do uso das tecnologias associadas à Internet, por exemplo, nos momentos presenciais do Curso de Letras Libras são realizadas videoconferências em tempo real - que são virtuais onde os alunos podem interagir com os professores e alunos que estão presentes em outras salas de aula, outras cidades ou outros estados. Desta forma, percebe-se neste curso o desaparecimento das paredes e fronteiras da sala de aula quando novas maneiras de ensinar e aprender, entre diversas mudanças, vem acontecendo no campo educacional com uso das TICs. Dentro deste contexto, é pertinente salientar um processo de desterritorialização8 emergente, fato que atinge fortemente a construção da identidade dos sujeitos. Canclini (2009, p. 12) afirma As buscas mais radicais sobre o que significa estar entrando e saindo da modernidade são as dos que assumem as tensões entre desterritorialização e reterritorialização. Com isso refiro-me a dois processos: a perda da relação "natural" da cultura com os territórios geográficos e sociais e, ao mesmo tempo, certas relocalizações territoriais relativas, parciais, das velhas e novas produções simbólicas. Portanto, a partir de processos e transformações sociais que promovem essa desterritorialização, faz-se necessário problematizar as fronteiras construídas acerca e em torno aos sujeitos, neste caso, os surdos; bem como, refletir sobre o “lugar” que têm sido 8 Num primeiro momento entenda-se como o simples desaparecimento das fronteiras instituídas. 3410 colocados. Ao mesmo tempo em que a sociedade caminha para a perda da relação natural da cultura com os territórios geográficos e sociais, os surdos ainda não são percebidos como minoria lingüística, talvez por não haver uma fronteira geográfica que delimite o “lugar” deste sujeito e sua língua – a Libras. Conforme Fernandes (2003), uma das características culturais mais marcantes da surdez é que nenhum ‘lugar’ está territorializado para auto-identificação da comunidade que tem a língua de sinais como forte elemento identitário. Wrigley, apud Fernandes (2003, p.32), salienta que “os surdos são uma minoria invisível e amplamente distribuída, como a natureza democrática da surdez sugere. As circunstâncias dos surdos como uma minoria cultural, entretanto, deixam claro que o lugar não é intrínseco a uma identidade nativa.” A situação do reconhecimento social dos sujeitos surdos, no cenário atual, é a de um grupo lingüístico minoritário delimitado por sua condição biológica. Isso faz com que sejam prisioneiros de sua língua, sem um lugar, sem uma fronteira geográfica, porém com limites simbólicos e invisíveis que os enquadram dentro de um discurso produzido a partir de anormalidade. Tais considerações parecem produzir um paradoxo se pensarmos de acordo com os conceitos de cibercultura de Levy (1999), ou de sociedade em rede de Castells (2000). Por exemplo, ao se fazer uso de recursos tecnológicos através da Internet, como o e-mail, chat, fóruns, Orkut, entre outros não é possível identificar se o sujeito é ou não surdo. As dificuldades por vezes apresentadas pelos surdos para a escrita da Língua Portuguesa – sua segunda língua9 -, não são suficientes para detectar qual é a “diferença” daquele que está do outro lado do monitor do computador. Diante do exposto, deve-se refletir sobre a validade das fronteiras construídas em torno desse sujeito a partir da sua diferença, pois, de acordo com Silva (2004), a diferença é parte ativa da identidade e afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora, ou seja, implica em operações de incluir e excluir. Daí, indaga-se sobre nosso papel, como educadores, em meio às transformações sociais e aos mecanismos de instituição de fronteiras, ou a busca pela diluição das que existem. 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