1 1 Herman Parret Linguagem In: Art, Language and Culture of the

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Herman Parret
Linguagem
In: Art, Language and Culture of the Coa Museum of Paleololitic Art, Research
Institute on Communication and Languages, Universidade Nova de Lisboa, 2009.
Resumo: O termo linguagem designa a faculdade do homem se exprimir e comunicar o
pensamento e os sentimentos por meio de sistemas de signos convencionais. Por
extensão, linguagem começou a designar, de uma forma mais ou menos sistemática,
qualquer sistema semiótico. Já a língua é o sistema gramatical implícito, comum a todos
os locutores seus falantes. Dada a importância que o conceito adquiriu nas próprias
ciências humanas, ele revestiu-se de múltiplos sentidos alargados. Mas a especificidade
da linguagem humana contém traços estruturantes como sejam: a capacidade de exprimir,
para além do real, o possível; a capacidade de falar da própria linguagem; a capacidade
lógica e argumentativa; e ainda a possibilidade de exprimir a memória e a prospecção.
Dada a sua versatilidade, a origem da linguagem foi desde sempre discutida nas três
vertentes possíveis: como origem divina; como origem animal; como origem e essência
do humano.
Palavras-chave: língua, fala, origem das línguas, comunicação, expressão, signo.
Introdução. Com o termo linguagem deparamos com um sério problema de
tradutibilidade. Como existe, em francês, uma ampla gama de termos recorrentes (língua,
discurso, fala) possuindo cada um deles um sentido subtilmente diferente, a determinação
de linguagem será necessariamente específica no caso deste idioma1. Em alemão, só
existe um termo, Sprache, que recobre o sentido dos quatro termos franceses, enquanto a
única distinção que se consegue estabelecer em inglês é a de uma variação gramatical
mínima, entre language, termo genérico, e a language, termo específico. Language
indica então um comportamento humano, uma capacidade com a qual está dotada a raça
humana e que torna possível a sociedade dos homens, precisamente porque language é
um sistema que permite, sem equívocos, a codificação e a descodificação, mesmo que o
número de frases produzidas e compreendidas seja infinito, como defende a teoria
gramatical de Chomsky. Aliás, esta capacidade é frequentemente apresentada, em
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O mesmo sucede com a língua portuguesa, que apresenta idêntica diversidade terminológica (nota do
tradutor).
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psicolinguística ou em «filosofia do espírito», como sendo biológica. A language, por
oposição, designa uma língua ou um idiolecto específico.
Será, consequentemente, da primeira importância compreender a semântica de
linguagem, tendo em conta as particularidades semânticas do francês, do português, das
línguas românicas e das outras línguas. Constata-se que, a partir da Idade Média, depressa
surgem múltiplas significações para o termo linguagem. O sufixo – agem (acticus em
latim) significa aquilo que opera, aquilo que age. Sem dúvida, essa cambiante opera
sempre na linguagem enquanto capacidade activa, dinâmica e produtiva. Primeiramente
grafado lentguage (por volta de 980), o termo designa efectivamente a faculdade do
homem se exprimir e comunicar por meio de um sistema de signos, por analogia
igualmente aplicado aos animais. Mais tarde, passa a designar o modo de expressão de
um indivíduo e, a partir do século XVII, o de um grupo ou de uma profissão. A partir do
século XIX e, por extensão, o vocábulo linguagem serviu para designar de maneira mais
ou menos sistemática qualquer sistema semiótico, como por exemplo a linguagem dos
perfumes, a linguagem das cores. Todas estas significações da linguagem serão
organizadas nas páginas que se seguem.
Mas, antes de avançar com essa organização, é necessário constatar que duas
oposições, em francês como em português, são essenciais: linguagem versus língua e
linguagem versus fala (e, eventualmente, discurso). Em relação ao primeiro par,
linguagem versus língua, a diferença nem sempre é muito clara e foi somente a partir do
século XIX e, sobretudo, do século XX, que os dicionários se tornaram mais
consequentes. Nos casos em que o termo língua se encontra geralmente reservado ao
domínio «verbal» e definido pelo seu carácter vocal, linear e duplamente articulado (ver
mais adiante), o termo linguagem é cada vez mais «semiotizado» (qualquer sistema de
signos que sirva para a expressão e a comunicação é uma linguagem) ou então
«psicologizado» (a linguagem torna-se então uma faculdade universal, uma capacidade
psicológica de produção e de compreensão).
No seu Cours de Linguistique Générale (1916), Ferdinand de Saussure clarificou
as definições de linguagem, língua e fala, e ainda hoje seguimos, no exercício das
ciências humanas, a maior parte das suas proposições. Digamos, com Saussure, que cada
língua é um sistema particular, com as suas estruturas próprias, que realiza à sua maneira
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a faculdade universal da linguagem. A língua, manifestada por um sistema de signos
convencionais e arbitrários, é descrita por Saussure como um produto social oriundo da
faculdade de linguagem. Este conjunto de convenções necessárias da língua é adoptado
pela sociedade para permitir que os seus membros exerçam a sua faculdade de
linguagem. Esta faculdade de linguagem é, assim, uma realidade profunda, multiforme e
psíquica, dificilmente analisável e antes pressuposta no trabalho empírico da linguística.
Por oposição, e enquanto instrumento criado e fornecido pela colectividade, a língua é
um sistema homogéneo e um princípio de classificação para a linguística. É, por isso, um
objecto reconstruído de maneira teórica a partir do domínio observável que lhe é
fornecido pela materialidade dos sons e dos sentidos implicados.
O trabalho epistemológico de Ferdinand de Saussure, fundador da linguística
estrutural, estava sobretudo ancorado na delimitação da língua e da fala, dicotomia
fundadora de toda a construção científica que é a linguística. Mas é preciso ter em conta
que o linguista é obrigado a apoiar-se num estudo da fala para alcançar a língua, que é
forçado a desmontar enunciados concretos produzidos no registo da fala para reconstruir
o sistema diferencial da língua. Com a língua, diz Saussure, tocamos o elo social. E
descreve frequentemente a língua «como um tesouro colocado pela prática da fala nos
sujeitos pertencentes à mesma comunidade, um sistema gramatical existente virtualmente
em cada cérebro ou, mais exactamente, nos cérebros de um conjunto de indivíduos». De
facto, a língua nunca está completa num qualquer indivíduo separadamente, só existe
perfeitamente nas massas. A língua é, pois, o sistema gramatical implícito, comum a
todos os locutores, enquanto que a fala é o acto individual de cada um. É impossível
modificar a língua individualmente: modificar esse «produto social» seria condenar-se a
não mais poder comunicar. Mas é óbvio que os locutores nunca utilizam todas as
possibilidades oferecidas pela língua, seja lexical seja sintaxicamente.
Antes de sistematizar um pouco as significações da «linguagem», convém notar
que diversas disciplinas das ciências humanas se reclamam desse conceito. A linguística
esforça-se por reconstruir a natureza e as funções da linguagem em geral, mas
concentrando-se com maior evidência nas línguas, não apenas as línguas standard
utilizadas na vida quotidiana das culturas e das sociedades mas, igualmente, as
perturbações da linguagem – como a afasia, a disfasia, a dislalia, a dispraxia. Estas
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perturbações da linguagem são frequentemente estudadas na perspectiva de uma
psicologia cognitiva, porque convém postular uma relação intrínseca entre essas
perturbações da linguagem e a «vida mental» dos sujeitos. A psicologia cognitiva (da
qual deriva a pretensa «linguística cognitiva»), que frequentemente resulta na
neuropsicologia, reclama possuir um grande poder de explicação dos fenómenos
linguísticos, tal como, aliás, a psicanálise que muitas vezes é vista como o verdadeiro
método antípoda da psicologia cognitiva. Jacques Lacan, «leitor de Freud » e teórico
incontornável da teoria e da prática psicanalíticas, colocou a linguagem no centro da sua
concepção do sujeito humano: «O inconsciente está estruturado como uma linguagem».
Já Freud havia sublinhado a importância da linguagem na descoberta analítica do
inconsciente, ao afirmar que, em seu entender, os erros da linguagem, por exemplo os
lapsos, revelam um desejo inconsciente. Todavia, em Lacan, a posição da linguagem na
vida psíquica torna-se ainda mais pregnante. Desta feita, ele adapta um teorema de
Saussure onde o signo é definido como a relação simétrica entre um significante e um
significado, destruindo essa simetria: para Lacan, o significante é primeiro relativamente
ao significado, quer isto dizer que a criança mergulha num banho de linguagem,
essencialmente um conjunto de imagens sonoras, o que irá determinar para sempre o
desenvolvimento da sua vida psíquica.
Os sentidos do termo «linguagem». Acabam de ser esboçadas distinções
teóricas entre linguagem, língua e fala, tal como foram propostas por Ferdinand de
Saussure, fundador da linguística científica. Se prestarmos agora atenção ao emprego do
termo «linguagem» na vida quotidiana, reflectido nos dicionários, constataremos uma
enorme abundância de ocorrências que tentaremos, de seguida, organizar um pouco numa
ordem de derivação semântica. Permitimo-nos distinguir cinco estádios nessa derivação.
I. O sentido de base da «linguagem». Como já foi sugerido anteriormente, a
linguagem é uma faculdade que os homens possuem para exprimir os seus pensamentos e
sentimentos e para comunicar entre si por meio de um sistema de signos convencionais
(vocais ou escritos) constituindo uma língua. Essa faculdade pode ser vista como uma
função característica e essencial da espécie humana. Tal função é «natural», como a
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marcha e a visão, e exerce-se necessariamente com o recurso a um suporte exterior
(sobretudo a voz ou a escrita). Pressupõe-se geralmente que essa faculdade é inata e não
adquirida pela aprendizagem. Para simplificar, provisoriamente (pois, voltaremos a este
ponto), dir-se-á que o funcionamento da linguagem é duplo: inclui uma função de
expressividade e uma função de comunicabilidade. «Faculdade» e «função» são duas
noções que não recobrem totalmente o mesmo conteúdo: por «faculdade» entende-se
sobretudo uma capacidade psicológica, mental ou cognitiva; enquanto que «função»
sugere antes um nível generativo de profundidade pressuposto, reconstruído e abstracto.
As funções da linguagem são consideradas universais e cobrem assim todas as
línguas empíricas do mundo. Um grande debate ficou em aberto desde o século XVII –
estamos a pensar na concepção da linguagem de Port-Royal –, considerando a
universalidade da gramática, das suas subdivisões, como a fonética, a morfologia, ou até
a prosódia, e os seus fenómenos particulares como a conjugação, a ordem das palavras na
frase, etc. A concepção da gramática em Chomsky é dita «cartesiana», quer dizer que
postula a universalidade da gramática que assim existiria na profundeza do espírito
humano enquanto tal. Não há consenso neste ponto e a maior parte dos filósofos da
linguagem fica-se pela universalidade das funções da linguagem sem alinhar na
universalidade da gramática.
Já se mostrou que a funcionalidade da linguagem é dupla : inclui uma função de
expressividade e uma função de comunicabilidade. A questão de saber como deve ser
determinada essa função de expressividade ou, por outras palavras, a relação da
linguagem com o pensamento (onde se diz que a linguagem «exprime» o pensamento)
permanece um ponto de controvérsia epistemológica em muitas filosofias da linguagem.
Por um lado, há o ponto de vista de certos psicolinguistas ditos «cognitivistas» (como,
entre outros, Jerry Fodor) que postulam que o pensamento é uma espécie de álgebra
mental anterior ao processo de aquisição da linguagem: a «vida do pensamento» precede
autonomamente a «vida da linguagem». De facto, segundo este ponto de vista, a
linguagem, enquanto meio de «exprimir» o pensamento, seria um mero instrumento
deste. Não é de todo esta a convicção dos fenomenólogos, como o filosofo francês
Maurice Merleau-Ponty que claramente enuncia: «o pensamento nada tem de interior,
não existe fora do mundo e fora das palavras. Pensar, é “falar-se”, dizer de certa forma
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coisas a si mesmo. Assim, a linguagem é indispensável ao pensamento e ao seu
desdobramento: se é verdade que a linguagem é a expressão do pensamento, é preciso
acrescentar que o pensamento é uma palavra interior». Equivale a dizer que a linguagem
«modela» o pensamento, que é uma faculdade muita activa e transformadora. Há muitos
casos em que a linguagem parece ultrapassar o pensamento: se tomarmos o caso do
lapso, por exemplo, é óbvio que dizemos algo diferente daquilo que queríamos dizer e,
no caso em que se fala para não dizer nada, no falar quotidiano e conversacional, a
linguagem já não está conectada com um pensamento a exprimir. A «vida mental»
dependente, quando não mesmo determinada pela «vida da linguagem», é uma concepção
que se encontra em Ferdinand de Saussure. O autor esforça-se por convencer-nos que a
linguagem, de entre todos os signos exteriores pelos quais se pode manifestar o
pensamento, é aquele que «enquadra» de mais perto o pensamento. Segundo ele, existe
um amplo domínio do pensamento que seria impossível na linguagem. Foi, com toda a
evidência, este o ponto de vista vigorosamente defendido pelos diferentes tipos de
estruturalismo a partir dos anos sessenta do século passado, em consonância com o
ensino do próprio Saussure. Por conseguinte, a proposta de uma «função de
expressividade» da linguagem (essencialmente, a «expressão do pensamento») não está
desprovida de riscos epistemológicos.
É certo que a linguagem possui outras funções além de exprimir (o pensamento
ou as emoções) e de comunicar. Alguns teóricos da linguagem propuseram esquemas
subtis e adequados. Mencionamos dois: Karl Bühler e Roman Jakobson. Bühler, de modo
bastante tradicional, aliás, distingue três funções da linguagem : a função emotiva, a
função conativa e a função referencial. A função emotiva corresponde à primeira pessoa,
o emissor da mensagem, e caracteriza a atitude do locutor (o emprego das exclamações é
um exemplo típico). A função conativa remete para o destinatário (o emprego do
vocativo e do imperativo sublinha-a). A função referencial está centrada no contexto
referencial e descreve o mundo tal como é. O esquema de Jakobson é mais elaborado:
acrescenta três funções à lista de Bühler: a função fática, a função poética e a função
metalinguística. A função fática encontra-se nas mensagens que «servem essencialmente
para estabelecer, prolongar ou interromper a comunicação, para verificar se o circuito
funciona»; está portanto anexada ao «canal de comunicação». A função metalinguística
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toma a linguagem como objecto, oferece, por exemplo, uma reflexão sobre o sentido de
uma palavra. Quanto à função poética, remete para a valorização da mensagem em si.
Compreender-se-á que estas funções da linguagem são universais, na medida em que se
encontram em qualquer situação linguageira e em qualquer cultura e sociedade.
II. Alargamento por metonímia. O sentido de base que acabamos de
circunscrever alarga-se por metonímia: a linguagem é então considerada como a
realização dessa faculdade. Nesse caso, «linguagem» significa: os códigos linguísticos
humanos na sua totalidade, ou ainda, a totalidade das línguas do mundo ou, mais
geralmente, a totalidade dos sistemas de signos vocais, gestuais e gráficos do mundo.
Pode restringir-se essa classe dos sistemas de signos, acrescentando um critério
suplementar. Bastará para isso exigir, por exemplo, a imposição da normatividade social.
Só é «linguagem» o sistema de signos sancionado pela norma social, ou seja, o emprego
dessa linguagem deve ser de uso aceite e reconhecido por uma comunidade cuja extensão
pode variar. Um critério suplementar poderia consistir na dupla articulação, como foi
formulada pelo linguista e fonólogo francês André Martinet. O autor impõe, para que
haja «linguagem», uma dupla estrutura: a linguagem deve ser analisável em unidades
minimas de sentido, os monemas, por sua vez analisáveis em unidades minimas
distintivas, os fonemas. Esta «dupla articulação» é a propriedade essencial da linguagem
enquanto tal. Claro que outras teorias, como, por exemplo, a gramática generativa
transformacional, elaborada por Noam Chomsky, propuseram outros critérios, sobretudo
de ordem gramatical e sintáctica.
III. Alargamento por especificação. Empregamos todos, na vida quotidiana e
conversacional, ocorrências de «linguagem» muito mais específicas. Essas ocorrências
enfraquecem, desviam ou encurtam o sentido de base que acabamos de apresentar. Está
por fazer uma extensa lista destes usos específicos e parece que essa lista difere bastante
segundo as línguas (o francês, o português, o inglês, etc.), de maneira que o problema da
tradutibilidade se coloca com toda a evidência neste domínio. Enumeramos de seguida
alguns desses usos específicos sem visar a exaustividade. A. A expressão: modo de
expressão («os modos de expressão próprios da linguagem de alguém») significa a
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maneira de falar de alguém, o uso particular e idiossincrático da linguagem de um
indivíduo. B. A expressão: linguagem dos franceses alarga o domínio do indivíduo a uma
colectividade, e indica assim características comuns da fala num grupo, num povo, numa
região demográfica, numa nação. Estas características não são puramente gramaticais e
lexicais mas sugerem também uma certa psicologia estereotípica que só existe por
simplificação. C. Na expressão: linguagem de uma cidade indica-se um conjunto
coerente e homogéneo de signos portadores de uma significação interpretável na sua
unidade. Claro que essa unidade não é tanto a manifestação de uma qualidade real,
realista até, mas antes o produto de uma projecção imaginária que «idealiza» os estados
heterogéneos de facto. D. Mais específicas ainda são expressões como linguagem
cuidada, linguagem familiar e, até, linguagem académica e linguagem palaciana. Com
efeito, esta especificação diz respeito a um aspecto formal do uso, frequentemente ligado
a uma classe social ou a uma profissão. A linguagem cuidada faz alusão, muitas vezes de
maneira irónica, a uma classe social, tal como a linguagem empolada, a linguagem
arcaica, a linguagem pomposa. Outras designações são menos coloridas porque menos
valorativas, como a linguagem familiar, a linguagem floreada, a linguagem comum, a
linguagem conversacional ou coloquial e a própria linguagem vulgar. Trata-se, com
efeito, de características formais de um tipo de fala. Mais «objectivas» ainda são as
especificações indicativas de maneiras de se exprimir próprias a grupos de homens,
sobretudo profissionais, a uma disciplina ou a uma matéria, precisamente a linguagem
palaciana. É frequente que este uso indique elementos lexicais e sintácticos
característicos, próprios de um certo domínio de conhecimentos ou de actividades, como
a linguagem académica ou a linguagem administrativa. Em ter cuidado com a língua
encontra-se uma individualização certa: trata-se efectivamente da maneira de se exprimir,
do estilo, do tom, da tónica própria de uma só pessoa. E. Um outro uso não diz tanto
respeito à forma e ao estilo mas ao conteúdo daquilo que é enunciado. É a linguagem
considerada do ponto de vista do conteúdo comunicado, referindo-se a uma dada
circunstância, proferida num determinado tom: linguagem cínica, directa, hipócrita,
mentirosa, elogiosa, ambígua, franca. Na expressão dirigir-se a alguém num
determinado registo de linguagem faz-se alusão às ideias expressas, ao conteúdo da
comunicação. F. Finalmente, o termo linguagem torna-se plenamente pejorativo quando
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significa conversa fiada ou, até mesmo, verborreia, como isso não passa de conversa.
Todos estes alargamentos do significado de linguagem acentuam determinados
semantemas ou determinadas virtualidades semânticas do termo, que só podem ser
compreendidos por via de uma contextualização pragmática.
IV. Alargamento por transposição. Entra-se assim num domínio de criatividade
linguística extremamente frutífera: certas propriedades da linguagem, no sentido estrito
(as supracitadas categorias I e II), são «transpostas» para «objectos» ou «fenómenos» que
são, de facto, de natureza totalmente distinta. Pressupõe-se assim uma grande similitude
entre a linguagem no seu sentido próprio e essas «linguagens» transpostas. Eis alguns
exemplos de primeira importância. A. A linguagem artificial. Filosoficamente, poder-seá pretender que há «linguagem» sempre que dois indivíduos, tendo atribuído um
determinado significado a um dado acto, cumprem esse acto com vista a comunicarem
entre si. As linguagens artificiais, como o esperanto, não fazem outra coisa. Servimo-nos
cada vez mais dessas linguagens assentes em axiomas e regras de formação dos
enunciados, que evitam as ambiguidades nas línguas naturais e visam uma grande
coerência formal. É o caso das linguagens de programação que, com efeito, servem de
intermediário entre a língua natural dos programadores e os computadores. B. Pode
igualmente empregar-se o termo linguagem secreta ou linguagem cifrada, sistema de
comunicação no qual o código é apenas conhecido por um certo número de pessoas: o
codificador constrói a mensagem secreta e o descodificador tenta reconstruí-la. C. De
grande interesse, na linguagem gestual, é a transposição da «linguagem» para o sistema
próprio. Este fenómeno foi muito estudado (entre outros, por André Leroi-Gourhan, Le
Geste et la Parole, 1964-65, dois volumes, centrado, aliás, no paleolítico). Ninguém
contestará que a linguagem dos gestos ou a linguagem do olhar exprimem as sensações e
os sentimentos dos sujeitos. Aceitemos que nem todos os gestos podem ser considerados
linguagem. Há gestos que não passam de «acções» ou «actos» sem qualquer valor
expressivo ou significante. Mas depressa o gesto se torna significante: fazer sinal com a
mão para cumprimentar ou aplaudir é já, com toda a evidência, «linguagem». Os
semioticistas interessados na gestualidade propuseram duas tipologias e tornou-se comum
distinguir dois tipos de linguagens gestuais. Poderá caracterizar-se o primeiro como a
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classe dos gestos enunciativos: o gesto corresponde a um enunciado, a uma unidade que
será uma frase ou uma sequência de frases na língua falada. Há, assim, um gesto que
«diz»: «não estou de acordo consigo». Segundo o método da fonologia, distinguir-se-á
então os traços pertinentes do gesto daquilo que pertence ao domínio das variantes
pessoais. Um segundo tipo será a classe dos gestos que apresentam uma simetria com a
estrutura da língua falada, como, por exemplo, a «linguagem gestual» dos surdos-mudos.
Poder-se-á chamar-lhes gestos substitutivos, porque são gestos que se substituem à língua
escrita ou falada. Outras classificações são possíveis, como, por exemplo, de um lado, os
gestos naturais que acompanham uma conversação que, em geral, são facultativos e
bastante pessoais e, de outro lado, os gestos convencionais. O grande linguista Roman
Jakobson designava estes gestos convencionais por gestos-símbolos devido à sua
arbitrariedade. Denominava ainda os gestos expressivos (expressão da vida interior do
sujeito, mas igualmente expressão de uma situação exterior real) como gestos icónicos.
D. Progride-se no eixo da transposição ao introduzir a linguagem das artes (linguagem da
música, linguagem da pintura, etc.). A maior parte dos filósofos da arte aceitam a ideia de
que a definição da arte como uma linguagem é fundada, sabendo que a «linguagem da
arte» não é uma linguagem geral e colectiva, bem pelo contrário: o artista, de facto, na
sua criatividade, promove bem mais a sua originalidade e a sua unicidade e esforça-se por
comunicar as riquezas secretas da sua vida interior. Todavia, é verdade que a expressão
«linguagem da arte» é sobretudo empregue para o conjunto dos meios de expressão
particulares de uma arte, como na linguagem cromática e na linguagem do traço. Seria
antes questão dos procedimentos canónicos com recurso aos quais o artista executa as
suas ideias criativas. Chega-se ao fim desta linha de transposições com expressões como
linguagem das flores ou linguagem dos perfumes. É comum atribuir-se quase
convencionalmente significados a tipos de flores de acordo com uma simbologia
geralmente reconhecível. Um bom florista irá compor um ramo tendo em conta esse valor
simbólico característico de cada tipo de flor. De maneira mais geral, as cores e também
os perfumes possuem um sentido que permanece mais ou menos estável no sentimento
dos sujeitos. Não se pode evitar associar os crisântemos aos cemitérios e o encarnado das
rosas é geralmente visto como estando ao serviço do amor. É certo que esse sentido pode
evoluir, que é flutuante na diversidade das culturas, e a questão sobre a universalidade
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desses valores continua aberta: o facto do encarnado exprimir o amor, o branco a pureza,
o azul a amizade, o amarelo a infidelidade, será universalizável? Independentemente
desta questão, expressões como linguagem das flores, linguagem das cores, linguagem
dos perfumes são perfeitamente aceitáveis como transposição última do sentido de base
do termo «linguagem» (I e II).
V. Alargamento por analogia. O caso da linguagem animal é sem dúvida o mais
difícil de teorizar. São inúmeras as polémicas e controvérsias sobre este assunto.
Defendemos que a expressão linguagem animal não resulta de uma transposição mas sim
de uma analogia, o que significa que, na nossa opinião, não há uma verdadeira
continuidade entre a linguagem humana e a linguagem animal. Estas duas formas de
linguagens estão numa relação de analogia e não de continuidade. Constata-se que no
mundo dos animais existem gritos e cantos como meios de expressão e de comunicação,
e temos razão ao evocar as abelhas e os golfinhos como outros tantos comunicadores
perfeitos. Porém, seria abusivo considerar a pretensa «linguagem animal» como uma
verdadeira linguagem (no sentido da análise realizada em I e II), e seguimos firmemente
Émile Benveniste, importante linguista do estruturalismo em França, quando enuncia:
«Aplicada ao mundo animal, a noção de linguagem só ocorre por abuso terminológico»
(Diogène, 1952). Para Benveniste, os limites da comunicação animal são múltiplos e
determinantes. E enumera: «o carácter fixo do conteúdo [não há qualquer “criatividade”
no sentido da concepção da gramática em Chomsky], a invariabilidade da mensagem, a
relação a uma situação única (a mensagem nunca faz alusão a um passado ou a um futuro
longínquos), a natureza indecomponível do enunciado, a sua transmissão unilateral, a
ausência de articulação [Benveniste faz certamente alusão à concepção de Martinet sobre
a dupla articulação da linguagem, isto é, em unidades desprovidas de sentido, fonemas, e
em unidades dotadas de sentido, monemas]...». E Benveniste conclui: «as mensagens dos
animais são globais, indecomponíveis, têm um reportório pobre e, sobretudo, há nelas
uma total ausência de análise».
Existem porém, há décadas, tanto em zoolinguística como em zoosemiótica,
muitos esforços teóricos que evidenciam resultados empíricos, sobretudo quantitativos,
assentes na hipótese da «linguagem animal». É sabido que os golfinhos dispõem de um
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sistema de comunicação acústica com sinais em forma de assobios e até com a
possibilidade de imitar fonemas humanos, e de os associar a determinadas situações
específicas. Do mesmo modo, as abelhas comunicam através de danças e sinais sonoros,
particularmente em situações de busca de alimentos. Estas «linguagens» servem
sobretudo para a expressão de estados emocionais, como o apelo sexual, o alarme, as
proibições, as rivalidades. Alguns zoolinguistas, como W.H. Thorpe que muito
impressionou Noam Chomsky, consideram que os sistemas de comunicação animal
possuem as mesmas propriedades que a linguagem humana: sublinha que as mensagens
na comunicação animal são plenamente «intencionais» (porque têm como objectivo
modificar uma atitude ou um comportamento), que possuem também uma sintaxe (uma
vez que há coerência interna) e que são «enunciativas» (já que transmitem
sistematicamente uma informação). A verdade encontra-se certamente entre estas
posições radicais. É forçoso admitir que os símios antropóides acedem a uma expressão
simbólica próxima da linguagem dos signos dos surdos-mudos. Além disso, exprimem
perfeitamente as suas necessidades (fome e sede, desejo sexual) e até as suas emoções
(tristeza e alegria), mas é certo que não são capazes de exprimir e comunicar julgamentos
que liguem conceitos entre si. Aristóteles já o notara: «se os animais podem exprimir o
prazer e a dor, que são sensações, não o podem fazer com a justiça e a injustiça, que são
ideias». Ou seja, e é igualmente esta a nossa posição, a linguagem humana conserva a sua
especificidade. Os seres humanos têm, através da linguagem, uma capacidade de
alternância: na conversação e no diálogo, há um vaivém entre os interlocutores, uma
verdadeira comunicação de sentido duplo, enquanto na «linguagem animal» os sinais são
emitidos unilateralmente, desencadeando uma reacção que não entra em relação no modo
da linguagem. Além disso, a linguagem dos humanos exprime o possível e não apenas o
real presente, o que permite a ficção e a abstracção. É capaz de compor uma infinidade de
discursos e exprime igualmente elos lógicos e argumentativos, conseguindo ainda
comunicar a memória e a prospecção. E, afinal de contas, a linguagem humana cristalizase nessa capacidade mais «nobre» que é a escrita. É importante ter em conta que estas
capacidades superiores no homem não assentam numa aptidão física ou fisiológica
específica da raça humana mas sim sobre a sua estrutura antropológica, como veremos ao
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discutir de seguida a questão da «origem da linguagem». Por todas estas razões,
defendemos que a pretensa «linguagem animal» só é linguagem num sentido analógico...
Para tematizar a questão da (des)continuidade da linguagem humana e da pretensa
«linguagem animal», evocaremos brevemente a problemática da «origem da linguagem»
que tantas filosofias transtornou desde a Antiguidade. De Lucrécio ao século XVIII, com
Condillac, Rousseau, Herder, Humboldt e muitos outros, o pensamento da linguagem foi
dominado pelo questionamento sobre a sua respectiva origem. Não só pela reconstrução
da origem das línguas, obsessão da linguística comparatista (de tendência indo-europeia,
por exemplo) que reduzia a enorme variedade das línguas a uma quantas «línguas-mãe»,
quando não a uma única «língua de origem», mas igualmente pela especulação relativa à
origem (da faculdade) da linguagem. Neste domínio, existem três posições possíveis: ou
a linguagem é de origem divina (é um dom de Deus, como, aliás, consideram os
criacionistas da actualidade), ou é de origem animal (é a tese continuísta discutida acima,
posição que deve ser considerada «naturalista» e reducionista), ou então está enraizada na
natureza humana e constitui a própria essência do ser humano. Esta última posição gera
uma ética, rica em valores, da produção linguageira e da comunicação entre os homens.
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