o “registro” como memória das práticas de linguagem movimento na

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O “REGISTRO” COMO MEMÓRIA DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM
MOVIMENTO NA EDUCAÇÃO INFANTIL
DE PAULA, Déborah Helenise Lemes de Paula1 - SME
WANDEMBRUCK, Paola Monique2 - SME
Grupo de Trabalho - Didática: Teorias, Metodologias e Práticas
Agência Financiadora: não contou com financiamento
Resumo
O trabalho com crianças da pequena infância vem sendo construído há algum tempo.
Entretanto o pensar sobre esse fazer pedagógico, sobre esta criança neste espaço educativo é
recente. A etimologia da palavra infância origina-se do latim infante, e refere-se a ausência da
fala. Por muito tempo, num contexto sócio-histórico a criança era enxergada desta única
maneira, sem direitos, sem voz, dependente do mundo adulto. Neste sentido, as produções
acadêmicas das últimas décadas tem discutido esse espaço educativo para a infância partindo
da criança, olhando para ela como sujeito de direitos e produtora de cultura. Há uma grande
preocupação para que esses sujeitos tenham VOZ no espaço que os formam. Adotando esta
perspectiva, reconhece-se o valor, a importância e a necessidade da fala no processo
formativo da infância. Assim um encaminhamento pedagógico que visualize o registro da fala
dos pequenos permite enxergar com maior propriedade o processo de apropriação do
conhecimento sob o olhar da criança. Neste sentido, busca-se aqui discutir sobre os registros
das falas das crianças, a importância da documentação desse processo e a utilização deste
como um instrumento avaliativo. Traz também experiências sobre o registro da fala das
crianças norteado pelas discussões, da infância, da criança pequena, das formas de registros e
documentação e seus enlaces com a Linguagem Movimento, em turmas de Educação Infantil
de uma Escola de Educação em tempo Integral do município de Curitiba. Esses registros
buscam captar a fala das crianças investigando os processos de produção e reprodução das
culturas infantis e apropriação de saberes do Movimento.
Palavras-chave: Registro e documentação. Criança. Relato.
1
Professora de Educação Física na Prefeitura Municipal de Curitiba. Formada em Educação Física pela PUCPR
e Pedagogia pela UFPR. Especialista em Educação Física Escolar pela UFPR. E-mail:
[email protected].
2
Professora de Educação Física na Prefeitura Municipal de Curitiba. Formada em Educação Física pela PUCPR
e Pedagogia pela UFPR. Especialista em Educação Física Escolar pela UFPR. E-mail:
[email protected].
16428
Introdução
O trabalho com crianças da pequena infância, historicamente, vem sendo construído
há algum tempo. Entretanto as discussões acadêmicas sobre esse fazer pedagógico, sobre esta
criança neste espaço educativo é recente.
A etimologia da palavra infância origina-se do latim infante, e refere-se a ausência da
fala. Por muito tempo, num contexto sócio-histórico a criança era enxergada desta única
maneira, sem direitos, sem voz, dependente do mundo adulto.
O espaço da criança no contexto social pode ser considerado um espaço inventado,
neste sentido, nos aproximamos dos estudos de Schmidt (1997). A autora em sua dissertação
de mestrado percorre o caminho histórico sobre o espaço que a criança ocupa em
determinados contextos sociais. Retrata inicialmente o período da antiguidade, que outrora
essas crianças não eram considerada pessoas originais, com valor em si próprio.
Prosseguindo, nos trás a compreensão de infância partindo do pensamento cristão, que
representa a infância como algo sagrado e símbolo da promessa de paz, mas também numa
perspectiva rude e de punição, que se apresenta entre o bem e o mal, entre a inocência, a
pureza e o pecado.
Posterior a isto, a ideia de infância enquanto fenômeno sócio cultural “parte de um
conjunto de transformações de parte da sociedade ocidental, que ocorreram entre o século
XVII e início do XX.” (SCHMIDT, 1997, p.23). O primeiro imaginário que efetivamente se
constrói sobre a infância e que nos aproxima um pouco mais do que temos de conceito hoje,
configura-se pelo princípio de que a criança é diferente do adulto, que necessita de cuidados
diferenciados e de afeto.
Charlot (1979) ao tratar dos cuidados diferenciados, afirma que a dependência da
criança com relação ao adulto é um fato social e não natural oriundo principalmente da classe
média que Ariès apud Kramer (2007, p.15) afirma ser “marcada por um duplo modo de ver as
crianças, pela contradição entre moralizar (treinar, conduzir, controlar a criança) e paparicar
(achá-la engraçadinha, ingênua, pura querer mantê-la como criança)”. Vale ressaltar que essa
relação de dependência – da criança com relação ao adulto – é bem característica das
instituições educativas até os tempos atuais, marcado por uma relação de verticalidade, cujo o
adulto é detentor de todo e qualquer saber, onde não há espaço muitas vezes para o sujeito
criança expressar-se, manifestar-se e produzir cultura com seus pares.
16429
Kramer (2007, p. 14) nos diz “a ideia de infância não existiu sempre e da mesma
maneira, ao contrário, a noção de infância surgiu com a sociedade capitalista, urbanoindustrial, na medida em que mudavam a inserção e o papel social da criança na sua
comunidade”. Deste modo, a infância é uma construção social, influenciada pelos contextos
sociais dos quais fazem parte.
O processo de industrialização, a passagem do feudalismo para o capitalismo, dos
modos de produção domésticos para os modos de produção fabril exigiram uma nova
reorganização social, possibilitando a entrada da mulher no mercado de trabalho, alterando
assim a forma de organização familiar e a maneira das famílias cuidarem dos seus filhos,
formando a tríade: mulher-trabalho-criança (DIDONET apud PASCHOAL e MACHADO,
2009). À medida que as mulheres saem para um novo cotidiano de trabalho, instaura-se a
necessidade de instituições que assumam o cuidado dos seus filhos, tendo esse fenômeno
poder decisivo para a constituição das instituições de cuidado da criança pequena.
Assim, num contexto de modernidade e de industrialização acena uma concepção de
infância na sociedade moderna, concomitantemente aos processos de escolarização, tendo a
escola o papel de substituir a família como espaço de aprendizagem. Então, essas instituições
que, inicialmente tinham o propósito de cuidar e proteger as crianças enquanto suas mães
trabalhavam, ao longo do processo foram tomando forma de instituições educativas.
Neste sentido, as produções acadêmicas das últimas décadas tem discutido esse espaço
educativo para a infância partindo da criança, olhando para ela como sujeito de direitos e
produtora de cultura. Há uma grande preocupação para que esses sujeitos tenham VOZ no
espaço que os formam, assim de acordo com Agamben apud Abramowicz (2011, p.18) “(...) a
infância, em vez de ser um momento de “sem fala”, é a única possibilidade de construir fala”.
Adotando esta perspectiva, reconhece-se o valor, a importância e a necessidade da fala
no processo formativo da infância. Temos também, por exemplo, os estudos da Sociologia da
Infância que tem se apropriado com muita riqueza da fala das crianças. Assim um
encaminhamento pedagógico que visualize o registro da fala dos pequenos permite enxergar
com maior propriedade o processo de apropriação do conhecimento sob o olhar da criança.
Entendendo o processo de construção de sua identidade, bem como, a partir do que falam
compreender a organização de suas ideias.
Assim, o texto que ora pretende-se discutir, trata-se de um pensar sobre os registros
das falas das crianças, a importância da documentação desse processo e a utilização disto
16430
como um instrumento avaliativo. Trazemos também nossas experiências sobre o registro da
fala das crianças norteado pelas discussões, da infância, da criança pequena, das formas de
registros e documentação e seus enlaces com a Linguagem Movimento3, em turmas de
Educação Infantil de uma Escola de Educação de tempo Integral4 do município de Curitiba
(CEI). Esses registros buscam captar a fala das crianças investigando os processos de
produção e reprodução das culturas infantis e apropriação de saberes do Movimento.
Conversando sobre registro
Segundo a LDB (BRASIL, 1996), o processo avaliativo na Educação Infantil, dar-se-á
“mediante acompanhamento e registro do seu desenvolvimento” (BRASIL, 1996, p.26).
Evidencia-se nesta afirmativa que existe uma significação própria e importante dos Registros
na Educação Infantil outorgando legitimidade ao que será relatado.
Falar de registros nos remete ir além de simples anotações, é entender a realidade e o
desenvolvimento da criança, é analisar seu cotidiano e sua relação com o outro. Através do
registro transferimos à sociedade nossa insígnia, ele eterniza o pensamento humano, produz
memória e compõe sua história (Ramires, 2008). Com anotações das falas e a exploração de
diferentes registros do processo de desenvolvimento da criança é possível compreender como
organizam seu pensamento e como se efetiva o aprendizado desta criança.
No intuito de registrar ou documentar é necessário primeiramente estabelecer quais os
instrumentos que serão utilizados para essa primeira análise.
Gandini e Goldhaber (2002, p.156-157) explicam como podemos documentar esses
registros:
A documentação pode ser apresentada de muitas maneiras diferentes, incluindo
painéis, materiais escritos ou digitados – livros, cadernos, cartas, panfletos, e ainda
caixas, tecidos, instalações e outros tipos de materiais – esse tipo de documentação
deve vir acompanhado pelas interpretações do professor e, quando for possível,
pelos diálogos e pensamentos das crianças.
3
Linguagem Movimento é um conceito que tem sido adotado nos últimos anos, em documentos que norteiam as
práticas pedagógicas na Educação Infantil referindo-se às práticas corporais na pequena infância, tendo como
elemento estruturante a linguagem e os conhecimentos sistematizados, construídos historicamente da cultura
corporal.
4
São escolas com ampliação da jornada escolar que tem como objetivo formar crianças para o exercício do
direito e da cidadania, com qualidade, valorizando seus aspectos cognitivos, sociais, motores, afetivos e
culturais.
16431
Antes mesmo de documentar ou registrar é preciso criar estratégias de como fazer.
Isso depende de um bom planejamento que consiga dar conta da necessidade da criança,
somado a abrangência do Projeto Político Pedagógico que deve caminhar junto com a
intencionalidade do professor observador. Quando planeja um caminho, traça-se metas a
serem cumpridas que podem ou não sofrer alterações durante o processo de construção. No
entanto é importante ter um planejamento muito consistente sobre onde se deseja chegar para
esboçar um caminho sólido e com isso os registros e documentações significativos para o
processo da criança no contexto escolar. Assim como escreve Gandini e Goldhaber (2002 p.
162) “O registro deve ser feito com cuidado, levando em consideração o contexto do cenário,
as perguntas, se e que elas foram identificadas, e os objetivos”.
Acredita-se que documentar seja a maneira mais eficiente de avaliar um processo
educativo, seja essa documentação feita através de escritos, gravações, filmagens, etc.
Falamos da documentação feita de maneira sensível, analisando experiências e todo o
contexto da criança, não tratamos aqui do simples registro como forma compilativa de
anotações que mais tarde não servirão para nada. A documentação não se configura “como
algo estático ou acabado, ao contrário, (...) a documentação é a constante busca do
entendimento” (GANDINI E GOLDHABER, 2002 p. 160). Pensar nesses registros e utilizálos para compreender a criança é entender que essa criança faz parte de diferentes culturas e
essa contribui para a formação humana.
Quando se documenta faz-se uma revisão daquilo que se foi planejado e a partir disso
é possível reviver, reavaliar, repensar sobre aquilo que foi ou não ensinado durante o
processo. Permite-nos avaliar todo um caminho construído em um espaço de tempo.
Para realizar esses registros é necessário fazer algumas avaliações rápidas, porém
realimentá-las em seguida, para que a documentação não se torne efêmera. Essa maneira de
organização pode-se dizer que se constituem quase sempre de boas práticas de professores
preocupados com o real e efetivo desenvolvimento e aprendizagem da criança, devendo
deixar para trás o modo isolado e linear com que se trabalhava algumas décadas atrás.
A prática de registro é também a maneira que fazemos história e construímos
memória. Ramires (2008, p.46) destaca que através do registro produzimos marcas no mundo.
Quando registramos algo, estamos de certa forma avaliando, avaliamos nossa prática,
como poderia ter sido feito, onde poderíamos melhorar qual a relevância de uma fala ou de
um gesto da criança para reestruturar novas práticas e novas maneiras de avaliar e registrar.
16432
Essa é uma das necessidades em se registrar, é fazer a reflexão sobre a ação, e a partir disso
constituir conceitos com as crianças sobre uma ou mais práticas específicas. Quando o
observador observa uma determinada prática ele a vê como um campo repleto de
intencionalidades, pois é a partir dali, de uma situação dada que se amplia o olhar sobre a
realidade da criança. O olhar do professor-observador não é neutro e assim se faz necessário,
pois apresenta intenções sobre aquilo que planeja, executa e avalia.
Ao se fazermos menção à LDB (1996), que expressa sobre concepção de
acompanhamento do desenvolvimento da criança na Educação Infantil, nos baseamos no
pressuposto de que cabe ao educador um olhar atento a essas crianças num processo contínuo
de investigação e reflexão dos saberes que estão sendo apropriados. Justaposto a isso a
documentação torna-se elemento fundamental, dando legitimidade a este processo
investigativo (RAMIRES, 2008). “A documentação constitui uma ferramenta indispensável
para que os educadores possam construir experiências positivas para as crianças, a
documentação serve para confirmar algo que consideramos relevante.” (GANDINI E
GOLDHABER, 2002, p. 150).
Porque registrarmos as falas?
A criança transmite o que pensa pelo seu corpo, movimento e por sua fala. O registro
do que realiza “dá voz à criança e possibilita aos outros uma compressão sobre a forma como
vê e sente o mundo ao seu redor” (RAMIRES, 2008 p.51). Esse processo também se constitui
“espaço teórico das práticas” (CIFALI apud LOPES, 2009. P.36).
Dahlberg, Moss & Pence (2003, p.72) nos dizem:
Segundo Loris Malaguzzi, “uma criança recebe uma centena de linguagens e nasce
com muitas possibilidades e com muitas expressões e potencialidades que estimulam
uma à outra – mas das quais são facilmente privadas através do sistema
educacional” (citado em Wallin, Maechel e Barsoti, 1981). Por isso, a criança
pequena deve ser levada a sério. Ativa e competente, ela tem ideias e teorias que não
apenas valem a pena serem ouvidas, mas também merecem escrutínio e, quando for
o caso, questionamento e desafio.
Neste sentido, a fala torna-se um recurso indispensável nas práticas de registro,
fazendo da criança co-construtora ativa do seu processo de aprendizagem. Garantindo ao
professor documentação da sua prática e do desenvolvimento da criança.
16433
Apresentando os sujeitos dos quais se narra
As reflexões que aqui nos propomos realizar estão pautadas nas discussões acerca do
registro das falas das crianças e paulatinamente a avaliação. Entretanto antes de relatarmos
reflexivamente sobre as experiências das práticas de registro na Educação Infantil,
entendemos que é necessário falarmos um pouco dos sujeitos inseridos nesta prática, pois
como já dissemos o registro não é um ato neutro ele vem acompanhado de toda concepção
política, social e de formação humana que o professor possui, para tanto compreender quem
são essas pessoas de onde vem e para onde vão é imprescindível.
As professoras mencionadas nesse texto são as professoras Déborah e Monique5.
Nossa história acadêmica é marcada por algumas aproximações. No ano de 2001, no
primeiro semestre e no segundo semestre respectivamente ingressamos no curso de
Licenciatura em Educação Física na PUCPR.
Em nosso processo de formação acadêmica, nosso foco de estudo foi em grande parte
voltado para a instituição escolar, entretanto nos faltou a discussão sobre a educação da
pequena infância. Quando, em alguma disciplina tratava-se da discussão sobre a criança de 0
a 6 anos esta, estava em detrimento exclusivamente do desenvolvimento motor.
Encaminhamentos pedagógicos, organização da Educação da Infantil, metodologias do
ensino, práxis e outras temáticas relevantes para compor a formação dos sujeitos que iriam
atuar com a educação dos pequenos foram excluídas do processo formativo. Pensar sobre
nosso processo formativo é essencial para compreender posteriormente o papel que o Projeto
Educamovimento exerceu em nossa prática profissional.
No ano de 2006 ingressamos no curso de Especialização em Educação Física Escolar e
no mesmo ano assumimos o papel de docentes na Prefeitura Municipal de Curitiba, atuando
com crianças da Educação Infantil e Ensino Fundamental primeira etapa.
Neste processo nos aproximamos dos cursos de formação em Linguagem Movimento
na Educação Infantil, o que abriu caminhos para que passássemos a olhar esta etapa de
formação de outra maneira.
No ano de 2010 e 2011 as professoras Déborah e Monique, respectivamente, iniciaram
sua participação, após um curso de formação continuada sobre Linguagem Movimento, no
projeto Educamovimento: saberes e práticas na Educação Infantil. Esse projeto de formação
5
Utilizaremos a 3º pessoa do plural e em alguns momentos a 1º pessoa do singular para nos referirmos à nossa
trajetória acadêmica e profissional bem como do relato dos registros.
16434
inicial e continuada, de parceria entre UFPR e Prefeitura Municipal de Curitiba, coordenado
pela Professora Doutora Marynelma Camargo Garanhani e a Mestre em Educação Lorena de
Fátima Nadolny foi fundamental para os encaminhamentos frente ao processo de registro da
fala das crianças.
O presente projeto mobilizou os professores à reflexão e reorganização constante de
suas práticas pedagógicas com as turmas de Educação Infantil - crianças de quatro e cinco
anos - de diferentes Escolas Municipais da cidade de Curitiba, bem como em Centros
Municipais de Educação Infantil da mesma cidade.
Durante os anos de 2008, 2009, 2010 e 2011, o grupo encontrou-se uma vez por mês
para socializar suas práticas docentes, construir e desconstruir conceitos, discutir estudos
referentes ao tema infância e outras questões que norteiam a docência na pequena infância,
acrescentado a discussão sobre a formação dos professores com essa pequena infância.
Dos encontros, eram tiradas ações que deviam ser desenvolvidos durante um período
de tempo, seja a leitura de algum livro, capítulos, textos, construções e apresentações de
trabalhos em seminários, etc., com intuito de refletir e reorganizar as ações didáticas, ações
estas que contribuíam cotidianamente para as práticas escolares, pois se tornava necessário
estabelecer um paralelo entre o que estava se concretizando nas aulas e, para além disso,
como era possível construir ou desconstruir essas práticas a partir das discussões e leituras
que eram feitas.
Essa reflexão constante sobre qual o melhor caminho, como fazer para alcançar tais e
tais objetivos, quais foram importantes para realmente “nos formar” uns com os outros na
construção coletiva foram alguns dos questionamentos que, pode-se dizer, nos auxiliaram na
construção de uma identidade intelectual e profissional. Durante este processo de formação
muitas dúvidas apareceram, algumas sanadas, outras, porém, só nos aguçaram na busca de
novas descobertas acerca da organização dos questionamentos das crianças e o porquê falam
certas coisas. Nesse processo de organização dos nossos aprendizados, muito foi se
construindo.
Um dos desafios lançados aos profissionais partícipes do projeto foi a construção de
um diário, pois segundo Lopes (2009, p.29) o “diário funciona como reflexão para seu
escritos, encerrando, portanto possibilidades formativas”, nele deveria conter registros das
práticas educativas com as turmas de Educação Infantil de 4 a 5 anos, dentre elas as falas das
crianças. Partindo de dois referenciais teóricos: Gandini (2002) A documentação como
16435
ferramenta para a construção de um aprendizado respeitoso e Lopes (2009) Sobre o registro
foram realizadas as práticas as quais relatamos agora, assim como, o que o registro das falas
trouxe de reflexão para nós.
A experiência do relato e o relato da experiência
Segundo Zabala apud Lopes (2009, p.29) “no diário o professor expõe-explicainterpreta a sua ação cotidiana na aula e fora dela”, assim um dos registros significativos que
temos e gostaríamos de analisar foi durante a prática de um jogo de perseguição nomeado de
“mãe polenta” realizado pela professora Déborah.
Este jogo é organizado por personagens que interagem entre si antes da brincadeira
de pega-pega acontecer. Nele temos a figura da mãe e dos filhos, e na representação as
crianças assumem seus papéis para brincar.
Durante a realização de outra prática, os alunos Pedro e Isaque pediram que
realizássemos o jogo ”mãe polenta” (já havíamos brincado várias aulas deste jogo, mas eles
ainda pediam). Eu perguntei então o porquê deles querem brincar novamente deste jogo. Os
alunos Gabriely, Isaque e Pedro respondem “porque ela é muito legal” e nós nos divertimos
muito. Partimos então para a realização da prática solicitada pelos alunos, neste caso, todas
as crianças tinham um interesse em ser a mãe.
Ao registrar esse evento iniciou-se um processo de reflexão sobre tal situação, que só
um registro atento poderia causar no professor. Por que os alunos insistiram tanto em
brincar novamente? Eu havia sugerido outra brincadeira de pega-pega, mas eles quiseram
de mãe polenta, por quê? Neste sentido comecei a elaborar estratégias para tentar responder
tais questionamentos. Na aula seguinte realizei duas intervenções, uma com uma brincadeira
de pega-pega tradicional e outra com a mãe polenta e pedi que os alunos registrassem por
meio do desenho a brincadeira que eles mais gostavam e nos desenhos pude verificar que
100% dos alunos desenharam o gato ou a panela de polenta ou a mãe, que são personagens
da brincadeira mãe polenta. Passei então a registrar tal situação e a buscar elementos que
dessem condição a responder minha problemática, chegando à conclusão de que os alunos
apropriaram-se da brincadeira pela riqueza da fantasia e a imaginação que ela causa nas
crianças, criando elas suas próprias culturas infantis.
16436
Duas hipóteses apareceram nesta prática, a primeira ligada ao significado que se
apresenta a brincadeira de papéis, ou o jogo simbólico destacado por Vygotsky. Cujas
crianças assumem papéis de outros
Quando Vygotsky (1984) discute o papel do brinquedo, refere-se especificamente à
brincadeira de "faz-de-conta”, como brincar de casinha, brincar de escolinha, brincar
com um cabo de vassoura como se fosse um cavalo. Faz referência a outros tipos de
brinquedo, mas a brincadeira "faz-de-conta" é privilegiada em sua discussão sobre o
papel do brinquedo no desenvolvimento.
Para o autor, ao reproduzir o comportamento social do adulto em seus jogos, a
criança está combinando situações reais com elementos de sua ação fantasiosa. Esta
fantasia surge da necessidade da criança, em reproduzir o cotidiano da vida do
adulto da qual ela ainda não pode participar ativamente. Porém, essa reprodução
necessita de conhecimentos prévios da realidade exterior, deste modo, quanto mais
rica for a experiência humana, maior será o material disponível para as imaginações
que irão se materializar durante o brincar. (TONIETO, VIEIRA, PAULA e
WANDEMBRUCK, 2006, p. 2915- 2916).
Esta afirmação amplia o nosso olhar sobre a necessidade das crianças em proporem a
mesma brincadeira várias vezes e nos seus registros demonstrarem a sua atratividade pela
brincadeira, a mãe cozinhando a polenta e o gato no telhado.
Outra hipótese que o registro das falas e a reflexão possibilitaram levantar é o
enfrentamento da autoridade adulta durante a atividade. Segundo Corsaro (2011, p.10 e 171)
“as crianças desafiam e até zombam da autoridade adulta em suas brincadeiras” e ainda
citando Helen Scwartsman “as crianças não só testam e refinam aspectos do mundo adulto nas
brincadeiras, mas também as utilizam como uma arena para comentários e críticas”.
Outro relato em que se pode destacar o papel fundamental do registro da fala dos
infantes foi em uma atividade desenvolvida no ano de 2011, pela professora Monique, cuja
prática foi realizada por meio da brincadeira “O Gato e Rato”. Concomitante a esta, outra
atividade vivenciada foi uma variação da brincadeira de pega-pega cuja brincadeira envolveu
imaginação e faz-de-conta.
A brincadeira de Gato e Rato se desenvolveu da seguinte maneira: primeiramente
perguntou-se para as crianças se elas conheciam a brincadeira; em seguida fomos anotando
algumas respostas sobre o que elas já conheciam sobre a atividade; realizamos então a
brincadeira de gato e rato, conhecida tradicionalmente com uma roda; num segundo
momento, fizemos a mesma brincadeira do gato e rato, entretanto com duas rodas utilizandonos da mesma regra da brincadeira anterior, mas com um número menor crianças em cada
uma das rodas. Outra característica desta segunda brincadeira foi a participação de dois
16437
gatos e dois ou mais ratos, pois assim mais crianças poderiam participar na “função
principal do jogo”.
Pontuada a organização e a experiência prática com a brincadeira, perguntou-se às
crianças sobre: o desenvolvimento da atividade, qual das brincadeiras foi a mais interessante
e outras coisas, mas, uma das partes da conversa chamou-nos bastante atenção, sendo assim
aqui transcrevemos um trecho da fala de uma das crianças.
Professora: O que é mais legal de “ser”? Qual a função que vocês mais gostaram?
A maioria responde que preferia ser o gato ou o rato, acredita- se que é pela função
“principal” que o gato ou o rato exercem na brincadeira.
Professora: Vocês conhecem alguma música que fale dos personagens do gato ou do
rato?
Amabyle: Atirei o pau no gato-to, mas o gato-to não morreu....
Professora: Legal. Agora uma música envolvendo o Rato.
Amabyle: - O rato roeu a roupa do rei de Roma,
Professora: Isso não é uma música é um ditado popular. Quem conhece mais algum?
Demos sequência na atividade e então voltamos para sala, finalizamos a atividade
com uma ilustração sobre as atividades do gato e rato.
No momento em que a Amabyle posicionou-se com a expressão do ditado popular,
não tive um olhar sensível para o momento de contribuição e apropriação dos saberes da
criança em questão. Entretanto, após o registro desta fala, pude perceber, pelo processo de
reflexão, o quão enriquecedor era a consideração da criança frente às diferentes aprendizagens
do grupo e sua própria aprendizagem. Ela conseguiu estabelecer relações do que foi
vivenciado (a brincadeira) com o cotidiano da sala de aula, interferindo na aula positivamente.
Para uma criança, às vezes, pode ser difícil estabelecer alguns elos entre uma coisa e outra em um primeiro momento e aquela estudante conseguiu, e após as reflexões e anotações foi
que consegui perceber a efetivação de um processo na aprendizagem daquela criança em
especial.
Refletindo sobre essa prática, é possível perceber a importância do registro nas
práticas pedagógicas diárias do professor, pois através dele é possível refletir sobre a ação e
somente a partir daí é possível ter um olhar diferenciado sobre a prática do registro ou da
avaliação, seja ela na Educação Infantil ou em qualquer outro nível de ensino.
16438
Esse é o processo da práxis pedagógica, onde é preciso agir, parar, repensar a ação e
novamente voltar à ação, desta vez mais elaborada e mais “sensível” às diferentes
aprendizagens.
A partir da reflexão sobre a ação da prática, podemos pensar em Schön (1995,2000)
apud Nadolny (2010, p.25):
(...) a partir de uma crítica à racionalidade técnica, propõe uma nova epistemologia
da prática, uma proposta de formação que integra a teoria e a prática em um ensino
reflexivo. Para ele existe um conhecimento na, um tipo de conhecimento que
revelamos na ação que aliado à reflexão na ação e à reflexão sobre a ação e sobre
a reflexão na ação, constitui o pensamento prático do professor. Estes componentes
que não são independentes se completam na intervenção prática e possibilitam a
formação de um profissional prático reflexivo. Este autor explica que a reflexão na
ação refere-se à tomada de decisão por parte do professor quando este está
ativamente envolvido no ensino, ou seja, quando este reflete no meio da ação sem
interrompê-la.
Ainda queremos compartilhar uma última experiência, registrado pela professora
Déborah que legitima a importância do registro da fala das crianças em consonância com uma
prática reflexiva convergindo para realimentação e reorientação da prática pedagógica.
No mês de julho/agosto do ano de 2012 realizei uma prática envolvendo o evento dos
Jogos Olímpicos, no decorrer das atividades passei a realizar brincadeiras de corridas,
baseadas no Atletismo, e eu disse às crianças que naquela aula nós “correríamos muito, mas
muito mesmo”. Assim, às crianças passaram a realizar indagações inesperadas,
apropriando-se do outros conhecimentos referente ao corpo para além daqueles que estavam
sendo propostos. Aqui transcrevemos algumas considerações que as crianças fizeram:
Bruna: Por que quando as crianças correm elas correm muito rápido?
Ketlin: Por que quando a gente corre o coração muito rápido? (ao tentar fazer a
transposição didática deste conhecimento falo sobre a circulação sanguínea e a mesma aula
complementa minha fala com uma consideração muito relevante). - “O sangue serve para
nós sobrevivermos”.
Maria Elisa: Quando a gente correr devagar o coração bate devagar.
Vania: Por que quando a gente corre o coração não para?
Daniel: Os ossos nos faz sobreviver né?
Ketlin: A gente tem um monte de osso se não a gente fica bem molinho.
Daniel: Por que a gente tem carne aqui (mostrando a barriga).
16439
Cada indagação realizada pelos pequenos foi respondida de alguma forma naquele
momento e assim surgiam outras questões que os mesmos levantavam, entretanto foi pelo
registro da fala das crianças que pudemos pensar e analisar o quão rica estava sendo esta
experiência para elas, além de permitir que nós reorientássemos nossa prática, retomando as
preposições levantadas pelas crianças e conduzindo outras práticas pedagógicas para que elas
se apropriassem dos saberes os quais as instigavam.
Neste sentido, concordamos com Gandini e Goldhaber (2002, p. 152) ao afirmarem
que “através da observação e da escuta atenta e cuidadosa às crianças, podemos encontrar
uma forma de realmente enxergá-las e conhecê-las. Ao fazê-la, tornamos- nos capazes de
respeitá-las pelo que elas são e pelo que elas querem dizer”.
Algumas considerações
Retomando os elementos trazidos pelo texto, partimos de num primeiro momento de
alguns elementos históricos que nos mostram que a criança foi concebida por muito tempo
por um sujeito sem voz e dependente em todos os aspectos do adulto e sujeitos à sua cultura.
Tal concepção tem sido desconstruída ao longo anos percebendo-se que esta criança é
um sujeito de direitos capaz de construir sua própria cultura, como observamos nos registros
das falas. Ao realizamos os registros das falas das crianças durante nossa práxis pedagógica
damos voz a essa criança, colocando-as no centro de nossa prática e respeitando sua
capacidade de construir suas próprias culturas.
É importante retomar sempre a questão do registro como algo fundamentalmente
importante para as aulas, pois, somente através deles pode-se estabelecer um paralelo entre o
que é discutido, teorizado e o que nossa realidade, por meio de nossa prática é capaz de
confirmar, ou não. Retomar a discussão sobre o registro é uma de nossas maiores angústias
porque conseguimos identificar a positividade deles para uma prática reflexiva.
Num segundo momento, destacamos a importância da nossa participação no Projeto de
formação de professores Educamovimento, pois, a partir de nossas experiências, estudos e
discussões neste grupo, nosso olhar para a pequena infância foi transformado, e nossas
práticas pedagógicas passaram cada vez mais a dar voz a este sujeito.
Por fim, a última parte deste texto, transcreve todo o caminho percorrido por nós
professores para mudança na prática pedagógica e solidifica a importância do registro da fala
16440
das crianças para que efetivamente elas tornem-se este sujeito cultural o qual a educação
infantil está incumbida de formar.
REFERÊNCIAS
ABRAMOWICS, Anete. A pesquisa com crianças em infâncias e a sociologia da infância. In:
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