CANUDOS/BELO MONTE: IMAGENS CONTANDO HISTÓRIA Sérgio GUERRA UNEB/SALVADOR e UCSAL. [email protected] A presente comunicação resulta da tese homônima de doutorado, em História Social, no 14 de junho de 2005, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP, constituindo-se em um estudo do episódio conhecido como “A Guerra de Canudos”, a partir das imagens, produzidas pelo fotógrafo Flávio de Barros, presente junto ao comando do exército invasor, de onde também resultou o livro fundador “Os sertões”1, de Euclydes da Cunha, um dos romances clássicos da língua portuguesa. No desenvolvimento da tese, após discutimos a relação história e fotografia, reconstruímos o caminho do exército invasor e a criação dos pensamentos e possíveis análises sobre a região e sua população, sempre a partir das leituras de imagens, fotográficas ou literárias, sobre o episódio. Ao fim, fazemos um exercício de visualização dos possíveis moradores do Belo Monte, a partir dos fragmentos e fimbrias das imagens restantes do episódio. Neste Simpósio Temático, “DOBRANDO ESQUINAS: (OUTROS) TRABALHADORES E A CIDADE”, pretendo fazer algumas reflexões a respeito dos trabalhadores existentes na cidade do Belo Monte, conhecida pela repressão como Canudos. Assim voltando a um artigo nosso publicado no jornal “A Tarde” em 1993, no qual comentávamos um cartaz produzido para um evento sobre o tema, no qual parecia em destaque a imagem da escultura de Antônio Vicente Mendes Maciel, feita por Mario Cravo Neto, sobre uma tela de Trípoli Gaudenzi, na qual aparecia, diluídos em aquarela, os moradores do arraial. Podemos dizer que essa era a visão que se construíra do episódio conhecido como a guerra de Canudos, a povoação dissolvida e a ênfase em raros sujeitos. Outrossim, queremos lembrar o professor José Calazans2, o patriarca dos estudos canudenses, que costumava dizer ser preciso abandonar o livro clássico de Euclides da Cunha, “Os sertões”, ou “a gaiola de ouro euclidiana” como gostava de o chamar, para podermos chegar ao conhecimento sobre ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 08: Dobrando esquinas: (outros) trabalhadores e a cidade. 1 Canudos/Belo Monte. Deste modo, podemos dizer ser o nosso exercício nesta temática resumido em uma constante busca de fugir do monopólio destes dois riquíssimos personagens que tem tomado de assalto o centro da cena do teatro dantesco da guerra de Canudos, empurrando para fímbrias as dezenas de milhares de outros atores, reduzidos assim a meras e vulgares figuras ilustrativas. Oriundo do Programa de Estudos de Pós-Graduação em História Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo nossa preocupação concentrou-se, desde o início, em tentar vislumbrar nos textos, escritos, orais e até fotográficos, os aspectos humanos, naqueles personagens, reduzidos, arbitrariamente, a rótulos restritivos e desqualificativos, como “fanáticos”, “beatos” e “jagunços”. Neste particular vem-nos a mente a afirmativa de Gadamer3, quando nos ressalta ser o papel do historiador o de retirar de um retrato difuso de uma multidão de anônimos, sujeitos isolados e tentar percebêlos como personagens históricas com suas subjetividades. Neste particular, para melhor compreensão dos modos de vida dos belomontenses trabalhamos “O REI DOS JAGUNÇOS” de Manoel Benício4, um correspondente de guerra, como Euclydes da Cunha, que teve uma relação conflituosa com o comando militar e, neste seu livro publicado em 1899, três anos antes de “OS SERTÕES”, descreveu uma série de informações da guerra e da vida de seus moradores. Cabe aqui a reprodução de parte da sua capa, por ser altamente ilustrativa do pensamento do seu autor, que após o título acrescenta: CHRONICA HISTORICA E DE COSTUMES SERTANEJOS sobre os ACONTECIMENTOS DE CANUDOS DOCUMENTADA E COMMENTADA por MANOEL BENICIO, Ex-correspondente do Jornal do Commercio junto ás forças legaes contra Antonio Conselheiro. RIO DE JANEIRO Typ. Do “Jornal do Commercio”de Rodrigues & C. 1899. Este livro, pela riqueza de elementos que traz sobre a vida sertaneja nas suas 408 páginas, especialmente na ”I Parte”, em que nas 185 páginas descreve o fazer-se cotidiano dos sertanejos em peregrinações que culminariam em Canudos, vale por si só como um vibrante depoimento deste jornalista pernambucano que, não obstante sua formação militar e o seu ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 08: Dobrando esquinas: (outros) trabalhadores e a cidade. 2 comprometimento com os ideais republicanos soube, como poucos, retratar a maneira de pensar, agir, sentir e falar do povo nordestino, merecendo pelo seu valor mais uma edição, antes dessa ocorrida por ocasião do Centenário da destruição de Canudos. Também bastante significativa é a utilização do “HISTORICO E RELATÓRIO DO COMITÊ PATRIÓTICO DA BAHIA”5 texto produzido por um grupo de cidadãos baianos, especialmente por profissionais liberais, empresários dos diversos setores, representantes da imprensa e dos vários setores organizados da população, além de estudantes, principalmente de Medicina, como o nome indica, é o relatório final deste Comitê que, originalmente criado em apoio aos combatentes legais da Guerra de Canudos, e aos seus órfãos e esposas, com o decorrer do movimento começa assumir o papel de defesa dos belomontenses, constituindo-se na grande tribuna de defesa dos seus órfãos, viúvas e prisioneiros sobreviventes no pós-guerra. Publicado em 1901, sob a coordenação do Jornalista Lélis Piedade permite identificar profissões, etnias, origem, idade sexo, posses e relações familiares, mesmo após o fim da guerra dos sobreviventes. Consta desta publicação, como o nome indica, de um breve “HISTORICO”, com cerca de 09 páginas. De uma “PARTE 2ª”, na qual encontram-se todas as transcrições das notas sobre o comitê, no período de 24/03/1897 até dezembro/1901. Conforme foi publicado no Jornal de Notícias, órgão representado no comitê pelo jornalista Lélis Piedade, este relatório, junto com o “BALANÇO GERAL”, e uma relação de órfãos recolhidos, perfazem cerca de 170 páginas, além de uma descrição do monumento aos mortos de Canudos. E, por fim, dois Anexos: O primeiro sobre uma viagem à Cansanção, onde funcionou um hospital do comitê e base avançada, com cerca de LVIII páginas e um segundo, que é o Relatório da comissão especial para recolher os órfãos, com cerca de XXXI páginas, ambos feitos pelo jornalista acima citado. No mestrado, cuja dissertação “Universos em confronto: Canudos versus Bello Monte”6 também publicada em 2000, iniciamos um primeiro exercício baseados em registros escritos realizados por profissionais militares e/ou da imprensa presentes no teatro da guerra, ou em textos recolhidos ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 08: Dobrando esquinas: (outros) trabalhadores e a cidade. 3 durante o episódio ou após muitos anos depois da guerra, como é o caso de Honório Vilanova7, entrevistado por Nertan Macedo, aproximadamente 67 anos após o término do conflito, mas mesmo assim capaz de reproduzir como extrema fidelidade episódios e lembranças da cidade do Belo Monte, percebida de dentro de um armazém na praça central do vilarejo de onde o depoente via transcorrer os dias. No processo de transformação dessa dissertação em livro nos deparamos com as fotos Flávio de Barros8, utilizadas como ilustração nas aberturas de capítulos, impondo-se, ousadamente, pouco a pouco e definitivamente, como elementos a exigir uma análise autônoma pela narrativa que portava. Desde modo, dispusemo-nos a realizar uma leitura do episódio à partir do conjunto das 68 fotos, componentes da coleção, privilegiando aquelas portadoras dos moradores do Belo Monte, personagens á espera de alguém que se dispusesse a promover um diálogo considerando-se como um discurso independe das legendas e das interpretações escritas a que nós estávamos acostumados. Nas leituras preparatórias para a abordagem das fotografias como uma linguagem própria, portanto precisando que nos “alfabetizássemos” para o seu melhor desempenho, aproximamo-nos de Raphael Samuel9 e sua originalíssimas observações e contribuições á cerca das relações dessa arte, com a história e das dificuldades que surpreendem os historiadores costumados aos tratos com a escrita que estes, “amantes das letras“ em sua feliz expressão, sempre tiveram nestas poucas e raras tentativas de aproximações. Por outro lado, esse autor nos orientou fortemente no sentido da compreensão de como podemos surpreender traços de humanidade mesmos nos retratos dos prisioneiros, em qualquer tempo. Concomitantemente, nos dedicamos a exercícios de leituras sobre a técnica e a história da fotografia, para que nós nos assenhoreássemos de sua leitura e da compreensão do ato fotográfico e suas implicações. Nesse particular, Dubois10 nos ofereceu, juntamente com Benjamin e outros, significativos elementos para esse aprendizado, na medida em que passamos a perceber a fotografia uma técnica de tradução do mundo com um linguagem, ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 08: Dobrando esquinas: (outros) trabalhadores e a cidade. 4 história e memória próprias. Finalmente, nesta utilização das fontes externas sobre o episódio, trabalhamos as fotografias produzidas por Flávio de Barros, contratado como fotógrafo oficial do comando militar, usadas na perspectiva de permitir estabelecer paralelos com os sobreviventes de Canudos, especialmente em relação a profissões, etnias, posturas e vestuário. Estas 72 fotos foram tiradas durante o período da Guerra, na quarta e última expedição e foram apresentadas pelo governo republicano, em exposições itinerantes pelas grandes capitais brasileiras. Constitui-se, portanto, do mais autorizado registro oficial da guerra, no sentido de ilustrar os tons de pele, os modos de vestir e de pentear, de se comportar e de ser dos que foram banidos da ordem em construção. Sugere quase uma justificativa oficial da barbárie dos poderes dominantes perpetraram sobre os adeptos do Conselheiro. É significativo que, como parte da comemoração dos cem anos da destruição de Bello Monte/Canudos o Ministério do Exército republicasse estas fotos. Assim instrumentalizados, passamos a ler essas fotos de Flávio de Barros e ao estabelecermos diálogos com os outros autores, iniciamos um pequeno exercício considerando o que podíamos ver, agora mais claramente nas fotos, ao tempo em que encontrávamos nos diversos autores novos e enriquecedores elementos daquelas e vice-versa. Deste modo, as falas dos diversos sujeitos ganhavam relevância e suas expressões corpóreas e faciais passavam a nos fazer vislumbrar novas evidências do fazer-se belomontense, ao tempo em que cada nova leitura ganhava relevância e abriam múltiplas perspectivas de novos trabalhos. As fotos passavam a falar mais e nos exigir novos exercícios num derramar de possibilidades inesgotáveis. A leitura sempre apaixonante de Vilanova, sobre os personagens do Belo Monte que até então se afiguravam como figuras irreais ganhavam rostos à medida que nos debruçávamos sobre as fotos de Flávio de Barros e as comparávamos com as de outros fotógrafos de tempos posteriores, como de Pierre Verger há mais de cinqüenta anos ou de Antônio Olavo, como tanto outros, ainda em plena, constante e dinâmica realização. A humanidade agora destacada em seus rostos ganhava historicidade após esses exercícios e, à luz ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 08: Dobrando esquinas: (outros) trabalhadores e a cidade. 5 das descrições do Comitê Patriótico, cada vez mais eram enriquecidas de novos elementos identificadores. Esses velhos textos, agora renovados pelo saber ler fotos, incorporavam aos títulos desqualificativos de jagunços, fanáticos e beatas, agora caminhos, naturalidades, etnias, famílias, profissões, sofrimentos e bem quereres, traduzidas, nas fotos, em suas expressões, posturas, gestuais e olhares, ora assustando, em alguns momentos, até seus acusadores e inquiridores, pela firmeza traduzida nos semblante ou pela dor contida no olhar, mas, acima de tudo, eram sujeitos históricos finalmente livres das desqualificações que as tropas invasoras, com os seus instrumentais da imprensa escrita e fotografia, tanto tentaram lhes impingir. Uma fotografia que por si só merece um belíssimo trabalho é a recebedora de variados nomes na tentativa de esconder a presença, ao fundo e próximos das tropas que os cercam, de inúmeros homens, rendidos do Belo Monte, pela razão de terem sido degolados entre o dia do registro 2 de outubro de 1897, e os registros dos Comitê Patriótico, no qual praticamente não se encontram homens adultos. Uma leitura cuidadosa nos permite vê-los, isolá-los e comparando com os outros registros escritos, se não identificá-los, atribuilhes elementos de humanidade e, assim finalmente retribuir-lhes o seu lugar na história. NOTAS: 1 - Utilizamos os seguintes textos de Euclydes da Cunha: CUNHA, Euclides da. Caderneta de Campo. 1a. ed. São Paulo: Cultrix, 1975. CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 35a. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1985. CUNHA, Euclides da. Canudos e inéditos. São Paulo: Ed. Melhoramentos, 1967. 2- Nestes primeiros trabalho utilizamos fartamente dos conhecimentos do professor José Calazans que nos franqueou seus textos, comentários e sua larga experiência nos estudos canudenses, destacando suas publicações: CALASANS, José. “A Guerra de Canudos na Poesia Popular”. In: REEDIÇõES, n.o 01. Salvador: UFBa, 1989. CUNHA, Euclides da. Canudos na literatura de cordel. São Paulo: Ática, 1984. CUNHA, Euclides da. No Tempo de Antonio Conselheiro. Salvador: UFBa, 1959. CUNHA, Euclides da..Quase biografias de Jagunços. Salvador: UFBa, 1986. ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 08: Dobrando esquinas: (outros) trabalhadores e a cidade. 6 CUNHA, Euclides da. (apres.). Relatório apresentado pelo Revdmo. Frei João Evangelista do Monte Marciano ao Arcebispado da Bahia sobre Antônio conselheiro e seu séquito no Arraial de Canudos - 1895. Salvador: UFBa, 1987. (Publicações da UFBA, n.o130) (Ed. facsimilada). 3 - GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Petrópolis.Vozes. 1997. 4 - BENÍCIO, Manoel. O rei dos jagunços: crônica histórica e de costumes sertanejos sobre os acontecimentos de Canudos. 2a. ed. Rio de Janeiro: Jornal do Commercio /Fundação Getulio Vargas, 1997. 5 – PIEDADE, Lèlis. Histórico e Relatório do Comitê Patriótico. Salvador: Litho. e Typ. e Enc. Reis, 1901.Para esse nosso trabalho adotamos a 2ª Edição, produzida por Antonio Olavo com novas apresentações, notas e anexos. PORTFOLIUM EDITORA. Bahia. 2002. 6 – GUERRA, Sérgio. Universos em confronto: Canudos versus Bello Monte. Salvador. UNEB/CEEC. 2000. 7 - MACEDO, Nertan. Memorial de Vilanova. 2a. ed. Rio de Janeiro: Ed. Renes, 1983. 8 - ALMEIDA, Cícero A. F. de – Imagens da Guerra. Rio de Janeiro. Lacerda/Museu da República. 1997. 9 - SAMUEL, Raphael. História local e história oral. In: Revista Brasileira de História, n. º 19 São Paulo: Marco Zero, 1990. SAMUEL, Raphael. História popular y teoria socialista. Barcelona: Crítica/Grijalbo, 1984. SAMUEL, Raphael. “Teatros de Memória.” In: Projeto História, vol. 14, p.41-82. São Paulo: Educ, 1997. 10 –DUBOIS, P. O ato fotográfico. Campinas. Papirus. 1993. ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 08: Dobrando esquinas: (outros) trabalhadores e a cidade. 7