O “REGISTRO” COMO MEMÓRIA DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM MOVIMENTO NA EDUCAÇÃO INFANTIL DE PAULA, Déborah Helenise Lemes de Paula1 - SME WANDEMBRUCK, Paola Monique2 - SME Grupo de Trabalho - Didática: Teorias, Metodologias e Práticas Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo O trabalho com crianças da pequena infância vem sendo construído há algum tempo. Entretanto o pensar sobre esse fazer pedagógico, sobre esta criança neste espaço educativo é recente. A etimologia da palavra infância origina-se do latim infante, e refere-se a ausência da fala. Por muito tempo, num contexto sócio-histórico a criança era enxergada desta única maneira, sem direitos, sem voz, dependente do mundo adulto. Neste sentido, as produções acadêmicas das últimas décadas tem discutido esse espaço educativo para a infância partindo da criança, olhando para ela como sujeito de direitos e produtora de cultura. Há uma grande preocupação para que esses sujeitos tenham VOZ no espaço que os formam. Adotando esta perspectiva, reconhece-se o valor, a importância e a necessidade da fala no processo formativo da infância. Assim um encaminhamento pedagógico que visualize o registro da fala dos pequenos permite enxergar com maior propriedade o processo de apropriação do conhecimento sob o olhar da criança. Neste sentido, busca-se aqui discutir sobre os registros das falas das crianças, a importância da documentação desse processo e a utilização deste como um instrumento avaliativo. Traz também experiências sobre o registro da fala das crianças norteado pelas discussões, da infância, da criança pequena, das formas de registros e documentação e seus enlaces com a Linguagem Movimento, em turmas de Educação Infantil de uma Escola de Educação em tempo Integral do município de Curitiba. Esses registros buscam captar a fala das crianças investigando os processos de produção e reprodução das culturas infantis e apropriação de saberes do Movimento. Palavras-chave: Registro e documentação. Criança. Relato. 1 Professora de Educação Física na Prefeitura Municipal de Curitiba. Formada em Educação Física pela PUCPR e Pedagogia pela UFPR. Especialista em Educação Física Escolar pela UFPR. E-mail: [email protected]. 2 Professora de Educação Física na Prefeitura Municipal de Curitiba. Formada em Educação Física pela PUCPR e Pedagogia pela UFPR. Especialista em Educação Física Escolar pela UFPR. E-mail: [email protected]. 16428 Introdução O trabalho com crianças da pequena infância, historicamente, vem sendo construído há algum tempo. Entretanto as discussões acadêmicas sobre esse fazer pedagógico, sobre esta criança neste espaço educativo é recente. A etimologia da palavra infância origina-se do latim infante, e refere-se a ausência da fala. Por muito tempo, num contexto sócio-histórico a criança era enxergada desta única maneira, sem direitos, sem voz, dependente do mundo adulto. O espaço da criança no contexto social pode ser considerado um espaço inventado, neste sentido, nos aproximamos dos estudos de Schmidt (1997). A autora em sua dissertação de mestrado percorre o caminho histórico sobre o espaço que a criança ocupa em determinados contextos sociais. Retrata inicialmente o período da antiguidade, que outrora essas crianças não eram considerada pessoas originais, com valor em si próprio. Prosseguindo, nos trás a compreensão de infância partindo do pensamento cristão, que representa a infância como algo sagrado e símbolo da promessa de paz, mas também numa perspectiva rude e de punição, que se apresenta entre o bem e o mal, entre a inocência, a pureza e o pecado. Posterior a isto, a ideia de infância enquanto fenômeno sócio cultural “parte de um conjunto de transformações de parte da sociedade ocidental, que ocorreram entre o século XVII e início do XX.” (SCHMIDT, 1997, p.23). O primeiro imaginário que efetivamente se constrói sobre a infância e que nos aproxima um pouco mais do que temos de conceito hoje, configura-se pelo princípio de que a criança é diferente do adulto, que necessita de cuidados diferenciados e de afeto. Charlot (1979) ao tratar dos cuidados diferenciados, afirma que a dependência da criança com relação ao adulto é um fato social e não natural oriundo principalmente da classe média que Ariès apud Kramer (2007, p.15) afirma ser “marcada por um duplo modo de ver as crianças, pela contradição entre moralizar (treinar, conduzir, controlar a criança) e paparicar (achá-la engraçadinha, ingênua, pura querer mantê-la como criança)”. Vale ressaltar que essa relação de dependência – da criança com relação ao adulto – é bem característica das instituições educativas até os tempos atuais, marcado por uma relação de verticalidade, cujo o adulto é detentor de todo e qualquer saber, onde não há espaço muitas vezes para o sujeito criança expressar-se, manifestar-se e produzir cultura com seus pares. 16429 Kramer (2007, p. 14) nos diz “a ideia de infância não existiu sempre e da mesma maneira, ao contrário, a noção de infância surgiu com a sociedade capitalista, urbanoindustrial, na medida em que mudavam a inserção e o papel social da criança na sua comunidade”. Deste modo, a infância é uma construção social, influenciada pelos contextos sociais dos quais fazem parte. O processo de industrialização, a passagem do feudalismo para o capitalismo, dos modos de produção domésticos para os modos de produção fabril exigiram uma nova reorganização social, possibilitando a entrada da mulher no mercado de trabalho, alterando assim a forma de organização familiar e a maneira das famílias cuidarem dos seus filhos, formando a tríade: mulher-trabalho-criança (DIDONET apud PASCHOAL e MACHADO, 2009). À medida que as mulheres saem para um novo cotidiano de trabalho, instaura-se a necessidade de instituições que assumam o cuidado dos seus filhos, tendo esse fenômeno poder decisivo para a constituição das instituições de cuidado da criança pequena. Assim, num contexto de modernidade e de industrialização acena uma concepção de infância na sociedade moderna, concomitantemente aos processos de escolarização, tendo a escola o papel de substituir a família como espaço de aprendizagem. Então, essas instituições que, inicialmente tinham o propósito de cuidar e proteger as crianças enquanto suas mães trabalhavam, ao longo do processo foram tomando forma de instituições educativas. Neste sentido, as produções acadêmicas das últimas décadas tem discutido esse espaço educativo para a infância partindo da criança, olhando para ela como sujeito de direitos e produtora de cultura. Há uma grande preocupação para que esses sujeitos tenham VOZ no espaço que os formam, assim de acordo com Agamben apud Abramowicz (2011, p.18) “(...) a infância, em vez de ser um momento de “sem fala”, é a única possibilidade de construir fala”. Adotando esta perspectiva, reconhece-se o valor, a importância e a necessidade da fala no processo formativo da infância. Temos também, por exemplo, os estudos da Sociologia da Infância que tem se apropriado com muita riqueza da fala das crianças. Assim um encaminhamento pedagógico que visualize o registro da fala dos pequenos permite enxergar com maior propriedade o processo de apropriação do conhecimento sob o olhar da criança. Entendendo o processo de construção de sua identidade, bem como, a partir do que falam compreender a organização de suas ideias. Assim, o texto que ora pretende-se discutir, trata-se de um pensar sobre os registros das falas das crianças, a importância da documentação desse processo e a utilização disto 16430 como um instrumento avaliativo. Trazemos também nossas experiências sobre o registro da fala das crianças norteado pelas discussões, da infância, da criança pequena, das formas de registros e documentação e seus enlaces com a Linguagem Movimento3, em turmas de Educação Infantil de uma Escola de Educação de tempo Integral4 do município de Curitiba (CEI). Esses registros buscam captar a fala das crianças investigando os processos de produção e reprodução das culturas infantis e apropriação de saberes do Movimento. Conversando sobre registro Segundo a LDB (BRASIL, 1996), o processo avaliativo na Educação Infantil, dar-se-á “mediante acompanhamento e registro do seu desenvolvimento” (BRASIL, 1996, p.26). Evidencia-se nesta afirmativa que existe uma significação própria e importante dos Registros na Educação Infantil outorgando legitimidade ao que será relatado. Falar de registros nos remete ir além de simples anotações, é entender a realidade e o desenvolvimento da criança, é analisar seu cotidiano e sua relação com o outro. Através do registro transferimos à sociedade nossa insígnia, ele eterniza o pensamento humano, produz memória e compõe sua história (Ramires, 2008). Com anotações das falas e a exploração de diferentes registros do processo de desenvolvimento da criança é possível compreender como organizam seu pensamento e como se efetiva o aprendizado desta criança. No intuito de registrar ou documentar é necessário primeiramente estabelecer quais os instrumentos que serão utilizados para essa primeira análise. Gandini e Goldhaber (2002, p.156-157) explicam como podemos documentar esses registros: A documentação pode ser apresentada de muitas maneiras diferentes, incluindo painéis, materiais escritos ou digitados – livros, cadernos, cartas, panfletos, e ainda caixas, tecidos, instalações e outros tipos de materiais – esse tipo de documentação deve vir acompanhado pelas interpretações do professor e, quando for possível, pelos diálogos e pensamentos das crianças. 3 Linguagem Movimento é um conceito que tem sido adotado nos últimos anos, em documentos que norteiam as práticas pedagógicas na Educação Infantil referindo-se às práticas corporais na pequena infância, tendo como elemento estruturante a linguagem e os conhecimentos sistematizados, construídos historicamente da cultura corporal. 4 São escolas com ampliação da jornada escolar que tem como objetivo formar crianças para o exercício do direito e da cidadania, com qualidade, valorizando seus aspectos cognitivos, sociais, motores, afetivos e culturais. 16431 Antes mesmo de documentar ou registrar é preciso criar estratégias de como fazer. Isso depende de um bom planejamento que consiga dar conta da necessidade da criança, somado a abrangência do Projeto Político Pedagógico que deve caminhar junto com a intencionalidade do professor observador. Quando planeja um caminho, traça-se metas a serem cumpridas que podem ou não sofrer alterações durante o processo de construção. No entanto é importante ter um planejamento muito consistente sobre onde se deseja chegar para esboçar um caminho sólido e com isso os registros e documentações significativos para o processo da criança no contexto escolar. Assim como escreve Gandini e Goldhaber (2002 p. 162) “O registro deve ser feito com cuidado, levando em consideração o contexto do cenário, as perguntas, se e que elas foram identificadas, e os objetivos”. Acredita-se que documentar seja a maneira mais eficiente de avaliar um processo educativo, seja essa documentação feita através de escritos, gravações, filmagens, etc. Falamos da documentação feita de maneira sensível, analisando experiências e todo o contexto da criança, não tratamos aqui do simples registro como forma compilativa de anotações que mais tarde não servirão para nada. A documentação não se configura “como algo estático ou acabado, ao contrário, (...) a documentação é a constante busca do entendimento” (GANDINI E GOLDHABER, 2002 p. 160). Pensar nesses registros e utilizálos para compreender a criança é entender que essa criança faz parte de diferentes culturas e essa contribui para a formação humana. Quando se documenta faz-se uma revisão daquilo que se foi planejado e a partir disso é possível reviver, reavaliar, repensar sobre aquilo que foi ou não ensinado durante o processo. Permite-nos avaliar todo um caminho construído em um espaço de tempo. Para realizar esses registros é necessário fazer algumas avaliações rápidas, porém realimentá-las em seguida, para que a documentação não se torne efêmera. Essa maneira de organização pode-se dizer que se constituem quase sempre de boas práticas de professores preocupados com o real e efetivo desenvolvimento e aprendizagem da criança, devendo deixar para trás o modo isolado e linear com que se trabalhava algumas décadas atrás. A prática de registro é também a maneira que fazemos história e construímos memória. Ramires (2008, p.46) destaca que através do registro produzimos marcas no mundo. Quando registramos algo, estamos de certa forma avaliando, avaliamos nossa prática, como poderia ter sido feito, onde poderíamos melhorar qual a relevância de uma fala ou de um gesto da criança para reestruturar novas práticas e novas maneiras de avaliar e registrar. 16432 Essa é uma das necessidades em se registrar, é fazer a reflexão sobre a ação, e a partir disso constituir conceitos com as crianças sobre uma ou mais práticas específicas. Quando o observador observa uma determinada prática ele a vê como um campo repleto de intencionalidades, pois é a partir dali, de uma situação dada que se amplia o olhar sobre a realidade da criança. O olhar do professor-observador não é neutro e assim se faz necessário, pois apresenta intenções sobre aquilo que planeja, executa e avalia. Ao se fazermos menção à LDB (1996), que expressa sobre concepção de acompanhamento do desenvolvimento da criança na Educação Infantil, nos baseamos no pressuposto de que cabe ao educador um olhar atento a essas crianças num processo contínuo de investigação e reflexão dos saberes que estão sendo apropriados. Justaposto a isso a documentação torna-se elemento fundamental, dando legitimidade a este processo investigativo (RAMIRES, 2008). “A documentação constitui uma ferramenta indispensável para que os educadores possam construir experiências positivas para as crianças, a documentação serve para confirmar algo que consideramos relevante.” (GANDINI E GOLDHABER, 2002, p. 150). Porque registrarmos as falas? A criança transmite o que pensa pelo seu corpo, movimento e por sua fala. O registro do que realiza “dá voz à criança e possibilita aos outros uma compressão sobre a forma como vê e sente o mundo ao seu redor” (RAMIRES, 2008 p.51). Esse processo também se constitui “espaço teórico das práticas” (CIFALI apud LOPES, 2009. P.36). Dahlberg, Moss & Pence (2003, p.72) nos dizem: Segundo Loris Malaguzzi, “uma criança recebe uma centena de linguagens e nasce com muitas possibilidades e com muitas expressões e potencialidades que estimulam uma à outra – mas das quais são facilmente privadas através do sistema educacional” (citado em Wallin, Maechel e Barsoti, 1981). Por isso, a criança pequena deve ser levada a sério. Ativa e competente, ela tem ideias e teorias que não apenas valem a pena serem ouvidas, mas também merecem escrutínio e, quando for o caso, questionamento e desafio. Neste sentido, a fala torna-se um recurso indispensável nas práticas de registro, fazendo da criança co-construtora ativa do seu processo de aprendizagem. Garantindo ao professor documentação da sua prática e do desenvolvimento da criança. 16433 Apresentando os sujeitos dos quais se narra As reflexões que aqui nos propomos realizar estão pautadas nas discussões acerca do registro das falas das crianças e paulatinamente a avaliação. Entretanto antes de relatarmos reflexivamente sobre as experiências das práticas de registro na Educação Infantil, entendemos que é necessário falarmos um pouco dos sujeitos inseridos nesta prática, pois como já dissemos o registro não é um ato neutro ele vem acompanhado de toda concepção política, social e de formação humana que o professor possui, para tanto compreender quem são essas pessoas de onde vem e para onde vão é imprescindível. As professoras mencionadas nesse texto são as professoras Déborah e Monique5. Nossa história acadêmica é marcada por algumas aproximações. No ano de 2001, no primeiro semestre e no segundo semestre respectivamente ingressamos no curso de Licenciatura em Educação Física na PUCPR. Em nosso processo de formação acadêmica, nosso foco de estudo foi em grande parte voltado para a instituição escolar, entretanto nos faltou a discussão sobre a educação da pequena infância. Quando, em alguma disciplina tratava-se da discussão sobre a criança de 0 a 6 anos esta, estava em detrimento exclusivamente do desenvolvimento motor. Encaminhamentos pedagógicos, organização da Educação da Infantil, metodologias do ensino, práxis e outras temáticas relevantes para compor a formação dos sujeitos que iriam atuar com a educação dos pequenos foram excluídas do processo formativo. Pensar sobre nosso processo formativo é essencial para compreender posteriormente o papel que o Projeto Educamovimento exerceu em nossa prática profissional. No ano de 2006 ingressamos no curso de Especialização em Educação Física Escolar e no mesmo ano assumimos o papel de docentes na Prefeitura Municipal de Curitiba, atuando com crianças da Educação Infantil e Ensino Fundamental primeira etapa. Neste processo nos aproximamos dos cursos de formação em Linguagem Movimento na Educação Infantil, o que abriu caminhos para que passássemos a olhar esta etapa de formação de outra maneira. No ano de 2010 e 2011 as professoras Déborah e Monique, respectivamente, iniciaram sua participação, após um curso de formação continuada sobre Linguagem Movimento, no projeto Educamovimento: saberes e práticas na Educação Infantil. Esse projeto de formação 5 Utilizaremos a 3º pessoa do plural e em alguns momentos a 1º pessoa do singular para nos referirmos à nossa trajetória acadêmica e profissional bem como do relato dos registros. 16434 inicial e continuada, de parceria entre UFPR e Prefeitura Municipal de Curitiba, coordenado pela Professora Doutora Marynelma Camargo Garanhani e a Mestre em Educação Lorena de Fátima Nadolny foi fundamental para os encaminhamentos frente ao processo de registro da fala das crianças. O presente projeto mobilizou os professores à reflexão e reorganização constante de suas práticas pedagógicas com as turmas de Educação Infantil - crianças de quatro e cinco anos - de diferentes Escolas Municipais da cidade de Curitiba, bem como em Centros Municipais de Educação Infantil da mesma cidade. Durante os anos de 2008, 2009, 2010 e 2011, o grupo encontrou-se uma vez por mês para socializar suas práticas docentes, construir e desconstruir conceitos, discutir estudos referentes ao tema infância e outras questões que norteiam a docência na pequena infância, acrescentado a discussão sobre a formação dos professores com essa pequena infância. Dos encontros, eram tiradas ações que deviam ser desenvolvidos durante um período de tempo, seja a leitura de algum livro, capítulos, textos, construções e apresentações de trabalhos em seminários, etc., com intuito de refletir e reorganizar as ações didáticas, ações estas que contribuíam cotidianamente para as práticas escolares, pois se tornava necessário estabelecer um paralelo entre o que estava se concretizando nas aulas e, para além disso, como era possível construir ou desconstruir essas práticas a partir das discussões e leituras que eram feitas. Essa reflexão constante sobre qual o melhor caminho, como fazer para alcançar tais e tais objetivos, quais foram importantes para realmente “nos formar” uns com os outros na construção coletiva foram alguns dos questionamentos que, pode-se dizer, nos auxiliaram na construção de uma identidade intelectual e profissional. Durante este processo de formação muitas dúvidas apareceram, algumas sanadas, outras, porém, só nos aguçaram na busca de novas descobertas acerca da organização dos questionamentos das crianças e o porquê falam certas coisas. Nesse processo de organização dos nossos aprendizados, muito foi se construindo. Um dos desafios lançados aos profissionais partícipes do projeto foi a construção de um diário, pois segundo Lopes (2009, p.29) o “diário funciona como reflexão para seu escritos, encerrando, portanto possibilidades formativas”, nele deveria conter registros das práticas educativas com as turmas de Educação Infantil de 4 a 5 anos, dentre elas as falas das crianças. Partindo de dois referenciais teóricos: Gandini (2002) A documentação como 16435 ferramenta para a construção de um aprendizado respeitoso e Lopes (2009) Sobre o registro foram realizadas as práticas as quais relatamos agora, assim como, o que o registro das falas trouxe de reflexão para nós. A experiência do relato e o relato da experiência Segundo Zabala apud Lopes (2009, p.29) “no diário o professor expõe-explicainterpreta a sua ação cotidiana na aula e fora dela”, assim um dos registros significativos que temos e gostaríamos de analisar foi durante a prática de um jogo de perseguição nomeado de “mãe polenta” realizado pela professora Déborah. Este jogo é organizado por personagens que interagem entre si antes da brincadeira de pega-pega acontecer. Nele temos a figura da mãe e dos filhos, e na representação as crianças assumem seus papéis para brincar. Durante a realização de outra prática, os alunos Pedro e Isaque pediram que realizássemos o jogo ”mãe polenta” (já havíamos brincado várias aulas deste jogo, mas eles ainda pediam). Eu perguntei então o porquê deles querem brincar novamente deste jogo. Os alunos Gabriely, Isaque e Pedro respondem “porque ela é muito legal” e nós nos divertimos muito. Partimos então para a realização da prática solicitada pelos alunos, neste caso, todas as crianças tinham um interesse em ser a mãe. Ao registrar esse evento iniciou-se um processo de reflexão sobre tal situação, que só um registro atento poderia causar no professor. Por que os alunos insistiram tanto em brincar novamente? Eu havia sugerido outra brincadeira de pega-pega, mas eles quiseram de mãe polenta, por quê? Neste sentido comecei a elaborar estratégias para tentar responder tais questionamentos. Na aula seguinte realizei duas intervenções, uma com uma brincadeira de pega-pega tradicional e outra com a mãe polenta e pedi que os alunos registrassem por meio do desenho a brincadeira que eles mais gostavam e nos desenhos pude verificar que 100% dos alunos desenharam o gato ou a panela de polenta ou a mãe, que são personagens da brincadeira mãe polenta. Passei então a registrar tal situação e a buscar elementos que dessem condição a responder minha problemática, chegando à conclusão de que os alunos apropriaram-se da brincadeira pela riqueza da fantasia e a imaginação que ela causa nas crianças, criando elas suas próprias culturas infantis. 16436 Duas hipóteses apareceram nesta prática, a primeira ligada ao significado que se apresenta a brincadeira de papéis, ou o jogo simbólico destacado por Vygotsky. Cujas crianças assumem papéis de outros Quando Vygotsky (1984) discute o papel do brinquedo, refere-se especificamente à brincadeira de "faz-de-conta”, como brincar de casinha, brincar de escolinha, brincar com um cabo de vassoura como se fosse um cavalo. Faz referência a outros tipos de brinquedo, mas a brincadeira "faz-de-conta" é privilegiada em sua discussão sobre o papel do brinquedo no desenvolvimento. Para o autor, ao reproduzir o comportamento social do adulto em seus jogos, a criança está combinando situações reais com elementos de sua ação fantasiosa. Esta fantasia surge da necessidade da criança, em reproduzir o cotidiano da vida do adulto da qual ela ainda não pode participar ativamente. Porém, essa reprodução necessita de conhecimentos prévios da realidade exterior, deste modo, quanto mais rica for a experiência humana, maior será o material disponível para as imaginações que irão se materializar durante o brincar. (TONIETO, VIEIRA, PAULA e WANDEMBRUCK, 2006, p. 2915- 2916). Esta afirmação amplia o nosso olhar sobre a necessidade das crianças em proporem a mesma brincadeira várias vezes e nos seus registros demonstrarem a sua atratividade pela brincadeira, a mãe cozinhando a polenta e o gato no telhado. Outra hipótese que o registro das falas e a reflexão possibilitaram levantar é o enfrentamento da autoridade adulta durante a atividade. Segundo Corsaro (2011, p.10 e 171) “as crianças desafiam e até zombam da autoridade adulta em suas brincadeiras” e ainda citando Helen Scwartsman “as crianças não só testam e refinam aspectos do mundo adulto nas brincadeiras, mas também as utilizam como uma arena para comentários e críticas”. Outro relato em que se pode destacar o papel fundamental do registro da fala dos infantes foi em uma atividade desenvolvida no ano de 2011, pela professora Monique, cuja prática foi realizada por meio da brincadeira “O Gato e Rato”. Concomitante a esta, outra atividade vivenciada foi uma variação da brincadeira de pega-pega cuja brincadeira envolveu imaginação e faz-de-conta. A brincadeira de Gato e Rato se desenvolveu da seguinte maneira: primeiramente perguntou-se para as crianças se elas conheciam a brincadeira; em seguida fomos anotando algumas respostas sobre o que elas já conheciam sobre a atividade; realizamos então a brincadeira de gato e rato, conhecida tradicionalmente com uma roda; num segundo momento, fizemos a mesma brincadeira do gato e rato, entretanto com duas rodas utilizandonos da mesma regra da brincadeira anterior, mas com um número menor crianças em cada uma das rodas. Outra característica desta segunda brincadeira foi a participação de dois 16437 gatos e dois ou mais ratos, pois assim mais crianças poderiam participar na “função principal do jogo”. Pontuada a organização e a experiência prática com a brincadeira, perguntou-se às crianças sobre: o desenvolvimento da atividade, qual das brincadeiras foi a mais interessante e outras coisas, mas, uma das partes da conversa chamou-nos bastante atenção, sendo assim aqui transcrevemos um trecho da fala de uma das crianças. Professora: O que é mais legal de “ser”? Qual a função que vocês mais gostaram? A maioria responde que preferia ser o gato ou o rato, acredita- se que é pela função “principal” que o gato ou o rato exercem na brincadeira. Professora: Vocês conhecem alguma música que fale dos personagens do gato ou do rato? Amabyle: Atirei o pau no gato-to, mas o gato-to não morreu.... Professora: Legal. Agora uma música envolvendo o Rato. Amabyle: - O rato roeu a roupa do rei de Roma, Professora: Isso não é uma música é um ditado popular. Quem conhece mais algum? Demos sequência na atividade e então voltamos para sala, finalizamos a atividade com uma ilustração sobre as atividades do gato e rato. No momento em que a Amabyle posicionou-se com a expressão do ditado popular, não tive um olhar sensível para o momento de contribuição e apropriação dos saberes da criança em questão. Entretanto, após o registro desta fala, pude perceber, pelo processo de reflexão, o quão enriquecedor era a consideração da criança frente às diferentes aprendizagens do grupo e sua própria aprendizagem. Ela conseguiu estabelecer relações do que foi vivenciado (a brincadeira) com o cotidiano da sala de aula, interferindo na aula positivamente. Para uma criança, às vezes, pode ser difícil estabelecer alguns elos entre uma coisa e outra em um primeiro momento e aquela estudante conseguiu, e após as reflexões e anotações foi que consegui perceber a efetivação de um processo na aprendizagem daquela criança em especial. Refletindo sobre essa prática, é possível perceber a importância do registro nas práticas pedagógicas diárias do professor, pois através dele é possível refletir sobre a ação e somente a partir daí é possível ter um olhar diferenciado sobre a prática do registro ou da avaliação, seja ela na Educação Infantil ou em qualquer outro nível de ensino. 16438 Esse é o processo da práxis pedagógica, onde é preciso agir, parar, repensar a ação e novamente voltar à ação, desta vez mais elaborada e mais “sensível” às diferentes aprendizagens. A partir da reflexão sobre a ação da prática, podemos pensar em Schön (1995,2000) apud Nadolny (2010, p.25): (...) a partir de uma crítica à racionalidade técnica, propõe uma nova epistemologia da prática, uma proposta de formação que integra a teoria e a prática em um ensino reflexivo. Para ele existe um conhecimento na, um tipo de conhecimento que revelamos na ação que aliado à reflexão na ação e à reflexão sobre a ação e sobre a reflexão na ação, constitui o pensamento prático do professor. Estes componentes que não são independentes se completam na intervenção prática e possibilitam a formação de um profissional prático reflexivo. Este autor explica que a reflexão na ação refere-se à tomada de decisão por parte do professor quando este está ativamente envolvido no ensino, ou seja, quando este reflete no meio da ação sem interrompê-la. Ainda queremos compartilhar uma última experiência, registrado pela professora Déborah que legitima a importância do registro da fala das crianças em consonância com uma prática reflexiva convergindo para realimentação e reorientação da prática pedagógica. No mês de julho/agosto do ano de 2012 realizei uma prática envolvendo o evento dos Jogos Olímpicos, no decorrer das atividades passei a realizar brincadeiras de corridas, baseadas no Atletismo, e eu disse às crianças que naquela aula nós “correríamos muito, mas muito mesmo”. Assim, às crianças passaram a realizar indagações inesperadas, apropriando-se do outros conhecimentos referente ao corpo para além daqueles que estavam sendo propostos. Aqui transcrevemos algumas considerações que as crianças fizeram: Bruna: Por que quando as crianças correm elas correm muito rápido? Ketlin: Por que quando a gente corre o coração muito rápido? (ao tentar fazer a transposição didática deste conhecimento falo sobre a circulação sanguínea e a mesma aula complementa minha fala com uma consideração muito relevante). - “O sangue serve para nós sobrevivermos”. Maria Elisa: Quando a gente correr devagar o coração bate devagar. Vania: Por que quando a gente corre o coração não para? Daniel: Os ossos nos faz sobreviver né? Ketlin: A gente tem um monte de osso se não a gente fica bem molinho. Daniel: Por que a gente tem carne aqui (mostrando a barriga). 16439 Cada indagação realizada pelos pequenos foi respondida de alguma forma naquele momento e assim surgiam outras questões que os mesmos levantavam, entretanto foi pelo registro da fala das crianças que pudemos pensar e analisar o quão rica estava sendo esta experiência para elas, além de permitir que nós reorientássemos nossa prática, retomando as preposições levantadas pelas crianças e conduzindo outras práticas pedagógicas para que elas se apropriassem dos saberes os quais as instigavam. Neste sentido, concordamos com Gandini e Goldhaber (2002, p. 152) ao afirmarem que “através da observação e da escuta atenta e cuidadosa às crianças, podemos encontrar uma forma de realmente enxergá-las e conhecê-las. Ao fazê-la, tornamos- nos capazes de respeitá-las pelo que elas são e pelo que elas querem dizer”. Algumas considerações Retomando os elementos trazidos pelo texto, partimos de num primeiro momento de alguns elementos históricos que nos mostram que a criança foi concebida por muito tempo por um sujeito sem voz e dependente em todos os aspectos do adulto e sujeitos à sua cultura. Tal concepção tem sido desconstruída ao longo anos percebendo-se que esta criança é um sujeito de direitos capaz de construir sua própria cultura, como observamos nos registros das falas. Ao realizamos os registros das falas das crianças durante nossa práxis pedagógica damos voz a essa criança, colocando-as no centro de nossa prática e respeitando sua capacidade de construir suas próprias culturas. É importante retomar sempre a questão do registro como algo fundamentalmente importante para as aulas, pois, somente através deles pode-se estabelecer um paralelo entre o que é discutido, teorizado e o que nossa realidade, por meio de nossa prática é capaz de confirmar, ou não. Retomar a discussão sobre o registro é uma de nossas maiores angústias porque conseguimos identificar a positividade deles para uma prática reflexiva. Num segundo momento, destacamos a importância da nossa participação no Projeto de formação de professores Educamovimento, pois, a partir de nossas experiências, estudos e discussões neste grupo, nosso olhar para a pequena infância foi transformado, e nossas práticas pedagógicas passaram cada vez mais a dar voz a este sujeito. Por fim, a última parte deste texto, transcreve todo o caminho percorrido por nós professores para mudança na prática pedagógica e solidifica a importância do registro da fala 16440 das crianças para que efetivamente elas tornem-se este sujeito cultural o qual a educação infantil está incumbida de formar. REFERÊNCIAS ABRAMOWICS, Anete. A pesquisa com crianças em infâncias e a sociologia da infância. In: FARIA, Ana Lúcia Goulart de; FINCO, Daniela (orgs.). Sociologia da Infância no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2011. BRASIL. LDB: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: lei n. 9.394, de 20 de Dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação Edições Câmara, 2010. Disponível em: <http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/2762/ldb_5ed.pdf>. Acesso em 28 de novembro de 2012. CHARLOT, Bernard. A Mistificação Pedagógica: realidade sociais processos ideológicos na teoria da educação. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1979. CORSARO, Willian. Sociologia da Infância. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2011. DAHLBERG, Gunilla; MOSS Peter; Pence ALAN. Qualidade na educação da primeira infância: perspectivas pós-modernas. Porto Alegre: Artmed, 2003. GANDINI, Lella; GOLDHABER Jeanne. Duas Reflexões sobre a Documentação. In: GANDINI, Lella e EDWARDS, Carolyn (orgs.). Bambini: a abordagem italiana à educação infantil. Porto Alegre: Artmed, 2002. p. 150-169. KRAMER, S. A infância e sua singularidade. In: BRASIL. Ministério da Educação. Ensino fundamental de nove anos: orientações para a inclusão da criança de 6 anos de idade. Brasília, DF, 2007. p. 19-21. LOPES, Amanda Cristina Teagno. Educação Infantil e registro de práticas. São Paulo: Cortez, 2009. NALDONY, Lorena de Fátima. Estratégias de formação continuada para professores de educação infantil: em foco a linguagem movimento. 2010. 101f. Dissertação (Mestrado em Educação) _ Setor de Educação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba. 2010. PASCHOAL, Jaqueline. Delgado.; MACHADO, Maria Cristina Gomes. A história da Educação Infantil no Brasil: Avanços, retrocessos e desafios dessa modalidade educacional. Revista HISTEDBR on-line, Campinas, n.33, p.78-95, mar. 2009. RAMIRES, Jussara Martins Silveira. A construção do portfólio de avaliação em uma escola municipal de educação infantil de São Paulo: um relato crítico. 2008. 292 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. 16441 SCHMIDT, Maria Auxiliadora Moreira dos Santos. INFÂNCIA: SOL DO MUNDO – A primeira conferência nacional de educação e a construção da infância brasileira. Curitiba, 1927. 1997. 216 f. Tese (Doutorado em História) – Departamento de História, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1997. TONIETTO, Marcos Rafael; VIEIRA, Flávia Gonzaga Lopes; PAULA, Déborah Helenise Lemes de; WANDEMBRUCK, Monique Paola. BRINCAR: Uma Experiência da Teoria de Vygotsky. In: VI EDUCERE - Congresso Nacional de Educação - PUCPR, 2006, Curitiba. Anais do VI Educere, 2006.